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Luiz Inácio Lula da Silva Presidente da República Gilberto Gil Ministro da Cultura Juca Ferreira Secretário Executivo Roberto Pinho Secretário de Desenvolvimento de Programas e Projetos Culturais Paulo Miguez Secretário de Formulação e Avaliação de Políticas Culturais Orlando Senna Secretário para o Desenvolvimento das Artes Audiovisuais Sérgio Mamberti Secretário de Apoio à Preservação da Identidade Cultural Sérgio Xavier Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura Márcio Meira Secretário de Articulação Institucional e de Difusão Cultural Cadernos do Do-ln Antropológico Uma publicação da Assessoria de Comunicação Social do MinC Esplanada dos M inistérios Bloco B, Sala 306 CEP: 70.068-900 Telefones: (61) 316-2200/2309 Fax: (61) 223 -9290 - 225-0102 imprensa@minc.gov.br site : www.cultura .gov.br Assessor de Comunicação Social Luis Turiba Supervisão de publicação Assessor Especial do MinC Antônio Risério Revisão Raimundo Estevam Silva Programação gráfica e capa Resa/Reginaldo Feitosa Fotolito, impressão e acabamento Teixeira Gráfica e Editora Imagens de capa, de cima para baixo: 1 - Caboclo, aquarela de Jean Baptista Debret - 1820/1830 (Museus Castro Maya); 2 - Nau do Descobrimento, óleo sobre tela, de Carlos Ballioster - 1912 (acervo do Museu Histón·co Nacional); 3 - Detalhe de um rosto indignado na litografia Negros no Tronco, de Debret-1834/1839; 4 -Ala dos Compositores da Mangueira e sua madrinha, década de 40 (acervo da Estação 1' da Mangueira); 5 - Praça dos Três Poderes, Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Monumento JK, de Oscar Niemeyer, 6 - Detalhes: sombra de um anjo barroco, de A/eijadinho. Brasília, dezembro de 2003 ' ' Para nós, a cultura está investida de um pa - pel estratégico, no sentido da construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação soberana no mundo. Porque não a vemos como algo meramente decorativo, ornamental. Mas como a base da construção e da preservação de nossa iden- tidade, como espaço para a conquista plena da ci- dadania, e como instrumento para a superação da exclusão social -tanto pelo fortalecimento da auto- estima de nosso povo, quanto pela sua capacidade de gerar empregos e de atrair divisas para o país . Ou seja, encaramos a cultura em todas as suas di- mensões, da simbólica à econômica. Vem daí o nosso entendimento da cultura como uma das preocupações centrais do Estado. ' ' PRESIDENTE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA 13 de outubro de 2003 Por ocasião do lançamento do "Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual" Gil, Gilberto, 1942- G463d Discursos do Ministro da Cultura Gilberto Gil. Brasília : MinC, 2003 . 88p. : il. 1. Cultura brasileira - discursos ~ 2. Discur- sos . 1. Título CDD 8 11 19 23 31 39 45 63 69 l i 79 85 SUMÁRIO DISCURSOS PROGRAMÁTICOS DISCURSO NA SOLENIDADE DE TRANSMISSÃO DO CARGO DISCURSO NO EDIFÍCIO GUSTAVO CAPANEMA, MARCO DA ARQUITETURA BRASILEIRA E MUNDIAL DISCURSO NO SEMINÁRIO DE CULTURA DISCURSO NA BIENAL DA UNE DISCURSO DANDO POSSE À NOVA DIRETORIA DA FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES PRONUNCIAMENTO NA COM~SSÃO DE EDUCAÇÃO, CULTURA E DESPORTO DA CAMARA DOS DEPUTADOS PRONUNCIAMENTO NA COMISSÃO DE EDUCAÇÃO DO SENADO FEDERAL PRONUNCIAMENTO NO ENCERRAMENTO DO FESTIVAL DE CINEMA DE GRAMADO DISCURSO NO LANÇAMENTO DO PROGRAMA BRASILEIRO DE CINEMA E AUDIOVISUAL DISCURSO NA ABERTURA DA 5ª BIENAL DE ARQUITETURA MINISTÉRIO DA CULTURA DISCURSOS PROGRAMÁTICOS JUCA FERREIRA Secretário-Executivo do Ministério da Cultura o discurso de posse, o ministro Gilberto Gil falou em fazer uma espécie de "do-in antropológico", massageando pontos vitais, mas momentanea- mente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do País. O "do-in" serviria, assim, para "avivar o velho e atiçar o novo". Assim fizemos. O ministro Gilberto Gil cum- priu uma longa e positiva agenda ao longo des- te ano de 2003 . Saiu pelo Brasil afora com toda a nossa equipe, marcando claramente a nova fun- ção estratégica da cultura no governo do presi- dente Lula . Cultura como encontro de raças, fundamento inaugural da soci- edade brasileira; como produto fundamental da cesta básica do povo brasileiro; uma espécie de feijão-com-arroz de nossas almas, de nossa existência e de nosso destino no planeta. O ministro Gil apresentou o novo Ministério da Cultura à nação. Isso se deu por intermédio de falas, palestras, discursos, pronunci- 6 CADERNOS DO DO·IN ANlROPOLÓGICO amentos. Selecionamos para a edição inaugural dos Cadernos do Do-ln Antropológico dez discursos programáticos. Através dessas intervenções, foi sendo apresentado um novo conceito de cultura e o papel do Estado para o desenvolvimento cultural do país, além da importância da nossa diversidade cultural. Da transmissão do cargo, dia 2 de janeiro, no lotado auditório do MinC, à solenidade de lançamento do Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual, no Palácio do Planalto; passando pelas falas na Câm ara dos Deputados e no Senado Federal; no Palácio Ca panema, no Rio de Janeiro; na reunião da UNE em Recife; ao Festival de Cinema de Gramado. Agora, o novo MinC apresenta à nação algumas das peças ora- tórias do ministro Gilberto Gil que serão fundamentais para a compreensão do papel da cultura e das artes neste novo estágio civ ilizatóri o do Brasil sob o comando do presidente Luiz Inácio Lu la da Silva. Afinal, cultura também é economia, direito à cida- dania, inclusão social e expressão maior da singularidade do povo brasileiro. 7 MINISTÉRIO DACUL TURA Foto: Ricardo Stuckert/ Presidência da República Esplanada dos Ministérios, 1° de janeiro de 2003, posse do presidente Lula 8 CADERNOS DO DO·IN ANTROPOLÓGKO DISCURSO DO MINISTRO GILBERTO GIL NA ,., SOLENIDADE DE TRANSMISSAO DO CARGO BRASÍLIA, 2 DE JANEIRO DE 2003 eleição de Luiz Inácio Lula da Silva foi a mais elo- qüente manifestação da nação brasileira pela ne- cessidade e pela urgência da mudança. Não por uma mudança superficial ou meramente tática no xadrez de nossas possibilidades nacionais. Mas por uma mudança estratégica e essencial, que mergulhe fundo no corpo e no espírito do país . O ministro da Cultura entende assim o recado enviado pelos brasileiros, através da consagra- ção popular do nome de um trabalhador, do nome de um brasileiro profundo, simples e dire- to, de um brasileiro identificado por cada um de nós como um seu igual, como um companheiro. É t ambém nesse horizonte que entendo o desejo do presidente Lula de que eu assuma o Ministério da Cultura . Escolha prática, mas também simbólica, de um homem do povo como ele. De um homem que se engajou num sonho geracional de transformação do país, de um negromestiço empenhado nas movimentações de sua gente, de 9 um artista que nasceu dos solos mais generosos de nossa cultura popular e que, como o seu povo, jamais abriu mão da aventura, do fascínio e do desafio do novo. E é por isso mesmo que assumo, como uma das minhas tarefas centrais, aqui , t irar o M inis- tério da Cultura da distância em que ele se encontra, hoje, do dia-a-dia dos brasileiros. Que quero o Ministério presente em todos os cantos e recantos de nosso País. Que quero que esta aqui seja a casa de todos os que pensam e fazem o Brasi l. Que seja, realmen- te, a casa da cultura brasileira. E o que entendo por cultura vai muito além do âmbito restrito e restritivo das concepções acadêmicas, ou dos ritos e da liturgia de uma su- posta "classe artística e intelectual ". Cultura, como alguém já disse, não é apenas "uma espécie de ignorân- cia que distingue os estudiosos" . Nem somente o que se produz no âmbito das formas canon izadas pelos cód i- gos ocidentais, com as suas hierar- quias suspeitas. Do mesmo modo, ninguém aqui vai me ouvir pronun- ciar a palavra "folclore" . Os vínculos entre o conceitoerudito de "folclo- re" e a discriminação cultural são mais do que estreitos. São íntimos. "Folclore " é tudo aquilo que - não 10 MINISTÉRIO DA CULTURA se enquadrando, por sua antigüida- de, no panorama da cultura de massa - é produzido por gente inculta, por "primitivos contemporâneos", como uma espécie de enclave simbólico, his- toricamente atrasado, no mundo atu- al. Os ensinamentos de Lina Bo Bardi me preveniram definitivamente con- tra essa armadilha . Não existe "folclo- re" - o que existe é cultura . Cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se mani- festa para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um povo. Cul- tura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cul- tura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. Desta perspectiva, as ações do Mi- nistério da Cultura deverão ser en- tendidas como exercícios de antro- pologia aplicada. O Ministério deve ser como uma luz que revela, no pas- sado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e fazem, do Bra- sil, o Brasil. Assim, o selo da cultu- ra , o foco da cultura, será colocado em todos os aspectos que a revelem e expressem, para que possamos te- cer o fio que os unem. CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, si m, criar condições de acesso universal aos bens simbólicos. Não ca- be ao Estado fazer cultura, mas, sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou men- tefatos. Não cabe ao Estado fazer cul- t ura, mas, sim, promover o desenvol- vimento cultural geral da sociedade. Porque o acesso à cultura é um direi- to básico de cidadania, assim como 0 direito à educação, à saúde, à vida num meio ambiente saudável. Por- que, ao investir nas condições de cri- ação e produção, estaremos toman- do uma iniciativa de conseqüências imprev