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MARIA JOSÉ GIRÃO LIMA A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE MENTAL: uma análise centrada na cidadania dos usuários MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS UFPI TERESINA /2004 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. MARIA JOSÉ GIRÃO LIMA A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE MENTAL: uma análise centrada na cidadania dos usuários MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS UFPI TERESINA /2004 MARIA JOSÉ GIRÃO LIMA A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE MENTAL: uma análise centrada na cidadania dos usuários Dissertação apresentada à Banca Examinadora, da Universidade Federal do Piauí, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas, sob orientação da Professora Doutora Simone de Jesus Guimarães. UFPI TERESINA / 2004 A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE MENTAL: uma análise centrada na cidadania dos usuários MARIA JOSÉ GIRÃO LIMA Dissertação de Mestrado submetida à Coordenação do Curso de Mestrado em Políticas Públicas do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí, na área de Concentração de Cultura e Identidade. BANCA EXAMINADORA Professora Doutora Simone de Jesus Guimarães Universidade Federal do Piauí (UFPI) (Orientadora e Presidente) Professora Doutora Lúcia Cristina dos Santos Rosa Universidade Federal do Piauí (UFPI) Professora Doutora Aglair Alencar Setúbal Instituto Camilo Filho TERESINA / 2004 RESUMO “A prática do assistente social na área da saúde mental: uma análise centrada na cidadania dos usuários” é uma dissertação de mestrado nascida da preocupação de compreender a inserção desse profissional nessa área específica, entendendo-se o Serviço Social como uma profissão inscrita na divisão sóciotécnica do trabalho e o seu exercício uma unidade dialética inscrita na contraditoriedade, singularidade e totalidade históricas da sociedade. Tem, assim, por objetivo central, esta investigação, analisar até que ponto a prática profissional do assistente social se vincula com a defesa da cidadania e dos direitos dos usuários dos serviços de saúde mental, oferecidos pelo Sanatório Meduna, hospital psiquiátrico da rede privada, em Teresina, no Piauí, conveniada com o Sistema Único de Saúde (SUS), constituindo-se em sujeitos do estudo os assistentes sociais, os usuários e seus familiares e demais profissionais da equipe interdisciplinar do referido hospital. Ademais, busca-se resgatar, nesta pesquisa, a natureza da prática do assistente social no Sanatório Meduna, examinando seus vínculos com os direitos e a cidadania dos portadores de transtornos mentais e suas famílias, considerando, para isso, as múltiplas vivências, falas, discursos, gestos e expressões do cotidiano desses sujeitos. A pesquisa se fundamenta em aportes da dialética crítica e foi desenvolvida segundo uma metodologia qualitativa que revela a vinculação do assistente social com a questão da cidadania e dos direitos dos usuários como uma relação histórica, ampliada e fortalecida no país a partir das últimas duas décadas do século XX, sendo norteada, no Brasil e no Piauí, pelo arcabouço legal que ampara o exercício desse profissional nos seus diversos espaços sócio-ocupacionais. Enfim, a dissertação visa contribuir para o debate reflexivo sobre a prática do assistente social na sua interlocução com a área da saúde mental, em particular na direção dos interesses e anseios dos segmentos sociais mais empobrecidos, no caso o dos portadores de transtornos mentais. ABSTRACT “Social Workers‟ Practice in the Area of Mental Health Care: Na Analysis Centered on Citizenship of Mental Illness Patients” is a Master‟s thesis born out of concern to understand these professionals‟ insertion in this specific area. Social Service is understood as a profession inscribed in the socio-technical division of labor, and is practice as a dialectic unity inscribed in society‟s historic contradictoriness, singularity and totality. As its central objective, this investigation analyzes to what extent the professional practice of the social worker links itself to the defense of citizenship and rights of mental illness patient‟s health care offered by Meduna Sanatorium, a private psychiatric hospital in Teresina, Piauí, which has an accord with the “SUS”, i.e., the Federal Government Medicare in Brazil. The subjects of this study are the social workers, mental illness patients and their families, and all other professionals in the interdisciplinary team at said hospital. Beyond that, this research recovers the nature of the social workers‟ practice at Meduna Sanatorium, and, considering the multiple life experiences, utterances, discourses, gestures and expressions in the everyday life of said subjects, it examines the links of social workers to the rights end citizenships of mental illness patients and their families. The research is based on approaches of critical dialectic, and was developed according to a qualitative methodology that reveals the links of the social workers to the citizenship and the rights of mental illness patients as a historic relationship. In Brazil, this historic relationship was amplified and made stronger in the last two decades of 20 th century by the legal framework that provides for the practice of said professionals in their diverse socio-occupational spaces. Therefore, this thesis contributes for the reflexive debate on the practice of social workers in their interlocution with the mental hearth area, in particular toward the interests and longings of the more impoverished social segments, especially the one of mental illness patients. A todos aqueles que algum dia desenvolveram o transtorno mental, para que consigam vencer todas as formas de preconceitos e de exclusão social. E que sejam respeitados simplesmente, pelo que são, com seus desejos, vontades, delírios, alucinações e comportamentos. Às famílias e cuidadores, para que continuem a lutar incansavelmente, em busca da proteção