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1 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 Dor INTRODUÇÃO É a queixa mais comum. Na maioria das vezes, é o “sintoma-guia” da história clinica É um sinal de alarme e um mecanismo essencial de defesa. Exemplo: 1. Surge antes que ocorra uma lesão grave (calor excessivo, pressão de objeto cortante); 2. Serve como base para se aprender a evitar objetos ou situações que possam causar lesões posteriormente; 3. Impõe limites nas atividades ou provoca a inatividade e o repouso, essenciais para a recuperação do organismo (lesões de articulações, infecções abdominais). Uma pessoa que teve amputação traumática pode vir a sofrer dor da “síndrome do membro fantasma” que a acompanha pelo resto da vida. A falta de sensibilidade dolorosa ou ausência de dor é um fator limitante de sobrevida. Pessoas que nascem sem a capacidade de sentir dor, acabam se expondo a lesões graves pois aprendem com dificuldade a evitar lesões. Essas pessoas morrem precocemente em funções de múltiplas lesões, principalmente osteoarticulares, complicadas por infecção A dor carrega um significado social, relacionado com valores culturais que refletem na maneira como a pessoa percebe e responde a ela. (ex: rituais religiosos indígenas) Por isso, a dor deve ser compreendida sob aspectos biológicos, clínicos, sociais e culturais DEFINIÇÃO DE DOR A dor é definida pela IASP como experiência sensorial e emocional desagradável associada a uma lesão tecidual já existente, real ou potencial, ou relatada como se uma lesão existisse. ANATOMIA E FISIOLOGIA DA DOR A percepção da dor compreende 3 mecanismos: TRANSDUÇÃO É o mecanismo inicial da sensação dolorosa, consiste na conversão do estimulo doloroso em um potencial de ação que dá início À sensação de dor. A estimulação receptores sensitivos ou nociceptores acontece por meio de estímulos físicos (mecânicos ou térmicos) ou químicos (como a bradicinina e a serotonina). Esses nociceptores são representados por fibras sensoriais periféricas existentes em sua maioria na forma de terminações nervosas livres e por isso são possuem uma adaptação muito lenta, com o objetivo de alertar que algo não está 2 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 certo. Outro aspecto importante a ser lembrado é que os nociceptores não são específicos, eles causam diferentes percepções além da dor, como tato, pressão, calor, frio, vibração, estiramento etc. TIPOS DE FIBRAS QUE COMPÕEM OS NOCICEPTORES: (Quanto mais finas as fibras, mais lenta a transmissão do estimulo) FIBRAS AΔ: possuem um pequeno diâmetro, são finamente mielinizadas e conduzem impulsos elétricos em alta velocidade (entre 2 e 30 m/s). Compõem tanto os nociceptores térmicos quanto os mecânicos Representam cerca de 20% das fibras nociceptivas São responsáveis pela dor aguda. FIBRAS C: pequeno diâmetro, amielinizadas, conduzem os impulsos já em menor velocidade (entre 0,5 a 2 m/s) Representam cerca de 80% das fibras nociceptivas São responsáveis pela dor de longa duração (lenta) e difusa e pelo prurido São ativados por pressão(mecânico), estímulos térmicos ou químicos. FIBRAS AΒ: grande diâmetro, mielinizadas, extremamente rápidas Compõem o sistema tátil e não participam do sistema de nocicepção, mas podem modificar a percepção da dor, atenuando-a. No caso de uma degeneração neuronal, este tipo de fibras pode sofrer modificação, passando a funcionar como fibras nociceptivas. Esta plasticidade é o mecanismo responsável pela alodinia (percepção de dor a estímulos que, em condições normais, não provocaria sensação dolorosa) Então, após a estimulação do receptor, as fibras sensoriais se agrupam em neurônios de primeira ordem do tipo pseudounipolar. TRANSMISSÃO O potencial gerado nos nociceptores das estruturas somáticas e viscerais é transmitido através de um conjunto de vias e mecanismos até as estruturas nervosas centrais onde ocorre o reconhecimento da dor Essa transmissão aferente não é uniforme, existe uma diferenciação segundo a espessura da fibra, sua origem e função, na transmissão do tipo de estímulo e na velocidade de condução. As principais vias são a espinotalâmica ou