isíveis, mas certamente bri- lhantes e profundas - já que a criativi- dade popular brasileira, dos primei- ros tempos coloniais aos dias de hoje, foi sempre muito além do que permi- tiam as condiçõs educacionais, soci- ais e econômicas de nossa existência . Na verdade, o Estado nunca esteve à altura do fazer de nosso povo, nos mais variados ramos da grande árvo- re da criação simbólica brasileira . É preciso ter humildade, portan- to. Mas, ao mesmo tempo, o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabili- dade pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultu- ral aos ventos, aos sabores e aos ca- prichos do deus-mercado. É claro que as leis e os mecanismos de in- centivos fiscais são da maior impor- tância . Mas o mercado não é tudo. Não será nunca. Sabemos muito bem que em matéria de cultura , assim como em saúde e educação, é preci- so examinar e corrigir distorções ine- rentes à lógica do mercado - que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte. Sabemos que é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto al- cance, da estreiteza, das insuficiên- cias e mesmo da ignorância dos agen- tes mercadológicos. Sabemos que é preciso suprir as nossas grandes e fun- damentais carências. O Ministério não pode, portanto, ser apenas uma caixa de repasse de verbas para uma clientela preferen- cial. Tenho, então, de fazer a ressal- va: não cabe ao Estado fazer cultura, a não ser num sentido muito especí- fico e inevitável. No sentido de que formular políticas públicas para a cul- tura é, também, produzir cultura . No sentido de que toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num deter- 11 llL mens de Revista KLAXON, Semana de Arte Moderna de 1922 ' ' FAZER UMA ESPÉCIE DE -i "DO-IN" ANTROPOLÓGICO MASSAGEANDO PONTOS VITAIS, MAS MOMENTANEAMENTE DESPREZADOS OU ADORMECIDOS, DO CORPO CULTURAL DO PAIS. ENFIM, PARA AVNAR O VELHO E A TlÇAR O NOVO. PORQUE A CULTURA BRASILEIRA NÃO PODE SER PENSADA FORA DESSE JOGO, DESSA DIALÉTICA PERMANENTE ENTRE A TRADIÇÃO E A INVENÇÃO. ' ' 12 MINISTÉRIO DA CULTURA minado momento de sua existência . No sentido de que toda política cul- tural não pode deixar nunca de ex- pressar aspectos essenciais da cultu- ra desse mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho mo- delo estatizante, mas para clarear ca- minhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de "do-in" antropológico, massagean- do pontos vitais, mas momentanea- mente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. !Énfim, para avivar o velho e atiçar o novo. Por- que a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialé- tica permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de ma- trizes milenares e informações e tecnologias de ponta. \ Logo, não se trata somente de expressar, refletir, espelhar. As polí- ticas públicas para a cultura devem ser encaradas, também, como inter- venções, como estradas reais e vici- na is, como caminhos necessários, como atalhos urgentes. Em suma, como intervenções criativas no cam- po do real histórico e social. Daí que a política cultural deste Ministério, a política cultural do Governo Lula, a partir deste momento, deste instan- te, passa a ser vista como parte do CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso País. como parte do projeto geral de cons- trução de uma nação realmente de- mocrática, plural e tolerante. Como parte e essência de um projeto con- sistente e criativo de radicalidade so- cial. Como parte e essência da cons- trução de um Brasil de todos. Penso, aliás, que o presidente Lula está certo quando diz que a onda atu- al de violência, que ameaça destruir valores essenciais da formação de nos- so povo, não deve ser creditada auto- matica mente na conta da pobreza. Sempre tivemos pobreza no Brasil, mas nunca a violência foi tanta como ho- je. E esta violência vem das desigual- dades sociais. Mesmo porque sabemos que o que aumentou no Brasil, nes- sas últimas décadas, não foi exatamen- te a pobreza ou a miséria. A pobreza até que diminuiu um pouco, como as estatísticas mostram. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil se tornou um dos paí- ses mais desiguais do mundo. Um país que possui talvez a pior distribuição de renda de todo o planeta. E é esse escândalo social que explica, basica- mente, o caráter que a violência ur- bana assumiu recentemente entre nós, subvertendo, inclusive, os anti- gos valores da bandidagem brasileira. Ou o Brasil acaba com a violência, ou a violência acaba com o Brasil. O Brasil não pode continuar sendo si- nônimo de uma aventura generosa, mas sempre interrompida . Ou de uma aventura só nominalmente so- lidária. Não pode continuar sendo, como dizia Oswald de Andrade, um país de escravos que teimam em ser homens livres. Temos de completar a construção da nação. De incorpo- rar os segmentos excluídos. De redu- zir as desigualdades que nos atormen- tam. Ou não teremos como recupe- rar a nossa dignidade interna, nem como nos afirmar plenamente no mundo. Como sustentar a mensagem que temos a dar ao planeta, enquan- to nação que se prometeu o ideal mais alto que uma coletividade pode propor a si mesma: o ideal da convi- vência e da tolerância, da coexistên- cia de seres e linguagens múltiplos e diversos, do convívio com a diferen- ça e mesmo com o contraditório. E o papel da cultura, nesse processo, não é apenas tático ou estratégico - é cen- tral: o papel de contribuir objetiva- mente para a superaçãodos desní- veis sociais, mas apostando sempre na realização plena do humano. A multiplicidade cultural brasilei- ra é um fato. Paradoxalmente, a nossa unidade de cultura - unidade básica, abrangente e profunda - também. Em 13 verdade, podemos mesmo dizer que ª diversidade interna é, hoje, um dos nossos traços identitários mais nítidos. É o que faz com que um habitante da favela carioca, vinculado ao samba e à macumba, e um caboclo amazôni- co, cultivando carimbós e encantados, sintam-se - e, de fato, sejam - igual- mente brasileiros. Como bem disse Agostinho da Silva, o Brasil não é o país do isto ou aquilo, mas o país do isto e aquilo. \]omos um povo mesti- ço que vem criando, ao longo dos séculos, uma cultura essencialmente sincrética~ Uma cultura diversificada, plural - mas que é como um verbo conjugado por pessoas diversas, em tempos e modos distintos. Porque, ao mesmo tempo, essa cultura é una: cul- tura tropical sincrética tecida ao abri- go e à luz da língua portuguesa..:... E não por acaso me referi, antes, ao plano internacional. Tenho para mim que a política cultural deve per- mear todo o Governo, como uma es- pécie de argamassa de nosso novo projeto nacional. Desse modo, tere- mos de atuar transversalmente, em sintonia e em sincronia com os de- mais ministérios. Algumas dessas par- cerias se desenham de forma quase automática, imediata, em casos como os dos ministérios da Educação, do Turismo, do Meio Ambiente, do Tra- 14 MINISTÉRIO DA CULTURA balho, dos Esportes, da Integração Nacional. Mas nem todos se lembram logo de uma parceria lógica e natu- ral, no contexto que estamos viven- do e em função do projeto que te- mos em mãos: a parceria com o Mi- nistério das Relações Exteriores. Se há duas coisas que hoje atraem irresisti- velmente a atenção, a inteligência e a sensibilidade internacionais para o Brasil , uma é a Amazônia, com a sua biodiversidade - e a outra é a cultu- ra brasileira, com a sua semiodiversi- dade. lo Brasil aparece aqui, com as suas d iásporas e as suas mistura s, como um emissor de mensagens no- vas, no contexto da globalização:\ Juntamente com o Ministério das Relações Exteriores, temos de pensar, modelar e inserir a imagem do Brasil no mundo. Temos de nos posicionar estrategicamente no campo magné- tico do Governo Lula, com a sua ênfa- se na afirmação soberana do Brasil no cenário internacional. E sobretu- do temos de saber que recado o Bra- sil - enquanto exemplo de convivên- cia de opostos e de paciência com o diferente - deve dar ao mundo, num momento em que discursos ferozes e estandartes bélicos se ouriçam pla- netariamente. Sabemos que as guer- ras são movidas, quase sempre, por interesses econômicos. Mas não só . CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO Elas se desenham, também, nas esfe- ras da intolerância e do fanatismo. E, aqui, o Brasi l tem lições a dar - apesar do que querem dizer certos representantes de instituições inter- nacionais e seus porta-vozes internos que, a f im de tentar expiar suas cul- pas rac iais, esforçam-se para nos en- quadrar numa moldura de hipocrisia e discórdia, compondo de nossa gen- te um retrato interessado e interes- seiro, capaz de convencer apenas a eles mesmos. Sim: o Brasil tem lições a dar, no campo da paz e em outros, com as suas disposições permanen- temente sincréticas e transcultura- tivas. E não vamos abrir mão disso. Em resumo, é com esta compreen- são de nossas necessidades internas e da procura de uma nova inserção do Brasil no mundo que o Ministério da Cultura vai atuar, dentro dos princí- pios, dos roteiros e das balizas do pro- jeto de mudança de que o presidente Lula é, hoje, a encarnação mais ver- dadeira e mais profunda. Aqui será o espaço da experimentação de rumos novos. O espaço da abertura para a criatividade popular e para as novas linguagens. O espaço da disponibili- dade para a aventura e a ousadia. O espaço da memória e da invenção. Muito obrigado. Detalhe de uma reprodução do zoólogo alemão Johann Baptist Von Spix, 1820 ' ' OUOBRASILACABA COM A VIOL~NCIA, OU A VIOL~NCIA ACABA COM O BRASIL. O BRASIL NÃO PODE CONTINUAR SENDO SINÔNIMO DE UMA AVENTIJRA GENEROSA, MAS SEMPRE INTERROMPIDA. OU DE UMA AVENTIJRA