Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Das condições da ação: uma análise a partir da coisa julgada material e formal Cândice Lisbôa Alves Departamento de Direito Universidade Federal de Viçosa ii CÂNDICE LISBÔA ALVES DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA COISA JULGADA MATERIAL E FORMAL Exigência da disciplina DIR-499 para a conclusão do curso de Direito da Universidade Federal de Viçosa Orientador: Professor Gláucio Inácio da Silveira Viçosa, novembro de 2003 iii “ SEM O PROCESSO, O DIREITO FICARIA ABANDONADO UNICAMENTE À BOA VONTADE DOS HOMENS E CORRERIA FREQÜENTEMENTE O RISCO DE PERMANECER INOBSERVADO; E O PROCESSO, SEM O DIREITO, SERIA UM MECANISMO FADADO A GIRAR NO VAZIO, SEM CONTEÚDO E SEM FINALIDADE.” LIEBMAN iv Aos meus pais e irmãos, com amor. Ao meu amor, com carinho. Agradeço à Deus, sem quem nada faria sentido. Às amigas Zis pela alegria. Em especial à Carlazi e Dê, irmãs de coração, que me consolaram ou destraíram nos momentos de desânimo. Ao Xavier, pelo material bibliográfico e, principalmente, pela companhia, respeito, incentivo e carinho durante a confecção deste trabalho. v Sumário FOLHA DE APRESENTAÇÃO............................................................................. ii EPÍGRAFE...................................................................................................... iv SUMÁRIO ...................................................................................................... vi RESUMO........................................................................................................ viii 1 – INTRODUÇÃO............................................................................................ 1 2 – A NATUREZA DA AÇÃO: TEORIA ECLÉTICA DE LIEBMAN............................... 4 2.1 – O papel das condições da ação na teoria eclética ............................ 5 2.2 – O joeiramento prévio........................................................................... 6 3 – DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO......................................................................... 8 3.1 – Legitimidade das partes (legitimatio ad causam)................................ 7 3.1.1 – Legitimatio ad causam e legitimatio ad processum. Capacidade de direito e de fato. Capacidade de ser parte e de estar em juízo.............. 9 3.1.2 – Legitimidade ordinária e extraordinária........................................... 10 3.2 – Interesse de agir................................................................................. 11 3.3 – Possibilidade jurídica do pedido.......................................................... 12 3.3.1 – Abandono da impossibilidade jurídica do pedido............................. 13 4 – CARÊNCIA DE AÇÃO.................................................................................. 15 4.1 – Uma questão terminológica................................................................ 16 5 – DA COISA JULGADA MATERIAL E FORMAL................................................... 18 5.1 – Coisa julgada: qualidade da sentença................................................ 18 5.2 – Distinção entre os efeitos da coisa julgada material e formal............. 19 5.3 – Preclusão............................................................................................ 20 6 – AS CONDIÇÕES DA AÇÃO E A COISA JULGADA.............................................22 6.1 – O sistema tripartido do Código de Processo Civil .............................. 23 6.1.1 – Crítica ao sistema tripartido............................................................. 24 6.2 – Questão terminológica ....................................................................... 25 6.3 – Da possibilidade de ser reintentada a ação........................................ 26 6.4 – Condições da ação e análise do mérito.............................................. 28 6.4.1 – Da impossibilidade jurídica do pedido.............................................. 28 6.4.1.1 – Do abandono da condição por seu progenitor.............................. 28 6.4.1. 2 – Pedido mediato e imediato........................................................... 29 6.4.1.3 – Subsunção do fato à norma.......................................................... 29 6.4.1.4 – Inexistência da norma................................................................... 30 6.4.1.5 – Causa de pedir.............................................................................. 30 6.4.1.6 – Da improcedência prima facie....................................................... 31 6.4.1.7 – Conclusão..................................................................................... 33 6.4.2 – Legitimatio ad causam..................................................................... 33 vi 6.4.3 – Interesse de agir.............................................................................. 35 7 – CONCLUSÃO............................................................................................ 36 8 – BIBLIOGRAFIA.......................................................................................... 40 9 – ANEXO.................................................................................................... 42 vii Resumo O presente trabalho analisará as condições da ação, procurando discorrer sobre sua natureza, aplicação e as conseqüências de sua inexistência no processo. Para tanto enfocará, em especial, a sentença terminativa denominada carência de ação. Correlatamente a esta abordagem, traçar-se-á um paralelo entre a ausência das condições da ação e a coisa julgada material e formal, destacando a natureza do provimento que põe fim ao processo e as conseqüências decorrentes do julgamento com ou sem análise de mérito. viii 1 1 – Introdução O presente trabalho procurará abordar a natureza das condições da ação, bem como do julgamento que declara a inexistência das mesmas, ou seja, a natureza da sentença de carência de ação. As condições da ação, sem sombra de dúvida, são um dos pilares do processo civil brasileiro, tendo sido positivadas em nosso Ordenamento com a promulgação do Código de Processo Civil de 1973. No momento da confecção do projeto do Código, Enrico Tullio Liebman, um processualista de origem italiana, ocupava uma das cadeiras de processo civil da Escola de Direito de São Paulo. Decorrência do desempenho em seu mister acadêmico foi o estreito contato com Alfredo Buzaid, seu seguidor e elaborador do projeto do Código de Processo Civil, e então, fruto desta relação, viu-se positivada a teoria eclética da ação. A teoria eclética foi uma tentativa de conciliar alguns pontos da teoria do direito concreto da ação com a teoria do direito abstrato. Na teoria eclética ficou apregoado que a ação seria independente do direito material, porém, para que o processo pudesse chegar ao seu objetivo – que seria o julgamento do mérito – deveriam estar preenchidos alguns requisitos mínimos, por Liebman denominados de condições da ação. Da forma como foi proposta a teoria eclética, as condições da ação seriam aferidas exclusivamente no plano processual, como pré-requisito para que o magistrado conhecesse do mérito. Na aferição destas condições seria realizado um a atividade denominada por Liebman de joeiramento prévio, que significava a averiguação in statu assertionis da possibilidade jurídica do pedido, da legitimidade e do interesse de agir. Sob esta perspectiva, as condições da ação, juntamente com os pressupostos processuais, funcionariam como uma espécie de filtro, tendo como objetivo evitar a movimentação inútil do Judiciário quando não preenchidas as condições mínimas para o desenvolvimento válido e regular do processo. Mas, repise-se, a constatação da existência das condições da ação seria feita abstratamente,ou seja, completamente desvinculada do direito material que procura os auspícios da Justiça. 2 Importante ressaltar que as condições da ação, por terem sido elaboradas como questão de ordem pública, não estariam passíveis aos efeitos da preclusão. Com isto queremos dizer que ao magistrado foi concedida a oportunidade de se manifestar sobre a ausência das mesmas em qualquer momento processual, anteriormente à decisão de mérito. E mais, segundo o positivado no Código de Processo Civil, notando sua ausência o juiz deve declarar o autor carente de ação, ou seja, proferir sentença sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, VI, c/c 301, X, do CPC. Porém, o efeito decorrente desta positivação nem sempre condiz com a realidade. E assim surgiram vozes a ecoar sua irresignação com o teor da normatização retro-mencionada, apontando os equívocos em se tentar criar uma regra geral que não comporte exceções. Apareceram, então, em nosso universo jurídico, obras indicando casos em que, embora fosse constatada a ausência das condições da ação, este veredicto apenas teria sido possível após a instrução processual, ou, no mínimo, através da análise do direito material discutido na ação. Dessa maneira, adentrando-se no direito material, o julgamento não mais poderia ser sem análise do mérito, pelo singelo fato de o mérito, nesta instância, já ter sido devassado. Conseqüência do panorama narrado foi o fato de, ter-se tornado corriqueiro, verificarmos sentenças de carência de ação que, a rigor, analisam o mérito da questão, num claro equívoco de julgamento que causa problemas ainda maiores. E, o que em especial nos interessa, do julgamento equivocado deflui a formação da coisa julgada que, deveria ser material (analisou-se o mérito), mas acaba sendo a formal (pois aparentemente reveste-se a sentença da nominação de carência de ação). Esta incoerência acarreta prejuízos efetivos não só para os contendores, mas para o sistema jurídico como um todo, haja vista que uma controvérsia que deveria definitivamente ser extirpada do ordenamento (por sofrer os efeitos da coisa julgada material) poderá novamente ser submetida à apreciação do Estado-juiz. Por sua vez, as partes, que poderiam ter uma palavra indiscutível e imutável da Jurisdição, vêem-se na expectativa de, a qualquer momento, encontrarem-se rediscutindo a controvérsia. 