anterolateral (que traz informações dos membros, tronco, pescoço ou parte posterior da cabeça) e a trigemiotalâmica (relacionada mais com as sensações da face, cavidade oral e nasal). Revisão geral dessas vias: O neurônio sensorial de primeira ordem conduz o potencial de ação dos receptores nociceptivos para o a medula espinal. As seis primeiras laminas de Rexed da substancia cinzenta da medula estão localizadas no corno dorsal, por onde entram as fibras sensoriais cutâneas e viscerais. As regiões I e II correspondem à substância gelatinosa, por 3 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 onde entram as fibras Aδ e C, responsáveis pela transmissão da dor. É nesse local onde acontece, na maioria dos casos, a primeira sinapse. Mas em outros casos, o neurônio de primeira ordem transmite o sinal ao tronco cerebral, sendo os corpos das células nervosas localizados no gânglio da raiz dorsal e no gânglio trigeminal onde acontece a primeira sinapse. Depois, Os neurônios de segunda ordem conduzem impulsos para o tálamo. Axônios desses neurônios fazem decussação no tronco encefálico ou na medula espinal antes de ascenderem para o tálamo. Desse modo, praticamente todas as informações sensitivas são interpretadas no lado contrário ao que ocorreu o estímulo. Por fim, após a segunda sinapse no tálamo, os neurônios de terceira ordem conduzem impulsos para: O córtex cerebral, onde a percepção da dor é interpretada com suas diferentes características (qualidade, intensidade, localização) O sistema límbico e amígdalas, que interpretam o componente afetivo da dor. Essas vias são divididas em: VIAS DO GRUPO LATERAL. Filogeneticamente mais recentes (neo), quase totalmente cruzadas, são representadas pelos: tratos neoespinotalâmico ou espinotalâmico lateral (mais importante) neotrigeminotalâmico espinocervicotalâmico sistema pós-sináptico da coluna dorsal. Estas vias estão relacionadas com o aspecto sensorial discriminativo da dor VIAS DO GRUPO MEDIAL. Filogeneticamente mais antigas (paleo), parcialmente cruzadas, incluem: tratos paleoespinotalâmico paleotrigeminotalâmico espinorreticular espinomesencefálico sistema ascendente multissináptico proprioespinal. As vias do grupo medial são relacionadas com o aspecto afetivo-motivacional da dor. As fibras provenientes de estruturas somáticas cursam por nervos sensoriais ou mistos e apresentam uma distribuição dermatomérica Já as fibras que vêm das vísceras cursam por nervos das cadeias simpática e parassimpática. Vale ressaltar que os aferentes nociceptivos viscerais são com certa frequência bilaterais e não unilaterais como os somáticos. Tal fato, associado à: Extrema ramificação dos nervos viscerais (um mesmo nervo participa da inervação de diversas vísceras) Pequeno número de aferentes viscerais Elevado número de fibras C (condução lenta) nos nervos viscerais Chegada dos aferentes de uma mesma víscera em múltiplos segmentos medulares, justifica a imprecisa localização da dor visceral MODULAÇÃO 4 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 Também ativadas pelas vias nociceptivas, são Estruturas/vias responsáveis pela supressão da dor. As sinapses entre os neurônios de primeira e segunda ordem ocorrem por modulação de transmissão medular espinal, dependente de neurotransmissores, como o glutamato, a substância P e o peptídio relacionado com o gene do cálcio. TEORIA DO PORTÃO OU DAS COMPORTAS: a ativação das fibras mielínicas grossas excitaria interneurônios inibitórios da substância gelatinosade Rolando (lâmina II) para os aferentes nociceptivos, impedindo a passagem dos impulsos dolorosos, ou seja, haveria um fechamento do portão. Por outro lado, ativação das fibras amielínicas e mielínicas finas (C e Aδ) inibiria os interneurônios inibitórios, tornando possível a passagem dos estímulos nociceptivos (abertura do portão). Esse mecanismo explica por que uma leve fricção ou massageamento de uma área dolorosa proporciona alívio da dor Então, em 1968, Reynolds identificou outro sistema modulatório. A estimulação elétrica da substância cinzenta periaquedutal produzia acentuada analgesia junto com um aumento da concentração de opioides endógenos no