SÓ NOMINALMENTE SOLIDÁRIA. NÃO PODE CONTINUAR SENDO, COMO DIZIA OSWALD DE ANDRADE, UM PAIS DE ESCRAVOS QUE TEIMAM EM SER HOMENS LIVRES. TEMOS DE COMPLETARA CONSlRUÇÃO DA NAÇÃO. ' ' 15 MINISTÉRIO DA CULTURA Jardim suspenso de Burle Max no Palácio Capanema, em pleno centro do Rio de Janeiro (Arquivo M inC) 16 CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGKO DISCURSO DO MINISTRO GILBERTO GIL NO PALÁCIO GUSTAVO CAPANEMA, MARCO DA ARQUITETURA BRASILEIRA E MUNDIAL RIO DE JANEIRO, 06 DE FEVEREIRO DE 2003 ias de adaptação à luz intensa, natural que substitui as lâmpadas acesas durante o dia; às divisões baixas de madeira, em lugar de paredes; aos móveis padronizados-que, an- tes obedeciam à fantasia dos diretores ou ao acaso dos fornecimentos. Novos hábitos são ensaiados ... A sala em que me instalaram não provou bem. Desde anteontem passei para onde as coisas têm melhor arrumação. Das amplas vidraças do 10° andar descortina-se a baía vencendo a massa cinzenta dos edifíci- os. Lá embaixo, no jardim suspenso do Minis- tério, a estátua de mulher nua de Celso Antônio, reclinada, conserva entre o ventre e as coxas um pouco de água da última chuva, que os passa rinhos vêm beber, e é uma graça a conversão do sexo de grani- to em fonte natural. Utilidade imprevista das obras de arte" . Meus amigos, minhas amigas: 17 Estas palavras foram escritas por Carlos Drummond de Andrade, em "O Observador no Escritório", para falar da mudança do ministro Gus- tavo Capanema e sua equipe para o então prédio do Ministério da Edu- cação e Saúde, nos primeiros dias do mês de abril de 1944. E é fascinante ouvi-lo não só sobre a luz natural in- vadindo as salas, como sobre a sen- sação espacial de estar num prédio radicalmente novo, que leva a ensai- ar novos hábitos. Este é o dom, a vir- tude e a verdade da grande arquite- tura. O espaço construído sendo ca- paz de renovar a nossa experiência das formas e os nossos hábitos. Mas este prédio de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, baseado no traçado original de Le Corbusier, não é só isso. Ele é um marco inaugural, marco da nova arquitetura brasileira e mundi- al , marco da invenção na história da cultura brasileira . E tem lições fun- damentais para nos dar, no momen- to em que estamos vivendo. Aqui está uma prova nítida de nos- sa capacidade de assimilar criativa- mente linguagens internacionais, ne- las imprimindo a nossa marca própria e original, inclusive para nos anteci- par às realizações estrangeiras. Porque a verdade é que este prédio, exem- plo de ousadia e requinte tropicais, 18 MINISTÉRIO DA CUL lURA pegou de surpresa os centros mun- diais de cultura . Nesse caso, deixo a palavra com o próprio Lúcio Costa : "O edifício construído para sede do antigo Ministério da Educação e Saúde surgiu como que de repente e a sua serena beleza surpreendeu quando, terminada a guerra, o mun- do tomou conhecimento da sua in- sólita presença. Marco definitivo da nova arquitetura brasileira revelou- se igualmente, apenas construído, pa- drão internacional da reformulação arquitetônica, e demonstrou que o engenho nativo já está apto a apre- ender a experiência estrangeira, não mais somente como eterno caudatário ideológico, mas anteci- pando-se na própria realização" . Uma outra lição que este grupo e este prédio nos dão está na aliança que souberam tecer entre a tradição e o novo. Não foi isso o que aconte- ceu na Europa, onde agrupamentos se dividiram, como adversários, em nome de uma suposta dicotomia en- tre memória e invenção - e o panfle- tário Le Corbusier queriafazer tábua rasa do passado. O Instituto do Patri- mônio - criado por um punhado de jovens inovadores, sob a regência de Rodrigo Melo Franco de Andrade - fi- cou abrigado aqui mesmo, neste pré- dio de vanguarda. E Lúcio Costa tra- CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO ba lhou para o Patrimônio. Podemos dizer, portanto, que este grupo tinha um pé em Ouro Preto - e um pé no fu- turo, que um dia se chamaria Brasília. Este prédio nos ensina, também, que é preciso ter responsabilidade pa ra construir. Responsabilidade so- cia l e cultural. Porque todo prédio im- portante, que se ergue na paisagem, va i marcar profundamente o corpo da cidade. Marcar com a sua dimen- são f ísica, com a sua carga simbólica e com a sua mensagem. E é por isso mesmo que devemos olhar com re- serva, criticamente, todo projeto de impl antação de obras gigantescas, grandes somente em sua monumen- t al idade, mas culturalmente supérflu- as, vazias de significado. Por fim, gostaria de lembrar o con- texto histórico em que este edifício se ergueu. Ele foi construído ao lon- go da li Guerra Mundial. E assim ge- rou um contraste eloqüente. Enquan- to na Europa a tecnologia estava sen- do usada para destruir, no Brasil ela estava sendo usada para construir. E que isto também nos sirva de lição, hoje, quando a perspectiva de uma nova guerra se desenha cada vez ma is próxima. Que a tecnologia seja para nós, sempre, um instrumento construtivo sempre para paz. Por tudo isso, é preciso revelar, ao próprio Rio e a todo o País, o signi- ficado deste prédio. É preciso infor- mar, iluminar e usar os seus belos espaços. Recuperar o que for preci- so de suas instalações. E isto o Mi- nistério da Cultura vai fazer. Para que este edifício renasça da cidade - e para o coração do país. Detalhe do mural de azulejos de Cândido Portinari, na entrada secundária do Palácio (Arquivo M inC) ' ' ESTE PRÉDIO NOS ENSINA, TAMBÉM, QUE É PRECISO TER RESPONSABILIDADE PARA CONSTRUIR. RESPONSABILIDADE SOCIAL E CULTURAL. PORQUE TODO PRÉDIO IMPORTANTE, QUE SE ERGUE NA PAISAGEM, VAI MARCAR PROFUNDAMENTE O CORPO DA CIDADE COM A SUA DIMENSÃO FISICA, A SUA CARGA SIMBÓLICA E A SUAMENSAGEM. '' 19 20 MINISTÉRIO DA CULTURA Coroado e Botocudo, indios antropófagos descritos por Spix e Martius, no livro "Viagem pelo Brasil" 1817-1820 CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGKO DISCURSO DO MINISTRO GILBERTO GIL NO SEMINÁRIO DE CULTURA DO CEARÁ CULTURA NO GOVERNO LULA: UMA VISÃO ESTRATÉGICA DO MINC FORTALEZA, 20 DE MARÇO DE 2003 objetivo maior do Governo Lula, nos termos mais amplos possíveis, é a recuperação da dignidade na- cional brasileira - dignidade interna e externa, entrelaçadas. É a construção de um novo Brasil, socialmente mais equilibrado, mais saudável, e ca- paz de se afirmar como nação soberana no cená- rio internacional. Um projeto de futuro, portanto, antevisão do Brasil realizando-se plenamente como nação: para nós-e para o mundo. Inicialmente, contudo, a discussão desse proje- to concentrou-se-como era natural-nos campos da política e da economia. Mas esse primeiro momento já ficou para t rás. Trata-se, agora, de abrir o leque, de ampliar o raio das discussões e intervenções, de modo que possamos entrelaçar política, econo- 21 l mia, educação, cultura, etc. Pois, da perspectiva do Ministério da Cultura, o desejo de "construir um novo Bra- sil" , de recuperar a dignidade nacio- nal brasileira, terá maior probabil ida- de de êxito se passar pelo mundo da cultura . Cultura não no sentido das con- cepções acadêmicas ou dos ritos de uma "classe artístico-intelectual ". Mas em seu sentido pleno, antropológi- co. Vale dizer: cultura como a dimen- são simbólica da existência social bra- sileira. Como usina e conjunto de sig- nos de cada comunidade e de toda a nação. Como eixo construtor de nos- sas identidades, construções continu- adas que resultam dos encontros en- tre as múltiplas representações do sen- tir, do pensar e do fazer brasileiros e a diversidade cultural planetária . Como espaço de realização da ci- dadania e de superação da exclusão social , seja pelo reforço da auto-esti- ma e do sentimento de pertenci- mento, seja, também, por conta das potencialidades inscritas no univer- so das manifestações artístico-cultu- rais com suas múltiplas possibilida- des de inclusão socioeconômica . Sim. Cultura, também, como fato econômico, capaz de atrair divisas para o país - e de, aqui dentro, gerar emprego e renda . 22 MINISTÉRIO DA CULTURA Assim compreendida, a cultura se impõe, desde logo, no âmbito dos deveres estatais. É um espaço onde o Estado deve intervir. Não segundo a velha cartilha estatizante, mas mais distante ainda do modelo neoliberal que faliu. Vemos o Governo como um estimulador da produção cultu- ral. Mas também, através do Mine, como um formulador e executor de políticas públicas e de projetos para a cultura . Ou seja : pensamos o Mine no contexto em que o Estado come- ça a retomar o seu lugar e o seu pa- pel na vida brasileira . Enfim, pensa- mos a política cultural do Governo Lula como parte do projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso país. Como parte do proje- to geral de construção de uma na- ção realmente democrática, plural e tolerante. Como parte e essência da construção de um Brasil de todos. HERANÇA & DESAFIO O que vimos no Brasil, ao longo dos últimos anos, passou por muito longe disso. Daí que três questões- desafio se imponham, agora, ao Mi- nistério da Cultura : a retomada de seu papel const itucional de órgão formulador e executor de uma polí- tica cultural para o país; a sua refor- CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO ma administrativa e a corresponden- te capacitação institucional, do pon- to de vista técnico e organizacional para operar tal política; e a obten- ção dos recursos financeiros indispen- sáveis à implementação desta políti- ca, seus programas e seus projetos. Esses três desafios resultam da he- ra nça que recebemos. Desde o Go- verno Collor, o Ministério da Cultura definhou. Sua estrutura apequenou- se. Perdeu capacidade