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Um dos nossos maiores desafios como huma- nidade é, e sempre foi, vermos uns aos outros e nossas diferenças de maneira respeitosa, harmonio- sa e livre de preconceitos. Todavia, o que temos visto tem sido exatamente o oposto: desrespeito, intolerância, conflitos e muito sofrimento decorrente de todo tipo de preconceito. Esse é um quadro preocupante especialmente quando se observa o enorme sofrimento daqueles que por alguma razão são vistos como “diferentes”. Nesse sen- tido é que se deve avaliar a enorme importância da antropologia cultural como ciência que tem o próprio ser humano em sua dimensão cultural como objeto de estudo. A grande contribuição da antropologia é propor a discussão da alteri- dade, isto é, a percepção do outro. E quem é o outro? Aquele que por alguma razão é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos engrandece, nos ajuda a construir nossa humanidade e nos permite relativizar tudo o que está fora da nossa cultura. Esta obra tem como objetivo discutir temáticas relacionadas à cultura, considerando diferentes eixos organizadores, sempre com foco no pa- pel que esse conceito desempenha para a análise antropológica. Código Logístico 59248 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6599-8 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 9 9 8 ANTROPOLOGIA CULTURAL SOLANGE M . S. DEM ETERCO Antropologia Cultural Solange M. S. Demeterco IESDE BRASIL 2020 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: photka/Varavin88/Damir Khabirov/WitR/Edson Campolina/Shutterstock fotografiche/piccaya/CreativeNature_nl/sonyakamoz/Envato elements CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ D449a Demeterco, Solange M. S. Antropologia cultural / Solange M. S. Demeterco. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 164 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6599-8 1. Etnologia. 2. Antropologia. 3. Etnocentrismo. I. Título. 20-62183 CDD: 305.898 CDU: 39 Solange M. S. Demeterco Doutora em História e mestra em História do Brasil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Currículo e Prática Educativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduada em Ciências Sociais pela UFPR. Professora de ensino médio e superior nas áreas de sociologia, história, geografia e geopolítica. Autora de livros didáticos para o nível superior. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Antropologia e cultura 9 1.1 Cultura: um conceito antropológico 10 1.2 Objeto e objetivo da antropologia cultural 14 1.3 Diversidade cultural 18 2 O processo civilizatório e a cultura 25 2.1 Norbert Elias e o processo civilizador 26 2.2 A concepção de humano e a cultura 31 2.3 Práticas culturais e as formas de distinção social 37 3 A experiência de alteridade 46 3.1 O eu e o outro 46 3.2 A igualdade e a diferença em uma perspectiva dialógica 51 3.3 O etnocentrismo e o relativismo cultural 57 4 O multiculturalismo 66 4.1 As relações étnico-raciais e o racismo 67 4.2 As relações de gênero e a antropologia cultural 75 4.3 A questão da imigração e a antropologia cultural 82 5 A antropologia cultural e os símbolos 91 5.1 Imagens, símbolos e sociedade 92 5.2 Ritos, rituais e práticas culturais 97 5.3 Estereótipos, discriminação e preconceito 101 6 A antropologia cultural e a cultura brasileira 109 6.1 A formação do povo brasileiro 110 6.2 A diversidade cultural brasileira 116 6.3 O colonialismo, a mestiçagem e o patriarcalismo no Brasil 123 7 Relações entre espaço, cultura e sociedade 132 7.1 A construção social das categorias de espaço e tempo 133 7.2 A diversidade cultural e ambiental 140 7.3 A cultura, o espaço e a globalização 146 Gabarito 159 Um dos nossos maiores desafios como humanidade é, e sempre foi, vermos uns aos outros e nossas diferenças de maneira respeitosa, harmoniosa e livre de preconceitos. Todavia, o que temos visto tem sido exatamente o oposto: desrespeito, intolerância, conflitos e muito sofrimento decorrente de todo tipo de preconceito. Esse é um quadro preocupante especialmente quando se observa o enorme sofrimento daqueles que por alguma razão são vistos como “diferentes”. Nesse sentido é que se deve avaliar a enorme importância da antropologia cultural como ciência que tem o próprio ser humano em sua dimensão cultural como objeto de estudo. A grande contribuição da antropologia é propor a discussão da alteridade, isto é, a percepção do outro. E quem é o outro? Aquele que por alguma razão é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos engrandece, nos ajuda a construir nossa humanidade e nos permite relativizar tudo o que está fora da nossa cultura. Esta obra tem como objetivo discutir temáticas relacionadas à cultura, considerando diferentes eixos organizadores, sempre com foco no papel que esse conceito desempenha para a análise antropológica. No primeiro capítulo, vamos tratar sobre as bases da antropologia cultural, seu objeto de estudo e seus objetivos, além de apresentar uma reflexão em torno da diversidade cultural em suas múltiplas dimensões, tão fundamental para pensarmos a existência de tantas e tão diversas visões de mundo entre os diferentes povos e culturas. O que a antropologia nos mostra é que essa diversidade foi essencial para nosso processo civilizatório, sobretudo ao analisarmos de que modo as práticas culturais podem ser utilizadas como fator de distinção social e construção de identidades individuais e coletivas – tema do segundo capítulo. Já no Capítulo 3, o tema é a experiência da alteridade, com o objetivo de nos ajudar a compreender o impacto negativo de atitudes e comportamentos etnocêntricos na convivência social e o quão importante é a valorização do diálogo e do respeito com o outro para uma boa convivência. Com base em noções como etnocentrismo e relativismo cultural, vamos discutir questões muito próximas à nossa realidade, a qual muitas vezes é marcada pelo conflito em razão de não considerarmos que cada cultura tem sua própria lógica. APRESENTAÇÃO Nesse sentido, o multiculturalismo é o tema do Capítulo 4, no qual se analisa como ocorrem as relações étnico-raciais, as relações de gênero e o contato com imigrantes na sociedade atual, avaliando como as desigualdades observadas se relacionam com práticas discriminatórias e preconceituosas quanto ao diferente e como são responsáveis por sua exclusão. No Capítulo 5, vamos tratar de algo que é muito importante para a antropologia cultural: como se formam e para que existem os simbolismos. Entenderemos como símbolos, rituais e diferentes práticas culturais são construídos, analisando como estereótipos e preconceitos são determinantes da discriminação e da exclusão social. Para pensarmos a antropologia cultural e a cultura brasileira, no Capítulo 6, o objetivo é investigar como aconteceu o processo de formação do povo brasileiro, pensando o papel desempenhado pelos povos indígenas nativos, negros africanos e pelos imigrantes na construção da identidade nacional, considerando o processo de colonialismo, a mestiçagem e o patriarcalismo na história do país. Nesse contexto, vamos avaliar o impacto disso na atualidade e no caráter nacional. No sétimo e último capítulo, o tema são as relações entreespaço, cultura e sociedade, avaliando a importância do conceito de cultura para pensarmos a construção social de categorias de análise como espaço, tempo e territorialidade. Analisaremos como a presença humana em determinados territórios influencia não só o ambiente, mas particularmente o espaço, que sempre é uma construção social, histórica e cultural. Além disso, é importante considerar que o fenômeno da globalização nos apresenta desafios e impõe reafirmar a importância da diversidade cultural, ao lado da diversidade ambiental. Assim, o que mais desejamos é que a sua caminhada seja plena de descobertas, reflexões e provocações que abram para novas perspectivas e que estimulem uma prática social pautada na ética, no respeito ao outro e ao meio ambiente. Que esse seja só um começo. Bons estudos! Antropologia e cultura 9 Você já se perguntou como nós, seres humanos, chegamos até aqui? Como construímos séculos de história, realizações, invenções e produzimos tanto conhecimento? Sermos animais nos faz ter conexões com a natureza, mas, diferente dos demais, temos a capacidade de pensar e racionalizar tudo o que vemos, vivemos e sentimos. Isso nos define e nos coloca inúmeros desa- fios, sobretudo por essas nossas singularidades, inclusive nossa capacidade de interagir com a natureza, transformando-a. A antropologia é a ciência que se debruçou sobre essas questões buscando compreender o ser humano em todas as suas dimensões, tornando-o seu objeto de estudo e, ao lado de outras áreas do saber, ampliando o conhecimento sobre o que caracterizaria o processo de humanização do Homo sapiens, ou seja, de nós! Neste capítulo, analisaremos a importância do conceito de cultura, primordial para essa ciência, compreendendo o obje- to e o objetivo da antropologia cultural. Vamos também refletir sobre o valor da diversidade cultural e das diferentes visões de mundo, reconhecendo que todos os povos e culturas têm um valor em si mesmos. É importante compreender que nenhum indivíduo é apenas um portador ou reprodutor de cultura, mas é um agente que tem historicidade, isto é, tem um papel ativo e importante em toda e qualquer mudança cultural. Antropologia e cultura 1 10 Antropologia Cultural 1.1 Cultura: um conceito antropológico Vídeo Pensar o processo de humanização da nossa espécie é pensar em uma série de passos dados em direção a uma existência menos sujeita às condições naturais. Trata-se de avaliar como o ser humano foi crian- do as condições para sobreviver a um ambiente quase sempre muito hostil e os meios para tornar sua vida menos