liquor. Posteriormente foi visto que analgesia similar podia ser obtida pela estimulação elétrica de diversas outras áreas. Vilela Filho, em 1996, propôs a existência do CIRCUITO MODULATÓRIO PROSENCÉFALO- MESENCEFÁLICO, que justificaria a analgesia obtida pela estimulação dessas áreas do sistema nervoso. Em vista disso, conclui-se que várias estruturas estão, de alguma forma, envolvidas na modulação da sensação dolorosa. Resumindo, as Estruturas que participam do sistema modulatório ■ Interneurônios inibitórios localizados na lâmina II ou substância gelatinosa e que se projetam para outras regiões a partir do corno dorsal da medula espinal. ■ Estruturas do tronco cerebral que enviam até a medula espinal, projeções neuronais, as quais, são capazes de modular a passagem do estímulo nociceptivo, tanto positivamente, quanto negativamente. Pode-se concluir, portanto, que a dor pode ser provocada tanto por ativação das vias nociceptivas como pela lesão das vias modulatórias (supressoras). MECANISMOS RELACIONADOS COM A GERAÇÃO E A PERPETUAÇÃO DA DOR Sensibilização é a percepção desproporcional da sensação dolorosa em relação ao estímulo que a desencadeia, em virtude da diminuição no limiar da dor. SENSIBILIZAÇÃO PERIFÉRICA. desenvolve-se no local do estímulo e decorre de alterações dos receptores, cujo resultado é a diminuição do limiar de excitabilidade dos nociceptores. Lesão celular causa liberação de mediadores inflamatórios (bradicinina, prostaglandina, histamina, interleucinas, leucotrienos, fator de necrose tumoral e de crescimento neuronal), gerando uma dor aguda. Se o estímulo se perpetua, há sensibilização crescente dos receptores nociceptivos, que passam a responder a estímulos nocivos com maior intensidade e a estímulos não nocivos (p. ex., tato), percebendo-os como dolorosos. SENSIBILIZAÇÃO CENTRAL. É a facilitação da chegada do estímulo doloroso ao sistema nervoso central pela redução do limiar de estímulo e espraiamento da região cortical envolvida no processamento da dor (área receptiva da dor). Um exemplo de sensibilização central é o aparecimento de dor ao tocar a pele do rosto após o término de uma crise de neuralgia do trigêmeo. 5 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 FATORES AFETIVOS E MOTIVACIONAIS Modificam a intensidade e evolução da dor. A dor foi abordada como sensação de acordo com seu aspecto SENSORIAL-DISCRIMINATIVO e por isso é possível a identificação de algumas características dessa experiência. ASPECTO AFETIVO-MOTIVACIONAL: engloba experiências previamentes vividas ASPECTO COGNITIVO-AVALIATIVO: avalia e julga as sensações para formar se aquilo é considerado dor ou não. CLASSIFICAÇÕES DA DOR QUANTO AO INÍCIO E À EVOLUÇÃO DOR AGUDA. Uma dor aguda indica que o organismo está sendo agredido ou que sua integridade está em risco. Pode durar de fração de segundo a semanas. Se não for tratada adequadamente, pode se tornar crônica, passando a ser a “doença” do paciente, condição que deve ser abordada de maneira totalmente diferente da dor como “sintoma”. DOR CRÔNICA. Considera-se dor crônica a que dura no mínimo 3 meses, mas que pode causar sofrimento por anos, demandando tratamento farmacológico adequado e terapias múltiplas, pois abala os laços familiares, interpessoais, sociais, laborais e educacionais, além de fragilizar afetiva e emocionalmente o paciente O mecanismo que transforma uma dor aguda em crônica é a plasticidade mal-adaptativa do sistema nociceptivo. DO PONTO DE VISTA FISIOPATOLÓGICO DOR NOCICEPTIVA. É causada pela ativação dos nociceptores. São exemplos caraterísticos de dor nociceptiva as causadas por agressões externas (picada de inseto, fratura de osso, corte da pele), a dor visceral (cólica nefrética, apendicite), a neuralgia do trigêmeo, a dor das lesões articulares e da invasão neoplásica dos ossos. A dor nociceptiva é percebida simultaneamente com a estimulação provocada pelo fator causal. A remoção da causa quase sempre é acompanhada de alívio imediato da sensação dolorosa. Quanto menor o número de segmentos medulares envolvidos na inervação de uma estrutura, mais localizada será a dor A dor nociceptiva pode ser espontânea ou evocada. A espontânea