3 Assim, o sistema como um todo ganha contornos de instabilidade e insegurança. E, ao mesmo tempo, podemos perceber julgamentos em que fatos semelhantes apresentam decisões contraditórias, pois, ao que parece, cada magistrado possui um posicionamento próprio a este respeito. Devemos ressaltar que esta nova perspectiva das condições da ação não ganha a simpatia dos operadores do direito, tampouco se encontra nas discussões comezinhas do Direito, e, talvez por isso, haja tanta resistência em uma mudança de visão do fenômeno. O que nos propomos, então, é apresentar um trabalho sério apontando as principais críticas à má aplicação do conceito de carência de ação, assim como a explicação da motivação deste posicionamento equivocado. Ressalte-se que não temos a ambição de solucionar o problema aqui trazido, até porque, ao que tudo indica, apenas com muita parcimônia e cuidado será corretamente utilizado o conceito de julgamento, com ou sem exame de mérito, quando o assunto versar sobre condições da ação. Devemos destacar, em particular, que não acreditamos ser tarefa banal ou fácil o reconhecimento das sutilezas que este assunto traz embutido em si e, por isso, procuraremos traçar um raciocínio gradual sobre questões fundamentais da teoria geral do processo, ou seja, trabalharemos com os conceitos de mérito, da natureza da ação, da teoria eclética, da coisa julgada – material e formal – e, enfim, tentaremos unir todos os conceitos trabalhados. 2 - A natureza da ação: teoria eclética de Liebman O Digesto Processual adota a teoria eclética sobre a natureza da ação em detrimento das antigas teorias do direito concreto da ação1 e do direito abstrato da ação2. 1 Segundo tal pensamento, a ação seria autônoma em relação ao direito material, visto não ter por base necessariamente um direito subjetivo ameaçado ou lesado. E assim seriam explicadas as ações declaratórias negativas. Porém esta ação estaria vinculada à procedência do pedido, pois se isto não ocorresse, não haveria a ação. Nas palavras de Moacir Amaral Santos, “a tutela jurisdicional deverá conter-se numa sentença favorável, o que quer dizer que o direito de ação depende da ocorrência de requisitos de direito material, as chamadas condições da ação, e de direito formal, os pressupostos processuais, sem os quais não se concebe uma tal sentença e não haverá ação” (SANTOS, Moacir Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, vol1, p.149). 2 Segundo esta teoria, a ação sempre seria autônoma diante do direito material, bastando que o autor mencione um direito seu abstratamente amparado pelo Ordenamento e a necessidade da ingerência 4 Segundo a teoria eclética, a ação é considerada autônoma em face do direito material pleiteado, necessitando, entretanto, do preenchimento de certos requisitos mínimos para sua existência e desenvolvimento regular. Ou seja, a teoria eclética toma como base o conteúdo da teoria do direito abstrato de ação, porém com comedimentos, que são justamente as condições da ação. A ação, neste diapasão, consistiria no direito ao pedido de providência do Judiciário, ou seja, o que se invoca é a prestação jurisdicional e não o seu conteúdo. Confirmando tal postura, nos ensina Rodrigo da Cunha Pereira: “Com efeito, a ação é o direito a um pronunciamento do Estado, terceiro imparcial, diante de um pedido formulado pelo autor, e não o direito a uma sentença favorável, pois, nesta última hipótese, não haveria autonomia da ação(...)É de se concluir, portanto, que existe um direito abstrato de agir em juízo, mesmo que não possua o direito substancial que se pretende tornar efetivo” 3 Liebman, o genitor da teoria eclética, adotada pelo nosso Ordenamento Jurídico, apregoa justamente a autonomia da ação4 em face do direito material – também denominado por alguns autores de direito substancial. Porém, para Liebman, o julgamento da ação estaria condicionado à existência do que ele denominou condições da ação. Do seguinte modo Liebman expõe seu pensamento sobre as condições da ação: “Requisitos de existência da ação, devendo por isso ser objeto de investigação no processo, preliminarmente ao exame do mérito (ainda que implicitamente, como costuma ocorrer). Só se estivessem presentes essas condições é que se pode considerar existente a ação, surgindo para o juiz a necessidade de julgar sobre o pedido [domanda] para acolhê-lo ou rejeitá-lo. Elas podem, por isso, ser definidas também como condições de admissibilidade do julgamento do pedido, ou seja, como condições essenciais para o exercício da função jurisdicional com referência a situação concreta [concreta fattispecie] deduzida em juízo.” 5 do Estado. Nas palavras de Ada Pellegrini Grinover “a demanda ajuizada pode até mesmo ser temerária, sendo suficiente, para caracterizar o direito de ação, que o autor mencione um interesse seu, protegido em abstrato pelo direito. É com referência a este direito que o Estado está obrigadoa exercer a função jurisdicional, proferindo uma decisão, que tanto poderá ser favorável como desfavorável” (GRINOVER, Ada Pellegrini, ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 250). 3 FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação. 2. ed. São Paulo: RT, 2001, p.50. 4 Liebman, em seu Manual de Processo Civil nos diz que “A ação, como direito ao processo e ao julgamento do mérito, não garante um resultado favorável no processo: esse resultado depende da convicção que o juiz formar sobre a procedência da demanda proposta (...) e por isso poderá ser favorável ao autor ou ao réu”. 5 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Processo Civil I; tradução e notas de Cândido R. Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 154 5 2.1 – O papel das condições da ação na teoria eclética As condições da ação, como foram sistematizadas na teoria eclética, são “categorias lógico-jurídicas, existentes na doutrina e, muitas vezes, na lei, como em nosso Direito Positivo, que, se preenchidas, possibilitam que alguém chegue à sentença de mérito”6. Segundo Liebman, as condições da ação funcionariam, então, como uma espécie de filtro, a fim de se evitar o dispêndio da jurisdição quando inexistentes os requisitos mínimos para o desenvolvimento regular do processo. Nas palavras de Fábio Gomes: “São requisitos para a própria existência da ação, tendo por isso sido denominadas de ‘condições da ação’. Assim sendo, conclui-se que para esta doutrina a atividade desenvolvida pelo juiz ao perquirir sobre as condições da ação não terá natureza jurisdicional. Aliás, Liebman é expresso no sentido de que nessa fase preparatória o processo funciona, em certo sentido, como um filtro, de modo a evitar que haja exercício de jurisdição quando faltam os requisitos que a lei considera indispensáveis para que se possa alcançar os resultados satisfatórios.” 7 A natureza do provimento dado pelo juiz, se não verificada a existência das condições da ação, para Liebman, não seria jurisdicional, pois, note-se, não sendo preenchidas as condições da ação, não teríamos, via de conseqüência, ação, e assim, tampouco seria desempenhada a atividade jurisdicional. Tal posicionamento é rigorosamente rechaçado pela nossa doutrina processualista, devido, principalmente, à natureza abstrata da ação. Com isso queremos dizer que, não importa se ocorre ou não o exame de mérito; havendo exame de mérito, não importa se o pedido é acolhido ou denegado. A simples propositura da demanda já provoca a Jurisdição e, por isso, todo o ato do magistrado manifestando-se sobre o processo é atividade jurisdicional, inclusive sua manifestação pela insubsistência da demanda. Eis uma das críticas dirigidas à teoria eclética. 2.2 – O joeiramento prévio 6 ALVIM, José Eduardo Arruda. Manual de Direito Processual Civil. 6ª ed. São Paulo: RT, vol.1, 1997, p.386. 7 GOMES, Fábio. Carência de ação. São Paulo: RT, 1999, p.43-44. 