política, técni- ca e gerencial. Desmantelado, foi in- capaz, por exemplo, de operar inte- gralmente os instrumentos previstos no Programa Nacional de Apoio à Cul- tura, a conhecida Lei Rouanet. Mas o mais grave é que o Minis- tério abandonou por completo aque- la que deveria ser a sua função mai- or. Em vez de ter uma política cultu- ra l para o país, simplesmente entre- gou essa tarefa ao mercado, aos de- parta mentos de comunicação e marketing das empresas, pela via dos incentivos fiscais. E assim chegamos a uma situação absurda : a política cultural passou a ser pensada e exe- cutada não pelo Ministério da Cultu- ra, mas por comunicólogos e mar- keteiros voltados para atender aos in- teresses particulares de suas empre- sas. Por esta lógica, a cultura e suas criações só adquiriam relevância caso Mapa do Brasil chamado de nAtlas Miller" atribu ido a Lopo Homem-Reinéis, 1519 ' '' DA PERSPECTIVA DO MINISTÉRIO DA CULTURA, O DESEJO DE "CONSTRUIR UM NOVO BRASIL", DE RECUPERAR A DIGNIDADE NACIONAL BRASILEIRA, TERÁ MAIOR PROBABILI- DADE DE ~XITO SE PASSAR PELO MUNDO DA CULTURA.CULTURA NÃO NO SENTIDO DAS CONCEPÇÕES ACAD~MICAS OU DOS RITOS DE UMA "CLASSE ARTISTICO-INTCLECTUAL". MAS EM SEU SENTIDO PLENO, ANTROPOLÓGICO. VALE DIZER: CULTURA COMO A DIMENSÃO SIMBÓLICA DA EXISTtNCIA SOCIAL BRASILEIRA. ' ' 23 pudessem vir a reforçar a imagem corporativa das empresas. É desse quadro que emerge o tríplice desafio anunciado acima. De- safio cujo pano de fundo é a urgente necessidade da volta do Estado ao cam- po da cultura, expressando-se através da centralidade insubstituível do Mine, no papel estratégico de promo- tor do desenvolvimento cultural da sociedade brasileira e criador de con-dições indispensáveis à construção da cidadania em nosso país, já que o com- bate à exclusão social passa necessari- amente por uma ação de inclusão cul- tural, que garanta a pluralidade de nossos fazeres, o acesso universal aos bens e serviços culturais e à criação e produção desses mesmos bens. E aqui chegamos à questão do fi- nanciamento da execução da política cultural do Governo Lula, sem a qual será praticamente impossível que as coisas saiam do papel - ou deixem a luz do sonho para existir à luz do sol. Impõem-se, nesse particular, duas ações. Uma, o desenvolvimento de mecanismos que possam incremen- tar os fundos hoje disponíveis para a ação do Estado na área cultural. Criatividade, aqui, é a palavra-de-or- dem: loteria da cultura, selo-cultura, cartão-cultura, etc. A outra é uma reconfiguração do Programa Nacio- 24 MINISTÉRIO DA CUL lURA nal de Apoio à Cultura em pelo rne- nos três direções. Primeiro, regulamentação do Fun. do Nacional de Cultura, estabelecen. do critérios claros para a aplicação dos seus recursos. Segundo, ativação dos Fundos de Investimento Cu ltu. ral e Artístico, que, apesar de regula. mentados desde 1995, ainda hoje não entraram em funcionamento - o que vai requerer uma ação do Mine jun. to às instituições de fomento e aos bancos públicos e privados que tra. balham com fundos de investimen- to. Terceiro, revisão da legislação de incentivos fiscais que suporta a ação do Mecenato, cujo desempenho, através da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual, acumulou distorções de toda ordem - entre elas, ausência de contrapartida financeira do parceiro privado, concentração regional dos benefícios, aberrações fiscais, surgi· mento de fundações privadas (de grandes empresas), em larga medi- da criadas e alimentadas com dinhei- ro público, sem as devidas contrapar· tidas sociais e culturais. O LUGAR DAS ESTATAIS A reconfiguração do Programa Na-cional de Apoio à Cultura não se esgota, porém, nas três ações CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO supracitadas. Pelo contrário. Há uma outra questão, tão importante quan- to as da regulamentação, ativação ou revisão dos seus instrumentos, de for- ma a redirecioná-los para a consecu- ção dos objetivos propostos quando da promulgação da lei . Entram em cena, aqui, as grandes empresas estatais, que figuram en- tre os maiores utilizadores dos recur- sos postos à disposição da vida cul- tura l brasil eira, através da renúncia fisca l. E uma observação deve ser feita desde já: ainda que legal, o proble- ma é, neste caso, essencialmente pol ítico. É preciso separar bem as coisas. Separar o dinheiro. Com toda a clareza. Porque uma coisa é a even- tual utilização em ações culturais de verbas de comunicação e marketing - isto concerne a decisões empresari- ais de ordem mercadológica e cor- porativa . E outra coisa, radicalmen- te distinta, é o investimento dessas empresas, em atividades de cultura, com recursos obtidos através dos me- canismos de incentivo fiscal. Sim. Neste segundo caso, o que está sendo investido é dinheiro pú- blico, resultante de uma renúncia fis- cal por parte do Estado, com objeti- vos claramente definidos em lei es- pecífica . Nada mais correto, politicamen- te - ainda mais por conta do caráter estatal dessas empresas -, que seja o próprio Estado a decidir sobre a destinação desses recursos. E mais: que o faça tendo como norte uma política pública para a cultura bra- sileira - e, como executor, o ator institucional criado para formular e executar tal política: o Ministério da Cultura. Os organismos do Governo envol- vidos diretamente com o assunto es- tão compreendendo, de forma posi- tiva, a importância desta questão. E nessa linha já estão estudando, arti- culadamente, os procedimentos po- lítico-legais destinados a transferir para o Mine a responsabilidade pela utilização de tais recursos. Recursos indispensáveis à formulação e imple- mentação de uma política cultural engajada efetivamente no projeto de transformação nacional arquitetado pelo Governo Lula. ECONOMIA DA CULTURA U m bem simbólico é um produto cultural, pol ít ico e econômico - simultaneamente . Como envolve custos de criação, planejamento e pro- dução, é, obviamente, uma fonte ge- radora de emprego e renda . Uma fon- te de lucro para empresas e de capta- 25 ção de divisas para países exportado- res de bens e serviços culturais. Ou seja : além de dar emprego em casa, a produção cultural pode tra- zer dinheiro de fora . Hoje, o merca- do internacional de bens e serviços culturais é extremamente dinâmico, envolvendo bilhões e bilhões de dó- lares. Não é por acaso que os EUA pressionam fortemente os demais países para que abram os seus mer- cados, considerando os bens e servi- ços culturais como mercadorias co- muns, da perspectiva do assim cha- mado "livre comércio" . E que a Fran- ça e outros países reagem, argumen- tando que a cu ltura não é uma mer- cadoria como as outras, merecendo tratamento diferenciado, com o Es- tado tendo o direito de controlar o mercado cultural interno de seu país e de proteger a sua produção de bens e serviços simbólicos. Tenta-se, assim, evitar que a discussão sobre a maté- ria vá parar na Organização Mundial de Comércio. Tudo isso apenas mos- tra a importância do que hoje se cha- ma "economia da cultura", que, en- trelaçando-se à "economia do lazer", é um dos setores mais dinâmicos da economia mundial. O comércio in- ternacional de serviços move, anual- mente, cerca de 2 trilhões de dóla- res. O Brasil é um país exportador de 26 MINISTÉRIO DA CULTURA bens e serviços culturais. Nossos fil- mes repontam no exterior . Nossa música popular tem hoje uma já no- tável presença no mundo. E nossas telenovelas circulam planeta afora. Isto é importante não apenas para a captação de algumas divisas, mas, so- bretudo, para a nossa afirmação na- cional no mundo. Mas a nossa parti- cipação no comércio internacional de bens e serviços culturais ainda é mui- to tímida . E precisa ser incrementada - a partir, é claro, não só da iniciati- va privada, mas, principalmente, de uma ação estatal centralizada no Mine. No plano interno, o estudo "Diagnóstico dos Investimentos da Cultura no Brasil " , realizado em 1998 pela Fundação João Pinheiro, para avaliar o impacto dos investi- mentos públicos e privados em cu l- tura no país, nos fornece números reveladores. Impressionantes, mes- mo. Alguns exemplos: Em 1994, já havia 510 mil pesso- as empregadas na produção cultu- ral brasileira . Um contingente 90 % maior do que o empregado na fa- bricação de equ ipamentos e mate- rial elétrico e eletrônico; 53 % supe- rior ao da indústria automobilística e de autopeças; e 78 % superior ao empregado em serv iços industria is de utilidade pública (energia elétri- CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO ca, distribuição de água e esgotos e equipamentos sanitários) . Mais. Para cada mi lhão de reais investido, a eco- nomi a da cultura - que movimen- tou, em 1997, cerca de 6,5 bilhões de reais - , chega a gerar, em média, 160 empregos diretos. E com um sa- lário médio que é o dobro da mé- dia do conjunto das atividades eco- nômicas, no que parece ser uma ten- dência constante do setor. Enfim, o panorama traçado por este estu- do, realizado sob encomenda do Ministério da Cultura, dá conta de um quadro dinâmico e promissor, que não refluiu de 1998 para cá. E que, também, precisa ser incrementado. UM NOVO MINC Por t udo o que foi dito, é funda-mental , urgente mesmo, que o Mine ocupe um lugar central no es- paço da produção cultural brasilei- ra , formulando políticas e implan- ta ndo projetos, no momento mes- mo em que o Estado retoma o seu lugar no movimento concreto da so- ciedade brasileira . Com as mudanças necessárias para a confi guraçãoplena de uma políti- ca cultural do Governo Lula, tendo por base um projeto brasileiro de ci- vilização, o Mine - um novo Mine, -, Página da Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manoel 1, dando conta do achamento da Terra de Vera Cruz, Porto Seguro, 1° de maio de 1500 será mais exato dizer - poderá cum- prir a sua parte no projeto de recons- trução da dignidade de nosso povo, através da inclusão sociocultural, e no processo de afirmação do Brasil na cena planetária, através da vei- culação internacional de nossas "vi- sões de mundo", expressando-se em bens e serviços culturais. Assim, a cultura assumirá , de fato, uma dimensão estratégica no caminho da nação que desejamos construir . 