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ESPEC IAL I ZAÇÃO Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA LETRAMENTOS Marizete Bortolanza Spessatto 2014 Catalogado por: Laura da Rosa Bourscheid CRB14/983 S741l Spessatto, Marizete Bortolanza Letramentos / Marizete Bortolanza Spessatto. -- Florianópolis : IFSC, 2014. 72 p. : il. ; 28 cm Inclui Bibliografia. ISBN: 978-85-64426-83-2 1. Letramento. 2. Leitura. I. Título. CDD: 372.41 2014, Instituto Federal de Santa Catarina - IFSC. Edição adaptada ao novo projeto gráfico e instrucional do Departamento de Educação a Distância - EaD - IFSC. Esta obra está licenciada nos termos da Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Brasil, podendo a OBRA ser remixada, adaptada e servir para criação de obras derivadas, desde que com fins não comerciais, que seja atribuído crédito ao autor e que as obras derivadas sejam licenciadas sob a mesma licença. Ficha Técnica e Institucional [ Reitoria ] Maria Clara Kaschny Schneider [ Pró-Reitoria de Ensino ] Daniela de Carvalho Carrelas [ Diretoria do Centro de Referência em Formação e EaD ] Gislene Miotto Catolino Raymundo [ Chefia do Departamento de Educação a Distância - EaD/IFSC ] Fabiana Besen [ Coordenação do PROEJA ] Elenita Eliete de Lima Ramos [ Coordenação do Curso de Especialização em PROEJA ] Paula Alves de Aguiar [ Coordenação Adjunta do Curso de Especialização em PROEJA ] Anderson Carlos Santos de Abreu [ Coordenação de Tutoria ] Gabriela Augusta da Silva [ Coordenação - Produção de Materiais Didáticos - EaD/IFSC ] Ana Karina Corrêa [ Projeto Gráfico e Instrucional - Livros didáticos - EaD/IFSC ] Aline Pimentel Carla Peres Souza Daniela Viviani Elisa Conceição da Silva Rosa Sabrina Bleicher Créditos do Livro EDIÇÃO 2014 [ Conteúdo ] Marizete Bortolanza Spessatto [ Conselho Editorial ] Paula Alves de Aguiar Silvia Maria de Oliveira [ Design Instrucional ] Verônica Cúrcio [ Design Gráfico ] Felipe Augusto Franke [ Revisão Gramatical ] Sandra Beatriz Koelling [ Ilustrações ] Felipe Augusto Franke [ Gráficos e Tratamento de Imagens ] Felipe Augusto Franke [ Imagens ] Stock.XCHNG <http://www.sxc.hu/> The Noun Project <http://thenounproject.com/> INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SANTA CATARINA PRÓ-REITORIA DE ENSINO CENTRO DE REFERÊNCIA EM FORMAÇÃO E EAD Prezado estudante, Seja bem-vindo! O Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), preocupado em transpor distâncias físicas e geográficas, percebe e trata a Educação a Distância como uma possibilidade de inclusão. No IFSC são oferecidos diferentes cursos na modalidade a distância, ampliando o acesso de estudantes catarinenses, como de outros estados brasileiros, à educação em todos os seus níveis, possibilitando a disseminação do conhecimento por meio de seus câmpus e polos de apoio presencial conveniados. Os materiais didáticos desenvolvidos para a EaD foram pensados para que você, caro aluno, consiga acompanhar seu curso contando com recursos de apoio a seus estudos, tais como videoaulas, ambiente virtual de ensino aprendizagem e livro didático. A intenção dos projetos gráfico e instrucional é manter uma identidade única, inovadora, em consonância com os avanços tecnológicos atuais, integrando os vários meios disponibilizados e revelando a intencionalidade da instituição. Bom estudo e sucesso! Equipe de Produção dos Projetos Gráfico e Instrucional Departamento EaD/IFSC Sumário Letramentos 1. Letramentos: Pressupostos para o Ensino de Língua Materna 2. Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola 3. Variação Linguística e Ensino: nos Caminhos do Letramento 4. Projetos de Letramento: os Gêneros Textuais em Sala de Aula Considerações Finais Sobre a Autora Referências 07 21 35 53 67 68 69 A unidade curricular de Letramentos Prezado Pós-graduando, Nesta unidade curricular vamos refletir sobre os processos de letramento e suas implicações nas práticas do PROEJA, reconhecendo a intrínseca relação entre os domínios da leitura e da escrita, o acesso à escolarização e as relações sociais que definem os papéis de cada sujeito na estrutura social. Temos como focos: o estudo dos conceitos de alfabetização e letramento, considerando-os processos que se estendem ao longo da vida em uma sociedade grafocêntrica; a análise das condições dos sujeitos pouco escolarizados na sociedade letrada e das práticas de letramento em diferentes contextos; e a investigação de como os projetos de letramento podem contribuir para a formação de leitores e escritores. Nessa caminhada, apoiamo-nos nos pressupostos de Mikhail Bakhtin (1997) sobre língua/linguagem, interação verbal e interlocução. Adotamos, ainda, a concepção sócio-histórica de Vigotsky, por se tratar de uma abordagem de caráter interacionista, que mais se aproxima dos pressupostos bakhtinianos. Dessa forma, compreendemos o letramento como um processo contínuo e que garante a apropriação/construção da linguagem escrita, respeitando os sujeitos da aprendizagem, suas experiências que antecedem a entrada na escola, ou seja, o contexto etnolinguístico a que pertencem. Esperamos que este material auxilie a todos nas reflexões e práticas e contribua na construção de processos autônomos e interativos da linguagem entre educadores e educandos da Educação de Jovens e Adultos - EJA. Bom estudo! Marizete Bortolanza Spessatto Letramentos: Pressupostos para o Ensino da Língua Materna LETRAMENTOS UNIDADE 1 Nesta unidade, retomaremos o percurso histórico do acesso à escolarização, observando os diferentes fatores sociais e econômicos que influenciaram no acesso a esse espaço pelas camadas populares. Objetivamos, ainda, diferenciar os conceitos de alfabetização e letramento e refletir sobre o papel do professor no processo de letramento de sujeitos que constituem a Educação de Jovens e Adultos. Marizete Bortolanza Spessatto Letramentos: Pressupostos para o Ensino da Língua Materna Se aceitarmos que o letramento do aluno é a função primeira da escola, então é o letramento o princípio estruturador do currículo (KLEIMAN, 2010, p. 381). O letramento não é um processo estanque. Vivendo em sociedade e, especialmente, em uma sociedade grafocêntrica, acompanhamos, como profissionais, professores e pesquisadores, constantes mudanças no conceito de letramento/letramentos e, ao mesmo tempo, também nós avançamos nesse processo de sermos efetivamente e constantemente letrados, diante de mudanças e ampliações dos usos sociais da leitura e da escrita. Por isso, faz-se fundamental retomarmos a história e pensarmos o ensino de língua materna na perspectiva ampla que é a do letramento. GRAFOCÊNTRICA [ GLOSSÁRIO ] Uma sociedade grafocêntrica é aquela que privilegia a imagem ou a escrita em detrimento do som. Basta olharmos ao nosso redor para percebemos como a palavra escrita apresenta-se de forma intensa e constante: placas, outdoors, indicações de ruas, transporte coletivo, panfletos de propaganda etc. Letramentos: Pressupostos para o Ensino da Língua Materna 9 Letramentos e cidadania: história da ampliação do acesso à educação escolar Tendo, neste nosso percurso de formação acadêmica, o olhar sobre jovens e adultos que voltam à escola, não posso começar essa conversa sem, antes, apresentar a vocês algumas pessoas que me marcam na caminhada de alfabetizar e letrar. Felícia, Joana e Maria (nomes fictícios) voltaram à escola em busca de qualificação profissional. Embora em tempos e lugares diferentes, eu as conheci quando integravam o programa do Governo Federal Mulheres Mil, que tem como meta garantir o acesso à educação profissional e garantir a elevação da escolaridade de mulheres, via inclusão social. Mesmo com um objetivo em comum, a qualificação anunciada pelo programa, cada uma delas retornou aos bancos escolares com uma história de vida diferente. Maria eracompletamente analfabeta. Com seis filhos, passava boa parte do seu tempo dentro de casa, nos afazeres domésticos. Joana rabiscava o nome, coloria desenhos e arriscava algumas frases na companhia da neta. Felícia, com história de violência familiar, empolgava-se nas primeiras aulas de Português Básico quando conseguia juntar letras e sílabas e ver aí, no papel, a materialização de textos com os quais estava habituada apenas na oralidade. As histórias que constituem essas mulheres não são diferentes nem mais inusitadas do que tantas outras que cada um de nós, integrantes deste curso, temos para contar. Eu as trago, aqui neste início de conversa, para que elas me ajudem a significar a importância de pensarmos as ações da escola na ampliação do letramento, de forma absolutamente comprometida com o lugar social ao qual estão vinculados os sujeitos que constituem o processo educacional. São movimentos plurais, não atos isolados ou apenas vinculados com exercícios mecânicos de codificação e decodificação, que constituem o processo educativo ao qual estamos envolvidos na Educação de Jovens e Adultos. Por isso, rostos e histórias de vida são tão importantes. São esses sujeitos reais que nos estimulam e organizam nossa atuação. Essa preocupação em conhecer os sujeitos que chegam à EJA ou ao PROEJA, para além de uma ideia do senso comum de que são “adultos que não estudaram no tempo normal”, precisa orientar a nossa prática. LETRAMENTO [ GLOSSÁRIO ] Embora, ao longo deste material, apareçam concomitantemente os termos letramento – singular – e letramentos – plural –, dependendo da fonte ao qual o texto se remete, a escolha do plural – letramentos – como título desta unidade curricular está fundamentada especialmente em Kleiman (1995), considerando-se os múltiplos letramentos exigidos na sociedade atual. MULHERES MIL [ SAIBA MAIS ] O Mulheres Mil está inserido no conjunto de prioridades das políticas públicas do Governo do Brasil, especialmente nos eixos promoção da equidade, igualdade entre sexos, combate à