6 Às condições da ação foi atribuída natureza eminentemente processual. Para que possa perquirir sobre sua existência, o magistrado deve realizar um juízo hipotético, ou seja, as alegações presentes na exordial devem ser analisadas como se fossem verdadeiras (por ficção). Assim temos que esta análise prévia é superficial e preocupa-se mais com a coerência lógica do exposto que com a veracidade das alegações, que apenas podem ser constatadas através da sua aferição no direito material. Tentando explicar melhor este juízo hipotético e o joeiramento prévio, Fábio Gomes se manifesta da seguinte forma: “Diante do pedido se deve raciocinar no condicional, com juízos hipotéticos, pressupondo verdadeiras as afirmações do autor, com abstração das possibilidades com as quais no juízo de mérito vai deparar-se o julgador (...) Para a doutrina Eclética, vale que se repita, a atividade do juiz, consistente no exame da presença ou ausência das condições da ação, nada terá de jurisdicional; tratar-se-á de “joeiramento prévio”, conforme expressão de Liebman”.8 Esta análise superficial e processual acerca das condições da ação foi por Liebman denominada de joeiramento prévio. Ressalte-se que, apenas se verificada a presença das condições da ação é que estaríamos diante do exercício da jurisdição. Justamente em função desta colocação de Liebman é que os processualistas apontam uma das falhas da teoria eclética. Ora, se apenas quando verificadas as condições da ação é que se teria o exercício da jurisdição, a contrario sensu teríamos que, ausentes, mesmo quando intentada uma ação, não haveria o exercício jurisdicional. Então, o que haveria? Os seguidores de Liebman não conseguiram desatar este nó. Por óbvio, pela sistemática do nosso ordenamento, tratar-se-ia de atividade jurisdicional de caráter negativo. 8 Ob.cit.p. 44-45. 7 3 – Das condições da ação Nosso Código Civil, em seu art. 267, VI, elenca as condições da ação, a saber: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade das partes e o interesse processual. Trataremos, a seguir, de cada uma delas. 3.1 – Legitimidade das partes (legitimatio ad causam) A legitimidade das partes nada mais é que a pertinência subjetiva da ação, que nas palavras de Liebman ganhou os seguintes contornos: “A legitimação para agir é pois, em resumo, a pertinência subjetiva da ação, isto é, a identidade entre quem a propôs e aquele que, relativamente à lesão de um direito próprio (que afirma existente), poderá pretender para si o provimento de tutela jurisdicional pedido com referência àquele que foi chamado em juízo.”9 Esta pertinência deve ser averiguada exclusivamente sobre aspecto processual, vez que, como dito anteriormente, estamos na seara das condições da ação, e, a princípio, não se discute o direito material. Desta sorte, a legitimidade é conferida aos titulares da relação jurídica material questionada. Entretanto, como a análise é in statu assertionis, basta que o pretenso titular da demanda declare a relação jurídica controvertida e a ligação que possui com a mesma, ou seja, seu elo com a contenda. Notamos que há uma diferenciação tênue entre a constatação da legitimatio ad causam em seu caráter processual e da análise do mérito. Percebe-se que ambas buscam respaldo na análise do direito material que dá supedâneo à demanda, porém, para que esteja estejamos diante da condição da ação basta que se considere a afirmação trazida a juízo, abstratamente, relegando a comprovação da mesma para a fase instrutória. Quando, de outra sorte, confirmamos se dita relação está amparada pelo direito, como por exemplo, se as partes litigantes numa ação locatícia são o locador e locatário instituídos no contrato, invariavelmente passamos pelo mérito da 9 LIEBMAN, ob.cit. p. 158 8 demanda, pois fomos ao direito material analisá-lo, e, dessa maneira, a sentença só poderá ser de procedência ou improcedência. Assim, podemos concluir que, uma constatação aprofundada acerca da legitimidade passará, invariavelmente, pelo mérito da questão e, por isso, implicará prolação de sentença que examinará o mérito. 3.1.1 – Legitimatio ad causam e legitimatio ad processum.Capacidade de direito e de fato. Capacidade de ser parte e de estar em juízo. Conceitualmente devemos diferenciar legitimatio ad causam da legitimatio ad processum, para evitarmos equívocos grotescos. A legitimatio ad causam foi tratada no tópico retro, e, vale salientar, é condição da ação que diz respeito à adequação do autor e do réu frente à ação intentada. Devemos relembrar que, no direito civil, todas as pessoas são capazes de direitos e deveres, ou seja, têm capacidade jurídica, também denominada de capacidade de gozo ou de direito. Processualmente, este tipo de capacidade se traduz na capacidade de ser parte, que significa que todas as pessoas são capazes de direitos e deveres processuais. Com relação à capacidade de ser parte, consagrada no art. 7º, do CPC, e que é um pressuposto processual referente às partes (art. 267, IV, do CPC), devemos ressaltar que, alguns entes despersonalizados também possuem esta qualidade, por força da lei, como é o caso do espólio (art.12, V, do CPC), da massa falida (art. 12, III, CPC), entre outros, tendo sido denominados tais entes de pessoas formais (SANTOS, 1999). Voltando ao direito civil temos que nem todas as pessoas que possuem a capacidade de direito podem praticar todos os atos da vida civil. Isto porque nosso Ordenamento estipulou certas circunstâncias especiais em que a pessoa, por não estar plenamente formada, vê-se resguardada de suas ações, necessitando de um representante legal ou assistente para que seus atos sejam válidos. É o que denominamos de capacidade de exercício ou de fato. No direito processual, da mesma forma, nem todos aqueles que estão aptos a serem parte possuem a capacidade para exercerem, por si mesmas, tais direitos e 9 deveres. É justamente neste entendimento que se firmou o conceito de legitimatio ad processum, também conhecida por capacidade processual ou capacidade de estar em juízo que nada mais é senão a “capacidade de exercer os direitos e deveres processuais; é a capacidade de praticar validamente os atos processuais; diz respeito àqueles que têm capacidade para agir”10. Desta sorte, aos relativamente incapazes é necessária uma pessoa que os assista no processo. Aos absolutamente incapazes é necessária a presença de um representante legal. Às pessoas jurídicas é necessária a presença de um preposto com poderes para agir em seu nome. Em síntese, a legitimatio ad causam é condição da ação; a legitimatio ad processum, pressuposto processual. Esta é também denominada capacidade de estar em juízo. Existe ainda a capacidade de ser parte, que assim como a legitimatio ad processum, configura pressuposto processual. 3.1.2 – Legitimidade ordinária e extraordinária A legitimidade processual encontra sua sede no art. 6º do CPC. Tal artigo assevera que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”11. A legitimidade ordinária é a “coincidência entre a legitimação de direito material e a legitimidade para estar em juízo.” 12, encontrando amparo na primeira parte do artigo mencionado. A legitimidade extraordinária, por sua vez, é uma situação, previamente determinada por lei, em que o Estado confere poder para que uma pessoa atue em juízo, em nome próprio, porém defendendo interesse de terceiro. A legitimidade extraordinária é também denominada de substituição processual. Um exemplo clássico desta situação é a ação de investigação de paternidade intentada pelo Ministério Público. Nesta ação o autor é o próprio Parquet, muito embora o interesse defendido seja do menor investigando. 10 SANTOS, Moacir Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, vol1, p.353. 11 Texto extraído do art. 6º do Código de Processo Civil. 12 NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Extravagante em vigor. 5.ed.São Paulo: RT, 2001, p.362. 10 Não se deve, entretanto, confundir a substituição processual tratada acima com a representação processual13. Nesta, a pessoa legitimada a agir em juízo exerce todos os poderes em nome e por conta de outrem. Um exemplo é a representação em juízo de pessoa jurídica. Por ser esta uma construção jurídica, necessita de um ente que manifeste a sua vontade, ente este que é o seu representante processual. 3.2 – Interesse de agir O interesse de agir é a condição da ação que sujeita o uso do aparato jurisdicional à sua utilidade. A utilidade, por sua vez, manifesta-se através da necessidade da prestação jurisdicional e da adequação do provimento jurisdicional a que almeja o autor ao procedimento estipulado pelo ordenamento jurídico. Segundo Liebman: “O interesse de agir é representado pela relação entre a situação antijurídica denunciada e o provimento que se pede para debelá-la mediante a aplicação do direito; deve esta relação consistir na utilidade do provimento, como meio para proporcionar ao interesse lesado a proteção concedida pelo direito.” 