integral, do tratamento de qualidade, do respeito e da efetivação dos direitos e da cidadania do PTM. Aos assistentes sociais que abraçaram essa causa sem medo e com obstinação, lutando para compreender e revitalizar as vivências dos PTM e suas famílias na esperança de contribuir para o crescimento dessas pessoas, que tem suas vidas abaladas pela presença do transtorno mental. AGRADECIMENTOS A Deus pelo direito a vida. Aos meus pais, Felipe e Zildete (Branca) que mesmo distantes sempre me estimularam a continuar a lutar, entendendo minha ausência, nos últimos dois anos. À professora Simone Guimarães, minha orientadora, por seu apoio, paciência, empenho e dedicação na construção deste trabalho. À CAPES, que me concedeu bolsa de mestrado, durante o período do curso. Aos meus irmãos, em especial Geane e Adriano, que souberam compreender minhas ausências constantes, assumindo meus afazeres de forma incondicional. Às amigas do Sanatório Meduna especialmente as assistentes sociais Rose, pelas inúmerasconversas que tivemos sobre a implantação do Serviço Social no Meduna, Cristina (Cris) e Ana Paula, que incondicionalmente, me apoiaram assumindo as atividades, durante minhas ausências no desenvolvimento do curso. Ao Dr. Wilson Freitas, pelo incentivo dado a esta pesquisa, sempre atenciosamente atendendo e orientando-me. Aos ex-diretores do Sanatório meduna Dr. Lindomar Freitas e Dr. Alberto Mariano, por conceder minha liberação para freqüentar as aulas do mestrado. Ao sr. Raimundo Santos, pelo apoio disponibilizando material, indispensável para a pesquisa. Ao Dr. Alexandre Parente e sr. Afonso Lima pelo apoio e compreensão, no desenvolvimento deste estudo. A todos os usuários e familiares que responderam nosso apelo, aceitando participar da pesquisa. A todos os profissionais e funcionários do Sanatório Meduna, em especial aqueles que participaram da pesquisa. À professora Lúcia Rosa, pelo apoio dado no desenvolvimento deste estudo. Aos meus tios Girão e Eneide, que contribuíram substancialmente para a concretização dos meus estudos e para a minha formação. À dona Francisca Monteiro (primeira funcionaria do Sanatório), que gentilmente concedeu-me vários depoimentos para a construção da pesquisa. À coordenação do Mestrado, na pessoa da Prof. Rosário Silva, a quem tive oportunidade de reencontrar, após dez anos. Aos companheiros do mestrado, José Carlos, Aurenice (Aure), Marysol, Marcos Daniel, Zita Vilar, Miguel, Ana Maria Roberto e Marineves, pela oportunidade de fazer e construir novas amizades. Aos professores do mestrado Jesuíta, Francisco Júnior, Fabiano, Dione, Alcides e Wasghiton Bonfim, pela atenção. Ao amigo João Filho, pelo apoio nas horas difíceis. Ao prof. Airton Araújo, pela revisão da dissertação. Enfim, a todos que direta ou indiretamente contribuíram de alguma forma para a concretização desta dissertação. LISTA DE SIGLAS ACSM – PI Associação Comunitária de Saúde Mental do Piauí AFDM – Associação de Familiares de Doentes Mentais AIS – Ação Integrada de Saúde AIH – Autorização de Internação Hospitalar APL – Academia Piauiense de Letras ALMOPISA – Alkool Motor de Piauí APM – Associação Piauiense de Medicina APP – Associação Piauiense de Psiquiatria CAPS – Centro de Atenção Psicossocial CAPs – Caixa de Aposentadoria e Pensões CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde COI – Centros de Orientação Infantil COJ – Centros de Orientação Juvenil CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas CNS – Conferência Nacional de Saúde CNSM – Conferência Nacional de Saúde Mental DATASUS – Departamento de Informática do SUS DNS – Departamento Nacional de Saúde DINSAM – Divisão Nacional de Saúde Mental EUA – Estados Unidos da América FMI – Fundo Monetário Internacional FMS – Fundação Municipal de Saúde FUNRURAL – Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural HAA – Hospital Areolino de Abreu HGV – Hospital Getúlio Vargas HPAA – Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu IAH – Instituto de Assistência Hospitalar IAPAS – Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social IAPM – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos IAPEP – Instituto de Assistência e Previdência do Estado do Piauí IAPs – Instituto de Aposentadoria e Pensões IAPFESP – Instituto de Assistência Previdência dos Ferroviários IAPB – Instituto de Assistência Previdenciária dos Bancários IAPC – Instituto de Assistência Previdenciária dos Comerciários IAPI – Instituto de Assistência do Industriário IAPETC – Instituto de Assistência dos Trabalhadores dos Transportes e Cargas INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social INPS – Instituto Nacional da Previdência Social IPASE – Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado IPUB – Instituto de Psiquiatria LBA – Legião Brasileira de Assistência LBHM – Liga Brasileira de Higiene Mental LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social MPOS – Movimento Popular de Saúde MRP – Movimento da Reforma Psiquiátrica MRSS – Movimento de Reconceituação do Serviço Social MRS – Movimento da Reforma Sanitária MS – Ministério da Saúde NAPS – Núcleo de Atenção Psicossocial OMS – Organização Mundial de Saúde OPAS – Organização Panamericana de Saúde SENAC – Serviço Nacional do Comércio SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial SESI – Serviço Social da Indústria SINDESPI – Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Saúde do Estado do Piauí SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social SNDM – Serviço Nacional de Doenças Mentais SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde SUS – Sistema Único de Saúde PIASS – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento no Nordeste PISAM – Programa Integrado de Saúde Mental PFL – Partido da Frente Liberal PLAMTA – Plano Médico de Tratamento e Assistência PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PPA – Programa de Pronta Ação PSMC – Programa de Saúde Mental Comunitária PTM – Portador de Transtorno Mental PTB – Partido Trabalhista Brasileiro SESAPI – Secretaria de Saúde do Piauí UI – Unidade de Internação UIF – Unidade de Internação Feminina UIM – Unidade de Internação Masculina SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12 CAPÍTULO I DOENÇA MENTAL E ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL .................... 