27 Manto da Apresentação (Arthur Bispo do Rosário, Museu Nise da Silveira, Rio de Janeiro) 28 MINISTÉRIO DA CUL lURA CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO DISCURSO DO MINISTRO GILBERTO GIL NA BIENAL DA UNE RECIFE, 14 FEVEREIRO 2003 á 35 anos, cheguei aqui ao Recife para fazer uma série de shows organizados pelo Teatro Popular do Nordeste. Os tempos são outros, mas questões im- portantes para aquela época, e para as pessoas com as quais tive então contato em Pernambuco, per- manecem atuais-e muitas delas são centrais para esta Terceira Bienal de Cultura da UNE, da qual te- nho a alegria de participar. Entre essas pessoas que me convidaram para os shows, havia muitos estudantes universitários, to- dos interessados em cultura popular. Eles me apre- sentaram músicas e mais músicas: cirandas e cocos, por exemplo. E me levaram para Caruaru, onde tive uma das experi- ências estéticas mais importantes da minha vida, ao ouvir a Banda de Pífanos daquela cidade. Chorei quando eles tocaram "Pipoca Mo- derna" . Aquilo tinha uma aparência de rústico, de primário, mas era, na verdade, altamente sofisticado. Era muito moderno, como o t ítulo da canção, orgulhosamente, anunciava. E aquela composição 29 radicalmente nordestina me fez en- tender de fato, e pela primeira vez, o "primitivismo" moderno e comple- xo que soava no ritmo seguro das guitarras do "rock and roll " . Ou seja: a cultura popular pernambucana me ensinou a amar os Beatles. Voltei de Pernambuco para o Rio de Janeiro disposto a mudar tudo na minha música - e na minha relação com a música. Essa disposição veio a se tornar, em seguida, um dos ele- mentos fundadores do tropicalismo, que, no início, foi um movimento terrivelmente mal compreendido por outros universitários que também pensavam estar defendendo a "ver- dadeira" cultura popular brasileira. O problema era que tínhamos vi- sões diferentes sobre como defender essa cultura, sobre o que seria "ver- dadeiro" nessa cultura e sobre essa própria cultura. Ao chamar os meni- nos e a menina Rita Lee dos "Mu- tantes " para tocar comigo "Domin- go no Parque", eu sabia estar sendo fiel àquilo que tinha aprendido com a Banda de Pífanos de Caruaru. Mas fui vaiado por uma platéia universi- tária muito parecida, fisicamente, com a que vejo aqui hoje. O que diferenciava as nossas vi- sões de cultura popular e identidade brasileira, o que separava os tropi- 30 MINISTÉRIO DA CULTURA calistas dos estudantes que nos vaia- vam por cantarmos acompanhados de guitarras elétricas, era uma ques- tão fundamental. Tínhamos manei- ras diferentes de pensar, conceituar, exercer e viver a cultura, o que se faz e o que é feito na dimensão simbóli- ca da existência nacional brasileira. Para quem nos vaiava, o que era po- pular e brasileiro já estava definido de antemão - e não podia ser muda- do, muito menos com guitarras elé- tricas, como se o piano e o violão não fossem invenções européias, assim como a língua portuguesa. Para os tropicalistas- e para o pen- samento que defendo até hoje -, a cultura não é uma coisa, uma estru- tura já definida e cristalizada, mas um processo, um continuum múltiplo e contraditório, paradoxal até, que exis- te ao ar livre. fora do "freezer", e não se contém em compartimentos imó- veis. Cultura é sinônimo de transfor- mação, de invenção, de fazer e refa- zer, no sentido da geração de uma teia de significações que nos envol- ve a todos - e que sempre será mai- or do que nós, em seu alcance e em sua capacidade de nos abrigar, sur- preender e iluminar. Foi por esta compreensão que nunca quisemos ser os donos da verdade. Porque a cultura brasileira é feita pelo povo CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO capa do d isco-manifesto da "Tropicália" , 1968 ' ' PARA OS TROPICALISTAS - E PARA O PENSAMENTO QUE DEFENDO ATÉ HOJE-, A CULTURA NÃO É UMA COISA, UMA ESTRUTURA JÁ DEFINIDA E CRISTALIZADA, MAS UM PROCESSO, UM CONTINUUM MÚLTIPLO E CONTRADITÓRIO, PARADOXAL ATÉ, QUE EXISTE AO AR LIVRE, FORA DO "FREEZER", E NÃO SE CONTÉM EM COMPARTIMENTOS IMÓVEIS.CULTURA É SINÔNIMO DE TRANSFORMAÇÃO, DE INVENÇÃO, DE FAZER E REFAZER, NO SENTIDO DA GERAÇÃO DE UMA TEIA DE SIGNIFICAÇÕES QUE NOS ENVOLVE A TODOS ' ' brasileiro - e não por um punhado de pessoas que se julgam esclarecidas e detentoras do sentido e do destino histórico do país. Sendo assim, o trabalho do artis- ta, assim como o do Ministério da Cultura, jamais estará na vã tentati- va de completar o incompleto ou de solucionar paradoxos, domesticando- os em fórmulas fáceis - e, por isso mesmo, falsas. Não estamos em cena para determinar o que seria verda- deiramente brasileiro, porque o Bra- sil de verdade vai nos surpreender sempre. Nosso trabalho é tornar cada vez mais evidente a incompletude, o risco, a riqueza, o paradoxo. É apos- tar na criatividade vital de nosso povo. Mesmo porque a nossa cultu- ra tem se configurado à revelia das elites, das instituições socialmente dominantes e do Estado. Foi assim que nasceram o samba, o frevo e a escola brasileira de futebol. Fiquei contente, ao ler no "site" estudantenet, da UNE, o texto escri- to por Ernesto Valença, coordenador do Cuca da USP, sobre o debate que possibilitou que a cultura popular se tornasse o tema desta Bienal. Ernesto toca em pontos sobre os quais gosta- ria de chamar a atenção de todos. E vou comentá-los aqui . Primeiro, a diversidade da cultu- 31 ra brasileira . Diferentes brasile iros produzem de maneiras diferentes suas visões de mundo e seus estilos de vida, incluindo aí sua definição circunstancial do ser brasileiro e do que é e não é " brasileiro ". Essas de- fi nições, na verdade, competem umas com as outras, buscando im- por seu ponto de vista e conquistar a hegemonia no espaço mental da na- ção. Mas nem todas elas têm o mes- mo poder. Algumas aparecem e de- saparecem rapidamente. Outras são sustentadas por interesses econômi- cos e políticos tão bem organizados que ganham durabilidade e condi- ções de abafar as outras, embora a "unidade" assim criada tenha pernas curtas, nunca seja eterna. É uma "uni- dade" falsa, precária, efêmera. Por- que o país e sua cultura não só se configuram a partir de focos diver- sos, como se acham em permanente mudança. O Brasil pode não ser si- nônimo de feijoada, mas de tucupi . Pode não ser sinônimo de orla marí- tima, mas de pororoca. Pode não ser sinônimo de orixá, mas do Bom Je- sus da Lapa. E é com essa diversida- de interna que temos de nos haver. Engana-se, ao mesmo tempo, quem acha que essas várias culturas brasileiras existem como mundos iso- lados, sem alianças e sem trocas en- 32 MINISTÉRIO DA CUL lURA tre si. As fronteiras entre esses mun. dos são porosas, mudam de posição freqüentemente - e, para cada mon. tanha que isola, há um rio que apro- xima, conduzindo pessoas e signos. As culturas populares das vá ri as regiões e micro-regiões do Brasil têm histórias de contato com as culturas eruditas e a indústria cultural. Não é um fenômeno recente. A polca, por exemplo, foi uma espécie de rock ou funk do século 19. Sem a polca,não haveria salsa, merengue, tango - ou o maxixe, elemento fundador na his- tória moderna do nosso samba. E há coisas ainda mais distantes no tem- po, anteriores à existência de esta- dos nacionais. que hoje são aciona- das para definir nações. O que signi- fica que acreditar na autenticidade é apenas uma maneira de fingir que toda cultura não tem origem na im- pureza, na troca, na mistura. Voltando à história da polca em terras americanas, podemos perceber um outro ponto, para o qual Ernesto Valença também chama a nossa aten- ção, ao dizer que "as local idades e as comunidades continuam a inven- tar suas formas de identificar seus iguais, de manterem-se diferentes apesar da tentativa de padroniza- ção". Nada é mais fácil de constatar. É claro que poderosas forç as CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO homogeneizadoras estão em ação em todo o planeta. Mas cada cultura utiliza à sua maneira os elementos em jogo, gerando fenômenos híbri- dos. como a salsa, a cúmbia e o tan- go. rei nvenções da polca. E esses gê- neros, por sua vez, saíram pelo mun- do produzindo mais hibridismos e sincretismos culturais: a rumba, na sua via gem de Cuba para a África, muitas vezes através das ondas cur- tas norte-americanas, gerou vários es- t i 1 os do "pop" africano, como a rumba zairense ou o m'balax senega- lês. E a rumba zairense influenciou o semba angolano e a chimurenga do Zimbábue. E assim por diante, numa viagem cultural que não tem fim. Estou usando exemplos musicais por uma questão de comodidade. Mas é certo que isso acontece em todos os campos do pensar, do fazer e do cri ar. O abstracionismo plástico europeu, por exemplo, acabou ge- ra ndo, entre nós, o neoconcretismo - e, em seguida, os parangolés e penetráveis de Hélio Oiticica, que, por sua vez, passaram a influenciar a arte conceituai internacional. Antes disso, todavia, temos a capacidade de nos antecipar planetariamente, como nos casos da arquitetura de Niemeyer e da poesia concreta, quan- do, pela primeira vez, uma vanguar- Carmem Miranda e seus balangandãs (Arquivo