costuma ser relatada com várias designações: pontada, facada, agulhada, aguda, rasgando, latejante, surda, contínua, profunda, vaga, dolorimento. Todas sugerem lesão tissular. A dor espontânea pode ser constante ou intermitente(descrita como dor em choque, aguda, pontada, facada, fisgada) A dor evocada pode ser desencadeada por manobras como a de Lasègue na ciatalgia, que é a dor provocada pelo estiramento da raiz nervosa, ao se fazer a elevação do membro 6 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 inferior afetado, estando o indivíduo em decúbito dorsal, ou lavar o rosto e escovar os dentes, no caso de pacientes com neuralgia do trigêmeo. Esses estímulos reproduzem a dor sentida espontaneamente pelo paciente. ■ ALODINIA. Sensação desagradável provocada pela estimulação tátil de uma área com limiar aumentado de excitabilidade. “O simples contato da roupa ou do lençol é extremamente doloroso.” ■ HIPERPATIA. Sensação desagradável, mais dolorosa que a comum, provocada pela estimulação nóxica, sobretudo a repetitiva, de uma área com limiar de excitabilidade aumentado, indicando região parcialmente desaferentada. ■ HIPERALGESIA . Resposta exagerada aos estímulos aplicados em uma região com limiar de excitabilidade reduzida. Pode manifestar-se sob a forma de dor a estímulos inócuos ou dor intensa a estímulos leves ou moderados. Primária que ocorre em uma área lesionada e se deve à sensibilização local dos nociceptores; secundária, que se localiza em torno da área lesada e parece ocorrer após sensibilização dos neurônios do corno dorsal, decorrente da estimulação repetitiva e prolongada das fibras C. DOR NEUROPÁTICA. Também denominada dor por lesão neural ou por desaferentação, que é a privação de um neurônio de suas aferências, ou central quando é secundária a lesões do sistema nervoso central. Pode apresentar-se de três formas: constante, intermitente e evocada. Este tipo de dor é gerado no sistema nervoso, independentemente de estímulo externo ou interno. A secção do trato neoespinotalâmico, eficaz em eliminar a dor nociceptiva, agrava a dor neuropática, pois permanece o componente constante. Este fato sugere que o provável mecanismo seja a desaferentação. Quando um neurônio é privado de suas aferências (desaferentação), aparecem diversas alterações, incluindo degeneração dos terminais pré-sinápticos, reinervação do local desaferentado por axônios vizinhos por brotamento (sprouting), substituição de sinapses inibitórias por excitatórias, ativação de sinapses anteriormente inativas e aumento da eficácia de sinapses antes pouco eficazes ou latentes. Estas alterações tornam as células desaferentadas hipersensíveis, daí a denominação de células explosivas (bursting cells). Sua hiperatividade é espontânea, visto que são integrantes das vias nociceptivas. Este seria o mecanismofisiopatológico da dor descrita como em queimação ou formigamento. Outra possibilidade é o componente constante da dor neuropática ser devido à hiperatividade das vias envolvidas. A estimulação elétrica dessas estruturas, em pacientes com dor neuropática, mimetiza a sensação dolorosa relatada por eles. Naqueles que não se referem a este tipo de dor, a estimulação elétrica não produz nenhum efeito. A dor neuropática pode ser intermitente ou evocada (alodinia e hiperpatia). A dor intermitente decorre da ativação das vias nociceptivas pela cicatriz formada no local da lesão ou por efapse que são impulsos motores descendentes que cruzam as vias nociceptivas no sítio de lesão do sistema nervoso. A secção 7 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 cirúrgica completa da via neoespinotalâmica ou neotrigeminotalâmica, na dor facial, por exemplo, elimina essa modalidade de dor. A dor evocada, por sua vez, decorre de rearranjos sinápticos que sofreram desaferentação. A reinervação de células nociceptivas desaferentadas por aferentes táteis, por exemplo, faz com que a estimulação tátil, ao ativar neurônios nociceptivos, provoque uma sensação dolorosa desagradável (alodinia). A substituição de sinapses inibitórias por excitatórias, o aumento da eficácia de sinapses outrora pouco efetivas e a ativação das inativas