14 Para Vicente Greco Filho, surge o interesse de agir quando à pretensão de determinada pessoa é apresentada uma resistência por outra. Neste caso, estando abolida a autotutela, é necessário que o Judiciário interfira no conflito e pacifique as partes. Afirma, ainda, que há casos em que taxativamente é necessária a intervenção do Estado, e, nestas situações, o interesse decorre diretamente da vontade da lei (GRECO,1995:81). Com relação à utilidade, Arruda Alvim adverte que o interesse de agir deve necessariamente trazer algum proveito econômico ou moral para aquele que pleiteia em juízo, pois, caso contrário, não se justificaria o dispêndio da movimentação da jurisdição (ALVIM, 1997:372). Questão interessante levantada por Vicente Greco diz respeito à adequação das ações. Exemplificando o problema ele narra um caso em que determinada 13 Os casos de representação processual vem elencados no art. 12 do CPC. 14 LIEBMAN, ob.cit. p. 155. 11 pessoa possua um título executivo e, visando recebê-lo, intenta ação ordinária. De acordo com nosso código, a ação intentada deveria ser indeferida, vez que a ação pertinente seria a de execução. Porém, segundo o art. 4º do CPC, I, o interesse do autor poderia limitar-se a declaração de existência de dada relação jurídica. Este pensamento seria uma possibilidade geral, desconsiderando-se a utilidade do provimento. Lado outro, a maior parte da doutrina acredita que, justamente por não trazer utilidade alguma para o interessado, este comportamento não poderia ser adotado, uma vez que contraria o conceito de utilidade apresentado (GRECO:1995). Frise-se que é esta a concepção dominante, de modo que intentanda uma ação declaratória, quando já se possua um título executivo, o autor terá grande chance de ver sua pretensão frustar-se, por carência de ação. Por ser analisado no âmbito processual, o interesse de agir está dissociado do interesse substancial. Isto significa que, mesmo que a necessidade da prestação jurisdicional decorra de uma lesão ou ameaça de lesão a um direito substancial (ou material), a configuração da necessidade de ingerência do Judiciário advém da mera alegação desta lesão, vez que averiguada in statu assertionis. A confirmação ou negativa do pedido de proteção do autor, como depende de provas, atine aomérito da causa e assim deverá ser tratada. 3.3 – Possibilidade jurídica do pedido A possibilidade jurídica do pedido é averiguada quando se analisa se a pretensão almejada encontra abrigo no direito pátrio, ou, ao menos, não está proibida no mesmo. Nos dizeres de Liebman seria a “admissibilidade em abstrato do provimento pedido” 15. José Frederico Marques nos ensina que estaria configurada a impossibilidade jurídica do pedido em duas situações. A primeira seria a inexistência da providência ou prestação pedida. Neste sentido cita como exemplo o pedido de divórcio anterior à lei 6.515/77, e também a pena de açoite na legislação penal. A segunda situação seria a de inexistência de norma legal na qual se subsumiria o 15 LIEBMAN, ob.cit. p. 161 12 pedido. Para tanto utiliza como exemplo a dívida de jogo ou o pedido de punição a uma infração não tipificada no direito penal (MARQUES, 1987:189). Devemos ressaltar que a avaliação da possibilidade jurídica da demanda é feita em abstrato. Ou seja, o que se analisa é se a tutela pleiteada possui alguma previsão no ordenamento, ou, não possui alguma vedação expressa. Se, ao contrário, a impossibilidade for fruto daquela demanda em específico, poderá tratar-se de improcedência prima facie16 ou de simples improcedência. 3.3.1 – Abandono da impossibilidade jurídica do pedido. Como dito anteriormente, Liebman foi o pai da escola eclética adotada pelo nosso ordenamento jurídico. Neste sentido, foi Liebman que introduziu as condições da ação no nosso universo jurídico. Liebman, porém, antes da entrada em vigor do nosso Digesto Processual, no ano de 1970, aboliu a possibilidade jurídica do pedido, engajando seu fundamento na condição da ação interesse de agir. Ele passou a ver o fato não admitido por lei como sendo falta de adequação ao ordenamento. Tal posição deveu-se ao fato de o principal exemplo de Liebman para impossibilidade jurídica do pedido ser a impossibilidade na Itália da concessão do divórcio, mesmo que os cônjuges assim o quisessem. No ano de 1970, entretanto, entrou em vigor no país de Liebman a lei que instituiu o divórcio (lei nº 898, de 01/12/70), e assim caiu por terra o fundamento da impossibilidade jurídica do pedido, na concepção do pai das condições da ação. Tendo em vista a nova situação, Liebman na publicação da terceira edição de seu Manual aboliu a condição da ação. Nas notas feitas por Cândido Rangel Dinamarco na tradução do Manual de Processo Civil de Liebman, assim o doutrinador se manifesta sobre a incongruência da situação: “ Nisso tudo vê-se até certa ironia das coisas, pois no mesmo ano de 1973, em que vinha a lume o novo Código de Processo Civil brasileiro, consagrando legislativamente a teoria 16 A improcedência prima facie vem fundamentada no art. 295, parágrafo único, II, do CPC. Ela decorre da impossibilidade deflagrada pela análise da narração dos fatos e do pedido pleiteado pelo autor, que se mostram sem uma coerência lógica. Tal assunto será tratado com maior vagar no tópico referente às críticas às condições da ação. 13 de LIEBMAN com as suas três condições, surgia também o novo posicionamento do próprio pai da idéia, renunciando a uma delas.” 17 4 – Carência de ação. Segundo os fundamentos da teoria eclética, ausente quaisquer das condições da ação, teremos o que Liebman denominou de carência de ação. Neste caso, o processo deve ser extinto, sem julgamento de mérito, conforme encerrado no art. 267, VI, do CPC. Justamente pelo fato das questões que versam sobre as condições da ação serem de ordem eminentemente processual, a modalidade de extinção do processo que deriva daquelas não sofreria, regra geral, os efeitos da coisa julgada material. Assim, podemos concluir que tal ação novamente poderá ser proposta. Esta prerrogativa de novamente ser proposta a mesma ação decorre da letra do art. 268 do CPC, que nos diz, em sua primeira parte, que “salvo o disposto no art. 267, V, a extinção do processo não obsta a que o autor intente de novo a ação.”18 Pelo caráter dúbio que ganha este posicionamento, a carência de ação tornou-se fonte de controvérsias nos estudos sobre o processo civil, isto porque sua natureza, conforme colocado pela teoria eclética, inevitavelmente será processual. E mais, toda vez que o juiz perceber a ausência de uma das condições da ação deverá extinguir o processo por carência de ação. Ocorre, entretanto, que nem sempre a ausência de uma condição da ação é constatada a nível de statu assertionis. O que com isto queremos dizer é que, muitas vezes, o mérito se entrelaça de tal maneira com a condição da ação que torna-se impossível esta dissociação científica que propunha Liebman. Em que pese esta realidade, a maioria da doutrina processualista renega a possibilidade de o mérito e as condições da ação se misturarem. Assim, em inúmeros julgados verificamos que, embora a decisão seja de mérito, temos uma sentença de carência de ação, porque, conforme ensinado na maioria dos manuais, 17 LIEBMAN, ob.cit. p. 161 18 Texto extraído da primeira parte do art. 268 do Código de Processo Civil. 14 constatando-se a ausência de uma condição da ação, o magistrado deve, de pronto, declarar a carência da ação, sem perquirir sobre o mérito. Kazuo Watanabe nos diz que o problema aqui surgido decorre da maneira como a teoria eclética é adotada em nosso ordenamento. Para ele, é necessário tentar conciliá-la com a teoria do direito abstrato, porque, embora pareça que a teoria eclética é decorrência da abstrata, a teoria eclética “liga as condições da ação à situação de fato, afirmada e comprovada no processo, após a instrução e a avaliação das provas, e não in statu assertionis”19. O que com isto o doutrinador queria afirmar é justamente o fato de que, segundo a teoria eclética, seria necessária a apuração das provas para que se verifique a existência das condições da ação, não apenas segundo as afirmações do autor, mas no plano material. E assim, temos as sentenças de carência de ação que analisam o mérito. Deste posicionamento temos que esta diferenciação entre sentença processual (mais especificamente, a de carência de ação) e material vai muito além de um fetiche dos estudiosos do processo civil, sem qualquer implicação no plano prático. Ao contrário, a diferenciação aqui levantada adquire dimensões incalculáveis, vez que desemboca diretamente nos efeitos da coisa julgada formal ou material. 4.1 – Uma questão terminológica. A expressão carência de ação, que rotineiramente vem à baila nos estudos processuais ou nas manifestações jurídicas, traz consigo uma imprecisão terminológica. Ora, é questão cediça no ordenamento que a ação é abstrata e desvinculada do direito material que ela almeja resguardar. Assim sendo, temos que a ação decorre do direito constitucional de acesso a justiça e, por este motivo, não pode ser vinculada à procedência ou improcedência do pedido inserto na mesma. Com isso queremos dizer que o direito á ação é ilimitado, podendo qualquer cidadão intentar uma ação quando e como quiser. 