da revista O Cruzeiro) ' ' ASCULTURAS POPULARES DAS VÁRIAS REGIÕES E MICRO-REGIÕES DO BRASIL rtM HISTÓRIAS DE CONTATO COM AS CULTURAS ERUDITAS E A INDÚSTRIA CULTURAL. NÃO É UM FENÔMENO RECENTE. A POLCA, POR EXEMPLO, FOI UMA ESPÉCIE DE ROCK OU FUNK DO SÉCULO 19. SEM A POLCA, NÃO HAVERIA SALSA, MERENGUE, TANGO - OU O MAXIXE, ELEMENTO FUNDADOR NA HISTÓRIA MODERNA DO NOSSO SAMBA. ' ' 33 da estética e intelectual se afirmou pioneiramente num país da América do Sul - e para fazer sentir o seu in- fluxo na poesia do mundo inteiro. Então, me parece óbvio que o mundo não está se tornando mais homogêneo. Marx errou nesta pre- visão, quando sugeriu, no "Manifes- to do Partido Comunista", que, à internacionalização dos mercados, corresponderia uma internacionali- zação homogeneizada das culturas locais. As culturas populares mudam, sim, mas não convergem diretamen- te para um padrão imposto pelos pa- íses mais poderosos ou pela indús- tria cultural norte-americana . A di- versidade se mantém. Novas diferen- ças aparecem o tempo todo - em todos os continentes. E a indústria cultural não consegue sequer deter- minar os usos de seus produtos. Nas brechas e nas frestas, outras visões surpreendem. E essas brechas não são apenas produtos do encon- tro das várias culturas populares com a indústria cultural. A própria dinâ- mica interna dessas culturas gera ino- vações. As pessoas que participam das vá- rias brincadeiras brasileiras estão sem- pre propondo elementos novos, ou novos arranjos para elementos que já existem. E uma brincadeira nunca 34 MINISTIRIO DA CULTURA existe isoladamente. Está sempre li- gada em rede com outras brincadei. ras, trocando coreografias, ritmos, fantasias. Querer encontrar uma fór. mula que represente a verdadeira brincadeira, que nunca pode ser mudada, é decretar a sua morte como fenômeno cultural. Para fortalecer a brincadeira é preciso, ao contrário, in- centivar a circulação das brincadeiras. Tem medo da invenção quem não confia na força das brincadeiras bra- sileiras. Quem acha que só no con- gelador elas estarão preservadas. Como não tenho medo de ser brasi- leiro, pois tudo o que eu fizer será sempre brasileiro, confio totalmen- te na capacidade das culturas popu- lares brasileiras lidarem com o novo, com o desconhecido, com as infor- mações internacionais - e saírem for- talecidas desses contatos. Em resumo, novas e velhas tradi- ções, signos locais e globais, lingua- gens de todos os cantos são bem- vindas ao curto-circuito antropoló- gico. Não nos perderemos por isso. Como escrevi certa vez numa can- ção, o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe. Muitas vezes esteve nisso que não se sabe - e não no que está estabe- lecido e cristalizado - o mel do me- lhor do futuro. CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO Bandeira do Poeta - Homenagem a Waly Salomão e a Haroldo de Campos (Jose Roberto Aguilar. São Paulo. 2003) 35 36 MINISTÉRIO DA CULTURA Baiana, autor anônimo, segunda metade do século XIX Museu Paulista, USP CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO DISCURSO DO MINISTRO GILBERTO GIL DANDO POSSE À NOVA DIRETORIA DA FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES BRASÍLIA, 11 DE FEVEREIRO DE 2003 óaquim Nabuco chegou a dizer, certa vez, que a es- cravidão era o sinal de Caim que a nação brasileira trazia na testa: o sinal da maldição fratricida. A frase é dura, pesada, mas é evidente que nem de longe tão dura, tão pesada e tão cruel quanto a realidade mes- ma da escravidão, que marcou a nossa história du- rante séculos-e cujas heranças ainda hoje carrega- mos em nossa vida social, em nossa vida cotidiana. A abolição da escravidão foi talvez a maior revo- lução social que marcou a história do Brasil. E aqui não podemos nos esquecer de duas coisas. De uma parte, que o escravo sempre foi o inimigo número 1 da escravidão, resistindo de todas as formas às tentativas de reduzi- lo ao estatuto de mera máquina produtiva. E isto significa que, ao contrário do que disseram e repetiram diversos estudiosos dos pro- blemas brasileiros, os negros foram sujeitos ativos de sua própria história. De outra parte, que a luta pela abolição se deu através de 37 uma ampla aliança e de focos diver- sos, das senzalas a segmentos signi- ficativos do Exército, de negros fugi- dos a grupos abolicionistas, de quilombos ao parlamento. O histo- riador Luiz Felipe de Alencastro está certo quando diz que aquela foi uma vitória grandiosa, espetacular, espe- cialmente se comparada com os pas- sos tímidos que temos dado, até aqui, no caminho da reforma agrária . Mas a verdade é que, por mais grandiosa que tenha sido, aquela não foi uma vitória inteira, completa. O mesmo Nabuco, aliás, sempre insis- tiu nessa tecla fundamental. Sempre enfatizou que abolir a escravidão era apenas a primeira tarefa, a meta ime- diata, de curto prazo, do movimen- to abolicionista. "Abolir a escravidão não basta", dizia ele. Porque o obje- tivo maior do movimento abolicionis- ta era, depois de liqüidado o sistema escravista, abolir da vida brasileira a herança perversa da escravidão. Abo- lir esta herança através de uma vigo- rosa ação política e social, que deve- ria incluir os tópicos fundamentais da educação e da reforma agrária. E isto quer dizer que, mesmo hoje, mais de cem anos depois da aboli- ção da escravidão em nosso País, a meta maior do abolicionismo, a meta de longo alcance, ainda não foi rea- 38 MINISTÉRIO DA CUL lURA lizada. E que o ciclo de lutas e con- quistas do abolicionismo ainda não se completou . Completar a obra abolicionista é, portanto, um compromisso que te- mos a obrigação de assumir. Mas, para isso, não podemos desconhecer a realidade em que nos movemos. Não podemosceder à tentação das fantasias fáceis e dos maniqueísmos simplificadores. Não podemos nos contentar com a mera transposição mecânica, para a realidade sócio-ra- cial brasileira, de discursos político- acadêmicos em vigor nos Estados Unidos, cuja história, formação e si- tuação são radicalmente distintas da nossa experiência como povo e nação. Pelo contrário: temos de re- cusar imposições que pretendam universalizar os seus modelos e os seus particularismos. E temos de par- tir de nós mesmos, de nossas pró- prias experiências e formulações, de nossa própria especificidade. Penso esta questão, objetivamen- te, a partir de minha realidade pes- soal. Da minha condição de negro- mestiço. Não pretendo driblar esta condição biológica e cultural por meio de truques ideológicos ou arti- fícios jurídicos. E sei que ninguém vai entender o Brasil se não encarar, em toda a sua complexidade, os fenô- CADERNOS DO DO-IN ANlROPOLÓGICO menos fundamentais da mestiçagem e do sincretismo. o problema é que a mestiçagem recebeu entre nós, nas primeiras dé- cadas do século 20, uma leitura algo fantasiosa . Construiu-se, a partir de dados reais, um mito de natureza se- nhorial, que se projetou afirmando a inexistência de preconceitos e dis- criminações em nosso País. E nós sa- bemos que isso não é verdade. Que os negromestiços sofreram e sofrem discriminações - e que se encontram nas faixas mais baixas de nossa hie- rarquia social e econômica. A recen- te reação ao mito senhorial, contu- do, cometeu um equívoco elemen- tar. Em vez de colocar a questão em seus devidos termos, resolveu, sim- plesmente, abolir o problema, ten- tando enquadrar o Brasil na moldu- ra norte-americana da "regra de des- cendência", do padrão racial dicotô- mico. Mas a verdade é que nenhu- ma borracha ideológica pode apagar dados e fatos históricos e culturais. Nenhuma classificação arbitrária, importada dos EUA, vai conseguir transformar o presidente Lula num branco ou num negro. Ele será, sem- pre, um mestiço brasileiro. Quando enfatizo o caráter essen- cial mente mestiço e sincrético do meu povo e da minha cultura, não quero dizer que isso não tenha ocor- rido em outros lugares do mundo. É claro que ocorreu - e ocorrerá sem- pre. Mas temos de atentar para três aspectos fundamentais de nossa con- figuração histórica e cultural. Primei- ro, para o alto grau de mestiçagem que marcou o Brasil. Isto foi - e con- tinua sendo - um fato historicamen- te digno de nota. Segundo, para o fato de que aqui culturas muito di- versas entre si realmente se mescla- ram em profundidade. A nossa cul- tura, com todas as suas diversidades internas, é totalmente sincrética . Des- de o seu início, já que os coloniza- dores portugueses não conseguiram impor uma rígida linha divisória en- tre a cultura dominante e as culturas dos dominados. Terceiro, para o fato de que, além de sermos mestiços, sa- bemos nos ver e nos reconhecer como tais. Ao contrário do que se passa nos Estados Unidos, onde a pessoa ou é negra ou é branca, olhamos para as nossas peles e reconhecemos muitos matizes de cor. Os brasileiros, dife- rentemente dos norte-americanos, querem assumir todos os seus ante- passados. Neste passo é que temos de con- testar o velho mito senhorial, em vez de fazer de conta que a mestiçagem não existiu e continua existindo. Te- 39 mos de enfatizar, de sublinhar com cores vivas, que mestiçagem não é sinônimo de igualdade nem de har- monia. Vivemos num país mestiço que, em termos de desigualdades so- ciais, aparece aos olhos de todos como um escândalo. Ao mesmo tem- po, a mestiçagem não exclui a diver- sidade, o conflito, a contradição e mesmo o antagonismo. E é nesse ho- rizonte que devemos encarar e dis- cutir a questão sócio-racial brasilei- ra. Encarar as desigualdades que con- finam a maioria dos negromestiços brasileiros ao mundo da pobreza, não só por seu reduzido poder de compra, como pela sua imensa difi- culdade de acesso