podem tornar tais células hiper-responsivas aos estímulos dolorosos, manifestando-se clinicamente sob a forma de hiperpatia. Como a dor evocada depende da estimulação dos receptores e do tráfego dos impulsos pelas vias nociceptivas, ela pode ser aliviada pela secção cirúrgica da via neoespinotalâmica ou neotrigeminotalâmica na dor facial. São causas de dor neuropática: neuropatia diabética, na qual há acometimento predominante de fibras mielínicas finas e amielínicas, neuropatia alcoólica, que compromete indistintamente qualquer tipo de fibra, e a neuropatia causada por carência de vitamina B12; na neuralgia pós-herpética, em que são acometidas preferencialmente fibras mielínicas grossas do ramo oftálmico do nervo trigêmeo ou dos nervos intercostais, manifestando-se como uma mononeuropatia dolorosa; dor da síndrome do membro fantasma; dor por avulsão do plexo braquial; dor após trauma raquimedular; dor após acidente vascular encefálico (“dor talâmica”) Características da dor neuropática: Pode ser originada em afecções traumáticas, inflamatórias, vasculares, infecciosas, neoplásicas, degenerativas, desmielinizantes e iatrogênicas. Seu início pode coincidir com a atuação do fator causal, porém, mais comumente, ocorre após dias, semanas, meses ou até anos. Em geral, o fator causal não pode ser removido, por ter deixado de agir ou por ser impossível interrompê-lo. A maioria dos pacientes apresenta déficit sensorial clinicamente detectável e a distribuição da dor tende a sobrepor-se, pelo menos parcialmente, à perda sensorial. A dor neuropática apresenta-se em uma das seguintes formas: constante, intermitente (ambas são espontâneas) e evocada. A dor constante é descrita como dor em queimação, dormência ou formigamento, ou como dolorimento. Trata-se de uma disestesia (sensação anormal desagradável). A dor intermitente é mais frequente nas lesões nervosas periféricas e da medula espinal, sendo rara nas lesões encefálicas. É relatada como dor em choque. Lembra a dor da ciatalgia, mas diferencia-se dela pelo fato de seu trajeto não seguir o do nervo. A dor evocada, conquanto mais comum nas lesões encefálicas, é frequente nas lesões medulares e do sistema nervoso periférico, podendo manifestar-se sob a forma de alodinia ou hiperpatia. DOR MISTA. É a que decorre por mecanismos nociceptivo e neuropático, conjuntamente. Ocorre, por exemplo, em certos casos de dor causada por neoplasias malignas. A dor decorre tanto do excessivo estímulo dos nociceptores quanto da destruição das fibras nociceptivas. 8 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 DOR PSICOGÊNICA . Toda dor tem um componente emocional associado, o que varia é sua magnitude. Não há substrato orgânico, sendo gerada por condições emocionais. Tende a ser difusa, ou de localização imprecisa. Algumas vezes, pode ser bem localizada, mas, nesse caso, sua topografia corresponde à da imagem corporal que o paciente tem da estrutura que julga doente. Assim, se ele imagina ter um infarto do miocárdio, a área dolorida localiza-se no mamilo esquerdo e não na região retroesternal ou na face interna do braço esquerdo, como ocorre na dor por isquemia miocárdica. A dor psicogênica muda de localização sem qualquer razão aparente. Quando o paciente se refere à irradiação da dor, não segue o trajeto de qualquer nervo. Não infrequentemente é possível estabelecer- se a concomitância de um evento emocionalmente relevante na vida do paciente, coincidente com o início da dor. Sinais e sintomas de depressão e/ou ansiedade são com frequência identificáveis. Ao exame físico, em geral não há achados relevantes relacionados à dor. Não é raro se manifestarem com exagero durante o exame ao mero toque da região “dolorosa”. Por vezes, simulam déficit sensorial de distribuição “histérica”, o qual não segue padrão dermatomérico Os exames complementares são normais ou apresentam “resultados” que não se correlacionam com as características da dor relatada. As avaliações psiquiátrica e psicológica costumam identificar depressão, ansiedade ou transtorno somatoforme. Falar que “não tem nada” só agrava a situação, porque a dor é uma sensação real para eles, embora os conhecimentos