difícil. Como buscou aten- der às necessidades básicas – alimentação, abrigo, proteção etc. – e outras que transcendem a materialidade, tais como a relação com o sagrado e as inúmeras tentativas de explicar as próprias manifestações da natureza e o sentido da vida. Em meio às possibilidades de busca por respostas a essas questões, além daquelas oferecidas pela teologia e pela filosofia, por exemplo, surge a antropologia. Fazendo uso da ideia de cultura como sua cate- goria de análise por excelência, a antropologia oferece uma fundamen- tação científica para problematizar e analisar as diferenças que sempre existiram entre grupos humanos, especialmente quando se pensa em língua, formas de moradia, de alimentação, de convivência e de rela- cionamento, enfim, de ver o mundo. E mais, ela fornece subsídios para pensar como harmonizar as diferenças, chamando a atenção para a necessidade de se valorizar a diversidade. Clyde Kluckhohn, no início da década de 1970, definiu o antropólo- go como: “uma pessoa suficientemente louca para estudar seus seme- lhantes” (1972, p. 19). E por que ele seria um louco? Exatamente porque é muito difícil estudar o próprio ser humano naquilo que é seu maior diferencial em comparação com os demais seres vivos: a capacidade de mudar o mundo em que vive. Enquanto a sociologia estuda a humanidade no seu tempo e espaço presente, a antropologia procura entendê-la enquanto produtora de cultura e diversidade. Inicialmente, o foco da antropologia eram os gru- pamentos humanos distantes cultural e geograficamente, momento no qual os indivíduos participantes dessas culturas eram classificados ora como primitivos, ora como selvagens, bárbaros ou atrasados. Hoje, a Obra clássica, Aprender antropologia apresenta um pouco da trajetória da constituição da an- tropologia como ciência, trazendo alguns dos em- bates que marcam seus primórdios, sobretudo a discussão em torno da ideia do que seria o “selvagem” e o “civilizado”, e apresentando os pre- cursores do pensamento antropológico. LAPLANTINE, F. São Paulo: Brasi- liense, 2009. Livro Antropologia e cultura 11 teoria antropológica combate toda e qualquer análise que estabeleça algum tipo de hierarquia ou juízo de valor entre culturas diferentes. A discussão sobre a alteridade, isto é, a percepção do outro, seja ele quem for, é a premissa que há muito a orienta. Ainda que não pretenda dar conta de todos os aspectos da vida do ser humano, a antropologia é a ciência que conseguiu mais resultados na tentativa de mapear o processo de evolução sociocultural da huma- nidade ao longo do tempo. Suas subáreas, como a paleontologia e a arqueologia, em muito contribuíram para traçar o processo evolutivo. E o conceito de cultura foi se sedimentando cada vez mais, passando-se a vê-la como um mapa, conforme afirma Kluckhohn (1972, p. 39): A cultura é como um mapa. Tal como um mapa não é um terri- tório, mas uma representação abstrata de uma região em parti- cular, assim, também uma cultura é uma descrição abstrata de tendências para a uniformidade nas palavras, nos feitos e nos artefatos de um grupo humano. Quando um mapa é exato e se sabe interpretá-lo, não se ficará perdido; se conhecermos uma cultura, saberemos o caminho a seguir na vida de uma sociedade. Assim sendo, não saber ou não conseguir interpretar esse mapa não significa que ele esteja errado ou que não tenha valor. Kluckhohn (1972) também chama a atenção para o fato de não ser possível que to- dos os integrantes de uma mesma cultura conheçam em detalhes esse mapa cultural. O que ele e outros pensadores da área já estabeleceram é a ideia de que ser humano é ter cultura, entendida como uma forma de equacionar natureza e tudo o que é produção humana; ao mesmo tempo, uma forma de controle que permite a vida em sociedade. Isso porque, ainda segundo Kluckhohn (1972, p. 37), “a cultura regula as nossas vidas em todas as circunstâncias. Desde o momento em que nascemos até morrermos, existe, quer tenhamos consciência disso ou não, uma pressão constante, que nos leva a adotar certos tipos de com- portamentos que outros homens criaram para nós”. E como poderíamos compreender o que é a cultura? Diversos pen- sadores a definiram ao longo do tempo, sobretudo em razão do próprio processo de construção da antropologia enquanto ciência independen- 12 Antropologia Cultural te, separada da sociologia, ao passo que antropologia social e cultural se separam. Vejamos algumas dessas elaborações. Edward B. Tylor (1871) Concepção universalista da cultura, ideias – cultura seria uma abstração, e não algo concre- to/material. “É aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Kahn, 1975, p. 29 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 22. Ralph Linton (1936) Cultura como ideias, isto é, uma abstração, que compõe o pensamento dos indivíduos. “Consiste na soma total de ideias, reações emocio- nais condicionadas a padrões de comportamento habitual que seus membros adquiriram por meio da instrução ou imitação e de que todos, em maior ou menor grau, participam. Para ele, o termo tem dois sentidos: a herança social total da humanidade [e] uma determinada variante da herança social”. Linton, 1959, p. 316 apud Marconi; Presotto, 2011,p. 22. Franz Boas (1938) Concepção particularista da cultura – só é possível conhecer determinada cultura procurando com- preender sua própria lógica. “A totalidade das ações e atividades mentais e físicas que caracterizam o comportamento dos indivíduos que compõem um grupo social”. Boas, 1964, p. 166 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 22. Bronislau Malinowski (1944) Análise funcionalista da cultura, ideais que têm o papel de explicar as causas e as funções das ações individuais ou coletivas. “O todo global consistente de implementos e bens de consumo, de cartas constitucionais para os vários agrupamentos sociais, de ideias e ofícios humanos, de crenças e costumes”. Malinowski, 1962, p. 43 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 22. Kroeber e Kluckohn (1952) Abstração do comportamento. Essencialismo, isto é, aquilo que faz parte da essência da na- tureza humana. “Uma abstração do comportamento concreto, mas em si própria não é comportamento”. Kroeber e Kluckohn, 1952, p. 19 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 22. Beasls e Hoijer (1953) Abstração do comportamento – ideias que em- basam o comportamento humano. “É uma abstração do comportamento e não deve ser confundida com os atos do comportamento ou com os artefatos materiais, tais como ferra- mentas, recipientes, obras de arte e demais ins- trumentos que o homem fabrica e utiliza”. Beasls e Hoijer, 1969, p. 265 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 22. Antropologia e cultura 13 Felix M. Keesing (1958) Comportamento aprendido, aquilo que é transmi- tido ao longo de gerações, por meio do processo de socialização. “Comportamento cultivado, ou seja, a totalidade da experiência adquirida e acumulada pelo ho- mem e transmitida socialmente, ou, ainda, o com- portamento adquirido por aprendizado social”. Kessing, 1961, p. 49 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 23. Leslie A. White (1959) Não deve ser vista como um comportamento em si mesma, fora do organismo humano, constituí- da de elementos materiais e não materiais. “Quando coisas e acontecimentos dependentes de simbolização são considerados e interpre- tados num contexto extra somático, isto é, em face à relação que têm entre si, ao invés de com os organismos humanos”. White, in Kahn, 1975, p. 129 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 23. G. M. Foster (1962) Comportamento aprendido e compartilhado du- rante a vida em sociedade. “A forma comum e aprendida da vida, comparti- lhada pelos membros de uma sociedade, constan- te da totalidade dos instrumentos, técnicas, insti- tuições, atitudes, crenças, motivações e sistemas de valores conhecidos pelo grupo”. Foster, 1964, p. 21 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 23. Clifford Geertz (1962) Mecanismo de controle do comportamento. Sendo um comportamento aprendido ao longo da vida, a cultura acaba se tornando uma forma de controlar comportamentos e ações de indivíduos e grupos sociais. “A cultura deve ser vista como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instituições – para governar o comportamento”. Geertz, 1973, p. 37 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 22-24. Cada um desses autores, ao pensar o conceito de cultura, se ba- seia numa premissa: para Tylor, Linton, Boas e Malinowski, cultura é o conjunto de ideias, enquanto para Kroeber e Kluckohn e Beals e Hoijer, trata-se de uma abstração do comportamento. Se para Linton a personalidade básica do indivíduo seria determinada pela cultura à qual pertence, Kroeber afirmava que a cultura teria uma existência pró- pria, “independente da ação dos indivíduos e fugindo ao seu controle” (CUCHE, 1999, p. 87). Todos eles, com suas obras, foram fundamen- tais para a constituição da antropologia como ciência autônoma, mas a teoria avançou e surgiu a defesa de que cultura seria um comporta- mento aprendido, tal como afirmavam Keesing e Foster. A interação social possibilitaria que a cultura fosse transmitida entre gerações e entre indivíduos, reforçando ou consagrando crenças, hábitos, padrões e valores que seriam internalizados e reproduzidos. 