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História Medieval Ocidental Danielle O. Mércuri AULA 11 As mulheres na Idade Média HISTÓRIA DAS MULHERES O medievalista francês Georges Duby dedicou especial atenção à composição de uma história das mulheres em suas obras: O cavaleiro, a mulher e o padre; Idade Média, Idade dos homens; Heloisa, Isolda e outras damas do século XII; e Eva e os padres: damas do século XII. Tais obras, escritas entre as décadas de 80 e 90 do século XX, a despeito de suas particularidades, tratam do cotidiano, da vida privada, das relações entre os homens e mulheres e, principalmente, da relatividade entre o que se esperava que fossem as mulheres e a forma como se apresentaram no medievo. Nessas obras, o medievalista alertava sobretudo para o fato de que ao pesquisador cabia um certo cuidado em relação à natureza dos documentos acerca das mulheres, uma vez que neles se podia notar muito mais as palavras e a percepção dos homens sobre elas. http://bit.ly/2Tc8iV3 http://bit.ly/2Y88ys6 Dito de outro modo, ao olharmos para as mulheres do passado não podemos ignorar o peso do olhar dos homens sobre elas. É necessário que nos lembremos de que grande parte das informações que temos sobre as mulheres no medievo foram formuladas por letrados, sobretudo clérigos, que as viram como seres inferiores e pecaminosos. http://bit.ly/2HqCjPu http://bit.ly/2JkSNKN Nas palavras de Duby: “Ao masculino, com efeito, pertence nessa sociedade tudo o que é oficial, tudo o que diz respeito ao público, a começar pela escrita. Mâle Moyen Âge [Idade Média masculina], L’homme medieval, pelos títulos que deu aos seus livros, o historiador confessa: somente os homens desse tempo são um pouco visíveis e eles lhe ocultam o resto, sobretudo as mulheres. Algumas aparecem de fato ali, mas representadas, simbolicamente, por homens, e por homens da igreja em sua maior parte, portanto adstritos a não se aproximar muito delas” (2013, p. 11). Levando em consideração a particularidade das fontes medievais e esse olhar dos homens sobre as mulheres, analisaremos inicialmente alguns modelos de mulheres projetados pelos homens medievais e, na sequência, abordaremos alguns exemplos de mulheres que, embora excepcionalmente, avançaram no terreno da escrita e deixaram registros sobre impressões que tiveram sobre o lugar que ocuparam na sociedade medieval e outros temas. FILHAS DE EVA É notória a retomada na Idade Média do texto do Gêneses a respeito da criação e caída de Eva, pois, tanto nos textos chamados misóginos (contrários a elas) como nos de caráter filóginos (favoráveis a elas) medievais, a criação da mulher a partir do homem e o pecado original têm um relevante peso para justificar a condição pecaminosa e inferior das mulheres e para enfatizar a igualdade de homens e mulheres no que diz respeito à procedência divina e à responsabilização da caída em pecado. Todavia, podemos perceber, através da leitura de textos importantes que circularam durante a Idade Média (Etimologias, Suma Teológica, Legenda Áurea, Livro de Maneiras e outros mais), que era mais comum enfatizar o caráter pecaminoso e inferior das mulheres, ou mesmo realçar a necessidade de muito esforço e penitência corporal para que elas conseguissem alcançar a salvação. Por isso, o modelo de Eva foi, por diversas vezes, retomado no medievo como exemplo maior de que as mulheres eram responsáveis pelos grandes malefícios e dores que acometiam os homens e de que elas eram assim por conta da natureza própria de seu sexo. Enfim, todas eram consideradas herdeiras de Eva. Isidoro de Sevilha (560-636) não havia deixado de frisar que a mulher se diferenciava do homem pela debilidade e pela ausência de força, ao passo que São Tomás de Aquino (1225-1274) – retomando Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) – caracterizava a mulher como um homem falido, dotada de menos razão, o que justificava mantê-la sob a égide do varão. Esses autores e outros mais que escreveram sobre a mulher no medievo alimentaram uma imagem da mulher como passiva, débil, torpe, ou seja, uma imagem negativa, visto que era sempre associada ao pecado original, aos vícios, à fraqueza carnal/espiritual e à concupiscência. O CORPO DELAS As ideias de que o corpo das mulheres encontrava similitudes mesmo que imperfeitas no corpo do homem e de que, o corpo delas, nada mais era que um corpo de homem mutilado – tão propaladas por Aristóteles – teriam encontrado eco nos discursos medievais de Isidoro de Sevilha e São Tomás de Aquino. Também tiveram larga divulgação as noções de que o sêmem do homem portava a alma, ao passo que o da mulher se responsabilizava apenas pela forma; por conta disso, a mulher era considerada passiva e fraca, enquanto o homem, ativo e forte, era o princípio mais importante da concepção. Outro tema constantemente retomado no medievo teria sido a teoria dos humores de Hipócrates (século V