violência contra mulher e acesso à educação. O programa também contribuiu para o alcance das Metas do Milênio, promulgadas pela ONU em 2000 e aprovadas por 191 países. Entre as metas estabelecidas estão a erradicação da extrema pobreza e da fome, promoção da igualdade entre os sexos, autonomia das mulheres e garantia da sustentabilidade ambiental. [ LEITURA COMPLEMENTAR ] Amplio essa discussão no texto Experiências mil: ações e interações educativas oportunizadas pelo Mulheres Mil no meio-oeste catarinense, publicado na obra Criatividade e inovação no ensino superior: experiências latino-americanas e europeias em foco, sob coordenação de Marlene Zwierewicz (Blumenau: Nova Letra, 2013). É imprescindível pensar nossas ações em EJA a partir do reconhecimento das histórias que constituem cada sujeito que chega pela primeira vez aos bancos escolares ou retorna às instituições de ensino visando retomar o acesso aos bens culturais a elas relacionados. Quanto ao perfil dos estudantes da Educação de Jovens e Adultos, Abreu e Vóvio (2010) argumentam que, embora existam dados que mostrem o número de analfabetos e um perfil geral de quem são esses sujeitos, pouco se sabe sobre “quem são essas pessoas, como elas vivem, o que sabem, o que significa para elas não saber ler e escrever, o que querem aprender.” (ABREU; VÓVIO, 2010, p. 186). Embora algumas características sociais possam ajudar a identificar um perfil geral do público da EJA, as autoras afirmam que existem muitas diferenças do ponto de vista dos seus patrimônios culturais. “Diferenciam-se no que diz respeito aos ciclos da vida em que estão, às suas identidades, às suas disposições e necessidades formativas, bem como em relação às representações sobre o ler e escrever, os conhecimentos e as habilidades constituídos em suas vidas.” (ABREU; VÓVIO, 2010, p. 187). Ainda, assim como é importante conhecer a história de cada sujeito que constitui a Educação de Jovens e Adultos, também se faz necessário percorrer a história que consolida a realidade do processo de escolarização e de formação de sujeitos letrados com a qual nos deparamos hoje. É esse movimento que fazemos na seção que segue. Pensar o letramento passa por entender o percurso histórico da alfabetização: diferentes interesses e resultados Para falar em leitura, letramento e cidadania, é preciso, antes, analisar o percurso histórico de acesso ao mundo da escrita. Mesmo que os espaços de atuação com Educação de Jovens e Adultos da maioria de nós, integrantes deste curso de especialização, estejam voltados aos anos finais do Ensino Fundamental ou ao Ensino NÚMERO DE ANALFABETOS [ SAIBA MAIS ] Cerca de 14 milhões de brasileiros são analfabetos (IBGE, 2007; CONAE, 2014), sendo a maior parte com idade acima de 40 anos, negros, moradores da região Nordeste e de áreas rurais. Letramentos: Pressupostos para o Ensino da Língua Materna 11 Médio, é importante compreendermos como chegamos à realidade atual, tanto de analfabetismo quanto em relação ao analfabetismo funcional. Percorreremos, nessa retomada, o caminho traçado especialmente por Graff (1994), Di Nucci (2001) e Zilberman (2014). Ao tratar sobre a ampliação do acesso à escolarização no Brasil, seguiremos a análise feita por Soares (1998). Di Nucci (2001) afirma que, como prática social, a escrita tem uma história rica. Durante muitos séculos, explica a autora, especialmente no Oriente, a escrita era ostentada como poder de burocratas e religiosos, já que os ideogramas impediam o cidadão comum de ler e escrever. Isso posto, basta um olhar atento para percebermos que o percurso de acesso ao mundo da escrita foi/é tão desigual como o é a organização da estrutura social. No início do século XIX, com a transição da economia agrária para a industrial e urbana, o acesso à leitura e à escrita tornou-se necessário, padronizando o aprendizado baseado nas escolas (DI NUCCI, 2001). Por outro lado, se os dados históricos mostram que chegamos ao século XX com altos índices de analfabetismo pelo mundo afora, não foi por falta de condições ou por incompetência das massas. Foi o temor de que elas se tornassem “inadequadas ao cansativo trabalho manual, inquietas em suas funções e desobedientes a seus superiores” (GRAFF, 1994, p. 67) que fez com que o acesso popular à alfabetização fosse adiado no século XIX. Aos poucos, a exclusão do mundo letrado torna-se menos generalizada e, claro, a temida insurreição não acontece. Por quê? Porque o acesso ao mundo da escrita foi institucionalizado. Se, em séculos anteriores, ler e escrever poderiam ser atividades domésticas (de poucos, é claro), a partir do século XX a escola se torna a instituição autorizada a alfabetizar. Nas letras lidas e registradas em cadernos, formam-se palavras que ajudam no controle social. Formam-se sujeitos mais “treinados” para o convívio em sociedade: Na realidade, a escola representou uma forma de controle social sobre a escrita por parte do Estado burguês, cuja função era disciplinar os trabalhadores para a industrialização. […] Com a escolarização, a escrita passou a ser privilegiada por ser uma forma de padronização e adestramento e não de liberação e desenvolvimento do sujeito, uma vez que a escola preparava o indivíduo basicamente para o mercado de trabalho (DI NUCCI, 2001, p. 50-51). [ Dados sobre a realidade de analfabetismo e analfabetismo funcional no Brasil também são apresentados no componente curricular Sujeitos da Diversidade deste curso de especialização. Vale a pena retomar o material já estudado, pois as discussões lá propostas estão articuladas com o que se propõe refletir aqui. ] No caso brasileiro, Mortatti (2006, p. 02) afirma que a educação ganhou destaque no final do século XIX, como “uma das utopias da modernidade”. A escola, continua a autora, mostrou-se capaz de atender aos ideais do Estado republicano, instaurandouma nova ordem social e, ao “esclarecer as massas”, atendia a uma ordem necessária para estimular o progresso econômico do país. Não são coincidências, apenas, os fatos de que o intenso processo de industrialização e saída do homem do campo e a abertura do mundo da escola aos menos favorecidos tenham se dado no mesmo período histórico. No Brasil, o atrelamento da função de ensinar a ler e escrever com a ideologia política dominante fica ainda mais evidente quando se observa que o famoso processo de “democratização do acesso à escola” dá-se exatamente no período da ditadura militar. A escola, instituição governamental, ajuda no controle da circulação de textos e, ainda, prepara os cidadãos para o trabalho nas indústrias, especialmente as multinacionais que começam a se instalar no país de forma mais intensa nesse período (cf. SOARES, 1998). Assim, observamos que a expansão do acesso à escrita veio, antes de assegurar um direito ao povo, garantir a expansão do capitalismo. É como diz Zilberman (2014): “Dinheiro e escrita podem não ter nascido ao mesmo tempo, mas passaram a infância juntos, e sua expansão tem ocorrido em sociedades avançadas do ponto de vista econômico.” Mattos e Silva (2004) também faz uma longa reflexão acerca da desigualdade de acesso à escola que marca a constituição da sociedade brasileira. Em fins do século XVIII, eram apenas 0,5% de alfabetizados no país. Ao longo do século XIX e início do XX esses não passam de 20 a 30% (cf. HOUAISS, 1985). É importante seguir a análise de Bortoni-Ricardo (2004), quando relaciona o avanço do processo de alfabetização da população brasileira à mudança do perfil rural/urbano. [ LEITURA COMPLEMENTAR ] ZILBERMAN, Regina. A leitura no Brasil: sua história e suas instituições. Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/ projetos/ensaios/ensaio32.html>. O texto traz a história da leitura no Brasil de forma clara e crítica. Letramentos: Pressupostos para o Ensino da Língua Materna 13 População urbanaContexto População analfabeta Início do século XX 10,7% 1940 31,24% 56% 1950 36,16% 50% 1960-1970 42% 39% 1980 67,60% 33% 1991 78,35% 26% Quadro 1 - Per�l população urbana/alfabetização 2000 81,37% 10% Fonte: Bortoni-Ricardo, 2004. Podemos refazer esse percurso histórico, recuperando os índices de escolarização brasileira até chegarmos aos anos de 1970, quando, no período da Ditadura Militar, como afirmamos anteriormente, a escola “democratiza” o acesso às camadas populares. Para tal, seguimos os dados da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI)/Ministério da Educação do Brasil: População entre 5 a 19 anosAno Taxa de escolarização % da população na escola 1920 12.703.077 1940 15.530.819 8,99 1950 18.826.409 21,43 1960 25.877.611 26,15 33,37 1970 35.170.643 53,72 Quadro 2 - Per�l populacional/taxa de escolarização Fonte: Organização dos Estados Iberamericanos, 2014. Mesmo considerando avanços quantitativos do acesso à escolarização e ao mundo da escrita, ao longo da história, ainda há muito o que avançar na garantia de direitos de educação ao povo brasileiro. A preocupação faz parte do documento-base da Conferência Nacional de Educação - CONAE 2014 (2014, p. 45), com apresentação de números sobre a condição atual da escolarização, em diferentes perfis etários. O documento articula a necessidade de ampliação da escolarização (e da qualidade desta) à redução das desigualdades sociais. CONAE [ GLOSSÁRIO ] A Conferência Nacional de Educação (CONAE) é um espaço aberto pelo Poder Público para discussão nacional sobre estratégias e metas para a educação brasileira. As conferências nacionais são precedidas por etapas preparatórias, compreendidas em conferências livres e conferências ordinárias municipais e/ ou intermunicipais, estaduais e do Distrito Federal. Abreu e Vóvio (2010) destacam que, dos 14 milhões de analfabetos no país, a maior parte é de grupos etários acima de 40 anos. Entretanto, em 2007, afirmam, em torno de dois milhões de jovens entre 15 e 29 anos