atuais não consigam explicá-la. ESTRUTURAS DE ORIGEM DA DOR DOR SOMÁTICA SUPERFICIAL: forma de dor provocada pela estimulação de nociceptores do sistema tegumentar (pele). Tende a ser bem localizada e relatada como uma picada, pontada. Exemplo: algum trauma (corte, espinho), queimadura e processo inflamatório DOR SOMÁTICA PROFUNDA: decorrente dos nociceptores de músculos, fáscias, tendões ligamentos e articulações. É uma dor mais difusa, de localização imprecisa, descrita como dolorimento, dor surda. Exemplos: estiramentos musculares, contração muscular isquêmica (descrita como câimbra), contusão, ruptura tendinosa e ligamentar, artrite e artrose DOR VISCERAL: decorrente da estimulação dos nociceptores das vísceras. É profunda, difusa, de difícil localização e descrita como dolorimento ou dor surda, que tende a se atenuar com a atividade funcional do órgão acometido Pode estar relacionada com as seguintes condições: Comprometimento da própria víscera (dor visceral verdadeira) Comprometimento secundário do peritônio ou pleura parietal (dor somática profunda) Irritação do diafragma ou do nervo frênico Relacionada com algum reflexo viscerocutaneo (dor referida) Dor visceral verdadeira tende a se localizar na projeção anatômica do órgão de onde se origina. A qualidade da dor é específica de cada tipo de víscera. Por exemplo: 9 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 Dor das vísceras maciças e dos processos não obstrutivos das vísceras ocas é dada como surda; A dos processos obstrutivos das vísceras ocas é dada como cólica; DOR REFERIDA . Pode ser definida como uma sensação dolorosa superficial percebida distante da estrutura onde se a originou (visceral ou somática). Obedece claramente à distribuição metamérica. A explicação da dor referida é a convergência de impulsos dolorosos viscerais e somáticos, superficiais e profundos, para neurônios nociceptivos, localizados no corno dorsal da medula espinal, sobretudo na lâmina V. Tendo em vista que o sistema tegumentar apresenta um suprimento nervoso nociceptivo muito mais exuberante do que o das estruturas profundas, somáticas e viscerais, a representaçãotalâmica e cortical destas é muito menor do que a daquelas. Por conseguinte, os impulsos dolorosos provenientes das estruturas profundas seriam interpretados pelo cérebro como oriundos do tegumento e o paciente percebe a dor naquele local. São exemplos de dor referida: Infarto agudo do miocárdio: dor na face interna do braço (dermátomo T1) A apendicite, a dor começa na região epigástrica ou periumbilical (dor referida dermátomos T6 a T10) e, posteriormente, por irritação do peritônio parietal suprajacente, passa a ser sentida na fossa ilíaca direita (dor somática profunda). DOR IRRADIADA. Caracteriza-se por ser sentida à distância de sua origem, mas em estruturas inervadas pela raiz nervosa ou em um nervo cuja estimulação é responsável pela dor. Exemplo clássico é a ciatalgia, provocada pela compressão de uma raiz nervosa por hérnia de disco lombar. CARACTERÍSTICAS SEMIOLÓGICAS DA DOR – DECÁLOGO SEMIOLÓGICO DA DOR Maneira esquematizada de avaliar o paciente com dor 1. Localização 2. Irradiação 3. Qualidade ou caráter 4. Intensidade 5. Duração 6. Evolução 7. Relação com funções orgânicas 8. Fatores desencadeantes ou agravantes 9. Fatores atenuantes 10. Manifestações concomitantes 1. LOCALIZAÇÃO Refere-se à região que o paciente sente a dor Não se aceita descrições incluindo ´órgãos, como “dor na vesícula”. Solicitar que o paciente indique/aponte o local da dor, deve ser designada com a 10 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 numenclatura das regiões da superfície corporal Dor em mais de uma localização: é importante que todos os locais sejam registrados no mapa corporal, devendo ser interpretados separadamente, o que permite deduzir de a sensação dolorosa é irradiada ou referida ou de diferentes causas. Além disso, a dor percebida em diferentes locais pode indicar uma mesma doença (doença reumática) É relevante avaliar a sensibilidade da área onde se localiza a dor e suas adjacências. Hipoestesias, hiperestesias, hiperalgias podem estar associadas a diferentes processos patológicos. 