14 Antropologia Cultural Já segundo White (2009), a cultura não deve ser vista como um com- portamento em si mesma, como se não fizesse parte do indivíduo, já que se constitui de elementos materiais e não materiais. Ele diferencia comportamento e cultura, a qual independe do organismo humano. Aqui tem-se um avanço em relação à noção de que cultura é aprendida e determina comportamentos, compreende-se que também é formada por representações simbólicas construídas pela humanidade. Completando o quadro acima, Clifford Geertz (2017) afirma que a cultura é também um mecanismo de controle do comportamento, constituindo-se em uma teia de significados, um sistema de símbolos que orienta a vida de indivíduos e grupos humanos. Ao se relaciona- rem, os indivíduos expressam suas referências culturais de várias for- mas, inclusive orientando comportamentos, o que a caracteriza, por fim, como um mecanismo de controle composto por regras, padrões, leis etc. A cultura é inerente ao ser humano e, sendo assim, consideran- do que aqui não se está adotando sua compreensão como sinônimo de escolaridade ou erudição, é possível concluir que todos os indivíduos têm cultura. 1.2 Objeto e objetivo da antropologia cultural Vídeo A antropologia se insere no campo das chamadas Humanidades, sendo uma das Ciências Sociais e, como tal, tem especificidades em relação às demais áreas do conhecimento. A principal delas é a relação com seu objeto de estudo: um ser semelhante a si mesmo. Ainda que outras ciências, como a sociologia e a psicologia, também investiguem o ser humano, cada uma delas tem uma abordagem diferente da an- tropologia. Ao buscar compreender o ser humano enquanto ser bioló- gico e cultural, a antropologia toma por objeto a existência humana em todos os seus aspectos (MARCONI; PRESOTTO, 2011). Talvez essa seja parte da “loucura” à qual fez referência Kluckhohn (1972) anteriormente. Não seria uma loucura mesmo? Como conseguir ter o necessário distanciamento para conseguir a imparcialidade exigi- da pela ciência para se estudar determinado objeto? Afinal, fazer ciên- cia requer rigor em relação a métodos e técnicas de pesquisa. Por muito tempo a antropologia debateu essa questão e, ao longo de sua trajetória enquanto ciência, houve diversos embates que deram Antropologia e cultura 15 origem a correntes teóricas que, aos poucos, foram deixando mais cla- ro como lidar com esse objeto de estudo: a humanidade e suas obras. Segundo Marconi e Presotto (2011, p. 2), o objeto da antropologia engloba as formas físicas primitivas e atuais do homem e suas manifestações culturais. Interessa-se, preferencialmente, pelos grupos simples, culturalmente diferen- ciados, e pelo conhecimento de todas as sociedades humanas, letradas ou ágrafas, extintas ou vivas, existentes nas várias re- giões da Terra. Atribui-se ao antropólogo a tarefa de proceder a generalizações, formulando princípios explicativos da formação e desenvolvimento das sociedades e culturas humanas. Aos poucos, o interesse do antropólogo cultural deixou de ser apenas as sociedades mais “primitivas”, para também investigar as chamadas sociedades complexas, urbano-industriais, sem, no entan- to, abandonar as culturas mais simples. Ao ampliar seu campo de investigação, a antropologia trouxe inúmeras contribuições para a compreensão das diferenças, chamando atenção cada vez mais para a importância da diversidade cultural. Tendo como objetivo o estudo da humanidade como um todo, a an- tropologia pesquisa sistematicamente todas as manifestações do ser humano e da atividade humana de maneira unificada. Em seus primórdios, os antropólogos se dedicavam ao “excepcio- nal”, ao “excêntrico” ou ao “exótico”, deixando de lado aspectos liga- dos ao trivial da vida das pessoas e focando especialmente os traços físicos dos indivíduos e grupos que não faziam parte da sua realidade. Em princípio, pensavam que isso lhes garantiria a isenção necessária para fazerciência, ocupando um lugar deixado por outras áreas do sa- ber, para as quais o que não fazia parte da cultura dominante europeia, branca e civilizada não era importante ou interessante em termos de pesquisa. Entretanto, foi exatamente a esses aspectos da convivência humana que a antropologia se voltou, abrindo uma nova frente de compreensão da humanidade e do processo civilizatório. Nessa trajetória, firmando-se como ciência, a antropologia cul- tural passou a fazer uso de diferentes métodos de coleta e análise de dados, com destaque para a etnografia, que se constitui em uma descrição mais completa possível das práticas culturais de um gru- po humano. Para isso, entre as diversas técnicas de pesquisa, podem ser realizadas entrevistas (diretas ou indiretas), utilizados formulários 16 Antropologia Cultural e, sobretudo, usadas pesquisas de campo com a realização de ob- servação participante. Essa técnica, um dos diferenciais do método antropológico, implica a inserção do antropólogo-pesquisador no am- biente que está se propondo a investigar, participando da rotina e dos eventos do grupo enquanto pesquisa, dando voz ao nativo e procu- rando interpretar aquilo que vê. Como observador participante, concordando com Pelto (1984, p. 56), o antropólogo procura realizar vários outros objetivos principais. Primeiro, espera que, envolvendo-se bastante na vida local, possa conquistar o respeito e confiança dos moradores, de modo que lhe revelem, espontaneamente, aspectos de suas vidas privadas. Segundo, a participação é, com frequência, a melhor forma de ver os detalhes complexos do comportamento humano. Costumes, hábitos, rituais, crenças e esquemas de pensamento dos diferentes grupamentos humanos, quando vistos em seu contexto ori- ginal e nas circunstâncias em que ocorrem, tornam-se mais claros ao pesquisador que, ao descrevê-los, apreende detalhes que de outra for- ma não seria possível. Tendo como foco o comportamento humano e o estudo do ser humano, a prática antropológica busca captar as carac- terísticas que o definem, sob o ponto de vista social, cultural, psíquico e físico. É o que se entende por estudo do ser humano por inteiro, sendo impossível pensar nele sem cultura. Quando pensamos na evolução da humanidade, o que se pode perceber? Que o ser humano foi capaz de construir coisas, realizar mudanças em seu entorno, alterar aspectos da natureza, interagir com seus pares, enfim, produzir cultura! A jornada da humanidade foi – e tem sido – marcada por conquistas, mas também por perdas, ajustes, adaptações e mudanças. A sobrevi- vência da espécie humana foi possível porque ela teve a capacidade de se adaptar às mudanças que ocorriam no planeta, criando formas de atender às suas necessidades, sobretudo após a Revolução Neolíti- ca. Esse foi um marco na caminhada da humanidade em razão, espe- cialmente, das mudanças decorrentes da descoberta e do controle do fogo, da domesticação de animais, da descoberta da agricultura e da sedentarização. O crescimento do cérebro do ser humano lhe possibili- tou desenvolver a cognição e a inteligência, ampliando sua capacidade de criar e produzir artefatos, ferramentas, utensílios etc., além de au- mentar seus questionamentos acerca da própria existência. Antropologia e cultura 17 Figura 1 Jornada do homem 1,7 milhões a.C. – Australopithecus e Homo habilis Ie sd e Br as il S/ A. 1 milhão a.C. – Instrumentos de pedra toscos 500.00 a.C. – Homem de Java e Homem de Pequim Machados de mão no Velho Mundo 100.000 a.C. Novas formas de instrumentos de pedra Arte das cavernas da Europa Ocidental 20.000 a.C. Início do cultivo de cereais no Oriente próximo Início do cultivo do milho no Novo Mundo 4.000 a.C. Primeiras cidades na Mesopotâmia 2.000 a.C. Ascensão da Civilização Grega Nascimento de Cristo Impérios Asteca e Inca, civilização Maia Fonte: Adaptada de Pelto, 1984, p. 73 Diante disso, o papel do antropólogo é trazer à luz diversos aspec- tos das diferentes culturas, de acordo com as premissas do método científico, registrando seus resultados de maneira sistemática. Quando se compreende que nada é “natural” ao se falar do processo evolutivo da humanidade, se constata o quanto é importante adotar uma atitude 18 Antropologia Cultural de “estranhamento” diante daquilo que possa ser familiar, isto é, uma postura de questionamento diante do que se observa e que muitas ve- zes não desperta a atenção. De todo modo, a escolha do método e das técnicas de pesquisa antropológica é importante para que seja possível dar conta das diversas nuances das práticas culturais. O dualismo natureza e cultura, que tantos debates – e embates – gerou ao longo da história da antropologia, perde força quando se en- tende que nada no comportamento humano é natural. Isso porque, segundo Cuche (1999, p. 10-11), a natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultu- ra. As diferenças que poderiam parecer mais ligadas a proprie- dades biológicas particulares como, por exemplo, a diferença de sexo, não podem ser jamais observadas “em estado bruto” (natural) pois, por assim dizer, a cultura se apropria delas “imediatamente”; a divisão sexual dos papeis e das tarefas nas sociedades resulta fundamentalmente da cultura e por isso varia de uma sociedade para outra. O exemplo trazido por Cuche apresenta um dos temas mais discuti- dos na contemporaneidade: a questão de gênero. Mas o propósito agora não é focar esse assunto, e sim chamar a atenção para o fato de que as diferenças entre indivíduos e grupos não podem ser atribuídas somente a aspectos naturais, biológicos ou fisiológicos. Mesmo as funções e ações mais básicas são definidas pela cultura, que orienta o comportamento humano. E, ao investigar como opera a cultura, o objetivo da antropolo- gia é esclarecer aspectos relevantes da vida humana, de forma a contri- buir para a criação de relações mais harmoniosas e respeitosas. 