eram analfabetos. Desses, 14,1% eram negros e 6,1% brancos. Em relação à distribuição geográfica, 20% estavam, em 2007, na região Nordeste; 5,4% na região Sul; nas zonas rurais, eram 23,3% de analfabeto, enquanto o índice de analfabetismo nas zonas urbanas ficava em 4,4% (ABREU; VÓVIO, 2010). É preciso considerar, para fecharmos esta seção e darmos prosseguimento às reflexões a que nos propomos, que o domínio da leitura e da escrita são condições que se mantêm primordiais, já que, conforme aponta Britto (2012): “Não obstante a emergência e prevalência de vários meios de comunicação eletrônica na vida contemporânea, seguimos vivendo em uma sociedade grafocêntrica, em que a leitura e a escrita são condições básicas de inserção social.” (BRITTO, 2012, p. 84). O avanço dos estudos de letramento e os reflexos na prática de ensino de língua materna Foi na segunda metade dos anos 1980 que a palavra letramento ganhou força e passou a ser incorporada no discurso de especialistas [ Quais as experiências pelas quais você (professor e profissional da EJA) passou que espelham a condição social dos sujeitos que constituem o espaço deste nível de ensino? Algum evento em especial ficou marcado em sua memória nas diferentes experiências pelas quais passou no trabalho voltado à Educação de Jovens e Adultos? ] NARRADORES DE JAVÉ [ SAIBA MAIS ] A produção brasileira Narradores de Javé (2003, direção de Eliane Caffé) descreve bem as dificuldades dos sujeitos analfabetos em uma sociedade na qual só é “científico” o que é apresentado pela escrita. No filme, o vilarejo de Javé é ameaçado de alagamento pela represa de uma hidrelétrica. Para salvar a vila, os moradores se apoiam em Antonio Biá, “que domina as letras” e é incumbido da tarefa de provar que o local tem um patrimônio cultural e, assim, impedir o alagamento. O aumento do número de anos de escolarização e da jornada escolar, com qualidade, vem se tornando imperativo para uma sociedade inclusiva, que busque superar as desigualdades. O Brasil tem hoje, em média, apenas 7,5 anos de educação/escolarização de sua força de trabalho, com elevado número de analfabetos (cerca de 14 milhões), baixa taxa de escolarização líquida da população de 15 a 17 anos no ensino médio (cerca de 50%) e baixa taxa líquida da população de 18 a 24 anos na educação superior (cerca de 14%). São condições que precisam ser superadas, pois interferem na melhoria da distribuição de renda e nos processos de trabalho, saúde e educação ambiental, contribuindo para a superação da exclusão social (CONAE/MEC, 2014). Letramentos: Pressupostos para o Ensino da Língua Materna 15 das Ciências Linguísticas e da Educação, como uma tradução da palavra da língua inglesa literacy. Sua tradução se faz na busca de ampliar o conceito de alfabetização, chamando a atenção não apenas para o domínio da tecnologia do ler e do escrever, mas, também, para o uso dessas habilidades em práticas sociais em que escrever e ler são necessários. Fazendo essa consideração, dedicamos esta seção, seguindo o movimento que dá fluxo a esta unidade, às reflexões acerca da trajetória dos conceitos de alfabetização e letramento no contexto brasileiro. De um modo geral, alfabetização pode ser entendida como a habilidade individual de ler e escrever, é o domínio do Sistema de Escrita Alfabética e da capacidade física de lidar com a técnica da escritura (cf. SOARES, 2006; TFOUNI, 1988) ou como uma das práticas de letramento (cf. KLEIMAN, 1995). Analisando desse modo, ser alfabetizado é dominar, mesmo que pouco, a escrita, mesmo sem dela extrair as informações necessárias para a vida em sociedade (o que explica o fato de que sujeitos que mal leem pequenos bilhetes sejam considerados alfabetizados). Por outro lado, o letramento é mais complexo e mais completo. Kleiman (1995) considera, inclusive, assim como também propomos neste livro, que o termodeva ser usado no plural. Dionísio (2007) também opta pelo uso do termo letramentos/ literacias no plural, considerando: A literacia é aqui concebida como um conjunto flexível de práticas culturais definidas e redefinidas por instituições sociais, classes e interesses públicos em que jogam papel determinante as relações de poder e de identidade construídas por práticas discursivas que posicionam os sujeitos por relação à forma de aceder, tratar e usar os textos e os artefactos e tecnologias que os veiculam e possibilitam. Neste sentido, o termo literacias apresenta-se como mais adequado para designar a pluralidade das práticas sócio- culturais, nos múltiplos domínios de acção humana (DIONÍSIO, 2007, p. 98 – grifos nossos). Letramentos, então, são os usos do conhecimento linguístico para as relações sociais e podem, de acordo com Tfouni (1988), estar presentes em sujeitos que nem mesmo sejam alfabetizados, mas que convivam com as práticas do mundo letrado. Basta vermos os inúmeros casos de sujeitos analfabetos que, habituados pela necessidade, reconhecem placas e itinerários de ônibus urbanos ou avançarmos em exemplos mais complexos, como o faz Tfouni (1988). No artigo Características do discurso escrito nas narrativas orais de ficção de uma mulher brasileira analfabeta, a autora descreve a história de dona Madalena que, apesar de analfabeta, incorpora [ LEITURA COMPLEMENTAR ] Como sugestão, indico o texto de Leda Tfouni, a seguir, no qual a autora apresenta, de uma forma sensível e interessante, a presença de marcas de letramento nas narrativas de uma adulta analfabeta. TFOUNI, Leda Verdiani. Características do discurso escrito nas narrativas orais de ficção de uma mulher brasileira analfabeta. Leia o artigo na íntegra. Ele está disponível em: <seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/ download/2914/2679>. ao texto oral, na contação de histórias, características da escrita, sobretudo assegurando uma posição de autoria. Para Bortoni-Ricardo (2004), na nossa civilização, todo cidadão, qualquer que seja seu grau de escolaridade ou sua posição social, está, de algum modo, inserido numa cultura letrada: tem acesso a documentos escritos e realiza, bem ou mal, práticas que dependem da escrita (ex.: pegar ônibus, pagar contas etc.). Entretanto, é sempre possível alargar as possibilidades de integração e participação ativa na cultura escrita, pela ampliação da convivência e do conhecimento da língua escrita. Quanto aos processos de alfabetização e de letramento, na escola, é preciso considerar, novamente, o fato de a instituição estar, historicamente, atrelada a interesses políticos e econômicos. E quanto mais a escola e os educadores assumem uma postura “neutra”, mais servem a esse modelo de preservação do status quo, preparando os sujeitos, como explica Graff, “ao trabalho e à fadiga” (1994, p. 86). A maioria das ações que tenta dar conta das estatísticas do analfabetismo passa longe do letramento. Diz-se, inclusive, que a escola nem sempre alfabetiza plenamente. Isso aparece com bastante frequência em notícias que mostram problemas graves na produção textual de sujeitos que passaram por mais de dez anos na escola, como os autores das “pérolas do ENEM” ou dos “erros crassos do vestibular”. Quanto ao letramento, o problema é ainda mais complexo. Um grande número de sujeitos que passa pela escola não desenvolvem nem a leitura, quanto mais a leitura crítica da realidade que os cerca. Para uma ação pedagógica voltada ao letramento, em qualquer nível de ensino, é necessário um trabalho específico, não só com o sistema de escrita, mas com todos aqueles suportes que orientam uma prática que envolve o contexto social onde essa prática é produzida. Para Soares (2004), o fato de valorizar em sala de aula os usos e as funções sociais da língua escrita não implica deixar de tratar sistematicamente da dimensão especificamente linguística do código que envolve os aspectos fonéticos, fonológicos, morfológicos e sintáticos. Do mesmo modo, cuidar da dimensão linguística, visando à ampliação do processo de alfabetização, em qualquer nível, não implica excluir da sala de aula o trabalho voltado para o letramento. O letramento é um processo social, e os exemplos mostram que o problema da desigualdade de domínio do Sistema de Escrita Alfabética sempre foi considerado individualizado, culpando-se os sujeitos pela sua “incompetência” em relação à leitura ou à escrita, [ LEITURA COMPLEMENTAR ] CERUTTI-RIZZATTI, Mary Elizabeth. Letramento: uma discussão sobre implicações de fronteiras conceituais. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/es/ v33n118/v33n118a18.pdf>. Acesso em 11 mar. 2014. Letramentos: Pressupostos para o Ensino da Língua Materna 17 sem considerar o processo ou o sistema social no qual eles estão inseridos. Pelandré (2001) aponta como um desafio para a escola o processo de alfabetização aliado ao letramento. A autora aponta que a alfabetização por meio do letramento implica uma concepção dialógica da linguagem, considerando-a com interação humana, uma atividade criadora e constitutiva de conhecimento e de transformação da realidade, e que o professor deve ter consciência desse movimento dialógico. Entretanto, uma concepção poucas vezes colocada em prática na escola, por uma série de fatores estruturais e sociais. É diante dessas novas exigências que surge uma nova denominação, alfabetização funcional, criada com a finalidade de incorporar as habilidades de uso da leitura e da escrita em situações sociais e, posteriormente, a palavra letramento, no Brasil, a partir dos estudos de Magda Soares (1986); Mary Kato (1997); Ângela Kleiman (1995); Bortoni-Ricardo (2004, 2006), entre outros linguistas e estudiosos das questões pertinentes ao ensino da linguagem. Confira os conceitos de analfabetismo e analfabetismo funcional adotados pelo INAF - Indicador de Alfabetismo Funcional e divulgados no site do Instituto Paulo Montenegro (IPM), organização ligada ao IBOPE e responsável pelo INAF: A definição de analfabetismo vem, ao longo das últimas décadas, sofrendo revisões significativas como reflexo das próprias mudanças sociais. Em 1958, a UNESCO definia como alfabetizada uma pessoa capaz de ler e escrever um enunciado simples, relacionado a sua vida diária. Vinte anos depois, a UNESCO sugeriu a adoção dos conceitos de analfabetismo e alfabetismo funcional. Portanto, é considerada alfabetizada funcionalmente a pessoa capaz de utilizar a leitura e escrita e habilidades matemáticas para fazer frente às demandas de seu contexto social e utilizá-las para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida (IPM, 2014). Implícita nesse conceito está a ideia de que o domínio e o uso da língua escrita trazem consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. Em uma sociedade grafocêntrica, ser letrado é condição para o efetivo exercício da cidadania. Ser letrado é ser livre, é ganhar voz, consciência política e empoderamento. É poder participar ativamente das decisões na vida pública. (SANTOS; OLIVEIRA, 2012, p. 41). Letramentos e Educação de Jovens e Adultos É a partir dessas reflexões que paramos para analisar as propostas de letramento na EJA e no PROEJA. De acordo com Santos e Oliveira (2012), pesquisas têm mostrado que, na EJA, as práticas de letramento em geral têm sido trabalhadas de forma fragmentada, sem considerar as necessidades comunicativas dos alunos em suas práticas sociais. “Em grande medida, tem sido evidenciado o resultado de um letramento precário oferecido aos educandos dessa modalidade de ensino e de outras mais, principalmente, nas escolas públicas” (SANTOS; OLIVEIRA, 2012, p. 41). Ao apresentar experiências de atividades de letramento desenvolvidas junto a sujeitos jovens (13 a 15 anos) da região do Minho, em Portugal, com risco de abandonoda escola, Dionísio (2007, p. 98) faz importantes reflexões sobre a significação do conceito de letramento no contexto atual. A autora afirma que “[...] os estudos contemporâneos sobre as práticas de leitura e escrita têm vindo a desconstruir categorias estáticas como, por exemplo, sujeitos ‘letrados’ e ‘não letrados’, e a recusar o acesso à escrita como um valor neutro e universal, desvinculado de aspectos culturais e ideológicos.” Considerando a perspectiva defendida pela autora, retomando também alguns conceitos já explicitados neste texto, a que se considerar serem os jovens e adultos que chegam ou retornam às salas de aula sujeitos com práticas de linguagem consolidadas no mundo social. Se, como dizem Santos e Oliveira (2012), citadas acima, tem-se dificuldades em todos os níveis de ensino quanto ao trabalho com o letramento, no campo da Educação de Jovens e Adultos essa questão se torna mais explícita. Retomando a experiência apresentada por Dionísio (2007), em um trabalho que envolveu jovens com risco de abandono escolar, devemos pensar, também nós, sobre o que, efetivamente, faz sentido em termos de ensino de língua materna aos sujeitos que estão na escola na juventude ou idade adulta. A esses sujeitos, como a todos que passam pela instituição escolar, a língua deve ser trabalhada de modo a agregar novos conhecimentos, novos letramentos. Para que esse processo tenha sentido, a escrita não pode ser separada de outras ações sociais que se estabelecem pela linguagem: Letramentos: Pressupostos para o Ensino da Língua Materna 19 [...] a leitura e a escrita são sempre vistas como inseparáveis do falar, ouvir, interagir, pensar e agir no mundo e são práticas que ocorrem no âmbito de práticas sociais mais vastas, em que os indivíduos se envolvem para realizar objectivos pessoais ou colectivos. Assume-se também que os significados do que se lê e do que se escreve estão intimamente ligados a experiências de cada um no mundo material e social. (DIONÍSIO, 2007, p. 101). Para Abreu e Vóvio (2010), o direito a uma educação de qualidade para jovens e adultos, sobretudo quando se trata do aprendizado da língua materna, ainda não é assegurado. De um modo geral, apontam as autoras, a EJA esteve historicamente associada apenas à garantia mínima de alfabetização dos sujeitos que a ela chegam, faltando, ainda, a ampliação do acesso a conhecimentos garantidos em outros níveis da educação escolar e a sujeitos em outras condições sociais. A EJA, afirmam as autoras, esteve associada a duas concepções dicotômicas. A primeira delas é a educação compensatória, orientada para recuperar o tempo perdido pelos sujeitos que não puderam estar na escola em tempos considerados “normais”. Essa concepção, apontam, está constituída no modelo e no formato do ensino regular e fundamenta-se em um cunho assistencialista. Fundamentada nas experiências de Paulo Freire, a concepção da educação como meio de emancipação e transformação, explicam Abreu e Vóvio (2010), é herança dos projetos de educação popular, mas pouco tem repercutido nos sistemas de ensino. Santos e Oliveira (2012) apontam que o Brasil consta na lista dos países que necessitam de maiores investimentos para impulsionar a formação leitora e escritora dos alunos, em especial os da escola pública, na qual está a maioria dos alunos da EJA. Em muitas dessas escolas, salientam, predomina uma concepção de linguagem que desconsidera o caráter social interacional. Para constatar a veracidade do que afirmam Santos e Oliveira, basta pensarmos em muitas atividades voltadas ao público da EJA que são descontextualizadas ou que, mesmo dirigidas a sujeitos mais velhos, por se tratar do trabalho com a leitura e com a escrita, partem de textos infantilizados. É preciso considerar o que é “[...] ser letrado, hoje, numa sociedade em transformação e caracterizada pela diversidade e multiplicidade, e sobre como se aprende a ser letrado nestas condições. […] ser letrado é alguém que é capaz de usar a variedade de linguagem certa, de modo certo dentro de um dado Discurso, e as literacias são o domínio desses Discursos” (DIONÍSIO, 2007, p. 98-99 – grifo nosso). Partindo da afirmação de Dionísio (2007), considera-se que o papel do letramento escolar assume particular relevância, já que se estabelece como uma importante fonte de acesso a conhecimentos e práticas de leitura e escrita aos quais os sujeitos não teriam acesso em outros espaços que não na Educação de Jovens e Adultos. Por isso, argumenta a autora, “ganha particular relevância o aceso à literacia escolar, na medida em que é evidente que são os níveis de prática certificada que constituem o capital cultural necessário, e quantas vezes suficiente, para que uma pessoa possa entrar na vida pública e institucional” (DIONÍSIO, 2007, p. 100). Afinal de contas, consta como objetivo do PROEJA a superação de um quadro de alto índice de abandono da Educação Básica e de um baixo retorno aos bancos escolares de jovens e adultos. Dos 68 milhões de jovens e adultos trabalhadores brasileiros com mais de 15 anos de idade que não concluíram o ensino fundamental, somente seis milhões estão matriculados em EJA (MEC, 2014). Assim, na próxima unidade, discutiremos os conceitos de língua e linguagem e os processos de leitura e escrita em sala de aula, sobretudo na Educação de Jovens e Adultos, nosso foco neste curso de especialização. [ `Vamos refletir sobre a leitura e a escrita nas salas do PROEJA? Pense em uma experiência que revele a necessidade de articulação de textos e atividades com o contexto do qual fazem parte os estudantes jovens e adultos. Converse com professores da sua instituição ou de outras instituições que trabalhem com o PROEJA sobre o assunto. ] Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola Nesta unidade, pretende-se refletir sobre as concepções de língua e linguagem, identificando o papel político e ideológico que perpassa a seleção dessa concepção nos processos de letramento da Educação de Jovens e Adultos; reconhecer as exigências de uso da língua na oralidade e as funções sociais da escrita. Esse é um movimento fundamental para pensarmos práticas efetivas e articuladas ao contexto social dos sujeitos que frequentam a EJA, tendo a garantia de acesso à leitura e à escrita como pontos-chave de um processo de mudança nas condições de vida desses sujeitos. LETRAMENTOS UNIDADE 2 Marizete Bortolanza Spessatto Ler e escrever na escola: relações sociais estabelecidas pela linguagem A língua não é um hábito que se exercita nem um jogo em que se entra e sai, tampouco é uma roupa que se veste conforme a ocasião. É uma totalidade que, constituída na história humana, institui os sujeitos, sendo marca de identidade, condição de pensamento, modo fundamental de relacionamento e de intervenção no mundo (BRITTO, 2012, p. 63). A complexidade que constitui a língua, como nos mostra Britto (2012) na epígrafe que abre esta unidade, ajuda-nos a estabelecer a relevância do trabalho com a língua na escola, sobretudo na Educação de Jovens e Adultos. Por mais que o desenvolvimento dos estudos linguísticos, especialmente a partir dos anos de 1980, Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola 23 tenha evidenciado que a língua não é apenas um sistema, mas sim que, “no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida” (BAKHTIN, 1997, p. 96), lamentavelmente pouco desses conhecimentos se refletiu em mudanças nos processos de ensino e de aprendizagem de língua nas escolas. A mudança nos processos de ensino e aprendizagem da língua e, consequentemente, da intervenção da escola no letramento dos sujeitos, apontam Oliveira e Santos (2012), passa por mudanças nas políticas de letramento no país. As mudanças que tivemos em relação à alfabetização dos sujeitos, demonstram as reflexões das autoras, pouco avançam paraalém de dados quantitativos de acesso ao processo de decodificação. “[...] se estamos avançando em termos de alfabetização, não percebemos ainda os impactos significativos no âmbito