a.C.) e Galeno (século I d.C.), que justificava a natureza úmida, fria e suscetível das mulheres. Buscava-se uma explicação para sua natureza física e, de certa forma, explicava a dependência em relação ao homem. Ademais, havia um medo muito comum sobre os líquidos das mulheres, sobretudo o sangue menstrual, considerado venenoso e produto para as práticas mágicas. Outro temor muito comum relacionava-se ao “mal de olho” e à menopausa, pois, no primeiro caso, considerava-se que só com o olhar a mulher poderia liberar vapores menstruais altamente venenosos e, no segundo, acreditava- se que, com a ausência da menstruação, o sangue venenoso acumulava-se no corpo aumentando o seu grau de periculosidade. De modo geral, muitas vezes os medievos buscaram uma explicação fisiológica para aquilo que acreditavam ser moralmente bom ou mau. Assim, consideradas débeis quanto à sua complexão fisiológica e culpadas pela caída dos homens, as mulheres foram comumente entendidas como fracas, inábeis para raciocinar, falar e propagar a fé através da Eucaristia, deficiências que fundamentavam a posição de superioridade ocupada pelos homens. SOBRE OS PERIGOS QUE RONDAVAM AS MULHERES Muitos foram aqueles que escreveram com o intuito de advertir os homens sobre os perigos representados pelas mulheres. Assim o fez André Capelão (1150-1220), na França da primeira metade do século XII, ao escrever De amore (Tratado sobre el amor), destinado a um desconhecido chamado Gautier. Tal tratado, escrito em latim e depois traduzido para o vernáculo em diversas porções da Europa, retoma algumas temáticas discutidas por Ovídio em A Arte de Amar e os Remédios para o Amor. Nos três livros que compõem De amore, os seguintes aspectos são mencionados: no primeiro, o autor destaca a natureza do amor; no segundo, discute como se preservar uma relação amorosa; e, no terceiro, aponta os perigos relacionados às mulheres. Nesse último livro, ao destacar que a experiência confirma um lugar comum sobre as mulheres, André Capelão aponta os principais epítetos das mulheres, a saber: invejosas, maledicentes, inconstantes, soberbas, luxuriosas, dentre outros. http://bit.ly/2JlMnez Burchard de Worms (950-1025), bispo de Worms nomeado pelo imperador do Sacro Império Romano-Germânico Oto III, também não deixou de frisar a conotação negativa e pecadora das mulheres no século XI, em seu Decretum. Além de responsabilizá-las por crimes de luxúria, infanticídio, feitura de poções abortivas, envenenamentos e outros mais, ressaltava que as penitências dadas a elas deveriam ser mais pesadas do que aquelas dadas aos homens. http://bit.ly/2HEuwwN Étienne de Fougères (1178-?), bispo de Rennes e capelão na corte de Henrique II da Inglaterra, teria escrito, na segunda metade do século XII, um tratado sobre os comportamentos ideias de homens e mulheres, o qual recebeu a denominação de Livre des Maniéres. Nesse tratado, ao mencionar as condutas comuns das mulheres, o bispo retoma a imagem da mulher como: insubmissa, luxuriosa, pecadora. Todavia, o bispo apresentaclaramente o esboço de como deveria ser a mulher perfeita, ou seja: ativa sexualmente apenas para a procriação, obediente, submissa, boa esposa e fértil. OS EXEMPLOS DE MARIA E MADALENA Além dos textos mencionados, não podemos nos esquecer da Legenda Áurea, conjunto de hagiografias reunidas por Jacopo de Varazze na segunda metade do século XIII. Nessa composição Jacopo de Varazze apresenta, através de exempla, ou seja, de histórias envolvidas pelo tom instrutivo e moralizante, os modelos de homens e mulheres santos a serem imitados. http://bit.ly/2HHEUUr No tocante às mulheres exemplares, elas aparecem divididas em quatro grupos: um representado pela Virgem Maria, praticamente impossível de ser alcançado, tendo em vista o seu elevado teor de pureza e santidade; outro, pelas mártires dos primeiros séculos e as santas canonizadas entre os séculos XI e XIII; um terceiro, pelas pecadoras arrependidas; e, por fim, aquele representado pelas mulheres más. Devemos ressaltar que, por volta dos séculos XIII e XIV, o culto mariano apresentou uma saída para as mulheres que queriam alcançar a salvação, já que, tendo como referência o exemplo de Maria, elas poderiam buscar o aperfeiçoamento espiritual e aproximar-se de Deus. Ademais, o modelo de Maria Madalena representava as mulheres que, embora tivessem tido uma vida de pecado, haviam se arrependido e logrado o perdão divino. Daí, a importância que os modelos de mulheres adquirem nesse período como promotores de um ideal de conduta laica eivado de referências religiosas. PENSADORAS, MÍSTICAS E LITERATAS Apesar de não terem sido muitas (poucos registros escritos por mulheres foram conservados), algumas mulheres se dedicaram à atividade de escrita e, por conseguinte, tomaram as plumas com o intuito de registrar projeções que fizeram de si mesmas, das circunstâncias que vivenciaram ou, até mesmo, aquilo