2.IRRADIAÇÃO A dor pode ser estritamente localizada ou Irradiada ou referida (diferente de irradiada, não confundir) Saber onde iniciou e para onde irradiou indica qual estrutura nervosa está comprometida (território de irradiação) Exemplos: IRRADIADA: Lombociatalgia: Dor lombar com irradiação para a virilha, face anterior da coxa e borda anterior da canela, também face medial da perna até a região maleolar medial (raiz L4) ou irradiação para a nádega e face posterolateral da coxa e da perna, até a região maleolar lateral (raiz L5): dor lombar com irradiação para a nádega e face posterior da coxa e da perna, até o calcanhar (raiz S1) REFERIDA: processo patológico no apêndice – dor na região epigástrica; na vesícula e fígado – dor na escápula e no ombro; no ureter – dor na virilha e genitália externa; no coração – dor na face medial do braço. Vale ressaltar que processos patológicos anteriores, que afetam estruturas inervadas por segmentos medulares adjacentes, aumentam a possibilidade de a dor ser sentida em uma região inervada por ambos os segmentos medulares, fazendo com que tenha localização atípica. Assim, a dor da isquemia miocárdica (angina do peito e infarto do miocárdio) pode irradiar-se para o epigástrio em pacientes com úlcera duodenal, e para o membro superior direito em indivíduos com fratura recente de algum osso dessa região. 3. QUALIDADE OU CARÁTER Pede para descrever a dor, como ela se parece ou que tipo de sensação e emoção lhe traz. Quando o paciente tem dificuldade em descrevê-la, usa-se termos descritores mais usados: Constante ou Intermitente Latejante ou pulsátil (enxaqueca) Cólica ou torcedura (colíca nefrética, menstrual...) Em choque Queimação (ulcera péptica, esofagite de refluxo) ou dormência Constritiva ou em aperto (angina de peito ou infarto do miocárdio) Dor em pontada Dor surda Dolorimento Câimbra 4.INTENSIDADE Resulta interpretação global dos seus aspectos sensoriais, emocionais e culturais. Como é uma experiência sensorial subjetiva, a avaliação da intensidade feita pelo paciente é o elemento fundamental desta característica. 11 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 Para medi-la, é feito o uso de escalas de dor Escala numérica é a mais usada para adultos, mais precisa. Para adultos com baixa escolaridade, crianças e idosos, para os quais a compreensão da escala analógica visual pode ser difícil, podem-se utilizar as escalas de representação gráfica não numérica, como a de expressões faciais de sofrimento: sem dor, dor leve, dor moderada e dor intensa Se o paciente tem dificuldade em definir a “pior dor possível”, solicita-se a ele que a compare com a dor mais intensa já experimentada. A dor do parto, a da cólica nefrética, a de uma úlcera perfurada (no momento da perfuração) são referências adequadas para esse fim. A interferência da dor no sono, trabalho, relacionamento conjugal e familiar e atividade sexual, social e recreativa fornece pistas indiretas, porém, objetivas, de sua intensidade, devendo, portanto, ser valorizadas. Além disso, é possível perceber a intensidade da dor pela maneira que o paciente fala, suas expressões faciais e tom de voz. 5. DURAÇÃO Inicialmente, determina-se com a máxima precisão possível a data de início da dor e então calcula o tempo transcorrido até o momento da anamnese (no caso de dor continua) Se for cíclica, deve-se registrar a data e a duração de cada episódio doloroso. Se é intermitente e ocorre várias vezes ao dia, são registradas a data de seu início, a duração média dos episódios dolorosos, o número médio de crises por dia e de dias por mês em que se sente dor. Dependendo da duração, a dor pode ser classificada em aguda ou crônica. (ponto de corte: 3 meses). A dor crônica deixa de ser um “sintoma” e passa a ser a “doença” do paciente. Em geral, este tipo de dor está associado a fatores sociais e emocionais 6.EVOLUÇÃO A maneira como evoluiu desde o início até o momento da anamnese Maneira de início: súbito ou insidioso. Se for súbita e tipo cólica, localizada no hipocôndrio direito, por exemplo, sugere colelitíase, ao passo que uma dor de início insidioso, surda, na mesma área, tem mais probabilidade de ser decorrente de colecistite ou hepatopatia. 