24 1.1 As Políticas de Saúde no Brasil ................................................................................ 24 1.2 A Assistência Psiquiátrica no Brasil ......................................................................... 36 1.3 A Assistência Psiquiátrica no Piauí ........................................................................... 57 CAPÍTULO II SANATÓRIO MEDUNA: FUNDAÇÃO DO HOSPITAL E ESTRUTURA FUNCIONAL ................................................................................................................. 78 2.1 Avanço da Psiquiatria Piauiense: Clidenor de Freitas Santos e o Sanatório Meduna .................................................................................................................... 78 2.2 Os Serviços do Sanatório Meduna e o trajeto do Portador de Transtorno Mental e de sua Família ....................................................................................................... 91 2.3 O Serviço pavilhonar do Sanatório Meduna e sua rotina ............................................ 95 2.4 O Serviço de Hospital-Dia do Sanatório Meduna ....................................................... 99 CAPÍTULO III O SERVIÇO SOCIAL COMO PRÁTICA PROFISSIONAL....................................... 104 3.1 O Serviço Social no Brasil ........................................................................................ 104 3.2 O Serviço Social na Saúde Mental ............................................................................ 121 3.3 A prática do assistente social no Sanatório Meduna .................................................. 134 3.3.1 O Serviço Social e a preparação da alta Médico-Hospitalar do PTM ........................ 153 CAPÍTULO IV O SERVIÇO SOCIAL E A CIDADANIA DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL ............................................................................................ 162 4.1 Cidadania e Serviço Social: bases para a compreensão da prática profissional junto ao portador de transtorno mental ...................................................................... 162 4.2 Representações da práticado assistente social no Sanatório Meduna ........................ 184 4.2.1 A compreensão do Serviço Social pelos assistentes sociais ...................................... 185 4.2.2 Representação dos usuários e de suas famílias para os assistentes sociais ................. 193 4.2.3 Representação da prática do assistente social para os usuários e seus familiares ....... 198 4.2.4 Os assistentes sociais na visão dos outros profissionais ............................................. 207 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 212 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 218 ANEXOS 227 Lima, Maria José Girão L 732 p. A prática do assistente social na área da saúde mental: uma análise centrada na cidadania dos usuários / Maria José Girão Lima. – Teresina: 2004. 233 p. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas) UFPI, 2004 1. Serviço Social – Prática. 2. Saúde Mental – Serviço Social. I Título 13 INTRODUÇÃO O presente estudo aborda a prática do assistente social na aérea da Saúde Mental e tem por objetivos centrais identificar, analisar e refletir sobre essa prática, numa perspectiva centrada na cidadania e nos direitos sociais dos usuários. É, assim, uma investigação que busca imprimir um sentido reflexivo e analítico ao processo de inserção e interlocução do assistente social na saúde mental, em particular no Sanatório Meduna, instituição psiquiátrica privada da cidade de Teresina, no Estado do Piauí, estabelecendo vínculos e relações com a cidadania e os direitos dos usuários desse serviço, a partir das experiências concretas, vividas e experimentadas por esses sujeitos sociais nos nexos cotidianos com esses profissionais. Dessa forma, o tema proposto e analisado neste estudo teve como objeto central a prática do assistente social na área da saúde mental, interligando-a à cidadania e aos direitos dos usuários. A escolha e o interesse por tal temática se fundamentaram no entendimento de que o trabalho do assistente social, no âmbito institucional do Sanatório Meduna, vem se desenvolvendo sob a preocupação de se engendrar novos rumos e significados a uma prática profissional que no, cotidiano, elabora e responde ao conjunto de questões e problemas postos pelos indivíduos e grupos sociais. Nesse viés, o profissional é a todo o momento solicitado a intervir nas mais diversas situações, marcadas pelos movimentos, contradições e dilemas presentes na sociedade em geral e na vida dos indivíduos e grupos com os quais mantêm relações profissionais, pelo que dele se exige um posicionamento teórico e metodológico, resolutivo e capaz de redirecionar os conflitos e tensões inerentes aos seus espaços ocupacionais, na perspectiva dos direitos e da cidadania dos usuários. O impulso à pesquisa se deu, então, pelo desejo de compreensão mais clara sobre a prática do assistente social na instituição psiquiátrica, observando e analisando até que ponto ela está comprometida com a cidadania e os direitos dos usuários, uma vez que leva em conta um contexto multidimensional em que estão inseridos a história, a sociedade, a instituição psiquiátrica e os sujeitos participantes da investigação, na conjuntura da realidade brasileira e piauiense. Na verdade, refletir acerca da prática do assistente social no espaço da referida instituição psiquiátrica, observando sua vinculação com a cidadania e os direitos dos usuários, mostrou-se uma fonte de motivação que desafia e encanta. Desafia porque se 14 pretende analisar um processo que envolve os próprios sujeitos sociais dessa prática, captando, apreendendo e recolhendo as suas