aos bens e servi- ços oferecidos pelo Estado. Caso con- trário, estaremos falando de um país inexistente. Além disso, não podemos fechar os olhos para os avanços e as con- quistas das lutas e dos movimentos anti-racistas e libertários que se de- ram no Brasil da década de 1970 para cá. Demos passos significativos nesse campo, levando um número histori- camente inédito de brasileiros a to- mar consciência de aspectos cruciais da realidade sócio-racial brasileira. E o nosso discurso, hoje, tem de se ar- ticular a partir dos avanços que se deram. Não podemos ficar para trás, 40 MINISTÉRIO DA CULTURA repetindo falas e posturas ultrapas- sadas. Pelo contrário: temos de estar preparados para intervir, com ousa- dia e criatividade, no movimento real da vida brasileira . E com relação às perspectivas de novos avanços, que deveremos impulsionar, no governo do presidente Lula . É nesse contexto geral que vejo a Fundação Cultural Palmares e a sua missão. Frisando definitivamente, em sua denominação, o vocábulo cultu- ral. Porque é de cultura que se trata. Mas não de uma cultura qualquer - e sim de uma das matrizes fundamen- tais da formação cultural brasileira. Das culturas negras, africanas, que fe- cu nda r a m e desenharam a nossa fisionomia e a nossa alma. Disse já que a mestiçagem não resolve, por si só, a questão da desigualdade, da discriminação racial. E é por isso mes- mo que, conjunturalmente, deve- mos insistir na multiplicidade, na di- versidade de nossas definições e iden- tidades, com destaque até mesmo ra- dical, no caso, para o avivamento da identidade negra. E esta é uma tare- fa da Palmares: reafirmar os valores das culturas negras na formação de nossa gente. Porque a Fundação Cultural Palmares não existe para resolver di- ferenças econômicas nem para equa- CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO Deta lhe do quadro "Caféu Cândido Portinari Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro cionar assimetrias sociais. Para isso, existem outros ministérios e secreta- rias. A própria criação de uma Secre- tari a de Promoção da Igualdade Ra- cial, pelo presidente Lula, delimita com toda a nitidez o raio de ação da Palmares. O seu campo essencialmen- te cultural de atuação. E será aqui, nesse campo específico, que a Palma- res deverá honrar o nome com que foi batizada, convertendo-se num terreiro ou num quilombo estético, intelectual e cultural. ' 'NENHUMA BORRACHA IDEOLÕGICA PODE APAGAR DADOS E FATOS HISTÓRICOS E CULTURAIS. NENHUMA CLASSIFICAÇÃO ARBITRÁRIA, IMPORTADA DOS EUA, VAI CONSEGUIR TRANSFORMAR O PRESIDENTE LULA NUM BRANCO OU NUM NEGRO. ELE SERÁ, SEMPRE, UM MESTIÇO BRASILEIRO. ' ' 41 MINISTÉRIO DA CULTURA O presidente Lula e Dona Mariza deixam o Congresso Nacional, após ser empossado (Foto Ricardo Stuckert!Pres1dência da República) 42 CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO PRONUNCIAMENTO DO MINISTRO GILBERTO GIL NA COMISSÃO DE EDUCAÇÃO, CULTURA E DESPORTO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE A POLÍTICA CULTURAL DO GOVERNO LULA BRASÍLIA, 14 DE MAIO DE 2003 xcelentíssimo senhor presidente, senhoras e se- nhores deputados, senhoras e senhores presentes_ O meu propósito é estabelecer entre nós, entre o Ministério da Cultura e esta Casa, entre o minis- tro e os deputados, o melhor entendimento possí- vel, a comunicação mais clara, de modo que não haja qualquer equívoco acerca de conceitos, noções ou palavras. E digo isto por uma razão muito sim- ples. Quando falamos de saúde, alfabetização, su- perávit primário, preservação ambiental ou obras de infra-estrutura, por exemplo, todos sabem a que estamos nos referindo, todos têm uma noção mui- t o precisa da matéria a ser tratada. Mas, quando empregamos a palavra cultura, não é bem isto o que acontece. Aqui, a nitidez pare- 43 ce condenada a se perder, a seesfu- maçar, e a imprecisão toma conta da cena . Seja numa conversa informal, seja numa conferência, num ensaio ou num discurso, a palavra cultura sempre se presta a interpretações múl- ti pias. É como se cada um de nós tives- se o seu próprio conceito de cultura - e dele dificilmente se desprendesse. Mesmo no âmbito mais propria- mente intelectual, topamos com na- da menos do que quatrocentos mo- dos de definir o que é cultura. E é evi- dente que esta proliferação concei- tuai , atendendo a todos os gostos, correntes e opiniões, faz com que ca- da um de nós, ao ouvir a palavra "cul- tura", costume traduzi-la à sua pró- pria maneira e em seu próprio dicio- nário. Por isso mesmo, vou começar delimitando claramente o que nós, do Ministério da Cultura, queremos dizer quando usamos esta expressão. Tradicionalmente, a maioria das pessoas, diante da palavra cultura, pensa automaticamente no conjunto das formas canonizadas pela cultura ocidental-européia . Pensa em litera- tura, em teatro, em pintura, em con- certos musicais, em estilos de dança como o balé ou, mais modernamente, em cinema, depois que esta forma de criação foi consagrada, pelos in- telectuais, no terreno da arte. Dito 44 MINISITRIO DA CULTURA de outro modo, as pessoas pensam automaticamente, no círculo restrit~ das formas que habitam o campo da assim chamada "cultura superi or" Agem, então, como se cultura fosse isso. O que não cabe nesse un iverso não merece ser definido pelo uso PU· ro e simples do vocábulo cultura. Tem de ser referido com a colocação de um anexo verbal para restringir o con. ceito - como no caso de expressões como "cultura de massas" e "cultura popular" - ou mesmo pela adoção de uma outra palavra, como "folclore". Existiria, então, acima de tudo, "a cultura ". E só em seguida manifesta- ções laterais, secundárias, pitorescas ou inferiores, que deveriam ser vis- tas como departamentos, setores ou guetos da "cultura propriamente dita ". Fica patente, nesta espécie de entendimento do fenômeno, a exis- tência do preconceito cultural. Para nós, do Ministério da Cultura do Go- verno Lula, de um governo essenci- almente transformador e democrá- tico, de um governo que pretende - e va i - mudar o país, esta não é, de modo algum, uma visão saudável, lúcida ou justa da realidade cultural. E é por esta razão que não trabalha- mos com um conce ito acadêmico, restritivo e elitista de cultura . Ado- tar um conceito restritivo de cultura CADERNOS DO DO-IN ANTI!OPOLÓGICO seria também, por implicação lógi- a fazer com que o Ministério fosse e , um órgão voltado para uma cliente- la preferencial, para o atendimento excl usivo da assim chamada "classe artístico-i ntelectual", com todos os seus rituais de criação e consagração. E não é para isto que estamos aqui . Não foi para isto que nos engajamos num governo cujo objetivo maior é a recuperação da dignidade nacional brasileira, o que, entre outras coisas, significa uma concentração incansá- vel no problema da inclusão social. o que nós queremos é justamente isto: incl uir. Incluir na cultura, fran- queando a todos o acesso à produ- ção e ao consumo dos bens e servi- ços simbólicos. E incluir pela cultu- ra , como setor dinâmico da econo- mia, como atividade econômica ge- radora de emprego e renda . Daí que a nossa visão de cultura seja a mais ampla e real ista possível, levan do em conta , radicalmente, tanto a unidade quanto a multiplici- dade cultural brasileira, em suas di- versas regiões geográficas e camadas sociais. Como disse no meu discurso de posse, quando falamos de cultu- ra , estamos empregando a palavra em sua acepção plena. Em seu senti- do antropológico. Cultura como a dimensão simbólica da existência so- cial brasileira . Cultura como o con- junto dinâmico de todos os atos cri- ativos de nosso povo. Como tudo aquilo que, no uso de qualquer coi- sa, se manifesta para além do mero valor de uso. Como aquilo que, em cada objeto que um brasileiro pro- duz, transcende o aspecto meramen- te técnico. Cultura como usina de símbolos de cada comunidade e de toda a nação. Como eixo construtor de nossa identidade. Como espaço de realização da cidadania . Cultura como síntese do Brasil. E isto num espectro amplo. Num espectro que, para dizer sinteticamen- te, vai da tradição à invenção, do cul- tivo da memória à aposta no novo. Porque temos de preservar o que de melhor criamos e construímos ao lon- go de nossa vida histórica, sob pena de girarmos a vácuo, de nos perder- mos num presente instantâneo e desfigurador e de, assim, não reco- nhecermos mais o nosso rosto. Na verdade, tentaram nos fazer acredi- tar, nesses últimos dez anos, que os Estados e as culturas nacionais eram seres em vias de extinção. Que a globalização dissolveria os Estados e converteria cada alma nacional num mito inútil. Mas não é isto o que estamos vendo. As questões e os in- teresses nacionais se encontram hoje 45 no centro mesmo das disputas nos mercados globalizados. E a cultura de cada povo passa a ser vista, mais e mais, como fator estratégico de afir- mação interna e externa de cada na- ção. É desta perspectiva que encara- mos a nossa memória - e que apos- tamos no novo. Porque o novo é tam- bém fundamental para a nossa afir- mação. E porque este jogo ou esta dialética permanente entre a tradi- ção e a invenção tem sido um traço central da cultura brasileira, somado à nossa abertura crítica para a assi- milação e a recriação de linguagens e informações produzidas nos mais variados cantos do planeta . Exemplos disso não nos faltam. Para citar ape- nas alguns mais recentes, lembro aqui a Bossa Nova; o prodígio da construção de Brasília, em terras da antiga Capitania de Porto Seguro; e até mesmo uma vanguarda radical como a da poesia concreta. João Gil- berto parte do samba de roda da Bahia, Niemeyer e Lúcio Costa não