1.3 Diversidade cultural Vídeo A antropologia cultural, ao estudar o ser humano como um ser cul- tural, produtor de cultura, toma as diversas culturas humanas em suas origens, formas de desenvolvimento, no tempo e no espaço, procuran- do mostrar suas semelhanças e diferenças. Assim, a diversidade é um fato e define a caminhada dessa ciência na medida em que foca sua análise no comportamento humano como algo adquirido no convívio social, por meio de aprendizado e trocas culturais. A humanidade é heterogênea, e isso tem se mostrado um pro- blema para muitas pessoas desde que normas, regras e instituições O filme Moana: um mar de aventuras conta a história de Moana Waialiki, uma jovem, filha do chefe de uma tribo, que, ao buscar saber sobre seus ances- trais, inicia uma viagem pela Polinésia, durante a qual muitos aconteci- mentos irão colocar em destaque a diversidade cultural. Diretor: Ron Clements e John Musker. EUA: Disney, Buena Vista, 2016. Filme Antropologia e cultura 19 sociais foram criadas e a vida em sociedade passou a depender da ca- pacidade humana de conviver. Ao longo de toda a história, é possível encontrar exemplos de como a vida entre diferentes povos pode ser, e efetivamente é, complicada. Especialmente ao se incluir na análise a questão fundamental que aqui já foi introduzida anteriormente, que é a compreensão de que cultura é também um mecanismo de controle. Ao se pensar em controle social estamos falando de relações de po- der, que implicam sobretudo a dominação de parte de uma sociedade por outra. Sendo a antropologia uma ciência relativamente nova, ela se desenvolve simultaneamente com o avanço do capitalismo e das rela- ções de poder por conta dele estabelecidas. Nesse sentido, as diferen- ças entre classes sociais tornam-se fator decisivo para se compreender a sociedade, sobretudo a ocidental, berço da antropologia. A luta de classes se expressa na constatação de que há uma clas- se dominante e uma classe dominada, e, por conta disso, há também diferentes culturas.A cultura dominante é aquela produzida pelo seg- mento da sociedade que se impõe ao restante pelo poder econômico, político ou por questões relacionadas a outros aspectos. Dentre esses, há as diferenças entre indivíduos, que passam pela cor de pele, tipo de cabelo, forma de falar, estilo de vida, orientação sexual, gênero, reli- gião, enfim, traços culturais que podem definir a posição do indivíduo na escala social. Por outro lado, essa posição pode implicar em discri- minação, exclusão e preconceito. Sobre isso, observe a Figura 2. Figura 2 A unidade na diversidade Fr an zi /S hu tte rs to ck 20 Antropologia Cultural O que se pode observar nessa figura? É possível dizer, por exemplo, quem é mais rico ou mais importante apenas olhando para os rostos das pessoas? Quais são as características que as diferenciam? É pos- sível dizer exatamente o que cada uma dessas pessoas é ou indicar a priori como elas pensam ou se comportam? Então, o que se pode con- cluir? A humanidade é um único grupo, mas essa unicidade não exclui as diferenças. Temos diferentes características: tipo e cor de cabelo, tom de pele, sexo, idade, entretanto, nenhum desses traços nos define totalmente. Há muito tempo a antropologia vem tentando mostrar o quanto a diversidade enriquece a convivência humana, afirmando que conhecer as diferentes culturas é o que permite ampliar o diálogo. Segundo Geertz (2017), a cultura é um elemento essencial na defi- nição de natureza humana e uma força dominante na história, por isso é imprescindível que a antropologia atue em uma perspectiva de aná- lise interpretativa. Somente o que Geertz (2017) chama de descrição densa 1 permite a compreensão da historicidade das diversas nuances que marcam a natureza humana e a vida em sociedade. Pensando na diversidade como um traço definidor da espécie hu- mana, e que a “cultura confere identidade a uma pessoa” (KUPER, 2002, p. 305), a diversidade cultural se torna uma das temáticas mais relevan- tes para a antropologia, sem a qual a disciplina se esvazia por comple- to. Mas como tratar essa questão? Alguns dos pioneiros da antropologia cultural, como Franz Boas, ao teceram críticas a certos determinismos (climato-geográfico, racial, econômico ou psicológico), reforçaram o papel da cultura como ele- mento central para se compreender e discutir a diversidade humana em seus diferentes aspectos. Considerar a relatividade das práticas culturais e valorizar a diversidade têm sido, desde então, maneiras de questionar e combater as várias formas de discriminação, os precon- ceitos e o racismo. A antropologia cultural tem exercido um papel primordial nesse sentido e, sobretudo, a ideia de que o relativismo é, para Boas (CAS- TRO, 2004), um recurso metodológico. Significa dizer que qualquer indi- víduo verá o mundo por meio da lente da cultura na qual ele se insere e por qual foi formado. Essa constatação inicial já define a maneira como o trabalho de campo na antropologia se realiza. Castro (2004, p. 18) comenta que “o antropólogo deveria procurar sempre relativizar suas Descrição densa é uma forma de etnografia na qual se busca uma interpretação e elaboração de uma leitura da cultura sobre o significado que os nativos dessa cultura atribuem às suas práticas. O antropólogo faz isso realizando a descrição etnográfica e, no trabalho de campo, registrando o que viu. 1 Antropologia e cultura 21 próprias noções, fruto da posição contingente da civilização ocidental e de seus valores”. Ao tratar da cultura no plural, Boas acolhe a diversi- dade e tenta mostrar o valor de todas as culturas, percepção que muda a antropologia e abre caminho para pensadores como Geertz, que re- força o papel da diversidade cultural na constituição da humanidade. Tendo como objetivo “estudar a obra humana” (MELLO, 2015, p. 37), isto é, a cultura – que abarca política, religião, arte, tecnologia, práti- cas, hábitos, crenças e tudo aquilo que o ser humano é capaz de criar, mudar, transformar e que se amplia ao longo de toda a existência humana –, a antropologia muda o olhar sobre a diversidade. Mello (2015, p. 43) afirma que o mundo cultural do homem tem uma abrangência muito gran- de, envolvendo também o mundo natural. [...] a natureza co- nhecida pelo homem não é aquela natureza pura e selvagem [porque] onde o homem põe os pés, deixa de existir a natureza virgem. Isto em virtude de o homem, ao tomar conhecimento de qualquer coisa, o fazer dentro de um sistema ou estrutura de pensamento, que, em última análise, é sua cultura. Ao se deparar com a diversidade cultural – que, afinal, é um traço da humanidade –, é importante ter um olhar atento para que nenhum juízo de valor marque a investigação e, sobretudo, a análise antropo- lógica, pois, segundo Oliveira (1998, p. 16), é trabalho do antropólogo “olhar, ouvir, escrever”. O contato, às vezes, bastante próximo, entre o pesquisador e seu objeto de estudo é um traço da pesquisa antropológica, característica que por muito tempo foi vista como fragilidade, mas que se constitui na riqueza dessa ciência. Roberto Cardoso de Oliveira (1998, p. 34), pensando na observação participante e no método de atuação do an- tropólogo, chama a atenção para o fato de que os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de observação muito peculiar – isto é, peculiar à antropologia –, por meio do qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender – a sociedade e a cultura do outro “de dentro”, em sua verdadeira interioridade. Ao tentar penetrar em formas de vida que lhe são estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do texto, uma vez que essa vi- vência – só assegurada pela observação participante “estando lá” – passa a ser evocada durante toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina. 22 Antropologia Cultural O “estar lá” é essencial para que esse olhar em relação ao diferen- te se amplie, de modo a considerar que diferenças e semelhanças se complementam em direção a uma unidade, a humanidade. Descobrir como costumes e comportamentos surgem no seio de uma cultura é saber mais sobre o indivíduo e o grupo no qual ele se insere, e como se relaciona com outras culturas. Hoje, a teoria antropológica é marcada pela premissa básica de que não se pode apenas comparar culturas diferentes, é preciso com- preender os processos de desenvolvimento social, histórico, político e econômico de cada uma delas. E com isso, a antropologia alcança seus objetivos, contribuindo para ampliar significativamente o conhecimento do ser humano sobre si mesmo, sua cultura e diversidade cultural, vista como um valor em si mesma. CONSIDERAÇÕES FINAIS A cultura, mesmo considerando as várias acepções do termo, pode ser definida como o conjunto de ideias, hábitos, crenças, valores e pa- drões de conduta e de comportamento produzidos pelo ser humano em seu processo evolutivo. Seja quando se fala em cultura material (bens materiais, concretos e resultantes da invenção humana) ou em cultura imaterial (aquela que não tem materialidade, como crenças, normas, ati- tudes etc.), está se falando em algo que define o processo de humaniza- ção e de construção de civilização. Por muito tempo se discutiu na antropologia cultural o peso de deter- minantes biológicos ou condicionantes espirituais na construção da ideia de cultura. Hoje, sabe-se que todo e qualquer idealismo tem um contra- ponto importante na natureza, que exerce, e sempre exercerá, importan- te papel na sua construção. A cultura na qual cada ser humano se insere, de alguma forma, condiciona sua visão de mundo, seus sentimentos, seus ideias e seus comportamentos. Tem sempre uma lógica própria, sendo absolutamen- te coerente para aqueles que dela compartilham. E isso é importante quando se pensa a diversidade cultural, uma vez que, se cada cultura faz sentido em seus próprios termos, atitudes de julgamento em relaçãoao que seja diferente não são plausíveis. Costumes e crenças são compreensíveis quando analisados em pers- pectiva de inter-relações sociais, políticas e econômicas. Isso significa Antropologia e cultura 23 dizer que as diferenças em relação aos padrões culturais são definidas social e historicamente, e não por características herdadas biologicamen- te ou definidas pela natureza. Ao desnaturalizar os comportamentos humanos, a antropologia cultu- ral eleva a cultura à categoria de conceito estruturado e estruturante de seu estudo, uma vez que, ao mesmo tempo que tem uma conformação, define e orienta padrões de pensamento e comportamento do indivíduo ao longo de toda a sua vida. A cultura é simbólica (constituída por símbolos) e social (sociedade e cultura são definidas independentemente dos indivíduos, e são anteriores a eles), é dinâmica (acompanha a mudança social) e, ainda assim, estável (uma vez que, sendo uma forma de aprendizado, tem seu próprio tempo e ritmo), é seletiva (escolhas são realizadas a partir do alicerce cultural de uma sociedade, o qual pode ser reformulado, com abandonos, incorpo- rações, redefinições), é universal e regional e, por fim, é determinante e determinada. ATIVIDADES 1. Em algum momento da sua vida você já deve ter ouvido essa pergunta: “Você tem cultura?”