falas, discursos, opiniões e vivências objetivas e subjetivas, em dados momentos e situações. E encanta porque moveu a pesquisadora a trilhar um caminho que se configura como o próprio campo de sua atuação como assistente social, há alguns anos como membro da equipe interdisciplinar na área da saúde mental, vivenciando, no cotidiano, os movimentos que permeiam a prática profissional dentro de um universo social, em contínua transformação e acomodação. Assim, a vivência cotidiana na área determinou a escolha da temática, que se vem constituindo em interesse da pesquisadora desde as primeiras incursões e experiências, na condição de estagiária do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí, no Hospital Areolino de Abreu, no início da década de 1990, e depois como assistente social e como cidadã que, ao longo desses anos, tem experienciado um conjunto de múltiplas situações, ainda pouco trabalhadas, pelo que algumas indagações se firmaram, a exigir respostas. Quais têm sido de fato as preocupações centrais da prática do assistente social no Sanatório Meduna, em termos de demandas e necessidades dos indivíduos e grupos sociais com os quais mantêm relações e vínculos profissionais? Que direções têm tomado essa prática na atualidade? Até que ponto a prática do assistente social está mesmo voltada para a cidadania e os direitos dos usuários desse serviço de saúde? Quais os limites dessa prática no Meduna? De que modo tem ela contribuído no tratamento e recuperação do portador de transtorno mental (PTM)? Que representações se constroem entre os sujeitos no Sanatório, sobretudo sobre os assistentes sociais, os usuários e as famílias dos usuários? Essas e outras interpretações dão um sentido social à reflexão da prática profissional do assistente social no Sanatório Meduna, levando em consideração as relações sociais tanto no que se refere ao contexto imediato, singular e particular dessa prática profissional, quanto às com o contexto mais global da sociedade, pois é na vida cotidiana que “se consolidam, se perpetuam ou se transformam, no mundo moderno, as condições de vida mais amplas [posto que] [...] é nela e sobre ela que realizamos nossa prática” (CARVALHO, 1996, p.51). Desse modo, este estudo leva em conta que a profissão de Serviço Social é “aqui compreendida como um produto histórico, e, como tal, adquire seu sentido e inteligibilidade na história da sociedade da qual é expressão” (IAMAMOTO, 1998, p.203). Disso decorre que, historicamente, no contexto da sociedade brasileira, o Serviço Social insere-se e se concretiza a partir da divisão social e técnica do trabalho e do conjunto das necessidades dos indivíduos e grupos que a ela compõem, sendo uma profissão social e contraditoriamente 15 determinada por múltiplas relações, afirmando-se como especialidade do trabalho em íntima vinculação com o processo de formação da questão social, que no Brasil emergiu no final do século XIX. Para Cerqueira Filho (1982), nesse período, a questão social que era tratada com todo o rigor pela polícia, era ocultada pelas elites oligárquicas da época, que a viam como irreal, ilegal e subversiva, em síntese um „caso de polícia‟, cujo tratamento severo ocorria no interior dos aparelhos estatais. É que a questão social não sensibilizava os dirigentes desse poder oligárquico, encarada que era como fato pontual e excepcional. Somente nas três décadas iniciais do século XX, em meio à implantação e o fortalecimento do capitalismo, a questão social ganhou um novo significado político, tornando-se premente e requerendo do Estado um outro tipo de enfrentamento, que não apenas a repressão. Essa época é marcada por intensos processos de urbanização e complexificação das relações sociais e da intensificação de protestos, por melhorias urgentes, da classe trabalhadora. Em tal contexto, a realidade social passava por fortes mudançasnos aspectos econômico, político, social e cultural em razão dos quais o Estado implementava medidas estratégicas sob um aparato legal. É assim, nesse contexto de adversidades, que, surgirá, na década de 1930, o Serviço Social, no seio do bloco católico, como desdobramento da união de setores da Igreja e de grupos estatais ligados a ela, tendo como objetivo principal propagar os ideários da Doutrina Social da Igreja e intervir na realidade social para enfrentar a questão social, humanizando-a. O Serviço Social nasce, então, para atender a um conjunto de exigências e necessidades do processo de industrialização, devendo intervir na questão social sob o princípio da visão cristã, embora as medidas levadas a efeitos pela Igreja Católica, baseadas na caridade e na filantropia, já não mais davam conta de responder à problemática, que se complexificava, sob a égide do desenvolvimento capitalista. Nesse âmbito, serão criadas diversas instituições estatais e não estatais onde atuará o assistente social, um profissional munido de instrumentos e métodos que o auxiliariam no gerenciamento dos conflitos sociais e na “suavização” da questão social. Nessa conjuntura de mudança, a profissão de Serviço Social se institucionalizará no país, no seio da sociedade brasileira e no interior das grandes instituições, como parte constitutiva e constituinte dessa sociedade. Aliás, a ação social do Serviço Social fica fortemente atrelada ao Estado, posto que o assistente social atua em face das políticas sociais implementadas pelas instituições assistenciais estatais e não-estatais, imprimindo à prática profissional uma racionalidade e uma sistematização dentro da lógica prevista por essas 16 entidades, que era a de impor à sociedade, sobretudo à classe trabalhadora, o estímulo e a cooperação entre as classes, estabelecendo o consenso para a aceitação das relações sociais em vigor. Vale ressaltar que em consonância com os objetivos delineados para este estudo, interessa uma análise o mais profunda possível do Serviço Social, sobretudo a partir do Movimento de Reconceituação (MRSS), ocorrido na categoria na década de 1960, tanto no continente latino-americano