que consideraram relevante às suas congêneres aprenderem. Vejamos algumas das poucas mulheres que lograram prestígio como escritoras na Idade Média. Dhuoda (803-843) Foi uma nobre que viveu na corte carolíngia de Carlos (o Calvo) e escreveu um manual de educação ao seu filho, Guilherme. Respaldada nos autores da antiguidade e na Bíblia, Dhuoda apresentou a seu filho elementos para sua formação aristocrática e cristã. O manual de Dhuoda é considerado pelos historiadores o mais antigo tratado francês de educação e o único da época escrito por uma mulher leiga, casada e nobre. Nas palavras de Dhuoda: “sua Dhuoda o ajudará sempre, filho, e se te faltar algum dia, o que sucederá, terás este pequeno livro de moral, como imagem em um espelho, para que possas ver-me sempre ao ler com os olhos da mente e do corpo e intercedendo junto a Deus” (1995, p. 71). Hildegarda de Bingen (1098-1179) Foi enviada ao convento quando tinha entre sete e oito anos de idade e lá aprendeu os rudimentos do latim. Foi noviça, monja e abadessa no mosteiro de Disibodenberg. Hildegarda dizia ter visões místicas. Seus escritos chamaram à atenção de Bernardo de Claraval e do Papa Eugenio. Foi compositora, poeta, pregadora e ocupou-se em compreender o funcionamento do corpo humano e a atuação das enfermidades. Trótula de Salermo (?- 1097) Segundo alguns estudos, Trótula foi uma importante média que atuou na Escola de Medicina de Salermo. Foram atribuídas a Trótula duas obras: As doenças da mulher antes, durante e depois do parto e Como tornar belas as mulheres. O primeiro desses textos nos oferece a oportunidade de compreender algumas práticas que contribuíram no conhecimento do corpo das mulheres. Segundo Trótula, a saúde das mulheres não poderia ser desvinculada do bem- estar. Christine de Pizan (1364-1430) Nasceu em Veneza, mas mudou-se para a França (corte de Carlos V) com seu pai, o médico Tommaso di Benvenuto da Pizzano, e sua mãe. Aprendeu suas primeiras lições de astronomia, poesia, latim e italiano com o pai. Viúva e sem o apoio do pai, que havia morrido, encontrou na escrita uma forma de viver. Escreveu dez títulos em verso e onze em prosa, trabalhos que foram encomendados ou remunerados pela nobreza. REFLEXÕES FINAIS Podemos recorrer às palavras do historiador brasileiro José Rivair Macedo para fazermos uma síntese do que vimos até aqui: “Para romper com a carga de preconceito que se apresenta diante de qualquer um que se dedique a retratar a história das mulheres no Ocidente medieval – no período circunscrito entre os séculos V e XV dos atuais países da Europa Ocidental – é preciso, de antemão, considerar que boa parte das informações foi fornecida por homens e que a imagem obtida revela-nos um olhar masculino nem um pouco neutro. Além disso, boa parte do que foi escrito deve-se a religiosos, inspirados por princípios éticos impregnados pela ideia de culpa e do pecado, que associavam o sexo e/ou a sexualidade ao demônio; e a mulher, a um instrumento demoníaco. Não é possível entender a história das mulheres sem avaliar o peso daquele olhar, que estabeleceu modelos ideais de mulher e regras de comportamentos a serem seguidas. Porém, existem textos que elas falam de si mesmas, na primeira pessoa, o que nos permite estabelecer contrapontos” ( 2002, p. 10). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DEPLAGNE, Luciana Eleonora de Freitas Calado (org.). As intelectuais na Idade Média. João Pessoa: Editora UFPB, 2015. DUBY, Georges. Idade Média. Idade dos Homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. DUBY, Georges. As damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 2002. QUER SABER MAIS? Nesta parte, você poderá estudar um pouco mais sobre as referências usadas em nossa aula. • Trótula de Salermo http://bdm.unb.br/bitstream/10483/15710/1/2016_LuciaReginaOliveira ePinho_tcc.pdf • Christine de Pizan file:///C:/Users/Tatau/Downloads/6214-22271-1-PB.pdf • Dhuoda • http://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2013/7724_5102.pdf http://bdm.unb.br/bitstream/10483/15710/1/2016_LuciaReginaOliveiraePinho_tcc.pdf file:///C:/Users/Tatau/Downloads/6214-22271-1-PB.pdf http://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2013/7724_5102.pdf CONHECENDO ALGUNS TERMOS Exempla ou exemplum Representa um ritual de repetição de palavras e estruturas muito comum nos textos medievais. Tinha-se em vista aproximar emissor e receptor, bem como ensinar o último. SUGESTÃO DE FILMES • Grandes mujeres en la Edad Media - Documentário RTVE https://www.youtube.com/watch?v=Bi10LGydatY • Christine de Pizan - Documentário BBC https://www.youtube.com/watch?v=Fb8jQL8onE4 • Visão da vida de Hildegarda de Bingen - Filme https://www.youtube.com/watch?v=2EH79p_YL6Q https://www.youtube.com/watch?v=Bi10LGydatY https://www.youtube.com/watch?v=Fb8jQL8onE4 https://www.youtube.com/watch?v=2EH79p_YL6Q
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