12 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 Pistas para esclarecimento diagnóstico Durante sua evolução, pode haver as mais variadas modificações na dor. Em pacientes com dor neuropática, os seus componentes (dor constante, intermitente e evocada) frequentemente surgem em épocas diferentes. A intensidade da dor também pode variar ao longo da evolução. Sua redução progressiva, sem qualquer alteração no tratamento, pode indicar que o quadro doloroso está entrando em remissão. Intensidade inalterada ou progressiva ou agravamento ao longo dos meses, a despeito de tratamento adequado, por outro lado, sugere que ela se tornou crônica. Uma dor crônica pode sofrer alterações de intensidade em um mesmo dia (ritmicidade) ou surgir em surtos periódicos, ao longo dos meses ou anos (periodicidade). 7.RELAÇÃO COM FUNÇÕES ORGÂNICAS Avaliar a localização da dor e os órgãos e estruturas situados na mesma área; Se a dor for cervical, dorsal ou lombar, pesquisa-se sua relação com os movimentos da coluna (flexão, extensão, rotação e inclinação); Se for torácica, com a respiração, movimentos do tórax, tosse, espirro e esforço físico; se tiver localização retroesternal, com a deglutição, posição e esforço físico; se for periumbilical ou epigástrica, com a ingestão de alimentos; se no hipocôndriodireito, com a ingestão de substâncias gordurosas; se no baixo-ventre, com a micção, evacuação e menstruação; A dor em uma articulação ou músculo é acentuada pela movimentação ou contração muscular. Quase sempre, a dor é acentuada pela atividade funcional do órgão em que se origina. 8.FATORES DESENCADEANTES E AGRAVANTES São os fatores que desencadeiam a dor, ou a agravam. As funções orgânicas estão entre estes fatores, porém outros podem ser identificados. Devem ser procurados ativamente, pois, além de ajudarem a esclarecer o diagnóstico, seu afastamento constitui parte importante do tratamento. Exemplos: alimentos ácidos e picantes, bebidas alcoólicas e anti-inflamatórios hormonais ou não hormonais agravam a dor da esofagite, gastrite e úlcera péptica; chocolate, queijos, bebidas alcoólicas (sobretudo o vinho), barulho, luminosidade excessiva, esforço físico e menstruação, em pacientes com enxaqueca; 9.FATORES ATENUANTES Funções orgânicas, posturas ou atitudes que aliviam a dor, incluindo: Medicamentos (indagar nomes, doses e períodos em que foram usados) A distração tende a diminuir qualquer dor. A ingestão de certos alimentos alivia a dor da esofagite, gastrite e úlcera péptica, pela diminuição do pH gástrico. 13 Ester Ratti e Flávia Rocha ATM 25 Como o peristaltismo tende a intensificar a sensação dolorosa no sistema digestório; a dor pode diminuir com jejum ou esvaziamento do estômago pelo vômito. O repouso melhora as dores muscular, das articulações e da insuficiência coronária. o paciente tende a assumir posições que reduzam a pressão sobre o órgão lesado. Na lombociatalgia, para evitar o estiramento da raiz nervosa (causa de dor), a extremidade comprometida é mantida em atitude antálgica de semiflexão; ao deambular, essa atitude permanece e o tronco é inclinado para a frente, como em um gesto de saudação (marcha saudatória). 10. MANIFESTAÇÕES CONCOMITANTES A dor aguda, nociceptiva, sobretudo quando intensa, costuma acompanhar- se de manifestações neurovegetativas, que se devem à estimulação do sistema nervoso autônomo, expressando-se por sudorese, palidez, taquicardia, hipertensão arterial, mal-estar, náuseas e vômitos. DOR E ENVELHECIMENTO Limiar de dor aumenta e, consequentemente, as pessoas idosas podem apresentar problemas graves sem dor, que deixa de ser um sinal de alarme. Exemplo: ausência de dor em grande número de idosos com infarto do miocárdio e doenças abdominais agudas. As manifestações dolorosas podem ser atípicas e mal localizadas (p. ex., infarto do miocárdio com dor abdominal ou no dorso é mais frequente nessa faixa etária). Cumpre assinalar que muitos idosos deixam de relatar as dores por considerá-las consequência do envelhecimento e que devem ser suportadas sem queixas.
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