19 WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil, 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2000, p.86. 15 Entretanto o Estado impõe certas limitações ao exercício do direito de ação, dentreelas o respeito aos pressupostos processuais e condições da ação. Portanto, quando utilizamos a expressão carência de ação, embora possa parecer significar a total ausência da ação, na realidade, significa a ausência de um dos requisitos de existência da mesma que impede seu regular processamento, e assim, impede a análise do mérito. Rodrigo da Cunha Lima Freire, a respeito deste posicionamento terminológico, se manifesta nos seguintes dizeres: “O uso da expressão, entretanto, é inconveniente, pois, apesar da posição esposada por Liebman, no sentido de que o não preenchimento de uma das condições da ação implica a inexistência da própria ação, o que se pode limitar, em verdade, é o exercício da ação, e não a sua existência. Carência significa falta, privação ou ausência, e, desta forma, melhor seria falar em carência de condição da ação.”20 Ainda, sobre a essência da ação, sua natureza, o doutrinador afirma que: “ Pensamos que as condições da ação, em verdade, são condições para o regular exercício da ação, conduzindo o processo ao exame do mérito, mas não determinam a existência ou inexistÊncia da ação, do processo ou da decisão judicial eventualmente proferida neste processo.” 21 Ressaltamos que, apesar de as considerações do autor acima referido serem pertinentes, neste trabalho utilizaremos a expressão carência de ação, simplesmente pelo fato de a mesma estar consagrada no meio jurídico. Mas, repise- se, julgamos pertinentes e adequadas as palavras de Rodrigo da Cunha Lima Freire. 20 Ob. cit., p. 76. 21 Ob.cit.p.72-73. 16 5 – Da coisa julgada material e formal O art. 467, do CPC, nos traz o conceito de coisa julgada material da seguinte forma: “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Da letra da lei acima transcrita, observamos que o legislador atribuiu à sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário, a qualidade da imutabilidade e da impossibilidade de rediscussão. Porém, devemos ressaltar, os atributos acima destacados referem-se tão somente às sentenças que se manifestam sobre o mérito da lide. Às sentenças de cunho processual, ocorre o fenômeno da coisa julgada formal, que, nas lições de Nelson Nery Júnior, “é a inimpugnabilidade da sentença no processo em que foi proferida”.22 Podermos afirmar que todas as sentenças de extinção do processo, com base no art. 267 do CPC, por não analisarem o mérito, formariam, numa primeira análise, tão somente a mencionada coisa julgada formal. Discorrendo sobre o tema, Nelson Nery Júnior adverte que a denominação de coisa julgada formal é equivocada, pois o que ocorre é a preclusão, uma vez que constitucionalmente, o art. 5º, XXXVI, da CF, apenas refere-se à garantia da coisa julgada material (NERY, 2001: 903). Enfatize-se que, no nosso ordenamento, as sentenças são divididas em terminativas (caso em que não há análise de mérito) e definitivas (quando há julgamento do mérito). Com relação às sentenças terminativas, que são aquelas que analisam apenas os aspectos processuais, não se admite a incidência da coisa julgada material. 5.1 – Coisa julgada: qualidade da sentença. 22 Ob.cit.p.903. 17 Sistematicamente temos que a res iudicata não é um efeito ou conseqüência da sentença, mas uma qualidade a ela atribuída que reforça sua eficácia através da imutabilidade da decisão, tanto no sentido processual, quanto no atinente ao conteúdo do decisum (THEODORO JÚNIOR, 1999: 531). Assim, apenas após o escoamento do prazo para recurso, ou de todos os recursos intentados e julgados, é que ocorre a coisa julgada formal, e, em seguida, a material. Neste sentido, urge salientarmos que a coisa julgada formal não prescisa da material, porém é requisito da coisa julgada material a ocorrência da coisa julgada formal (THEODORO JÚNIOR,1999:530), haja vista que apenas quando a decisão não pode ser impugnada processualmente é que o direito material que ali se manifesta também tornar-se-á incontestável. 5.2 - Distinção entre os efeitos da coisa julgada material e formal. O que neste estudo nos interessa é justamente as conseqüências dos efeitos da coisa julgada material e formal. Com relação aos efeitos da imutabilidade advinda da coisa julgada material e formal, Humberto Theodoro Júnior adverte: “A coisa julgada formal atua dentro do processo em que a sentença foi proferida, sem impedir que o objeto do julgamento volte a ser discutido em outro processo. Já a coisa julgada material, revelando a lei das partes, produz seus efeitos no mesmo processo ou em qualquer outro, vedando o reexame da res in iudicium deducta, por já definitivamente apreciada e julgada.”23 Assim, constatamos que a principal distinção entre os efeitos da coisa julgada material concerne ao fato de esta se fazer sentir em todo e qualquer processo que diga respeito àquela relação tornada imutável e indiscutível. Já a coisa julgada formal, apenas se faz sentir no processo em que ocorreu, ou seja, em outro diverso poderá ser rediscutida a relação tornada inimpugnável. Tal diferenciação advém do fato de a coisa julgada formal não acobertar a relação em si, visto que apenas abarca a questão processual, deixando o direito material à margem de sua cobertura. 23 THEODORO JÚNIOR, Ob.cit. p. 529. 18 A principal conseqüência da coisa julgada material, então, é a proibição de que as questões já analisadas ou que poderiam ter sido suscitadas, e por um motivo qualquer não o foram, sejam novamente analisadas. 5.3 – Preclusão Na seção referente à coisa julgada, encontra-se o art. 473, CPC, que assim reza: “é defeso à parte discutir, no curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se operou a preclusão.” Substancialmente, advém da coisa julgada material e formal o mesmo efeito da preclusão, qual seja, o de impedir que determinada questão seja novamente examinada pelo magistrado. Justamente por esta semelhança é que entendemos pertinente traçar breves comentários a respeito da preclusão. A preclusão pode ocorrer durante todo o iter processual, fase a fase, às vezes, ato a ato, isto porque, sendo o processo uma ordenação de atos, se não houvesse a imutabilidade de cada ato, seja por motivo temporal, consumativo ou lógico, o processo seria marcado por uma instabilidade que impediria a certeza e segurança por ele almejada. Já a coisa julgada, apenas pode ocorrer com relação à sentença, portanto, na fase final do processo. A preclusão classifica-se em consumativa, temporal e lógica. Da preclusão consumativa decorre que a parte, já tendo praticado determinado ato, independente de seu bom ou mau êxito, não poderá novamente praticá-lo, vez que a oportunidade para tal já se consumou com a própria ação da parte. A preclusão temporal acontece quando a parte não cumpre o prazo peremptório que possui para se manifestar, seja o referente à defesa ou o concernente a algum pedido, ou simples manifestação (como arrolamento de testemunhas). Este tipo de preclusão se consubstancia nos arts. 178 e 183 do CPC. A última modalidade de preclusão, a lógica, advém de um ato praticado pela parte que seja incompatível com posicionamento diverso que se queira praticar no processo (NERY JÚNIOR, 2001: 915).19 A preclusão, em quaisquer de suas modalidades, implica na perda da faculdade processual de a parte se manifestar, uma vez que a mesma não atendeu aos limites discriminados pela lei para o seu exercício. Devemos asseverar, entretanto, que a preclusão aqui discutida não se impõe às questões de ordem pública ou de direito indisponível, enquanto perdurar o processo em que são discutidas. Neste sentido, o art. 267, §3º, do CPC, adverte que as questões sobre os pressupostos processuais, perempção, litispendência, coisa julgada ou sobre as condições da ação, serão conhecidas a qualquer momento, enquanto pendente o processo (no sentido de ainda não estar proferida sentença terminativa ou de mérito). Frise-se, ainda, que este conhecimento independe da manifestação da parte, podendo ocorrer de ofício24. 