. Observe as duas imagens abaixo e faça o que se pede. Ne w Af ric a/ Sh ut te rs oc k Ci en pi es D es ig n/ Sh ut te rs to ck 24 Antropologia Cultural a) Em qual das duas imagens podemos encontrar a representação da ideia de cultura definida pela antropologia? b) Diante do que você respondeu no item anterior, “você tem cultura?”. Justifique sua resposta. 2. A cultura, assim como a sociedade, é anterior ao indivíduo, o que significa dizer que antes mesmo de nascermos ambas já existiam. O processo de socialização acontece ao longo de toda a nossa vida, por meio do qual vamos internalizando elementos da nossa cultura. Entretanto, isso não impede que expressões como aja naturalmente! façam parte das várias orientações que recebemos, sobretudo quando somos crianças, momento da vida em que várias ordens como essa nos são dadas. Como você vê essa expressão? Faz sentido para você? Por quê? 3. Cultura não é um processo individual, mas sim coletivo, sendo o resultado do confronto das experiências individuais com as experiências coletivas. Precisamos do outro para saber quem somos. Sendo assim, explique por que crianças nascidas em diferentes lugares do mundo serão diferentes. Por que uma criança nascida na China será diferente de outra nascida na França? REFERÊNCIAS CASTRO, C. Franz Boas: antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC, 2017. KLUCKHOHN, C. Antropologia: Um espelho para o homem. São Paulo: Itatiaia, 1972. KUPER, A. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002. MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: Uma introdução. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011. MELLO, L. G. Antropologia cultural: Iniciação, teoria e temas. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 1998. PELTO, P. J. Iniciação ao estudo da antropologia. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. WHITE, L. A. O conceito de cultura. São Paulo: Contraponto, 2009. O processo civilizatório e a cultura 25 2 O processo civilizatório e a cultura Ao longo do tempo, o ser humano construiu sua trajetó- ria com muito esforço. Mas por que se fala em construção? Porque a humanidade é a única espécie que pensa sobre a sua existência e, ao fazer isso, modifica o meio no qual se insere, os outros indivíduos e a si mesma. Desse modo, aos poucos foi produzindo cultura e mudando a forma como os indivíduos se relacionavam, ao mesmo tempo que ampliava o repertório de normas, regras, costumes, comportamentos e atitudes que constituem o que se chama de processo civilizatório. O objetivo deste capítulo é investigar o processo de civili- zação da humanidade, analisando como as práticas culturais podem ser utilizadas como fator de distinção social e cons- trução de identidades individuais e coletivas. Isso é importan- te para que se possa compreender que a cultura é dinâmica, transforma-se e é transformadora. Tudo impactou a maneira como civilizações foram sendo constituídas: pessoas, fatos his- tóricos, conjunturas sociais, políticas e econômicas, mudanças no próprio planeta. Os historiadores têm por premissa afirmar que não se pro- jeta o futuro sem conhecer o passado. A antropologia também contribui para esse processo sempre que coloca luz sobre a produção cultural da humanidade. 26 Antropologia Cultural 2.1 Norbert Elias e o processo civilizador Vídeo Quando se estuda os primórdios da humanidade, que ocorreram na Pré-História, é possível perceber que não foi apenas o instinto de sobre- vivência que impulsionou o processo evolutivo. Sempre existiu no ser humano um desejo por saber mais sobre si mesmo, inclusive no que se refere às formas de convivência com o outro. Civilizações antigas já tinham suas regras e normas de conduta, além de uma organização social pró- pria. É o caso de Egito e Mesopotâmia, entre outras que, cada uma a seu modo, deixaram um legado para a humanidade. Segundo Mello (2015, p. 152), “o homem tornou-se tão perfeita criatura que passou a ser também um criador notável, recriando toda a natureza e a si próprio”. Dessa forma, com sua capacidade de criar, o ser humano vem buscando soluções para suas necessidades, seus dilemas e questio- namentos, em um processo evolutivo que tem como eixo central a ideia de cultura. Ainda segundo o mesmo autor, é apenas estudando a cultura que se compreende a evolução humana. Obviamente que nem todas as suas criações ou ações são sempre positivas, mas certamente todas são uma produção cultural. Nessa linha de se pensar o processo de desenvolvimento humano, saindo da barbárie e chegando à civilização, duas questões se colocam: o que é civilização e qual o papel da cultura? Para ampliar a discussão, um nome deve ser lembrado: Norbert Elias, pensador alemão que transitou entre a filosofia e a sociologia e que, no início do século XX, foi o responsá- vel por pensar sobre a relação entre indivíduo e sociedade e sobre o pro- cesso civilizador. Sendo judeu, precisou, em 1933, sair da Alemanha para fugir do nazismo, o que marcou fortemente a sua obra. Sua experiência de vida o torna um homem de seu tempo, e sua produção intelectual re- flete essa condição. Suas obras são marcadas por uma preocupação com os costumes e com as regras sociais no decorrer da história, em especial quando se pensa a sociedade de corte e o processo civilizador. A violência, a discriminação e a exclusão social também são temas recorrentes em seus trabalhos. Em Os estabelecidos e os outsiders, que tem a colaboração de John Scotson, realiza uma pesquisa de campo em uma cidade da Inglaterra, sendo que o conceito de outsider 1 é uma das categorias de análise fundamental. De certa forma, o próprio Elias era um outsider, pois, por diversas razões, não se enquadrava nas socieda- des nas quais viveu. Outsider é um indivíduo que não se enquadra no padrão estabelecido na sociedade em que vive, ficando à margem das convenções sociais, o que acaba, segundo Elias e Scotson (2000), determinando suas crenças, seus valores e seu comportamento, definindo um estilo de vida próprio. 1 Foi com o livro O processo civilizador, o qual se tornou conhecido em 1990, ano de seu falecimento, que Elias foi reconhecido como um dos maiores pensadores no século passado. Escrito em dois volumes, nessa obra, por meio da observação das mudanças das regras sociais e da forma como os indivíduos as percebiam e, a partir disso, modificavam seus com- portamentos e sentimentos, Elias constrói uma narrativa da história dos costumes. Utilizando como fontes os manuaisde etiqueta e boas maneiras elaborados desde o século XIII, e discutindo como a progressiva contenção dos impulsos foi determinando formas e padrões de comportamento so- cial, acabou dando bastante destaque à sociedade de corte francesa abso- lutista dos Luíses (reinados de Luís XIV, Luís XV e o início do de Luís XVI). Por que, aos poucos, comportamentos e sentimentos foram se alte- rando a partir do estabelecimento de novas regras sociais? Por que elas se fizeram necessárias? Qual o papel desse movimento no processo civiliza- tório? Essas são questões que nortearam o trabalho de Elias. Para ele, “a civilização que estamos acostumados a considerar como uma posse que aparentemente nos chega pronta e acabada, sem que perguntemos como viemos a possuí-la, é um processo ou parte de um processo em que nós estamos envolvidos” (ELIAS, 1994, p. 73). Especialmente no primeiro volume de O processo civilizador, Elias de- monstra como, com a contenção das pulsões, isto é, dos impulsos ligados aos comportamentos mais próximos à natureza humana, os hábitos foram sen- do modificados e definidos por ela. Isso significa dizer que, à medida que os indivíduos apreendem a cultura do meio no qual se inserem, eles vão assimi- lando também valores simbólicos que se convertem em relações de poder. O não dominar ou não compartilhar desses significados pode implicar ex- clusão ou discriminação social. Observe a Figura 1 e reflita: o que há de familiar nessa foto? Fusionstudio/Shutterstock O processo civilizatório e a cultura 27 Figura 1 Modo de comer com talheres 28 Antropologia Cultural O que chama a sua atenção? Você já refletiu sobre a forma como co- memos? Há diferenças entre as maneiras de comer no mundo todo. Agora, observe a Figura 2. Veja que são duas formas di- ferentes de comer. E qual a dife- rença mais clara observada nessas imagens? O fato de que na primeira estão sendo utilizados talheres, en- quanto na segunda estão sendo uti- lizadas apenas as mãos. Diante disso, é possível dizer que uma forma de comer é me- lhor ou mais correta do que a outra? Não. De maneira alguma. Mas, de todo modo, ao longo da história, os seres huma- nos criaram normas, regras e costumes, e, ao lado do surgimento e desenvolvimento das cidades e das instituições, surgiram as civi- lizações. Entre esses costumes, o que diz respeito ao