do letramento. Enquanto o Brasil busca alfabetizar, países desenvolvidos (por exemplo, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos) buscam discutir o impacto dos letramentos na vida social” (OLIVEIRA; SANTOS, 2012, p. 40-41). Além das políticas de letramento, apontam as autoras, cabe à escola, principal agência de letramento, refletir sobre as relações existentes entre as políticas de letramento e o modo como se dá o processo de escolarização dos nossos alunos, especialmente, aqueles oriundos das camadas sociais menos favorecidas. Dessa forma, é preciso que repensemos o trabalho desenvolvido com a leitura na sala de aula da Educação de Jovens e Adultos, assim como nas turmas do PROEJA, reconsiderando os papéis atribuídos a essa atividade, muitas vezes equivocado ou pouco ampliado, não dando conta de sua real função no processo de apropriação dos conhecimentos necessários para melhorar os direitos àqueles que passam pela escola. Quanto ao ensino de leitura e escrita, os consensos atuais se manifestam em torno de dois eixos: necessidade de ensinar a língua padrão e a importância da formação do leitor. Há um “vacilo metodológico” na implementação dessas ações (como se a escolha desimpedida da leitura desse conta da formação do LÍNGUA [ GLOSSÁRIO ] Os conceitos de língua e os valores sociais diferentes atribuídos a diferentes variedades da mesma língua são tema da unidade 3 deste material, por isso essas questões não são aprofundadas neste momento de nossas reflexões. leitor) e imprecisão no conceito de “língua padrão.” (BRITTO, 2012, p. 11-12). Há a disseminação de duas percepções equivocadas, complementa o autor, com reflexos bastante negativos na educação escolar: “visão catastrófico-denuncista de que o Brasil seria um país de não-leitores e, portanto, uma população pobre intelectualmente; […] ideia salvacionista de leitura, compreendida como um bem em si, civilizador e edificante.” (BRITTO, 2012, p. 36). O que aponta o autor se confirma em resultados de pesquisas que têm, tradicionalmente, mensurado os índices de leitura dos brasileiros. Nesta breve reflexão, partimos dos dados resultantes da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil do Instituto Pró-Livro, que iniciou a coleta de dados em 2001. Os dados em análise são da edição de 2011, publicados em 2012. A pesquisa, cuja metodologia foi desenvolvida pelo Centro Regional para el Fomento del Libro en América Latina y el Caribe (Cerlalc)/Unesco, a partir de uma solicitação do Brasil, tem como finalidade ter parâmetros internacionais de comparação entre os países da América Latina. Trata-se de uma pesquisa quantitativa de opinião com aplicação de questionário e entrevistas presenciais realizadas nos domicílios. A produção é feita desde 2001 e os dados apresentados aqui são da pesquisa realizada em 2011 e que conta com uma amostra de 5.012 entrevistas domiciliares em 315 municípios de todos os estados e o Distrito Federal. INSTITUTO PRÓ-LIVRO [ GLOSSÁRIO ] O Instituto Pró-Livro (IPL), criado no final de 2006 pelas entidades do livro – Abrelivros, Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Sindicato Nacional do Editores de Livros (SNEL) – é mantido com recursos constituídos por contribuições dessas entidades e de editoras, com o objetivo principal de fomento à leitura e à difusão do livro (PRÓ-LIVRO, 2014). Definições usadas na pesquisa Leitor: o que declarou, no momento da entrevista, ter lido pelo menos um livro nos últimos três meses. Não Leitor: o que declarou não ter lido nenhum livro nos últimos três meses (e mesmo quem leu em outros meses que não os três últimos ou mesmo quem leu ocasionalmente). Índice de leitura: tem como referência a leitura dos últimos três meses anteriores à pesquisa. Fonte: PRÓ-LIVRO, 2014 Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola 25 Considerando os critérios estabelecidos para os conceitos de leitor e não leitor, definidos acima, a pesquisa indicou que, do universo de entrevistados (leitores e não leitores) em 2011, 50% da população declarou-se leitora. A média de livros lidos nos três meses anteriores à aplicação da pesquisa ficou em 1,8 livros por pessoa, sendo que, entre eles, a média de livros lidos integralmente ficou em 0,82 e 1,3 foram lidos apenas em parte. É interessante observar que, desses livros lidos, 0,81 foram indicações da escola e 1,05 por iniciativa própria. Outros dados importantes apontados pela pesquisa dizem respeito às concepções de leitura apresentadas pela população participante da pesquisa. Quando interrogados sobre o que gostam de fazer no seu tempo livre, 85% deles indicaram a preferência pela televisão. Vinte e oito por cento afirmaram ler (jornais, revistas, livros, textos na internet), ficando, assim, a leitura em sétimo lugar nas atividades escolhidas para o chamado, na pesquisa, de “tempo livre”. Quando solicitado que apontassem o que a leitura significa, assegurando a cada entrevistado a possibilidade de indicar três das opções oferecidas, a maior parte deles indicou aspectos considerados “positivos” em relação à leitura, sendo assim distribuídos: fonte de conhecimento para a vida, 64%; fonte de conhecimento e atualização profissional, 41%; fonte de conhecimento para a escola/faculdade, 35%; uma atividade interessante, 21%; e uma atividade prazerosa, 18%. Em relação aos aspectos negativos atribuídos à leitura, aparecem da seguinte forma: ocupa muito tempo, 12%; prática obrigatória, 8%; produz cansaço/ exige muito esforço, 6%; e uma atividade entediante, 5%. Cinco por cento dos entrevistados assinalaram que não sabiam a resposta. A pesquisa também indica a correlação, no imaginário dos entrevistados, entre leitura e ascensão social. Foi apresentada aos entrevistados a afirmação “Ler bastante pode fazer uma pessoa ‘vencer na vida’ e melhorar a sua situação socioeconômica”. Diante da afirmativa, 64% dos entrevistados respondeu que “concorda plenamente” e apenas 3% posicionou-se como “discordo totalmente”. Os dados são importantes, mas não podemos esquecer que, por trás dos números, é preciso avaliar questões como a concepção de leitura, tanto dos institutos que fazem as pesquisas quanto dos próprios leitores. É para o que aponta Britto (2012), quando diz que “ao se afirmar que pouco se lê ou poucos são os leitores, é razoável supor que se está considerando, mesmo que de forma imprecisa, apenas essa segunda dimensão [leitura relacionada à interação com [ Que tal levantarmos os dados sobre o perfil de leitores entre as turmas de estudantes nas quais atuamos? O exercício é interessante e nos permitiria traçarmos um perfil de leitores entre os estudantes da EJA/PROEJA de Santa Catarina. Podemos definir, coletivamente, as questões a serem aplicadas. Vamos manter contato no Fórum de notícias? ] os conhecimentos e valores formais, à formação e ao estudo]” (p. 41). A leitura, nesse contexto, demanda mecanismos que vão além do interesse, hábito ou gosto pela leitura. É preciso ter em mente as diferentes formas de acesso à cultura, mais relevantes na constituição de leitores do que os métodos de ensino e programas de formação: A dificuldade no trato com textos sofisticados não resulta, portanto, de uma incapacidade genética de leitura ou do domínio precário dos procedimentos formais de decodificação, mas do modo como as pessoas interagem com os objetos da cultura letrada, em particular com as formas de produção do conhecimento formal (BRITTO, 2012, p. 42). Em sociedades complexas e diferenciadas como a brasileira, aponta Vóvio (2010), referir-se à leitura requer a reflexão sobre as relações operadas no interior de grupos e fenômenos sociais. A autora propõe que a leitura seja pensada na perspectiva sócio-histórica cultural, considerando-se a multiplicidade de formase de objetos da leitura e a variação das condições sócio-histórico culturais. “[...] este enfoque pluralista apresenta novas formas de compreender, abordar e problematizar esse objeto multifacetado – a leitura -, tendo como elementos centrais os textos e seus leitores.” (VÓVIO, 2010, p. 415). Nesse contexto, complementa, a leitura é pensada como prática relacionada não a um único objeto (livro) e não é vista como prática solitária, ao contrário, localiza-se na interação entre as pessoas. Ao tratar sobre a formação de leitores, Demo (2006) constrói, a partir de diferentes autores, um cenário que efetivamente permite a formação de leitores nas escolas: A qualidade da leitura é, ainda, enormemente atrapalhada pelas mazelas do sistema, repercutindo na manutenção do povo “na ignorância” e no impedimento da “democratização do saber” (SILVA, 1998, p. 17). […] É simples esta lógica: o aluno só pode ler bem com professor que lê bem. Não se trata de imaginar alguma “culpa” nos professores, não só porque a aprendizagem dos alunos depende de inúmeros fatores, também externos (neoliberalismo, pobreza, marginalização, nível cultural precário das famílias, políticas educacionais) e sobre os quais a escola não tem influência, mas principalmente porque o professor também é vítima de processos de ensino encardidamente instrucionistas. […] Acresce ainda que a noção de culpa não contribui para nada, não sendo categoria analítica apropriada. Trata-se, isto sim, de responsabilidade social do docente, no sentido de ser o profissional vinculado ao direito do aluno de aprender bem (DEMO, 2006, p. 17 e 18). Vóvio (2010, p. 416) destaca que, a partir de uma sólida conceituação de leitura, marcada pela perspectiva social a ela inserida, encontram- Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola 27 se os Estudos do Letramento, ao considerar as práticas de uso da escrita de forma plural, “sociedades diferentes e os grupos sociais que as compõem têm variadas formas de letramento, tendo a escrita variados efeitos sociais e mentais em contextos sociais e culturais