6 – As condições da ação e a coisa julgada Do estudo até agora apresentado, temos, segundo a maioria da doutrina, que as condições da ação tem caráter meramente processual, por serem analisadas pelo magistrado sem que o mesmo averigúe a relação substancial que deu origem ao processo, fazendo tão somente um juízo hipotético (in statu assertionis). Tal posicionamento advém do sistema tripartido que rege nosso processo civil, e divide-o em três categorias, quais sejam: pressupostos processuais, condições da ação e mérito. E, de acordo com tal classificação, uma categoria é excludente das demais, ou seja, se o operador do direito está versando sobre uma condição da ação, a princípio, o mesmo não pensaria que poderia, eventualmente, tratar-se de mérito. Assim, segundo a sistemática apresentada, a sentença terminativa do processo, que não julgaria seu mérito, sofreria, tão somente, os efeitos da coisa julgada formal. Porém, como já mencionado, muitas vezes a sentença terminativa analisa o mérito da questão, e daí surgem os problemas doutrinários e práticos. O professor Kazuo Watanabe aponta que o conflito advindo da má aferição sobre as condições da ação e o mérito se deve a um contrasenso entre a teoria do direito abstrato de agir e a teoria eclética, pois, esta “liga as condições da ação à 24 Confirmando tal posicionamento os julgados TJDF – APC 19990110712580 – DJU 07.08.2002 e TJMG – AC 000.246.282-8/00 – J. 27.05.2002 20 situação de fato, afirmada e comprovada no processo, após a instrução e a avaliação das provas e não in statu assertionis.” (grifos nossos) 25 Com isto queremos dizer que, embora pareça que as condições da ação remetam unicamente ao plano processual, o que pragmaticamente acontece é que elas buscam as confirmações de sua existência no direito material que fundamenta a ação. Assim, não importa o momento em que as mesmas sejam identificadas, haja vista que, mesmo após a instrução processual, em que o mérito foi apurado, na hora do decisum o magistrado que não tenha demasiado cuidado, invariavelmente julgará por carência de ação, quando deveria ser caso de procedência ou improcedência do pedido26. E assim, traça-se toda a problemática que desejávamos apontar, ou seja, o modo como foi disposto no Código de Processo Civil a teoria eclética induz o operador do direito desavisado a uma atitude equivocada frente às reais definições de mérito, condições da ação e pressupostos processuais. E este equívoco desemboca diretamente na formação da coisa julgada formal e material. Para tentar desatar o nó aqui traçado, propomo-nos ao estudo da tripartição do processo civil, bem como à análise das críticas apontadas com relação às condições da ação devido aos problemas surgidos por sua aplicação descuidada, para, após, tentarmos apontar uma forma de tornar o sistema mais coerente. 6.1 – O sistema tripartido do Código de Processo Civil. Nosso Digesto Processual, visando sistematizar o processo, dividiu o processo de cognição em três categorias, quais sejam: pressupostos processuais, condições da ação e mérito. Desta classificação podemos apurar que as expressões mérito e lide são utilizadas como sinônimas, e remetem à análise do pedido exposto na exordial. 25 Ob.cit.p.86. 26 O equívoco dos julgamentos se deve à maneira como o assunto é tratado na maioria dos manuais que discorrem a respeito. Neles, não importa o momento em que seja detectada a ausência da condição, tampouco se se passou pela análise do mérito, pois correlatamente à percepção da ausência vem a carência de ação. Sem maiores indagações. Assim, Nelson Nery nos fala que “caso existentes quando da propositura da ação, mas faltante uma delas durante o procedimento, há carência superveniente ensejando a extinção do processo sem julgamento do mérito.” (ob.cit.p.710). Percebam que o doutrinador não tece nenhuma consideração a respeito de se esta detecção se operou após a instrução, pois, na sua concepção, tal fato é irrelevante. 21 Desta sorte conclui-se que analisar o mérito é, necessariamente, analisar o direito material que dá supedâneo à demanda. E, como dito anteriormente, apenas quando o direito material é indagado e averiguado pelo juiz, através de sua cognição, estaríamos diante da possibilidade de formação da coisa julgada material. As duas demais categorias (pressupostos processuais e condições da ação) seriam competentes tão somente para averiguação das questões processuais. Nas palavras de Rodrigo da Cunha Lima Freire, “formam o juízo de admissibilidade no processo, para que se passe, posteriormente, ao juízo de mérito, quando o juiz conhecerá e julgará a lide”27. Por tais motivos, acarretariam apenas a possibilidade de formação da coisa julgada formal. Devemos, entretanto, diferenciá-las, conforme fez o Código Processual. Neste sentido, os pressupostos processuais afiguram-se como requisitos de constituição e desenvolvimento válido do processo, de acordo com o contido no art. 267, IV, do CPC. Sua ausência, na maioria das vezes, enseja a inépcia da inicial28, porém, a irregularidade aqui tratada quase sempre pode ser sanada, embora se apresente como questão de ordem pública. Assim, o magistrado deve, tão logo note a ausência de um pressuposto processual, no primeiro despacho, determinar que a parte emende ou complete a vestibular, no prazo de 10 (dez) dias29. As condições da ação, conforme já esposado, são condições para o desenvolvimento regular do direito de ação, estando revestidas de uma ordem pública que lhes foi atribuída pelo legislador, importando que, diante da sua ausência, o processo não poderá ser sanado ou emendado, levando de pronto à extinção, nos termos do art. 301, X, do CPC. Ernani Fidelis dos Santos nos explica estas diferenciações nas seguintes palavras: “A ausência de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo, na maioria dos casos, pode ser sanada e a petição inicial não é, desde logo, indeferida. Mas tal não ocorre se faltar qualquer das condições da ação, pois se trata de defeito não passível de sanação.”30 27 Ob.cit.p.67 28 De acordo com o art. 301,III, do CPC. 29 Conforme letra da lei contida no art. 284 do CPC. 30 SANTOS, Ernani Fidelis. Manual de Direito Processual Civil, 6ª ed. Paulo: Saraiva, 1998, vol.1, p. 359. 22 Diferenciação diversa nos propõe Rodrigo da Cunha Lima Freire, para quem a principal diferenciação é que os pressupostos processuais tratam de elementos extraídos da relação processual a ser formada ou já constituída, estando sempreintrínsecos a esta relação. Já as condições da ação, seriam analisadas à luz da relação hipotética de direito material alegada, e, por isso, extrínseca à relação processual em si (FREIRE, 2001:71). 6.1.1 – Crítica ao sistema tripartido. Alguns doutrinadores vêm apontando críticas a esta tripartição do objeto da cognição. As mais relevantes afirmam que, na realidade, as condições da ação nada mais seriam que um tratamento diferenciado para questões que, ou dizem respeito ao mérito, ou dizem respeito aos pressupostos processuais. Acompanhando este posicionamento nos reportamos à seguinte passagem do professor Fredie Souza Didier Júnior: “ Nosso legislador se utilizou de terminologias distintas para identificar situações materialmente iguais: a sentença que declara a carência de ação (por ilegitimidade de parte e impossibilidade jurídica do pedido, ao menos) é ontologicamente igual àquela que julga o pedido improcedente. E o equívoco da terminologia diversa levou ao equívoco do tratamento também diverso quanto à produção de coisa julgada material – o que não se justifica. Ora, se entendermos que a carência de interesse processual, como é conhecido, leva a uma análise puramente processual, não é razoável que se elabore uma nova terminologia para identificar tal situação, porquanto plenamente subsumida àquela em que o processo é extinto pela ausência de pressupostos processuais de formação ou desenvolvimento válido e regular do processo.” 31 (grifos nossos) Com maior cautela, o professor Rodrigo da Cunha Lima Freire afirma que, se os pressupostos processuais e as condições da ação possuem a mesma finalidade, qual seja, a de funcionarem como um filtro e evitarem o dispêndio inútil da jurisdição, não haveria razão para manter a tripartição, considerando-a dispensável. Assim, remete ao direito alemão que adota apenas o binômio requisitos de admissibilidade para o exame do mérito (pressupostos processuais e condições da ação) e mérito. (FREIRE, 2001:70). 31 DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Um réquiem às condições da ação. Estudo analítico sobre a existência do instituto. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.56, abr.2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2918>. Acesso em: 09 mai.2003 23 Como um posicionamento a este respeito é descipiendo ao desenvolvimento do estudo, vez que estamos interessados basicamente na diferenciação entre questões de mérito e questões que não seriam de mérito passaremos ao ponto seguinte. 6.2 – Questão terminológica. Inicialmente devemos considerar os ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior que, com relação à sentença, nos diz que devemos nos ater ao seu real conteúdo e não ao nome que o magistrado lhe atribui, não sendo de suma relevância o título de procedência, improcedência ou carência de ação, uma vez que a essência da sentença, da qual decorre sua natureza, está intimamente relacionada ao provimento concedido, e não ao seu nome. Portanto, para sabermos qual o efeito da coisa julgada - se formal ou material - devemos perquirir sobre a análise ou não do mérito, ou seja, “o que importa, destarte, é verificar se o juiz examinou ou não o pedido, sendo irrelevante a forma verbal com que o acolheu ou rejeitou”32. Continuando sua explanação, o eminente professor relata que muitos magistrados, por falta técnica, declaram o autor carecedor de ação quando, na realidade, provou-se que o autor não é o titular do direito, ou porque o autor não demonstrou o direito material ao qual buscava. Assim, estes casos de carência de ação são, a rigor, improcedência do pedido, isto porque o mérito restou analisado. Portanto, nestes casos, deve incidir a força da coisa julgada material, malgrado o julgamento do juiz por extinção do processo sem julgamento do mérito.33 32 THEODORO JÚNIOR, ob.cit. p. 530. 