quanto no Brasil, significando um marco histórico e “decisivo no desencadeamento do processo de revisão crítica do Serviço Social no continente” (IAMAMOTO, 1998, p.205). Nesses termos, o Movimento de Reconceituação acontece num contexto econômico, político, social e histórico das sociedades latino-americana e brasileira, marcado por amplos questionamentos e críticas às formas tradicionais e conservadoras de intervenção da profissão, tendo como base, até então, os fundamentos do positivismo e do funcionalismo. Foi esse um momento fértil, quando se problematizaram a prática profissional e os princípios teóricos e metodológicos que a embasavam até então, buscando-se um novo posicionamento e imprimindo a ela rumos, direções e práticas que rompessem e superassem a postura conservadora que lhe vincava. Esse processo amadureceu na década de 1980, quando são fomentadas novas discussões e posturas profissionais. Isso se dá num cenário de efervescência política e social balizado por uma ampla transformação social e pela redemocratização do país, com a superação da ditadura militar e a reorganização dos movimentos sociais, o que culmina na promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconhece a todos os brasileiros como cidadãos e por isso consolida e alarga os direitos sociais dos trabalhadores, independentemente de contribuição, raça, cor, sexo, religião ou credo. Nesse contexto, sob uma nova perspectiva e uma atmosfera democrática, nos anos de 1990 o Serviço Social engendra novos rumos e direções para a sua prática profissional, balizando-se na defesa dos direitos e da cidadania da população e dos grupos sociais mais empobrecidos e destituídos da riqueza produzida socialmente. Por isso que a profissão de Serviço Social, como um elemento constituinte e constituído pelo conjunto dos vínculos, nexos e processos contraditórios que se estabelecem no interior da sociedade capitalista e das relações humanas e sociais, entra no novo milênio, postulando novas propostas e assumindo e fortalecendo novos compromissos ético-políticos, quer como categoria, quer como um dos protagonistas desse elenco de mudanças, no sentido de garantir os direitos e a cidadania dos usuários dos serviços e das políticas sociais. 17 É, assim, em sintonia com o conjunto dessas transformações, ocorridas na sociedade brasileira e na profissão, que o tema aqui analisado brotou e se desenvolveu, tendo como referência a prática do assistente social na área da saúde mental, centrada na cidadania e nos direitos dos usuários desse serviço especializado. Na verdade, a procura se dá pela apreensão de que a profissão de Serviço Social é um produto de múltiplas determinações, não estando determinada aprioristicamente, pois o sentido que os profissionais imprimirão à sua prática sofre os reflexos das lutas, contradições e dilemas de uma conjuntura mais ampla, num movimento contínuo, dinâmico e contraditório que envolve a sociedade, os indivíduos e os grupos sociais. Significa dizer que os processos de inserção do profissional de Serviço Social no universo das diversas instituições se faz de acordo com a historicidade e dinamicidade da sociedade e de suas relações sociais, podendo assumir diferentes posições, segundo a maneira de ver e conceber a realidade social e o agir sobre ela. Nessa direção, o estudo busca analisar, os diversos processos que envolvem a dialeticidade e historicidade que marcam a profissão de assistente social, ao inserir-se, em dadas circunstâncias, nas várias instâncias da sociedade, como o Estado, as instituições, os grupos e as classes sociais, que se encontram em permanente movimento de luta, estabelecendo múltiplas relações, significados e rumos. Assim, o objetivo é mesmo compreender a prática profissional do assistente social na área da saúde mental, dentro de um movimento dinâmico em que se estabelecem vínculos e relações com os grupos sociais, sobretudo com os mais empobrecidos, tomando como referência uma perspectiva ampla, que envolve os nexos, ligações, vínculos e processos que perpassam esse fazer, na concretude de cada realidade, evidenciando-se na totalidade e na historicidade de uma dada realidade social, institucional e profissional, sob os aportes da dialética crítica. A adoção de um percurso metodológico ancorado na dialética crítica se justifica na medida em que esta aborda o real no contexto das múltiplas relações sociais e na perspectiva dos movimentos da totalidade histórica e da contraditoriedade dos problemas, necessidades, lutas e reivindicações sociais, que envolvem práticas e sujeitos concretos. Nessa ótica, a sociedade é uma estrutura complexa, multidimensional, contraditória e em permanente movimento, na qual os sujeitos que a compõem vivenciam múltiplas experiências e sentimentos diversos e dilemáticos, como atores protagonistas da história, de sorte que através da dialética crítica é possível adquirir o suporte para se compreender de modo mais amplo a totalidade e as nuances da realidade complexa da prática do assistente social em dadas instituições e espaços de atuação profissional. Nessa perspectiva, leva-se em 18 consideração, de forma articulada, contraditória e dinâmica, elementos de análises como objetividade, subjetividade, totalidade, particularidade, singularidade, transitoriedade, historicidade, cultura, ideologia, etc. Aliás, diz Michael Löwy (1985, p.14) que a hipótese fundamental da dialética é de que não existe nada eterno, nada fixo, nada absoluto. Não existem idéias, princípios, categorias, entidades absolutas, estabelecidas de uma vez por todas. Tudo o que existe na vida humana e social está em perpétua transformação, tudoé perecível, tudo está sujeito ao fluxo da história. Enfim, a dialética leva a pensar a realidade e o sujeitos sociais em permanente contradição e dinamicidade, num movimento contínuo de acomodação e transformação. Como método de investigação da realidade, insere-se no quadro das abordagens qualitativas de estudo, que tentam analisar os objetos investigados numa dimensão de totalidade e