específicos.” Entretanto, o peso do que é aceito como leitura pela cultura hegemônica age sobre os sujeitos menos escolarizados. Assim como muitas vezes o fazem os discursos sociais, sobretudo na escola, também aqueles em condições de desigualdade social têm o livro como a representação da leitura “ideal”, desvalorizando outros suportes textuais que estariam a eles mais acessíveis. Em pesquisa desenvolvida com quatro adultos que frequentaram classe de alfabetização da EJA da Prefeitura Municipal de Florianópolis, de 2007 a 2011, Aguiar (2012) identifica que gêneros como listas de compras, agendas telefônicas, textos bíblicos e outros faziam parte do cotidiano desses sujeitos. Porém, eles não se reconheciam como leitores, por não terem familiaridade com a leitura de livros. Aguiar (2012, p. 233) argumenta que: O conhecimento da diversidade de letramentos de adultos em processo de alfabetização torna aparentes eventos de leitura que por vezes são invisibilizados pelas vozes que difundem a cultura hegemônica em detrimento das demais. Não se enquadrar no padrão hegemônico e legitimado, de leitura e escrita, na perspectiva do letramento autônomo, faz com que a pessoa seja considerada menos capaz intelectualmente e ainda se sinta culpabilizada pelo seu não aprendizado da alfabetização. Vóvio (2010) afirma que as pesquisas sobre letramentos fundadas na epistemologia multicultural e nos princípios da heterogeneidade e multiplicidade, têm colaborado para a revisão do papel da linguagem escrita nas sociedades e para atualizar sentidos atribuídos à alfabetização e à escolarização, bem como se voltam para o reconhecimento das práticas de uso da escrita que são locais ou vernaculares, observando a variação e a diferença nos modos de fazer de grupos, os significados atribuídos a essas práticas, as identidades que se produzem em interação e os objetos culturais que são acionados (VÓVIO, 2010, p. 417). A formação do leitor Conforme Guedes (2006, p. 66), a primeira leitura, a leitura de formação do leitor é “[...] capaz de suscitar o gosto pela leitura, que se transforma em necessidade e cria o hábito, é uma leitura solitária, que se dá numa dimensão intimista, durante a qual o leitor vai construindo sua relação pessoal com o texto.”. O autor explica, também, que as escolas e os professores têm percebido que falta essa leitura, mas que eles se limitam a “...lamentar a falta de hábito de leitura de seus alunos.” Coelho (2004, p. 37) argumenta que: É um tanto difícil atraí-los, a princípio, pois a maioria ainda não adquiriu o hábito de ler, por falha das instituições encarregadas – a família e a escola. Uma pena ver as prateleiras repletas de livros e as crianças indiferentes a eles, perdendo a oportunidade de enriquecer a infância. Precisamos despertar-lhes o desejo de ler, enquanto há tempo, o que requer segurança e prática na arte de ler e de contar histórias. Mas se não se começa, jamais se adquire essa prática, repito. E uma vez que se consiga atraí-los, estão conquistados e passam a frequentar, assiduamente, a biblioteca, interessados no programa de atividades que se desenvolvem em torno do livro. Nada lhes é imposto. A espontaneidade é a tônica desse tipo de trabalho. Marchi (2001, p. 164) afirma que é preciso pensar a relação da leitura não mais como uma revelação, mas como interpretação, o que supõe um texto – o meu texto- articulado com o outro – o do outro. A leitura só é possível se o leitor, com toda a carga de memória que tem, conseguir reconstruir o texto a partir das próprias experiências, tornando o romance significativo. O melhor mediador, o professor, afirma Marchi (2001), é aquele que, gostando da leitura, sabe explorar um texto propondo atividades de promoção da leitura através de estratégias que atendam os interesses dos jovens. É preciso, afirma a autora, uma boa apresentação da obra; uma conversa ou uma pesquisa sobre um tema relacionado com a obra; a leitura, em voz alta, de uma parte da obra capaz de despertar o interesse ou a curiosidade dos alunos. A função da promoção da literatura, tanto no âmbito da educação escolar como de movimentos culturais, é promover o senso crítico e os conhecimentos que ultrapassam a esfera do imediato e produzem as indagações da condição da existência; não é desenvolver o “gosto pela leitura” ou o “prazer”, ainda que possa desenvolvê-los, mas sim desenvolver o próprio conhecimento. (BRITTO, 2012, p. 54) Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola 29 De acordo com Britto (2012, p. 80), aprender a ler e escrever na escola deve ser muito mais que saber uma norma ou desenvolver o domínio de uma tecnologia para usá-la nas situações apropriadas. Assim, aprender a ler e escrever significa dispor do conhecimento elaborado e poder usar deste conhecimento para participar e intervir na sociedade. Britto (2012, p. 81-82) apresenta uma concepção de ensino de língua na educação escolar baseada em dois princípios. O primeiro deles aponta para a “função primordial da educação escolar, que é contribuir para o desenvolvimento intelectual e social dos alunos”. O segundo pressuposto é o de que a educação linguística precisa garantir ao estudante o conhecimento de que a língua e a linguagem são fenômenos históricos, permitindo a eles compreender seu funcionamento [da língua/linguagem], usos e formas, bem como saber usá-la com propriedade nas modalidades oral e escrita, em especial para estudar e aprender e viver sua subjetividade. Assim, fica evidente, afirma Britto (2012), que o objetivo da educação escolar seja a ampliação do conhecimento de língua – e de mundo -, e não a correção de desvio ou a imposição de um modelo hipoteticamente correto de uso da língua. A correção linguística é eficiente não porque defende a língua contra pretensas agressões ao idioma, mas porque reproduz uma concepçãode língua e um valor linguístico. Em outras palavras, a eficiência da gramática do certo e errado não está em manter a unidade linguística nacional nem em contribuir para o uso eficiente das formas linguísticas, mas em criar um padrão que corrobora a ideia de cultura de privilégios (BRITTO, 2012, p. 91-92). O autor também faz uma importante reflexão sobre o papel de mediador assumido pelo professor em relação à condução dos processos de leitura e escrita. Para além das atividades com textos que circulam socialmente, como rótulos, jornais e revistas, o autor afirma que “as atividades de leitura em ambiente escolar priorizam conteúdos e textos cujo acesso não é imediato e que só se dão a conhecer se devidamente ensinados.” (BRITTO, 2012, p. 60). Para além disso, mesmo considerando a importância de motivação do aluno para as atividades desenvolvidas, é preciso considerar a necessidade de ampliar o universo de conhecimentos daqueles que chegam à escola, especialmente os jovens e adultos. Tomar como critério de validação ou avaliação de uma atividade pedagógica o quanto os alunos gostaram dela não é propriamente um erro, mas, se não estiver bem circunstanciada, torna-se uma armadilha que conduz à mesmice e à banalização da experiência. (BRITTO, 2012, p.61). Assim, afirma Britto (2012), justifica-se porque não é consistente o princípio de que “o que se ensina deve ter aplicação direta na vida prática” nem é suficiente a ideia de considerar apenas o interesse do aluno. “A exemplo do gosto, os interesses (às vezes manifestações de vontades circunstanciais) são o resultado das vivências objetivas e de necessidades primárias, de modo que não correspondem aos interesses maiores da aprendizagem, que se situam além do imediato.” (BRITTO, 2012, p. 61-62). A formação do professor como leitor e escritor de textos Entre questionamentos e controvérsias acerca dos perfis de leitura no Brasil e diante do que indicam os dados sobre a competência em leitura desse mesmo grupo, deparamo-nos com nossa condição de professores e profissionais ligados à Educação de Jovens e Adultos. E, então, é preciso pensar que a leitura torna-se, na escola, requisito Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola 31 fundamental para pensarmos o avanço no letramento pleno de sujeitos que, por muito tempo, ficaram fora da escola. Assim, é preciso iniciar este diálogo considerando que, para que o aluno tenha êxito no mundo letrado da escola, é importante que o professor tenha uma relação favorável com a leitura e a escrita. No entanto, o que se observa, segundo Rojo (2006), é que, em muitos casos, as experiências dos professores com a leitura e a escrita, especialmente em função de seu processo de escolarização, nem sempre são ricas o suficiente para convertê-los em usuários habilidosos da língua, o que exige redimensionar a função dessas duas atividades em suas próprias vidas. Se isso ocorrer, ganham eles e, seguramente, ganham os alunos. Parte-se da premissa de que ensinar a ler demanda “ensinar-se a ler”, assim como ensinar a escrever demanda “ensinar-se a escrever” (GUEDES, 2006, p. 64). O autor destaca que atividades de leitura e a escrita só fazem sentido se ensinadas de um leitor para outros leitores (e escritores). Recomenda-se a leitura da obra na íntegra: GUEDES, Paulo Coimbra. A formação do professor de português – que língua vamos ensinar? São Paulo: Parábola Editorial, 2006. Guedes (2006, p. 64) afirma que: “A aula de português, que trata da língua escrita, só faz sentido se for dada por um leitor para leitores (e para escritores), o estudo da língua escrita não se apresenta como um problema, mas como uma solução de um problema.” Por mais que a leitura não seja uma ação restrita à escola e às aulas de português, o autor reforça o ponto de vista assumido, enfatizando que “o professor de português precisa ocupar-se da formação do leitor porque, se a escola não transformar os alunos em leitores, ninguém mais o fará.” (GUEDES, 2006, p. 64). O autor acrescenta que o educador