33 Em que pese a sapiência do doutrinador, reportando-nos ao plano prático, notamos a formação de um problema delicado: se podemos perceber que os julgamentos errôneos são cotidianos em nosso Judiciário, poderíamos esperar que estes mesmos juízes, ou seus colegas de classe, atribuiriam a força da coisa julgada material a uma sentença terminativa? Infelizmente cremos que não. Por várias razões, dentre elas o fato de que, se foi o mesmo juiz que prolatou a sentença a avaliar a coisa julgada, não contrariaria seu próprio julgamento. Se, por outro lado, fosse magistrado diverso, por solidariedade de classe - atitude criticável, para dizer o menos - relutaria em atribuir efeito diferente ao julgamento de um colega de profissão. Portanto, não acreditamos que o simples conhecimento do desajuste terminológico nos torne imunes do problema. Ao contrário, diante de um caso prático, tendo havido a imprecisão, enfrentaremos trabalho árduo para reverter a situação. 24 Por ser este errôneo julgamento de ocorrência comezinha, surgiram estudos apontando os principais problemas oriundos deste equívoco, e são justamente estas críticas que iremos tratar nos tópicos que se seguem. 6.3 – Da possibilidade de ser reintentada a ação De acordo com o art. 268, CPC, a extinção do processo sem julgamento do mérito, “não obsta que o autor intente de novo a ação”. Considerando-se o sentido literal da letra da lei, parece que o legislador permitiu que as ações fossem repropostas ad infinitum, mesmo quando não houvesse qualquer relação jurídica que desse supedâneo à mesma. Porém, como bem salienta o professor Fábio Gomes, a intenção do legislador não foi a de permitir demandas inúteis. Ao contrário, o que ele almejava era permitir que a ação adequada fosse proposta. Por exemplo, se na primeira ação um locador tivesse acionado o locatário errado, querendo reaver o imóvel por falta de pagamento, tal locador poderia, em uma segunda demanda, acionar o verdadeiro locatário, na ação adequada, que neste caso seria a de despejo. Tomando este exemplo por referência, Fábio Gomes nos mostra a incongruência deste dispositivo legal. Ora, se na segunda ação será acionada pessoa diversa da primeira, o que na verdade ocorre é o ajuizamento de uma nova ação, portanto, não há justificativa para a sentença terminativa, até porque o direito material restou analisado34 (GOMES, 1999:78). Para constatarmos que as ações mencionadas são diversas, basta considerarmos o art. 301, § 2º, do CPC, que estabelece que “uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.” E assim, chegamos à conclusão de que, se as partes são diferentes, diversas também serão as ações. 34 A partir do momento em que o magistrado toma por base o contrato carreado aos autos para constatar a legitimidade estará, necessariamente, analisando o direito material. 25 Tomando por verdade que as ações a serem propostas são diferentes, para que seja resguardada a segurança jurídica da decisão proferida na primeira ação, esta deveria ser acobertada pela coisa julgada material.35 Aliás, se o caso for de ilegitimidade advinda de um contrato, há que se considerar que a parte equivocadamente acionada jamais poderá ser parte legítima, e, se não ocorre o fenômeno da coisa julgada material, o importunado poderá continuar sendo demandado por incontáveis vezes. Acrescente-se que tanto os pressupostos processuais quanto as condições da ação,têm por finalidade a economia processual, na medida em que a filtragem por eles levada a efeito evita a movimentação inútil do Judiciário. Porém, em se considerando a incidência apenas da coisa julgada formal naquelas situações que jamais serão superadas (v.g. a ilegitimidade contratual), o que o ordenamento faz é simplesmente permitir que inutilmente o mesmo se veja acionado novamente. Desta observação concluímos que, em casos que jamais poderão ser modificados, como uma ilegitimidade advinda de cláusula contratual ou a impossibilidade jurídica do pedido, mister a incidência da coisa julgada material, para que, definitivamente, o Judiciário se veja afastado desta oneração que jamais terá bom termo. 6.4 – Condições da ação e análise do mérito. O cerne do problema deste estudo não é outro que não a indagação sobre a natureza das condições da ação: estariam elas taxativamente afastadas do mérito, tendo a natureza processual que lhes foi atribuída pelo seu progenitor? Poderiam, algumas vezes, mesclarem-se ao mérito? Ou, ao contrário das indagações anteriores, seriam elas o próprio mérito, ou, necessitariam passar pela análise do mérito? Para tais perquirições insta um raciocínio gradual, vez que não existe resposta absoluta, haja vista a complexidade da matéria. Justamente por este motivo, uma corrente de processualistas vem atando as concepções consagradas 35 Nos causa estranheza o fato de que, mesmo não atribuindo os efeitos da coisa julgada material, o STJ já se manifestou no sentido de não permitir que estas ações fossem repropostas ipsis litteris, como o julgado STJ, Resp 191.943-SP – In Informativo do STJ de 18 a 22.09.2000. 26 no Código, apontando para tanto, falhas que parecem insanáveis, das quais nos ocuparemos a seguir. 6.4.1– Da impossibilidade jurídica do pedido. A crítica mais severa às condições da ação refere-se à impossibilidade jurídica do pedido. Por serem várias, por uma questão didática, preferimos separá-las por tópicos, que se seguem: 6.4.1.1 – Do abandono da condição pelo seu progenitor Primeiramente devemos relembrar que o próprio Liebman, no ano de 1970, aboliu tal classificação, vez que percebeu seu equívoco ante a insubsistência de seu principal exemplo, qual seja, o divórcio na Itália. Desta maneira, Liebman transportou a essência do instituto para o interesse de agir, considerando que se o particular (parte) não tivesse sua pretensão abstratamente agasalhada pelo ordenamento, então estaríamos diante da falta de adequação. Se o motivo fosse outro, diverso da impossibilidade da ação, estaríamos já na seara do mérito, e, conseqüentemente não mais seria condição da ação, haja vista que tais condições tratam exclusivamente de questões processuais. 6.4.1.2 – Pedido mediato e imediato Para perfazer a análise meramente processual desta condição, alguns doutrinadores dividem o pedido em imediato (dirigido ao Estado, sendo o pedido de providência do mesmo frente a questão controvertida) e mediato (dirigido à parte contrária, aquela que apresenta resistência ao pedido do autor). Assim, a análise da existência desta condição concerniria tão somente ao pedido imediato, uma vez que, com relação ao pedido mediato teríamos que nos projetar ao mérito da causa. Em que pese tal posicionamento, verifica-se que, com relação ao pedido imediato, este jamais poderá ser impossível, isto porque o Estado garante 27 constitucionalmente o direito de ação aos cidadãos, conforme art. 5º, XXXV, da Constituição da República. Desta maneira, o Estado sequer poderá negar-se a apreciar o pedido imediato, haja vista que este é direito fundamental, assegurado a todo cidadão, conhecido também como direito de petição. 6.4.1.3 – Subsunção do fato à norma Outro argumento levantado diz respeito à tarefa do juiz de subsumir o fato à norma. Porém o magistrado apenas subsume o caso à norma quando há procedência do pedido. Assim, verificamos que o argumento de que por não ter havido subsunção do fato à norma estaríamos diante da ausência da condição da ação é falho. Ora, muitas vezes o juiz não subsume o fato à norma simplesmente porque o fato não existe, ou seja, o pedido é improcedente. 6.4.1.4 – Inexistência de norma Da mesma forma, a inexistência de norma específica não se mostra como empecilho para a análise da ação, justamente porque na verdade o que se analisa é se o Ordenamento, a priori, rejeita a pretensão do autor. Caso contrário, toda e qualquer ação poderá ser intentada. Devemos aqui lembrar que ao juiz é vedado o non liquet. E assim, existindo ou não norma, uma vez que o pedido não é repelido pelo Direito em abstrato, o magistrado deverá pronunciar sentença, seja de mérito ou terminativa. 6.4.1.5 – Causa de pedir Caso há, ainda, em que os doutrinadores tentam levar a impossibilidade do pedido para a análise da causa de pedir, e assim, sugerem a impossibilidade jurídica da demanda. Um exemplo desta posição refere-se à dívida de jogo. Ou seja, a dívida em si é líquida e válida. Entretanto, como o ordenamento proíbe a sua causa (v.g., jogo de bicho), vedada está a sua cobrança. 28 O que este caso apresenta nada mais é que a ilicitude do próprio direito material, portanto, indagações a este respeito nada mais são que indagações sobre o mérito da causa. Há doutrinadores que simplesmente acreditam inseparáveis a análise da causa de pedir do próprio pedido (DIDIER JÚNIOR, 2002), justamente pela co- relação existente entre as mesmas. 