dinamicidade históricas. Nesse sentido, a escolha por essa abordagem é explicável por Minayo (2002, p.21-2) quando diz que a pesquisa qualitativa responde a questões muitas particulares. Ela se preocupa nas ciências sociais com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. É por essa perspectiva que se pretende, neste estudo, conceber que a profissão e a prática profissional do assistente social, que ao assumir rumos e sentidos variados no seu processo de inserção na dinâmica societária, enfatiza que isso não está determinado a priori. É que, mesmo sendo, em última instância, socialmente determinado pelas relações e pelo modo de produção capitalista, o Serviço Social, ao inserir-se historicamente nas sociedades brasileira e piauiense, na trama das relações sociais, permeia e é permeado por interesses, conflitos, dificuldades, contradições e dilemas, inerentes à essas sociedades, em permanente processo de transformação. Dessa forma, é possível que, em dados momentos e circunstâncias históricas a direção que os profissionais imprimem a sua prática depende do conjunto das forças sociais em luta, podendo engendrar ações no rumo de corroborar, de alguma forma, para a defesa e a garantia dos interesses dos grupos mais empobrecidos e excluídos da sociedade, ou, ao contrário, assumir, na sua intervenção, os pleitos dos setores mais abastados e detentores do poder econômico e político. No entanto, nesse estudo parte-se do 19 entendimento de que, não existe um Serviço Social que canalize suas ações somente aos setores mais abastados da sociedade ou que assuma uma posição apenas favorável aos setores mais empobrecidos, pois, como já se afirmou, a profissão e os profissionais, no seu cotidiano, influenciam e são influenciados, pelo complexo das múltiplas relações sociais em confronto, de sorte que, num contexto social mais amplo, os rumos, sentidos e limites que o profissional de Serviço Social imprime à sua prática estão relacionados a fatores que lhes são internos e externos e lhes influenciam cotidianamente. Como exposto anteriormente, a instituição escolhida como lócus é o Sanatório Meduna, o que se justifica por se constituir ela num dos centros de referência na assistência em saúde mental no Piauí e mesmo para alguns estados vizinhos, como o Maranhão e por ser o espaço ocupacional da pesquisadora, onde exerce a prática profissional de assistente social, despertando-lhe assim, o interesse de melhor conhecer o Serviço Social do hospital, posto que nele também atuam outros profissionais da área. Ademais, o Sanatório Meduna é uma instituição ainda pouco explorada por pesquisas acadêmicas, apesar do meio século de existência prestando serviços de saúde mental à comunidade, sobretudo a piauiense. No geral, o universo da pesquisa se constitui pelo grupo de profissionais de nível superior do Sanatório Meduna que compõem a equipe interdisciplinar do setor de Internação Integral, ou convencional. A escolha desses sujeitos 1 está baseada numa amostra intencional, estabelecida em função dos objetivos a alcançar, de modo que, no que respeita ao quadro de assistentes sociais, que totaliza quatro profissionais, incluindo a pesquisadora, três delas foram envolvidas, sem mencionar que dos 16 profissionais que compõem a equipe dos demais profissionais do Sanatório Meduna, entre psiquiatras, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, educador físico, nutricionista e psicólogos, três destes foram envolvidos na pesquisa. Participaram também dois diretores (um clínico e um dos fundadores da instituição que atuou, igualmente, como diretor clínico, por várias décadas). Do universo dos usuários, que correspondia a 220 na época da realização da pesquisa de campo 2 , formou-se uma amostra de pelo menos 5%, o que equivale a onze usuários, com suas respectivas famílias ou responsáveis, totalizando, assim, 22 pessoas. Essa escolha dos usuários levou em conta critérios como se achar internado no Sanatório entre os meses de novembro de 2003 a janeiro de 2004, ter alta médica marcada ou prevista, possuir mais de uma internação no Meduna, o grau de interesse em participar das atividades efetivadas sob a orientação da assistente social, 1 Neste estudo, os nomes dos sujeitos participantes serão fictícios, como forma de garantir o anonimato das pessoas entrevistadas. 2 O período da realização da pesquisa de campo compreendeu os meses de novembro de 2003 a janeiro de 2004. 20 como Grupo Informativo, Grupo Terapêutico, Recreação e Festas Comemorativas, e a condição psíquica ao tempo da pesquisa, em termos de diálogo e orientação no tempo e espaço, etc. São, no caso, trinta o total de sujeitos entrevistados 3 , sempre sob o devido consentimento. Todos esses sujeitos têm importância e significação no processo de luta, reflexão e construção da prática profissional do Serviço Social no Sanatório Meduna. São, aliás, estes sujeitos assistentes sociais, usuários, familiares, demais profissionais da equipe multiprofissional e representantes da direção que convivem e mantêm uma interação no mesmo espaço de trabalho e compartilham das ações voltadas para o tratamento especializado do transtorno mental. Antes da coleta de dados, realizaram-se junto aos sujeitos envolvidos, inúmeros contatos formais e informais, com reiteradas explicações sobre os objetivos e a importância da pesquisa, sendo, nessas ocasiões, solicitados o apoio e a cooperação, de acordo com o interesse e a possibilidade de cada um. Aproveitou-se principalmente os horários de visitas dos familiares dos usuários ao Sanatório Meduna para o contato com eles, embora outros se tenham realizado ora por telefone, ora pessoalmente, já que um levantamento prévio dos usuários de alta nos meses da realização da pesquisa de campo foi efetivado para um planejamento das entrevistas. Esse foi, sem dúvida, um momento de maior aproximação com os sujeitos, em particular com as famílias, sondando-se seu desejo e interesse em participar do processo de construção do estudo. Com essas informações preliminares, elaborou-se um roteiro de entrevista semi- estruturada, que considerou alguns eixos centrais a fim de atingir os objetivos pretendidos. Nesse sentido, toma-se como referência Triviños (1987, p.146) quando diz que “a entrevista semi-estruturada [...], ao mesmo tempo em que valoriza a presença do investigador, oferece todas as perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessária, enriquecendo a investigação”. Esse entendimento deu ao roteiro de entrevista três eixos principais: a) A experiência concreta do assistente social (o que faz; como faz; por que faz; quais as dificuldades, possibilidades e limites da prática profissional); 3 O número de trinta sujeitos entrevistados atendeu aos objetivos planejados para este estudo. 