e a escola realmente precisam se empenhar para oferecer o máximo de proximidade e condições para que o aluno se envolva com a leitura, goste dela e aprenda a ler “[...] tendo a clareza de que não há outra instituição com chances de assumir, nem em forma de arremedo, uma tal responsabilidade, com exceção talvez de alguma família que tenha condições econômicas.” (GUEDES, 2006, p. 65). Ainda, se a escola quiser fazer um bom trabalho, precisa saber que essa não é a realidade na maioria das casas, e não pode contar com isso. Constituir-se como leitor, então, é papel fundamental de quem trabalha com leitura e escrita e, especialmente, atua no processo contínuo de letramentos de sujeitos que passam pela Educação de Jovens e Adultos. Para refletirmos sobre como os sujeitos em formação para a docência se constituem como leitores, desenvolvemos (SPESSATTO; NONEMACHER; POSSERA, 2014) uma pesquisa com ingressantes de um curso de Pedagogia de um instituto da Rede Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do interior do estado de Santa Catarina. Os dados nos mostram sujeitos com baixa frequência de leitura, uma vez que 44,7% deles responderam que leem apenas de vez em quando. Em seguida, com 26,3%, classificam-se os sujeitos que leem todos os dias. Já os leitores cuja frequência de leitura é de até três vezes por semana correspondem a 23,6%; e os que raramente leem constituem 5,2%. O primeiro dado já remete ao papel da formação inicial na Pedagogia. É imprescindível que, ao longo do curso, esses sujeitos consigam “ensinar(-se)” a ler, como define Guedes (2006, p. 64). Quanto ao perfil do material lido, os dados surpreenderam as hipóteses iniciais levantadas, já que a maior parte dos informantes, 37,7%, indicaram a leitura de livros como a preferida. Em segundo lugar vêm os jornais e revistas impressos, com 34,42% das preferências, seguidos pelos sites de informação, com 26,22% das preferências. A pesquisa também ajudou a entender como os sujeitos se constituem como leitores. No senso comum, quando se abordam as influências para a formação de leitores, normalmente ela é atribuída à família e à escola. São essas as instituições “responsáveis” pela tarefa de aproximação dos sujeitos ao mundo letrado. Entretanto, não são essas as principais influenciadoras, de acordo com o que apontam os dados levantados. Foi permitido aos sujeitos que assinalassem mais de uma alternativa na questão. De um total de 43 respostas, 44% delas relacionaram a indicação de livros às sugestões de amigos. A escola foi a responsável pelas indicações para 25,58% das respostas e o incentivo dos pais foi citado por apenas 6,9%. Porém, de todos os dados coletados, um dos mais preocupantes está relacionado à compreensão da leitura. Quando questionados Os Usos Sociais da Língua Dentro e Fora da Escola 33 sobre se entendem o que leem, 71% dos informantes, ingressantes de Pedagogia, disseram ter dificuldades de compreender o que leem. Apenas 18,42% afirmaram compreender as leituras feitas, sendo que outros 10,52% não souberam responder. Os dados em relação à compreensão da leitura não diferem do que mostram os índices nacionais. O desafio está no desenvolvimento desses sujeitos - professores em formação. Medidas nesse sentido se fazem absolutamente necessárias. Os dados são mais preocupantes quando se destaca que como leitura compreendem-se textos de diferentes suportes, como jornais, revistas e sites de diferentes gêneros. Há que se ponderar, ainda, a possibilidade de esses dados não apontarem a real frequência de leitura entre os sujeitos pesquisados, já que o instrumento foi aplicado em uma aula de Leitura e Produção de Textos. De qualquer modo, consideramos importante a sistematização desses dados, até mesmo para possíveis análises comparativas, a serem desenvolvidas ao longo do tempo de formação inicial desses sujeitos/educadores. Por outro lado, a análise dasentrevistas realizadas com os quatro sujeitos entrevistados possibilitou a coleta de dados acerca da relação dos mesmos com a leitura, após o ingresso no curso de Pedagogia. Todos afirmaram ter ampliado as leituras a partir da entrada no curso. Entre as razões, apareceu o sentimento de estímulo à leitura e a exigência que constitui o curso: “[...] antes não tinha o costume de ler e, agora, a gente tem que ler mais pra nossa formação” (S2). Também apareceram as questões linguísticas como motivadoras para ler mais: “[...] enriquecer o vocabulário e a escrita” (S1); “[...] a questão assim da linguagem, a escrita eu tava errando e até mesmo na linguagem, na comunicação também, tinha palavras que eu tava, quer dizer, ainda tô errando, pra falar a verdade, mas eu acredito que com o passar do tempo as coisas vão melhorar muito mais sabe?” (S3). Quando questionados sobre qual a característica mais importante para o professor que vai ensinar a ler e escrever, os entrevistados foram unânimes em indicar a necessidade de que o professor seja, ele próprio, um leitor: “Característica mais importante, que ele mesmo goste de ler e tenha muita paciência.” (S2). Embora pareçam depoimentos contraditórios, quando se toma por base os dados sobre os índices de leitura e compreensão de textos indicados acima, evidencia-se a intervenção do curso de Pedagogia na constituição dos sujeitos como leitores e formadores de novos leitores: [ Os sujeitos entrevistados foram identificados apenas como S1 (Sujeito 1), S2, S3 e S4. ] Primeiro precisa ser uma pessoa que realmente goste de ler, que demonstre isso, que passe isso pros alunos, e como que ela vai repassar é tendo a capacidade de ir lá e falar de vários livros né, mostrando que tem realmente conhecimento disso e aí de uma maneira gentil cativar os seus alunos para a leitura né? Não adianta impor, vai ter que cativar mesmo e como que vai cativar? Às vezes é enaltecendo aquele livro né? Enaltecendo aquele conteúdo, aí você começa a cativar né, bem interessante. (S1) Os sujeitos também destacaram a necessidade de leitura, por parte do professor, como uma ferramenta indispensável para qualificá- lo para o trabalho docente: “Ele tem que saber o que ele está ensinando, né? Eu acredito, porque o professor planeja aula, então ele tem que saber o que ele está indo aplicar. Então, se ele vai ensinar a ler e escrever, ele tem que saber.” (S4). Guedes e Souza (2001, p. 19) afirmam ainda que as aulas de leitura devem ser realizadas na sala de aula: “A sala de aula é o lugar da criação de um vínculo com a leitura, pela inserção do aluno na tradição do conhecimento. A biblioteca é o lugar do cultivo pessoal desse vínculo; lá se processa o amadurecimento intelectual.”. Britto (2012) complementa: Disso decorre que o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita fazem parte das atividades de todas as disciplinas (donde o caráter transdisciplinar dessa aprendizagem). Deve-se propor ao educando não apenas a informação, mas sua busca através do texto escrito. A própria atividade de organização do conhecimento deve ser escrita, cabendo aos professores de todas as disciplinas o trabalho organizado com a leitura e a redação (BRITTO, 2012, p. 92). [ Vamos pensar juntos: o que nos constitui como leitores? Quais as experiências pelas quais passamos que nos levaram a ler mais? Lembre de pelo menos uma obra literária que tenha marcado a sua trajetória como leitor. ] Variação Linguística e Ensino: nos Caminhos do Letramento Nesta unidade, tratamos de um tema que tem merecido amplo destaque no Brasil nas últimas décadas. Desde documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) à Proposta Curricular de Santa Catarina (1998, 2005, entre outras edições), o tema da variação linguística tem-se feito presente quando se trata de refletir sobre o ensino de língua materna. Essa questão é fundamental quando se pensar o processo de letramento de jovens e adultos que retornam à escola. Por isso, nesta unidade, tem- se como propósito refletir sobre a variação linguística e sobre como atuar de modo a permitir aos estudantes o acesso às variedades de prestígio da língua, ampliando o seu letramento. LETRAMENTOS UNIDADE 3 Marizete Bortolanza Spessatto Variação Linguística e Ensino: nos Caminhos do Letramento Com o avanço dos estudos da Linguística, sobretudo da Sociolinguística, a partir dos anos de 1980, tem-se repensado a presença das variações linguísticas, levando a escola a repensar o status de “erro” atribuído aos falantes das variedades menos prestigiadas da língua. Acompanhe nesta unidade a discussão. Variação linguística e ensino: a desigualdade de acesso à escola na história brasileira Ao tratar sobre as exigências sociais em relação aos usos linguísticos standartizados, Faraco (2008) aponta para a desigualdade histórica no acesso à escolarização e, também, para a “baixíssima qualidade” da educação linguística oferecida aos estudantes brasileiros. Essa diversidade, certamente, não é exclusiva da realidade linguística brasileira, porém, razões históricas são citadas pelo autor para a manutenção do preconceito em relação à nossa “norma culta/ comum/standard efetiva”: Variação Linguística e Ensino: nos Caminhos do Letramento 37 Ainda nos atrapalha enormemente o espírito aristocrático que, no século XIX, quis nos impingir certa norma lusitana como nossa norma-padrão e tachou de “incorretos” muitos dos nossos usos cultos normais. E, mais grave: não conseguimos ainda assimilar conceitualmente os efeitos das mudanças que têm alterado profundamente a cara da nossa sociedade, em especial suas repercussões sobre nossa realidade lingüística (FARACO, 2008, p. 65). Para Faraco (2008), alterar esse quadro depende de uma mudança de postura. O problema da diversidade linguística, para o autor, é bem maior do que “a regência desse ou daquele verbo”, questão que normalmente aparece em debates públicos que fazem críticas aos usos linguísticos dos sujeitos menos escolarizados. A norma culta, na função moderna que lhe atribui a sociedade urbanizada e massificada, está diretamente ligada com a escolarização, o letramento e a superação do analfabetismo funcional. O autor cita três metas que devem ser alcançadas para o avanço em relação ao acesso à norma culta como um bem cultural. A primeira delas é a universalização da educação básica, assegurando acesso a todos de 11 a 12 anos de escolarização. A segunda meta a ser alcançada é o acesso à educação de qualidade para todos, assegurando que todos deixem a escola com o domínio das práticas de leitura e escrita. E a terceira é uma mudança na maneira de encarar a realidade linguística, respeitando as diferenças entre a fala e a escrita. Quanto ao ensino da norma linguística, Faraco (2008) aponta para o que têm defendido, de um modo geral, todos os linguistas brasileiros: para o papel da escola em levar os falantes a acessarem a variante historicamente prestigiada. “[...] os lingüistas não só têm defendido que o ensino dê aos alunos acesso às variedades ditas cultas, como têm também desenvolvido uma compreensão mais refinada do próprio fenômeno dessas variedades.” (FARACO, 2008, p. 170). Dessa forma, destaca o autor, “adquirir familiaridade com as variedades chamadas cultas é, antes de qualquer coisa, adquirir familiaridade com as práticas socioculturais da escrita.”