ato de comer sempre foi um aspecto marcante desse processo. A mesa, ao longo do tempo, tornou-se um ponto relevante para se observar como a contenção dos impulsos foi decisiva para a interação humana. Da barbárie à civilização, os costumes mudaram sempre no sentido de minimizar conflitos que são inerentes à convivência humana. Afo- ra as diferenças dos hábitos alimentares e dos alimentos selecionados como sendo comestíveis, há vários rituais em torno da mesa, determi- nando quem deverão ser os comensais, o que será servido, como será servido, desde a arrumação da mesa até o serviço propriamente dito. Assim, o que se observa é que o ato de comer, de certa forma, reflete o sistema social no qual se insere. Investigando como se organiza não só a mesa, mas também cada um dos espaços domésticos, Elias mostra que as mudanças nos costumes não ocorreram aleatoriamente, mas seguiram na direção de se dar cada vez mais atenção à maneira como os seres humanos se comportavam, inclusi- ve em relação a aspectos naturais, tais como arrotar em público e ocultar dejetos humanos, evidenciando um crescente sentimento de vergonha e repugnância, simultaneamente a uma maior tendência de esconder, nos bastidores da vida social, aquilo que as causa. Emily-Jane Proudfoot/Shutterstock Figura 2 Modo de comer com as mãos O processo civilizatório e a cultura 29 Analisando também o processo de formação do Estado, Elias afirma que o autocontrole, a contenção das pulsões, assume papel cada vez mais importante e determinante para o processo civilizador. Isso ocorre especialmente depois que se passa a ter um poder centralizado e as pes- soas são forçadas a conviver, preferencialmente de maneira harmonio- sa, mais afetuosa e, espera-se, menos violenta (ELIAS; SCOTSON, 2000). O impacto mais marcante desse processo é o fato de que, aos pou- cos, a sociedade ocidental foi construindo uma identidade e passando a ser o parâmetro de civilidade. Em contrapartida, as sociedades orien- tais, nos séculos XVII e XVIII, auge das sociedades de corte europeias, ainda estavam estruturadas de modo tradicional e bastante fechadas para o mundo externo, o que as colocava em uma posição diferencia- da. O resultado disso foi certa hegemonia, ainda existente, do Ocidente sobre o mundo, o que afeta fortemente a geopolítica mundial, gerando uma polarização que contrapõe Ocidente e Oriente, e, sobretudo, cris- tãos e muçulmanos. Houve, ainda, o atentado ao World Trade Center, em Nova Iorque, em 2001, que teve como responsáveis muçulmanos ligados ao grupo terrorista Al Qaeda. Isso aumentou uma hostilidade contra os seguidores do Islamismo. Para Elias e Scotson (2000), o processo civilizador pode ser explicado pelas mudanças que marcaram a sociedade ocidental, especialmente pelo seu desenvolvimento científico e tecnológico e pelos seus costu- mes, mas sobretudo pelo fato de ter promovido o compartilhamento do conhecimento produzido a partir do Renascimento e depois do Ilu- minismo. E, ao contrário do que se pode pensar inicialmente, isso não se trata de certo eurocentrismo, uma vez que “a ascensão da civilização ocidental é o fenômeno histórico mais importante da segunda metade do segundo milênio depois de Cristo. É uma afirmação do óbvio. O de- safio é explicar como isso aconteceu” (FERGUSON, 2012, p. 32). Isso se deve a vários fatores: imperialismo, evolução técnico- -científica, descentralização política, produção e disseminação do co- nhecimento, humanismo e, claro, a ética protestante praticada por muitos grupos, segundo a qual o trabalho seria o objetivo maior da existência, sendo que dele poderia, e até deveria, resultar a riqueza ma- terial. Isso mudou completamente a lógica que orientava as sociedades. Assim, a crescente racionalização do Ocidente e o surgimento das instituições são decisivos para o processo civilizador. E vale lembrar que as instituições são elas próprias produtos culturais, uma vez que criam O grupo terrorista Al Qaeda, fundado por Osama bin Laden, em 11 de setembro de 2001, sequestrou quatro aviões e lançou dois deles contra as duas torres que compunham o World Trade Center, em Nova Iorque, enquanto outro atingiu parte do prédio do Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. A quarta aeronave, voando sobre a Pensilvânia, supostamente rumo à Casa Branca (sede o governo americano), não atingiu o alvo e caiu. Os atentados deixaram um saldo de 2.977 mortos e cerca de seis mil feridos, mudando para sempre a geopolítica mundial e acirrando a hostilidade contra os muçulmanos e o Oriente. Na tio na l P ar k Se rv ic e/ W ik im ed ia C om m on s Curiosidade normas, regras e costumes que acabam por orientar os indivíduos a te- rem bom comportamento. Quando isso ocorre, significa que os padrões culturais estão sendo seguidos e que a sociedade está no “rumo certo”. Mas não se pode esquecer que, efetivamente, há diferenças cul- turais importantes entre Ocidente e Oriente, em especial no que diz respeito, segundo Ferguson (2012, p. 36), aos “seis novos sistemas de instituições identificáveis e os comportamentos associados a eles: [...] a competição, a ciência, os direitos de propriedade, a medicina, a socie- dade de consumo e a ética do trabalho”. Em cada um desses quesitos, as diferenças entre Oriente e Ocidente são marcantes e determinam o ritmo e as características de seu processo civilizador. De acordo com Brandão (2003), para Elias, o processo civilizador acon- teceria em duas esferas interdependentes: a esfera da psiquê individual, que ele denomina de psicogênese, e a esfera social, que ele denominade sociogênese. O próprio Elias (1994, p. 16) justifica sua visão afirmando que “grande número de estudos contemporâneos sugere convincentemente que a estrutura do comportamento civilizado está estreitamente inter- -relacionada com a organização das sociedades ocidentais sob a forma de Estados”. Ele continua dizendo que foi o fato de ter havido uma maior aproximação entre as pessoas, acima de tudo em razão do avanço das cidades e da urbanização e da diminuição da distância entre os indivíduos, que estimulou (e até exigiu) o controle das paixões e da conduta. Pense em seu dia a dia e em quantos momentos a sua vontade seria a de agir de maneira diferente em relação a uma situação de conflito, confronto ou, até mesmo, de provocação. Quantas vezes já teve vontade até de agredir seu interlocutor, mas não o fez? Por que não agiu como seu instinto primário determinava? Analise as imagens abaixo. A Figura 3 ilustra uma situação muito comum na infância, momento no qual ainda não se tem o domínio da maioria das regras de convivên- Ju st dan ce/S hutt erst ock Figura 4 Brigas quando adulto Anna Kraynova/Shutterstock Figura 3 Brigas quando criança 30 Antropologia Cultural O processo civilizatório e a cultura 31 cia nem contenção dos impulsos. É na família que inicialmente aconte- ce o processo de socialização, por meio do qual se aprende a viver em sociedade. Ao longo de toda a vida acontece esse processo de aprendi- zagem das regras e dos costumes dos grupos dos quais cada indivíduo participa. A educação exerce o importante papel de ensinar às crianças como devem se comportar. Já a Figura 4 desperta mais estranheza, pois é consenso que a violência física não pode ser o recurso para que adul- tos, sobretudo no ambiente de trabalho, resolvam seus problemas. Em situações diversas do cotidiano, quanto maior a compreensão e aceitação das normas e regras de conduta, maior é o repúdio quando não são seguidas. E é importante lembrar que, durante o processo de interação social, os indivíduos podem vir a ser estigmatizados, rotula- dos e até discriminados caso seu comportamento esteja em dissonân- cia com o padrão estabelecido para a convivência. Outro ponto importante para se pensar o processo civilizador é re- cuperar a teoria da configuração de Norbert Elias (ELIAS, 1994), na qual, a partir do conceito de figuração, o autor explica como os seres hu- manos se tornaram seres interdependentes e que o significado disso contribui para o entendimento da evolução do processo civilizador. 2.2 A concepção de humano e a cultura Vídeo Antes que a teoria da configuração seja retomada, é importante, até para se entender melhor sua relevância, olhar para o conceito de civilização, termo que surge na França, em 1752. Uma cidade não faz uma civilização. Uma civilização é a maior unidade de organização humana, maior até que um império, em- bora mais amorfa. As civilizações são, em parte, uma resposta prática das populações humanas a seu meio – os desafios de se alimentar, se hidratar, se abrigar e se defender –, mas também são de caráter cultural, muitas vezes, ainda que nem sempre, re- ligiosos, muitas vezes, ainda que nem sempre, unidas por uma língua. Elas são poucas, mas não raras. [...] algo em torno de duas dezenas nos últimos dez milênios. (FERGUSON, 2012, p. 26-27) Observe, como indicado anteriormente, o papel que exercem as ci- dades para a construção de civilizações, que se formam a partir de vá- rios elementos, sobretudo a partir de instituições. Isso é o que se pode perceber quando se olha para algumas daquelas que são consideradas as maiores e mais importantes civilizações que já existiram, como é o caso dessas que aparecem nas imagens. Figura 5 Império Bizantino Da rk di am on d6 7/ Sh ut te rs to ck Figura 6 Império Inca Lu ka sz K ur bi el /S hu tte rs to ck Figura 7 Civilização egípcia W itR /S hu tte rs to ck Algumas delas formaram grandes impérios, como o Bizantino, o Inca e a grande Civilização Egípcia. Esses são apenas alguns exemplos de grandes sociedades que, de alguma forma, ditaram normas, regras e costumes que orientaram a vida e a convivência dos indivíduos que delas participavam e, em grande parte, também daqueles com os quais interagiram. É aqui que o “jogo social” se mostra, quando, inexoravel- mente, a ideia de cultura se torna fundamental. Cada uma dessas civili- zações construiu um arcabouço cultural que a identificava e, ao mesmo tempo, a diferenciava de outras. Em alguns casos, houve o declínio de uma em razão da hegemonia de outra, como foi o caso das civilizações grega e romana na Antiguidade. Figura 8 Civilização moderna Nbeaw/Shutterstock 32 Antropologia Cultural O processo civilizatório e a cultura 33 E o que dizer do que se vê na Figura 8? É um tipo de civilização? O que você acha? Uma cidade nesse modelo pode ser vista como mostra de um tipo de civilização? A resposta é sim. De todo modo, o processo civilizador cada vez mais distanciou o ser humano de sua essência animal, isto é, progressivamente, as mais básicas características dessa natureza animal foram se tornando incô- modas e indesejáveis para aqueles que pretendiam ser vistos como civilizados. As normas de bom comportamento foram moldando os in- divíduos nesse processo de contenção dos impulsos e cada vez mais o ser humano foi se afastando, ao menos nos momentos em que estava em público, daquele animal que, nos primórdios da humanidade, vi- via na barbárie. Quem já não viu, por exemplo, uma mãe chamando a atenção de seu filho por não se comportar bem à mesa, ensinando que não se pode falar de boca cheia ou limpar as mãos na toalha? Mas, para isso, ela precisa repetir muitas vezes até que a criança internalize as normas e adote o comportamento adequado esperado. Dessa forma, ao se distinguir de seus antepassados por meio de suas criações, o ser humano produziu cultura; assim, intensificou-se o processo civilizatório, mudando a maneira de se relacionar com pares, amigos ou inimigos. Isso porque a civilização produz modificações na sociedade, além de mudar em função das ações humanas. Entretan- to, é preciso se atentar para o fato de que a civilização não pode ser considerada como sinônimo de aperfeiçoamento, nem pode servir para classificar indivíduos ou grupos como melhores ou piores, perfeitos ou imperfeitos, evoluídos ou atrasados. Essa postura, muito estudada pela antropologia, é o etnocentrismo, isto é, quando um indivíduo avalia a cultura do outro usando parâmetros próprios da sua cultura. De todo modo, o ser humano produz cultura e se humaniza na medida em que torna sua vida menos dura em relação às necessida- des básicas e aos determinantes naturais do ambiente em que vive. Mas é preciso ter muito claro, quando se discute o conceito de cultura, que os seres humanos são parte da natureza que modificam, trans- formam e criam. Ao mesmo tempo, exatamente por ser um produto da ação e da razão humanas, a cultura acaba por subjugar as ideias reducionistas de determinismo orgânico, naturalismo e idealismo. O comportamento humano é muito mais complexo e exige uma refle- xão mais profunda sobre os condicionantes da vida em sociedade. As- determinismo: princípio filosófico e científico que pressupõe que tudo que ocorre na realidade, inclusive os processos de mudança e desen- volvimento social, obedecem a leis universais imutáveis e predeterminadas, próprias da natureza, independentemente da história de cada sociedade e da ação humana, consciente ou inconsciente (COSTA, 2016). naturalismo: atrelado ao determinismo, prega que a natureza se sobrepõe ao ser humano, isto é, que haveria uma supremacia do meio em relação à autonomia dos indivíduos. A partir dessa premissa, o caráter e os comportamentos humanos seriam, em parte, determinados pelo meio. idealismo: corrente filosófica segundo a qual só existiria uma razão, o que implica na visão de que a realidade se resumiria ao que pode ser conhecidopela razão. Assim, a realidade e o conhecimento que se tem dela seriam coisas diferentes. Glossário 34 Antropologia Cultural sim, ao longo do tempo, a discussão em torno do conceito de cultura impactou também a discussão sobre civilização. Ao discutir a ideia de cultura, Terry Eagleton corrobora a aná- lise de Raymond Williams, pensador que contribuiu muito para a construção da teoria cultural contemporânea. Partindo da reflexão sobre a etimologia da palavra cultura, Williams (apud EAGLETON, 2011, p. 19) afirma que “a palavra primeiro significa algo como ‘ci- vilidade’; depois, no século XVIII, torna-se mais ou menos sinônima de ‘civilização’, no sentido de um processo geral de progresso in- telectual, espiritual e material [e] implica numa correlação dúbia entre a conduta polida e comportamento ético”. Nesse sentido, ocultar as funções biológicas e se distanciar do corpo demonstram o dinamismo da cultura, as novas relações de poder e uma nova configuração social resultante do surgimento e desenvolvi- mento do Estado moderno, que impõe às relações interpessoais novas normas de conduta. Mas o que o torna o indivíduo efetivamente mais humano é a pos- sibilidade de atribuir significado às suas produções e criações, cons- truindo sistemas simbólicos. Ao mesmo tempo, torna-se sujeito de sua existência e constrói sua identidade e de seu grupo, em um permanen- te processo de reforço dos valores e costumes que se consolidaram como válidos para sua existência. Isso significa dizer que, antes de ser machado, o objeto é o seu símbolo, logo, a rela- ção simbólica entre ele e o homem, entre o homem e os seus símbolos. É isto que torna o homem um “ser histórico”, um ser que não está na história, mas que a constrói como produto de um trabalho e dos significados que atribui, ao fazê-lo: ao mundo, à sua ação e a si mesmo, vistos no espelho de sua prá- tica. Um ser tornado histórico também no sentido de que não existe como uma espécie de essência dada ao mundo, mas como alguém a quem a história cria ao ser, ela própria, cons- truída por ele. [...] Ser o sujeito da história e ser o agente criador da cultura não são adjetivos qualificadores do homem. São o seu substantivo. Mas não são igualmente a sua essência e, sim, um momento do seu próprio processo dialético de humaniza- ção. (BRANDÃO, 1986, p. 22-24, grifos do original) Ser sujeito da sua própria história e ser capaz de produzir cultu- ra é o que define sua humanidade. Esse processo de humanização se torna um caminho sem volta, exigindo dos indivíduos um do- O processo civilizatório e a cultura 35 mínio dos códigos de conduta e um alinhamento aos padrões de comportamento considerados adequados e imprescindíveis para serem chamados “seres civilizados”. Assim, na segunda metade do século XVIII, na França, consoli- da-se a noção de civilidade, opondo barbárie a refinamento e boas maneiras, assim como regras de etiqueta à rudeza dos comporta- mentos. Originam-se, então, vários tipos de cerimoniais e rituais que envolviam todas as instâncias da vida em sociedade, como vestuário, alimentação, linguagem, distribuição e organização dos espaços da casa, formas de tratamento etc. E quanto mais esses valores se disseminam, maior é a cobrança para que os indivíduos sigam esses padrões e costumes, o que len- tamente dá origem a novos estilos de vida em uma sociedade dita civilizada. Nessa sociedade, o controle das emoções é um dos ele- mentos mais marcantes, que aumenta o gosto pela cortesia, pelos bons modos e pela etiqueta. As convenções sociais passam a definir quem é quem na configuração social, como um jogo que ninguém quer perder. É nesse ponto que a teoria da configuração de Norbert Elias contri- bui para a compreensão do processo civilizador, em um movimento de transformação do comportamento individual para um comportamento social mais amplo, por meio da utilização da noção de “figuração” como categoria de análise. Isso diz respeito às redes formadas por seres hu- manos interdependentes, que podem mudar conforme a situação e a posição do indivíduo na escala social. Com sua teoria das figurações, Norbert Elias, segundo Neiburg (1999, p. 14), formula a ideia dos modelos “como modelos de jogo e formas de jogo”, além de retomar a discussão em torno da relação en- tre indivíduo e sociedade, dialogando com a antropologia na medida em que analisa as dimensões simbólicas das sociedades ocidentais em uma abordagem interdisciplinar. O conceito de figuração fundamenta a ideia de interdependência que existe entre os indivíduos, o que significa dizer que a vida de todos se desenrola de acordo com as relações que estabelecem uns com os outros. Assim, na sociedade como um todo, as figurações mudam e têm um dinamismo que gera mudanças mais ou menos lentas, mais ou menos impactantes, mais ou menos efêmeras. O autor do livro Sapiens: uma breve história da humanidade se propõe a questionar como o ser humano conseguiu subjugar outras espécies, bem como a analisar as capacidades cognitivas e criativas dos humanos, que são capazes de realizar grandes feitos em prol da humanidade, mas, ao mesmo, são protago- nistas dos mais terríveis horrores. HAHARI, Y. N. 1. ed. Porto Alegre: L&PM, 2015. Livro 36 Antropologia Cultural São exemplos de figuração instituições como família, escola e igreja, nas quais grupos de pessoas são interdependentes e só podem ser ex- plicados se forem analisados em sua rede, e não por meio da observa- ção dos indivíduos de modo isolado. De acordo com Elias (2015, p. 79), as configurações de seres humanos interdependentes não se pode explicar se estudarmos os seres humanos isoladamente. Em muitos casos é aconselhável um procedimento contrário – só podemos compreender muitos aspectos do comportamento ou das ações das pessoas individuais se começarmos pelo estudo do tipo de sua interdependência, da estrutura das suas socie- dades, em resumo, das configurações que formam uns com os outros. Outro exemplo de figuração comum nas sociedades são os jogos, que se estruturam com base nas relações de interdependência entre seus participantes, ao lado da compreensão de que haverá regras e