21 b) A relação profissional x usuários e suas famílias (como se dá; qual a visão que o profissional tem dos usuários e de sua família e que as famílias e os usuários têm dos assistentes sociais); c) A relação profissional do Serviço Social x instituição e equipeinterprofissional (como se dá; como a instituição e a equipe vêem o Serviço Social e quais as dificuldades, limites e possibilidades dessa relação na perspectiva dos direitos dos usuários). Sob esses eixos norteadores, em seguida foi feita a formalização das entrevistas que, mediante o aval dos sujeitos, foram gravadas em fita K7. Essa gravação possibilitou a análise das questões centrais à prática do assistente social na relação com os usuários e suas famílias, a instituição e a equipe interdisciplinar, mostrando com mais evidência as lutas, contradições e dilemas presentes no cotidiano profissional. As entrevistas realizadas com as assistentes sociais duraram em média de 1h30 a 2h e foram realizadas em novembro de 2003. Na ocasião, as profissionais se mostraram de imediato interessadas em apoiar e cooperar com a presente pesquisa, sendo que uma delas não aceitou a gravação. De modo geral, no desenvolvimento das entrevistas, tentou-se colher e valorizar as falas, as expressões, os gestos, os olhares, enfim, os dados de natureza mais qualitativa, por serem carregados de múltiplos significados. No que tange aos outros profissionais, foram entrevistados um psiquiatra, uma psicóloga e uma enfermeira, tendo-se a preocupação de se escolher aqueles que, além de interessados em participar da pesquisa, também se mostraram mais próximos às atividades desenvolvidas pelas assistentes sociais. O tempo de duração das entrevistas foi, em média, de 40 minutos, e foram realizadas no mês de janeiro de 2004. Com relação aos membros da direção, foram escolhidos, conforme explicado, o atual diretor técnico e o ex-diretor, um dos fundadores do Sanatório Meduna. O primeiro representa a possibilidade de se ter uma nova visão na forma de dirigir e administrar o espaço institucional, dando um redirecionamento à assistência psiquiátrica e um novo olhar sobre a atuação do assistente social. Já o segundo, como sócio e fundador, apresenta uma larga experiência, vivência e convívio com a realidade da instituição psiquiátrica, de sorte que, como um estimulador da criação do Setor de Serviço Social, enquanto esteve na direção, sempre motivou e valorizou os seus profissionais no desenvolvimento de suas atividades. As 22 entrevistas tiveram o tempo médio de 1 hora de duração e foram realizadas no mês de janeiro de 2004. Já os usuários em internação integral e suas respectivas famílias ou responsáveis, num total de 22 que se mostraram interessados em participar da pesquisa, as entrevistas com eles duraram em media de 40 minutos a 1 hora e sua realização se deu no período de novembro de 2003 a janeiro de 2004, sendo que seis famílias foram entrevistadas pela pesquisadora no próprio Sanatório, pois assim preferiram, enquanto as outras o foram em casa, após combinados horário e data, de acordo com a disponibilidade de cada uma. No geral, em todas as entrevistas se tentou enfatizar os aspectos e dados mais qualitativos, havendo, quando necessário, uma adaptação do roteiro, cujos três eixos foram delineados para as entrevistas com as assistentes sociais. Além da entrevista semi-estruturada, realizada com todos os sujeitos, um outro instrumento foi a observação participante, uma técnica com a qual se pode captar os fenômenos da realidade social não percebidos através de perguntas. O seu uso requer que o pesquisador esteja diretamente no campo, no meio das situações em que o objeto de estudo se manifesta, tendo ocorrido no cotidiano da instituição, onde se observaram as diversas situações concretas correlatas à prática do assistente social no dia-a-dia de trabalho, bem como sua importância e riqueza. Ademais, para entender a prática do assistente social no Sanatório Meduna, mesmo com a escassez de dados documentais, garimparam-se informações em alguns textos, como os livros de relatórios do Serviço Social, as quais foram anotadas em diário de campo, sem mencionar que todo o acervo de dados foi subsidiado e enriquecido, pelo aporte de informações apreendidas sobre Saúde Mental e Serviço Social constantes nas referências bibliográficas aposta ao final deste estudo. Os depoimentos contidos nas entrevistas foram trabalhados numa perspectiva da dialética crítica, por meio da organização de temas, questões e experiências que destacaram os movimentos, as lutas, as contradições, enfim, a totalidade histórica dessa prática profissional na saúde mental, sobretudo do ponto de vista da cidadania e dos direitos sociais dos usuários e familiares. Deve-se, porém, reafirmar que a pesquisa enfatiza o momento atual da prática do assistente social no Sanatório Meduna, mas entendeu-se necessário e importante, para se compreender tal momento, percorrer sinteticamente a prática do assistente social no país desde a década de 1970, sobretudo aquela relacionada à saúde mental, interrelacionando-a com o contexto mais amplo da realidade brasileira. Por fim, esse longo caminho em que se tenta sistematizar e analisar as informações e dados apreendidos, procede-se à análise da 23 inserção do Serviço Social no Sanatório