. Para Faraco (2008), o papel da escola na formação linguística de seus alunos é o de sensibilizar em relação à variação: O tema é rico para aprofundarmos nossa busca de alternativas pedagógicas que permitam pôr a escola na vanguarda, sensibilizando as crianças e os jovens para a variação e para seus sentidos sociais e culturais; contribuindo para uma reconstrução do nosso imaginário nacional sobre a nossa realidade lingüística e, acima de tudo, combatendo a violência simbólica que ainda atravessa nossas relações sociais (FARACO, 2008, p. 184). ParaMattos e Silva (2004), a saída para qualificar o ensino de língua está em uma boa formação sociolinguística dos professores da área. Essa formação sociolinguística permitiria, segundo Bortoni- Ricardo (2006), que o professor percebesse a diferença existente entre um problema de ortografia e uma variação presente na oralidade, muitas vezes tratadas da mesma maneira pela escola. A autora reforça, assim como o fazem diferentes linguistas, muitos deles citados ao longo deste trabalho, que é papel da escola ajudar os alunos a refletirem sobre a língua materna, em graus diferentes de abstração, de acordo com cada período da vida escolar: Essa reflexão torna mais fácil para eles desenvolver sua competência e ampliar o número e a natureza das tarefas comunicativas que já são capazes de realizar, primeiramente na língua oral e, depois, também, por meio da língua escrita. A reflexão sobre a língua que usam torna-se especialmente crucial quando nossos alunos começam a conviver com a modalidade escrita da língua (BORTONI-RICARDO, 2006, p. 268). Por outro lado, também é preciso que fiquem claros o perfil e as especificidades de cada grupo com o qual se trabalha o ensino de língua materna. Há um problema de adequação da escola, segundo Oliveira (1999, p. 62) para um grupo que não é o “alvo original” da instituição: Currículos, programas, métodos de ensino foram originalmente concebidos para crianças e adolescentes que percorreriam o caminho da escolaridade de forma regular. Assim, a organização da escola como instituição supõe que o desconhecimento de determinados conteúdos esteja atrelado a uma determinada etapa de desenvolvimento […]; supõe que certos hábitos, valores e práticas culturais não estejam ainda plenamente enraizados nos aprendizes. Enfim, não está preparada para um público da EJA. Na verdade, afirma Oliveira (1999), os índices de evasão e repetência na EJA indicam falta de sintonia entre a escola e os alunos, “embora não possamos desconsiderar, a esse respeito, fatores de ordem socioeconômica que acabam por impedir que os alunos se dediquem plenamente a seu projeto pessoal de envolvimento nesses programas.” (OLIVEIRA, 1999, p. 62). Bortoni-Ricardo (2006) considera a necessidade de distinção em relação às modalidades oral e escrita da língua, ao se tratar de variação linguística. As duas modalidades, segundo ela, diferenciam-se pelo chamado “estatuto do erro” (BORTONI- RICARDO, 2006, p. 272). As variações caracterizam-se como diferenças entre possibilidades competitivas de dizer a mesma coisa: “A transgressão é, como já dissemos, um fato social, pois Variação Linguística e Ensino: nos Caminhos do Letramento 39 o estigma se lhe advém pela simples ruptura com uma etiqueta lingüística”, reforça a autora (BORTONI-RICARDO, 2006, p. 273). Por outro lado, em relação à variação presente na escrita, a autora aponta que esta representa “a transgressão de um código convencionado e prescrito pela ortografia”. Por ter a escrita tomada como modelo de “boa língua” também para a oralidade, a escola, por muito tempo, desconsiderou ou tratou como erros as variedades pertencentes aos domínios linguísticos dos estudantes, especialmente aqueles das classes sociais mais baixas. Para Bortoni-Ricardo (2006), no caso brasileiro, o ensino das variedades de prestígio aos sujeitos falantes das variedades populares da língua se dá de forma desastrosa. Em primeiro lugar porque não são respeitados os antecedentes culturais e linguísticos dos educandos. E, em segundo, porque a própria língua-padrão não é ensinada de forma eficiente: Os alunos que chegam à escola falando “nós cheguemu”, “abrido” e “ele drome”, por exemplo, têm que ser respeitados e ver valorizadas as suas peculiaridades lingüístico-culturais, mas têm o direito inalienável de aprender as variantes do prestígio dessas expressões. Não se lhes pode negar esse conhecimento, sob pena de se fecharem para eles as portas, já estreitas, da ascensão social (BORTONI-RICARDO, 2006, p. 15). Em pesquisa de campo desenvolvida no período de 2008 a 2010 e que resultou em pesquisa de Doutorado (SPESSATTO, 2011), encontramos problemas na contribuição da escola em relação ao acesso dos estudantes à variedade de prestígio da língua. Porém, por outro lado, não evidenciamos indícios de censura à diversidade. Ao contrário, os estudantes descrevem o espaço escolar como um ambiente harmonioso e livre de preconceito. Usamos uma das questões da última entrevista gravada com os estudantes para coletar suas opiniões em relação ao modo como se sentiam no ambiente escolar. Pedimos para que eles simulassem uma apresentação do primeiro dia de escola, no estabelecimento no qual passariam a cursar o Ensino Médio, no ano seguinte. [ Situamos essa perspectiva como fora do contexto atual do ensino de língua materna, porque assim o fazem os documentos oficiais que orientam o trabalho com a linguagem da escola. Porém, é preciso sempre, lamentavelmente, deixar uma ressalva a algumas práticas que, infelizmente, ainda estão vinculadas com essa perspectiva de ensino. ] VARIEDADE DE PRESTÍGIO [ GLOSSÁRIO ] A autora utiliza o termo “língua culta”. Porém, fazemos uso da expressão “variedades de prestígio”, por considerar a intrínseca relação entre prestígio linguístico e prestígio social dos falantes detentores de cada variedade. A pergunta foi formulada da seguinte forma: “Vamos pensar que você está no primeiro dia de aula no colégio e tem de apresentar para os professores, para os novos amigos como era a tua escola, aqui. O que você diria?” Dos 20 estudantes da turma, nove informaram que iriam para três escolas do centro da cidade, nove para uma escola de uma pequena cidade dos arredores e dois ainda não sabiam onde iriam estudar. A ideia, com a questão, foi que eles manifestassem a sua opinião em relação à escola atual. Dos 20 alunos, 14 afirmaram que colocariam em destaque na apresentação da escola ser esta “uma escola legal”, “unida”, “quase uma família”, “todo mundo amigo” e “uma escola boa de estudar”. Outros cinco colocaram a ênfase na atuação dos professores como “legais”, “dedicados”, “que ensinaram bastante e eram exigentes”. Um estudante citou como principal característica da escola o aspecto ambiental, pelo fato de ter muitas árvores e desenvolver ações que demonstram preocupação com o meio ambiente. Deve-se ressaltar o modo como os estudantes revelaram a preocupação em enfatizar que a escola respeita as diferenças: “Eu diria que é um colégio bem legal, que a aprendizagem lá é bem massa. Que lá tem muitos colegas bons e também ruins. Acho que lá é um colégio unido e ninguém debocha de ninguém e todo mundo respeita o outro.” (Alex); “Eu diria que aqui é uma escola bem bacana, ela não te exclui em nada. Todo mundo é bem recebido aqui, todo mundo é igual, diferente de tudo.” (Suzana); “[...] aqui é legal, tem pessoas que se ajudam, não é o individualismo, e tem pessoas boas de se ajudar. E é uma escola boa de se estudar, não tem tanto recurso como outras, o ginásio, mas é uma escola sossegada.” (Juliano). Bortoni-Ricardo (2006, p. 71) ajuda a compreender a relação entre usos linguísticos e identidade social, ao lembrar que cada enunciado é, para o falante, um ato de identidade. À medida que os usuários da língua se movimentam através do espaço sociolinguístico multidimensional que compõe seu repertório, reforça a autora, usam os recursos de variação para marcar diferentes dimensões de sua identidade social, tal como sexo, faixa etária, grupo ocupacional, religioso ou étnico. Entretanto, como já afirmamos anteriormente, a concepção que os educadores têm acerca das diferentes variedades que constituem a língua direciona o modo como intervêm diante da presença dessas variedades em sala de aula, contribuindo com a formação linguística dos alunos. É sobre os conceitos de norma e de norma culta que tratamos na seção que segue. [ Os nomes são fictícios, usados para