normas que deverão ser conhecidas e obedecidas para que a competi- ção aconteça. O futebol seria um modelo para explicitar como relações de interdependência se configuram, e como se enredam os fins e as ações dos indivíduos em um jogo cujas regras devem ser seguidas. Ao longo da competição, poderá haver momentos de tensão, confronto, cooperação, estratégia, alegria e tristeza, em um espetáculo durante o qual cada equipe deverá se comportar como um time, e não somente como um grupo. Além disso, haverá uma relação de interdependência entre os joga- dores e a torcida, que poderá ser mais ou menos amistosa. Em maior ou menor grau, durante uma partida de futebol, explicita-se uma re- lação de poder, o que, mais uma vez, diz respeito à ideia de figura- ção. Cada indivíduo tem ciência de que haverá, durante o jogo, uma interdependência funcional entre os envolvidos, porque a força do jogo de um jogador varia de acordo com o seu adversário. E é preciso se lembrar que durante o jogo a questão do controle dos instintos também se torna essencial, uma vez que a ausência desse controle levaria os homens a agirem somente de acordo com sua vontade, a qual seria arbitrária, resultando em um desequilí- brio nas relações de poder. O poder da sociedade, da comunidade ou do grupo (dado pelas regras e normas de conduta) devem se sobrepor aos impulsos dos indivíduos. Em última instância, isso é o que define civilização. O processo civilizatório e a cultura 37 2.3 Práticas culturais e as formas de distinção social Vídeo Antes do surgimento de uma classe social intermediária naquela rí- gida estrutura social, que até o século XVII havia marcado as sociedades ocidentais, cada indivíduo sabia claramente qual era seu lugar na socie- dade. Caso alguém resolvesse se insurgir contra esse estado de coisas,rapidamente era “lembrado” de que não poderia romper aquele sistema com facilidade. Havia, nesse momento, diversos fatores de distinção so- cial, os quais são marcadores de posição social que regem a lógica da convivência social e decorrem da estrutura da sociedade. Isso porque Os comportamentos que são menos discutíveis e discutidos de uma sociedade, como os cuidados corporais, as maneiras de vestir-se, a organização do trabalho e o calendário das atividades cotidianas refletem um sistema de representação do mundo que os liga, em profundidade, às formulações intelectuais as mais elaboradas, como as concepções religiosas, o direito, o pensa- mento filosófico ou científico. (BURGUIÈRE, 1993, p. 62) Burguière sinaliza a questão do fundamento cultural que orienta a vida em sociedade, que muda muito a partir do momento que o siste- ma feudal começa a se esfacelar. Isso porque quando o comércio avan- ça e se torna uma atividade econômica cada vez mais importante para as economias das monarquias nacionais europeias, as cidades, espe- cialmente as portuárias, atraem população e interessados em romper com o sistema feudal. Naquele contexto, a interface e a interdependên- cia entre os reis soberanos e os comerciantes burgueses é muito forte. Quando ocorreu o rompimento dessa relação por conta da necessi- dade de liberdade para as atividades comerciais, o novo estrato social já ocupava seu lugar, e logo os efeitos disso iriam aparecer, particu- larmente na França, palco da mais importante revolução burguesa da história: a Revolução Francesa. Nesse momento, os valores e costumes burgueses formam um sistema cultural que em quase tudo se diferencia daqueles opera- dos pela sociedade de corte. O que se vê são lugares, antes criados e ocupados pela nobreza e regidos pela lógica da etiqueta e pelo domínio do bom tom, começarem a se alterar de acordo com as mudanças verificadas na sociedade. 38 Antropologia Cultural Como se afirmou anteriormente, a sociedade de corte absolutista foi o local no qual mais se desenvolveu o controle dos impulsos e das paixões pelos indivíduos, e de onde, segundo Elias (1994), a socieda- de ocidental herdou boa parte dos seus costumes e padrões de com- portamento chamados de civilizados ou corteses. Foi nessa sociedade que foram engendradas, ou pelo menos modeladas, grande parte das proibições que ainda hoje estão vigentes, em especial nas sociedades ocidentais. Isso porque a conduta da sociedade de corte absolutista representa uma marca de distinção da nobreza em relação à burguesia que ascendia socialmente. Observe, na Figura 9, como o vestuário era marcante, com mui- tos elementos e adereços, aos quais a população mais pobre não conseguia ter acesso. Dessa forma, percebemos como o vestuário claramente era um fator de distinção social. Só por isso já se pode inferir que havia um grande abismo social entre as os estratos so- ciais na sociedade francesa da época. É em relação a essas coisas que a burguesia preten- dia se diferenciar, por não querer ser identificada com a nobreza, a qual desprezava por sua ociosidade, frivoli- dade, ganância e maneira como explorava os pobres. Ao mesmo tempo, também não desejava ser identifi- cada com as camadas inferiores da sociedade. Enfim, precisava construir sua própria identidade e, desse modo, definir novos marcadores sociais. Essa constante busca de distinção pela nobreza sobre outras classes sociais, particularmente em rela- ção à burguesia, pode ser percebida no esforço daquela elite em forjar um novo código de conduta e um novo padrão de controle para a vida em sociedade. Ambos serviriam para demarcar espaços sociais e expressam, na sociedade de corte, um grau de compulsão e renúncia, mas também se transfor- mam imediatamente em arma contra os inferiores sociais, em uma maneira de separar. [...] A crescente compulsão para controlar-se e moderar-se torna-se uma marca de distinção a mais, que é imediatamente imitada abaixo e difundida com a ascensão de classes mais numerosas. (ELIAS, 1994, p. 154 e 161) He in No uw en s/ Sh utt ers to ck O filme Maria Antonieta narra a história da esposa austríaca do rei francês Luís XVI quando eclode a Revolução Francesa, permitindo conhecer um pouco mais a sociedade de corte, seus rituais, seus protocolos e suas maneiras de se relacio- nar. Com esse filme, é possível avaliar o quanto os fatores de distinção social estão presentes em uma sociedade cuja elite praticamente não perce- be que existe uma classe de desvalidos que estão morrendo de fome. Direção: Sofia Coppola. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2007. Filme Figura 9 Vestuário da nobreza O processo civilizatório e a cultura 39 Mas essas mudanças refletem novos costumes, comportamentos, moralidade, desejos e emoções, compondo um código cultural que aos poucos submete outros setores da sociedade, e não só as classes privi- legiadas. Nesse contexto, há cada vez menos espaço para espontanei- dade, autenticidade e improviso. Tem-se uma era de predomínio das aparências e do espetáculo: não bastava que o indivíduo “fosse”, era preciso “parecer ser”. Isso, de certa forma, é resultante do fato de que, a partir desse período, será a interdependência social que determinará o controle dos impulsos e das emoções. Para Elias (apud BRANDÃO, 2003, p. 15), “o nível de controle das emoções de qualquer sociedade é diretamente proporcional ao grau de ‘civilidade’ dessa sociedade, ou seja, quanto mais elevado for esse patamar, mais distante essa socie- dade estará da barbárie”. Lembra a Figura 4, que mostrava dois homens, com vestimentas que sugeriam serem executivos (terno e gravata), em vias de agressão? Esse contexto da imagem ilustra bem o que não pode ser feito em um ambiente de trabalho, sob pena de ambos sofrerem represálias. E o mais interessante é pensar sobre o fato de que parece que os padrões de comportamento esperados sempre existiram, sendo naturais ou voluntariamente criados pelos indivíduos. No entanto, como parte da cultura, são social e historicamente construídos. Por meio da prática da etiqueta e das boas maneiras, Elias mostra como cada indivíduo tem seu prestígio e sua posição de poder confir- mados pelos outros. Isto é, o prestígio de cada um precisa ser validado pelos outros indivíduos com os quais interage, seguindo as regras esta- belecidas por essa mesma sociedade. Aos poucos, surgem também os fatores de distinção social, que podem ser de vários tipos, em especial aquilo que se relaciona com a aparência do indivíduo ou com seu padrão de comportamento. Estão incluídos, nesse contexto, a maneira como esse indivíduo se veste, quais são seus hábitos alimentares, quais atividades realiza em seus momentos de lazer, quais atrações culturais – música, ci- nema, entre outras – mais gosta etc., ou seja, o que caracteriza seu estilo de vida. Além dessas, outras atividades humanas são fortemente marcadas, definidas e vistas como sistemas simbólicos, tais como a comida, a se- xualidade e as relações de poder. Elias, utilizando fontes como manuais 40 Antropologia Cultural de comportamento e de boas maneiras, investiga a relação entre mu- danças nos comportamentos, nos costumes e na personalidade dos indivíduos com as mudanças sociais, tudo isso com reflexos no pro- cesso civilizador. Segundo Neiburg (1999), Elias mostra que ocorre um crescimento dos patamares de vergonha, repugnância, controle e, prin- cipalmente, autocontrole, novos modelos de comportamento e novas formas de expressão dos sentimentos que servirão como marcadores sociais, isto é, fatores de distinção social. Novas maneiras de se portar à mesa, de manejar o garfo, a faca, as mãos, o guardanapo; de lidar com as funções corporais, com os cheiros, a comida, a sexualidade, o escarro, o banho, a su- jeira; de se comportar em relação aos outros, os superiores, os inferiores, os mais próximos; de se relacionar com pessoas do mesmo sexo e de sexo diferente, com adultos, velhos
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