6.4.1.6 – Da improcedência prima facie A improcedência prima facie é um instituto jurídico afim aos pressupostos processuais e condições da ação, haja vista a sua função de evitar aquelas demandas que não poderão obter bom êxito. Este fenômeno ocorre quando da descrição dos fatos não decorre logicamente o pedido, ou seja, não há silogismo entre a premissa maior (fundamento jurídico) e a menor (fatos), e assim a conclusão se vê dispersa das alegações contidas na exordial36. Confirmando este posicionamento, Nelson Nery Júnior nos brinda com as seguintes palavras: “A petição inicial é um silogismo, composto de premissa maior, premissa menor e de conclusão. Narrando o autor uma situação e concluindo de forma ilógica relativamente à narração, têm-se a inépcia da petição inicial, pois a conclusão deve decorrer logicamente da premissa menor subsumida à maior”37 A improcedência prima facie vem disciplinada no art. 295, parágrafo único, II, do CPC, que trata dos motivos que levam à inépcia da inicial. Embora o julgamento por indeferimento da inicial seja, regra geral, sem análise do mérito, aquele decorrente da improcedência prima facie é de mérito, uma vez que analisa o direito material afirmado na inicial. Isto ocorre devido ao confronto realizado pelo magistrado entre a narração dos fatos, o pedido disposto na vestibular e a viabilidade daquela demanda frente ao ordenamento jurídico. 36 No julgado TST – ROAR 410042 – DJU 22.03.2002 podemos perceber que o julgador extinguiu o processo sem julgamento do mérito quando se tratava de improcedência prima facie. 37 Ob.cit.p. 768. 29 Apenas estará configurada esta improcedência quando decorrer exclusivamenteda contradição da narração dos fatos com o pedido, considerando- se a lei material do nosso Sistema Jurídico. Confirmando tal posicionamento as palavras do professor Didier Júnior: “ Quando a inviabilidade jurídica é manifesta, é caso de improcedência prima facie, com extinção do processo com julgamento do mérito, à semelhança do que ocorre quando verificadas a prescrição e a decadência, as quais, não obstante se configurem como exemplos de inépcia da inicial (que é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito), geram extinção do processo com julgamento do mérito, produzindo coisa julgada material.” 38 No mesmo sentido, da análise do mérito, o Desembargador Ernani Fidelis dos Santos nos brinda com esclarecedora consideração: “ Quando da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão, diz-se que há impossibilidade jurídica relativa e a decisão é de improcedência prima facie, porque se trata de real sentença de mérito. Abstratamente o pedido é permitido, mas concretamente, frente aos fatos, como conseqüência do fato jurídico narrado, nele não se pode concluir. O autor reivindica imóvel, mas relata como título aquisitivo contrato não formalizado e informado apenas por simples recibo de pagamento do preço. O autor diz que aluga prédio urbano para o réu pelo prazo de doze meses e pede despejo, considerando vencido o contrato em contrariedade ao que determina o art. 47 da Lei 8245/91, que considera prorrogadas por tempo indeterminado todas as locações residenciais que se vencerem na vigência da lei, continuando em vigor todas as demais cláusulas contratuais.” 39 Devido ao fato de a impossibilidade jurídica do pedido e a improcedência prima facie analisarem a viabilidade da demanda, alguns doutrinadores, equivocadamente classificam a impossibilidade jurídica do pedido como uma espécie de improcedência prima facie, ou vice versa40. A razão que induz a este equívoco, acreditamos, relaciona-se ao fato de que a improcedência prima facie pacificamente analisa o mérito, e a impossibilidade, como condição da ação não analisaria. Assim, se colocássemos a impossibilidade do pedido como espécie de improcedência prima facie, também estaria sujeita ao julgamento do mérito sem uma afronta direta ao real problema, qual seja, o da natureza das condições da ação. Pela passagem abaixo transcrita podemos perceber o equívoco acima mencionado: “A meu sentir, ou se restringe notavelmente o conceito de impossibilidade jurídica, ou se há de aceitar que a decisão a esse respeito envolve o mérito. A lide consubstancia-se no 38 DIDIER JÚNIR, ob.cit. 39 SANTOS, Ernani Fidelis. Manual de Direito Processual Civil, 6ª ed. Paulo: Saraiva, 1998, vol.1, p. 359. 40 Transparece com clareza tal equívoco o julgado TJSP – AC 103.128-4 – J. 199.10.1999 30 pedido e na causa de pedir. Se alguém formula um pedido e o juiz afirma que não é admitido pelo ordenamento, estará dizendo que o autor não tem o direito que pretende ver reconhecido. Julgou a lide, porque a única que importa é a deduzida no processo. O que se tem aí, em verdade, é o que Calmon de Passos chamou de "improcedência prima facie" a falta de razão evidente, que salta aos olhos. Não será por isso que deixará de ter havido pronunciamento sobre o direito pleiteado, decidindo-se a lide “.41 Devemos repisar que, embora afins, os institutos discutidos não pertencem à mesma categoria, e um não é espécie do outro. Ao contrário, a improcedência prima facie ampara uma incongruência da petição inicial que torna impossível o julgamento do mérito. Já a impossibilidade jurídica do pedido é uma negativa em abstrato do ordenamento jurídico ao pedido do autor, não porque a petição inicial não guarde silogismo ou lógica, mas porque pleiteia algo vedado pelo Sistema Jurídico. 6.4.1.7 – Conclusão Por todos os motivos até aqui levantados, somos levados a acreditar que a extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido nada mais é senão análise do mérito e, por isso, deve revestir-se da segurança que da a coisa julgada material advém. Neste sentido, quando a improcedência decorrer de pronto no ordenamento, o que acontece é a o julgamento do mérito, porque o impedimento não é processual, mas da natureza do direito material ao qual a ação procura dar auxílio. 6.4.2 – Legitimatio ad causam Como já debatido, a legitimatio ad causam está intimamente relacionada com a afirmativa trazida a juízo pelo demandante. Assim, se há um nexo entre a narração dos fatos e as partes (próprio autor e o réu), estará averiguada a legitimação42. 41 OLIVEIRA, Eduardo Andrade Ribeiro de. Seminário "O CPC E As Suas Recentes Alterações - Recursos: Algumas Inovações” Disponível em:< http://www.acta- diurna.com.br/biblioteca/doutrina/cpc/doutrin5.htm> Acesso em: 23 out 2003. 42 Confirmam tal posicionamento os julgados TAPR – Al 0165577-6 – DJPR 27.04.2001 e TJPE – AC 26543-0 – DJPE 13.11.2002. 31 Em que pese a diferenciação sistemática acima esposada, não é tarefa fácil ao operador do direito perceber as nuances que diferenciam a legitimação advinda da condição da ação daquela advinda do mérito43. Alguns doutrinadores, como o professor Fredie Souza Didier Júnior44 - seguindo a linha de Ovídio Baptista da Silva e Luiz Guilherme Marioni – são enérgicos e defendem que, na realidade, não haveria as condições da ação, e, todos os fatos a elas relacionados seriam, a rigor, referentes ao mérito da ação (caso da legitimidade) ou aos pressupostos processuais. Não chegamos a tanto, mas para melhor abordarmos o problema, citamos os exemplos utilizados pelo professor Rodrigo da Cunha Lima Freire (FREIRE, 2001:115-116). Em um caso de locação, v.g., em que A aluga um imóvel de B, havendo controvérsia quanto ao pagamento, A resolve intentar ação de consignação em pagamento, porém, aciona C que é a administradora do condomínio do apartamento locado. Neste caso, temos que a suposta ilegitimidade de C advém da análise do contrato de locação que o exclui da controvérsia. Assim, percebemos a improcedência do pedido (adveio da análise do direito material exteriorizado pelo contrato de locação) e não a ilegitimidade da causa. Outro exemplo seria o caso de investigação de paternidade em que A (investigante) aciona B, seu suposto pai. Tendo ocorrido a realização de exame pericial, fica constatada a impossibilidade da paternidade de B. Então a sentença que colocará fim à demanda, vez que provada a inexistência da filiação, deverá ser de improcedência do pedido, pois o direito material que dá supedâneo à ação não existe. Mais um exemplo seria o caso de uma ação reivindicatória em que A, se afirmando proprietário de determinado bem, tenta reavê-lo de B, pessoa em nome de quem o bem encontra-se registrado. Entretanto, da colheita de provas no processo, conclui-se que, na realidade, o bem pertence a C, e por isso a ação não poderá prosperar, indeferindo-se o pedido. 43 Neste sentido nos deparamos com o julgado TACRJ – AC 1270/95 – J. 17.05.1995. 44 O posicionamento acima colocado encontra respaldo no seguinte trecho: “o que hoje se entende como condição da ação ou é mérito (legitimidade ad causam e possibilidade jurídica do pedido) ou é , no mínimo, pressuposto processual (interesse de agir)”. Ob.cit. 32 O que todos estes exemplos têm em comum é que, da análise abstrata e meramente processual, in statu
Compartilhar