perdem Ouro Preto de vista, a poe- sia concreta mistura o barroco, o ideograma chinês e as aventuras das vanguardas internacionais. O modo como as nossas cidades foram desenhadas e construídas, o ar- tesanato nordestino como base de um novo desenho industrial brasilei- 46 MINISTÉRIO DA CULTURA ro, o conhecimento íntimo que os caboclos detém acerca das riquezas amazônicas, a ousadia de Santos Dumont com o seu 14-Bis, a explosão do rap em meio aos jovens das fave- las e dos subúrbios brasileiros, as nos- sas diversas técnicas culinárias, a cri- ação do parque nacional do Xingu, os nossos modos de participar da teia nervosa da Internet, os desdobra- mentos do forró e da música caipira, os padrões abstratos da tecelagem ru- ral, os terreiros de candomblé, as con- dições que geraram o sindicalismo do ABC, o horizonte dos novos estilos ves- tuais, a luta pela reforma agrária, os fragmentos culturais dos meninos de rua, os sobrados e os conventos bar- rocos, as formas e práticas trazidas pelas migrações euroasiáticas do sé- culo passado, as fortalezas coloniais, os novos passos de dança, os espaços de tolerância e de convívio, a nossa disposição para criar e recriar - tudo isso nos interessa, tudo isso nos diz respeito, tudo isso exige de nós o nosso olhar sensível. Um olhar que saiba dar conta da nossa riqueza aní- mica. Que saiba reconhecer, em cada pequeno ou grande gesto que faze- mos, uma expressão de nossos jeitos de estar, de sentir, de pensar e de fa- zer. Porque, recusando a herança alie- nada de nossas elites, que parecem CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO ter vergonha do que fomos, do que somos e do que fazemos, acredita- mos na roda de samba, no futebol de várzea, na mestiçagem, no sincretis- mo, na visão de homens como Má- rio Pedrosa e Mário Schenberg, e na grandeza do povo brasileiro, por ter sido capaz, ao longo dos seus 500 anos de existência,sob o fogo da ad- versi dade e o afago de uma moldu- ra natural paradisíaca, construir uma civilização exuberante, vigorosa e cri- ativa, que a cada dia conquista e fas- cina outros povos que se debatem nos seus impasses em busca de solu- ções para conflitos político-sociais. Por tudo isso, podemos dizer, em suma, que vemos o Brasil como um fato de cultura . E que é por isso mes- mo que, para nós, as questões da na- ção, da identidade e da cultura se acham entrelaçadas. Nesse caso, aliás, o Brasi l se apresenta quase que como um paradoxo: a nossa multiplicidade cultural é um fato - a nossa unida- de, t ambém. Construímos um país sincrético, múltiplo e diverso, mas ao abrigo da língua portuguesa. Parti- lhamos, fundamentalmente, os mes- mos valores e códigos de cultura . Cr iamos uma unidade dentro das nossas fronteiras, que é o que faz com que um peão gaúcho, um crioulo car ioca ou baiano, um caipira paulista, um lavrador mineiro, um dançarino de frevo de Pernambuco, uma rendeira do Ceará, um tocador de viola de Goiás, uma adolescente praiana de Santa Catarina ou do Es- pírito Santo, um empresário parana- ense e um caboclo da região amazô- nica - apesar de todos os traços cul- turais distintos e distintivos que car- regam - se sintam, e de fato sejam, igualmente brasileiros. Não temos nada de equivalente a um "país basco" dentro do território nacional. Nossas fronteiras políticas se conver- teram, historicamente, em fronteiras culturais, antropológicas. Mas a verdade é que ainda não somos uma nação por inteiro. Ainda não completamos a tarefa da cons- trução nacional, no sentido maior que a expressão implica. O motivo, todos sabem. A cidadania não che- gou para todos. As leis não vigoram para todos. O Brasil ainda não é o Brasil de todos, como dizia o presi - dente Lula na campanha eleitoral, frisando a necessidade de construir- mos um país mais solidário e mais fraterno. Porque a verdade é que um país que conta, em sua população, com cerca de 40 a 50% de "excluí- dos" , pode ser um país, mas ainda não é uma nação, em toda a sua in- teireza civilizacional. A nação ainda 47 está por completar a sua obra, elimi- nando as desigualdades, as discrimi- nações, o preconceito e a fome. E nós sabemos que a cultura tem um pa- pel fundamental nessa tarefa conclu- siva, a fim de dar completude ao pro- cesso de construção nacional. Um papel que é, para usar uma imagem arcaica, o da argamassa que agregou os mais díspares materiais para a construção das sólidas bases do nos- so patrimônio histórico e cultural. E, para usar uma imagem contemporâ- nea, o papel do software num siste- ma complexo de valores. Fica claro, então, porque falamos de cultura como espaço de realiza- ção da cidadania. Mais ainda: como espaço de superação da exclusão so- cial , seja pelo reforço da auto-esti- ma e do sentimento de pertenci- mento, seja, também, por conta das potencialidades inscritas no univer- so das manifestações artístico-cultu- rais, com suas várias possibilidades de inclusão sócio-econômica . Porque a cultura tem de ser vista, também, em sua dimensão econômica. Em sua capacidade de atrair divisas para o país - e de, aqui dentro, gerar em- prego e renda . Um bem simbólico é, ao mesmo tempo, um produto cultural, políti- co e econômico. O Brasil, hoje, mes- 48 MINISTÉRIO DA CULTURA mo que de forma ainda tímida, é um país exportador de bens cultura is. Nossos filmes, nossas canções e nos- sas telenovelas circulam hoje por todo o planeta . E isto significa captação de divisas. No plano interno, um es- tudo realizado pela Fundação João Pinheiro mostrou que, em meados da década de 1990, já havia mais de SOO mil pessoas empregadas na produção cultural brasileira . Um contingent e 90% maior do que o empregado na fabricação de equipamentos e mat e- rial elétrico e eletrônico; 53% supe- rior ao da indústria automobilística e de autopeças; 78% superior ao em- pregado em serviços industriais de utilidade pública, como energia el é- trica, distribuição de água e esgotos e equipamentos sanitários. E ma is: para cada milhão de reais investido, a economia da cultura chega a ge- rar, em média, 160 empregos dire- tos, com um salário médio que é o dobro da média do conjunto das ati- vidades econômicas. Enfim, o pano- rama traçado por este estudo dá con- ta de um quadro dinâmico e promis- sor, que não refluiu de 1998 para cá. E que, também, precisa ser incre- mentado. Diante destes dados é impossível deixar de fazer uma constataçã o preocupante. Ao longo destes últi- CADERNOS DO DO-IN ANTROPOLÓGICO mos dez anos, o Estado restringiu a sua ação no campo da cultura quase que exclusivamente à utilização dos mecanismos de incentivos fiscais. lna- ceitavelmente, abdicou do papel de promover políticas de fomento e fi- nanciamento dos produtores cultu- rais e mesmo de políticas industriais, por exemplo, nos campos da música e do cinema, capazes de ampliar a esca la desta economia da cultura. No caso específico da produção musical brasi leira é preciso que se diga que o cresc imento da indústria fonográfica em nosso país, situada hoje entre as dez maiores do mundo, se deu inde- pendentemente de qualquer políti- ca pública voltada para o setor. Assim compreendida, a cultura se impõe, desde logo, no âmbito dos deveres estatais. É um espaço onde o Estado deve intervir. Não segundo a velha cartilha estatizante, mas mais distante ainda do modelo neoliberal que faliu . Vemos o Governo como um estimulador da produção cultu- ral. Mas também, através do MinC, como formulador e executor de po- líticas públicas e de projetos para a cultura. Ou seja : pensamos o Minis- téri o da Cultura no contexto em que o Estado começa a retomar o seu lu- gar e o seu papel na sociedade brasi- leira. Daí que três desafios se impo- Garrincha e Pelé, génios do futebol brasileiro Do livro: Para Nunca Esquecer, Negras Memórias, Memórias de Negro. Emanuel Araújo ' ' ACREDITAMOSNA RODA DE SAMBA, NO FlITTBOL DE VÁRZEA, NA MESTIÇAGEM, NO SINCRE'TISMO, NA VISÃO DE HOMENS COMO MÁRIO PEDROSA E MÁRIO SCHENBERG, E NA GRANDEZA DO POVO BRASILEIRO, POR TER SIDO CAPA?., AO LONGO DOS SEUS 500 ANOS DE EXISrtNCIA, SOB O FOGO DA ADVERSIDADE E O AFAGO DE UMA MOLDURA NATURAL PARADISIACA, CONSTRUIR UMA CIVILIZAÇÃO EXUBERANTE, VIGOROSA E CRIA llV A. ' ' 49 nham agora ao Ministério. Primeiro, retomar nosso papel constitucional de órgão formulador e executor de uma política cultural para o país, o que vai exigir a deflagração de um amplo processo participativo capaz de subsidiar a construção dessa polí- tica . Segundo, fazer a nossa reforma admin istrativa e a nossa correspon- dente capacitação institucional para operar tal política . Terceiro, obter os recursos financeiros indispensáveis à implementação desta política, inclu- sive avançando propostas nas áreas de fomento e crédito às atividades de produção de bens e serviços culturais, instrumentos necessários a um ver- dadeiro desenvolvimento cultural. Esses três desafios resultam da he- rança que recebemos. Desde o Go- verno Collor, o Ministério da Cultura definhou. Sua estrutura apequenou- se. O Mine perdeu sua capacidade política, técnica e gerencial. Desman- telado, foi incapaz, por exemplo, de operar integralmente os instrumen- tos previstos no Programa Nacional de Apoio à Cultura, a conhecida Lei Rouanet. Mas o mais grave foi que o Ministério abandonou por comple- to aquela que deveria ser a sua fun- ção maior. Em vez de ter uma políti- ca cultural para o país, simplesmen- te entregou essa tarefa ao mercado, 50 MINISTÉRIO DA CULTURA aos departamentos de comunicação e marketing das empresas, pela via dos incentivos fi scais. E assim chega- mos a uma situação absurda: a polí- tica cultural
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