Meduna, tendo-o como um agente construtor e propulsor de relações e mediações entre o usuário, a família, a instituição e a sociedade, cujos movimentos estabelecem significados, rumos e dinâmicas variados e múltiplos, que, em última instância, objetivam estar, cada vez mais, em sintonia com a garantia da cidadania e dos direitos do PTM. Em termos gerais, as principais dificuldades e desafios ao desenvolvimento desta pesquisa foram os concernentes à falta de arquivos documentais acerca da criação do Serviço Social na instituição, o que levou a ter como fonte principal de informação as falas, discursos e expressões dos sujeitos entrevistados, na construção e reconstrução do processo de inserção do profissional de Serviço Social no Meduna. Houve, também, situações em que os usuários selecionados, no momento de entrevista, não tiveram condições de participar, por se encontrarem com quadro de desorientação, inquietação e discurso fragmentado, sendo necessário adiar ou escolher um outro PTM para substituí-lo, sem dizer da escassez de literatura que aborde a intervenção do assistente social nessa área, tanto no Brasil quanto no Piauí. Almejando atender aos objetivos expostos, o resultado do presente estudo encontra-se estruturado, neste Relatório, em quatro capítulos. No primeiro, “Doença mental e assistência psiquiátrica no Brasil”, reconstrói-se a trajetória das manifestações da doença mental no Brasil, em particular no Estado do Piauí, enfatizando as principais medidas adotadas pelo poder público na direção do processo de institucionalização da assistência psiquiátrica no estado, observando os seus desdobramentos nas sociedades brasileira e piauiense. Para isso, desenvolve-se uma análise geral, de caracterização das Políticas de Saúde em geral e de Saúde Mental no Brasil, ressaltando-lhes os avanços, dilemas, contradições e recuos, ao longo de seu processo de constituição na sociedade brasileira. No segundo capítulo, “O Sanatório Meduna: fundação do Hospital e estrutura funcional”, examina a trajetória histórica do precursor da psiquiatria piauiense, Clidenor de Freitas Santos, enfatizando as principais medidas adotadas no redirecionamento da assistência psiquiátrica no Piauí e o processo de fundação e estruturação do Sanatório como uma instituição privada que, mantêm convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS) e há meio século presta assistência psiquiátrica no Estado do Piauí. Além dos avanços e recuos da psiquiatria piauiense, enfoca-se ainda, os serviços oferecidos pelo Meduna e o percurso do PTM e família no seu interior, bem como uma análise do funcionamento e estrutura interna da instituição. 24 O terceiro capítulo, “Serviço Social como prática profissional”, dedica-se ao um estudo mais amplo e profundo do processo de constituiçãodo Serviço Social no Brasil, a partir, sobretudo, do Movimento de Reconceituação do Serviço Social (MRSS), que emergiu, em 1965, numa conjuntura de inúmeras transformações econômicas, políticas, sociais, ideológicas e culturais que floresceram nas sociedades brasileira e latino-americana, Movimento esse que, questionou os aportes teóricos, metodológicos e políticos que até então sustentavam a profissão. Nesse sentido, faz-se um balanço dos principais aspectos do surgimento do Serviço Social e seus desdobramentos como sujeito histórico no processo de enfrentamento da questão social no Brasil, bem como se examina o processo de inserção e interlocução do assistente social na área da saúde mental na sociedade brasileira, em particular no Sanatório Meduna, particularizando-a e articulando-a com a viabilização e a garantia da cidadania e dos direitos do PTM. O quarto capítulo, “O Serviço Social e a cidadania do portador de transtorno mental”, dedica-se à análise, reflexão e ampliação do entendimento do significado do processo de constituição da cidadania no Brasil e da relação do Serviço Social com a temática. Em sintonia com os capítulos anteriores, a cidadania se demarca pela superação de seu conceito clássico por uma nova perspectiva, que a abrange como um processo histórico em constante movimento, mutação, consolidação e aperfeiçoamento. Com base nessas considerações, discute-se a apreensão das representações construídas acerca da prática profissional do assistente social pelo conjunto dos diversos sujeitos protagonistas do estudo, tomando como ponto de partida suas falas, gestos, sentimentos, expressões, saberes, desejos, vontades, vivências e experiências, evidenciado-se os usuários, a instituição psiquiátrica, a família, as assistentes sociais, os demais profissionais, pelo elucidamento das inúmeras representações ou “imagens sociais”, da prática do assistente social no Sanatório Meduna, notadamente ao estabelecerem relações profissionais. Em síntese, esta pesquisa pretende contribuir para o enriquecimento das reflexões acerca dos processos de inserção do assistente social nos diversos espaços ocupacionais na sociedade brasileira, em especial na área da saúde mental no Sanatório Meduna e no Estado do Piauí, fomentando-se novos questionamentos nessa área, protagonizada por assistentes sociais, mas ainda carente de análises. Por último, busca este estudo o fortalecimento das ações dos assistentes sociais na perspectiva dos direitos e da cidadania dos usuários dos serviços sociais, particularmente os de saúde mental. CAPÍTULO I DOENÇA MENTAL E ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL Este capítulo tem por objetivo contextualizar historicamente as manifestações da doença mental no Brasil, sobretudo no Estado do Piauí, ressaltando as principais medidas tomadas pelo poder público na área e seus desdobramentos nas sociedades brasileira e piauiense. Para isso, será feita, primeiramente, uma caracterização geral da trajetória das Políticas de Saúde no Brasil, com seus avanços e recuos. 1.1 As Políticas de Saúde no Brasil Diferentemente do que ocorreu nos países centrais, as políticas de proteção social no Brasil, sobretudo as Políticas de Saúde, tiveram, segundo especialistas como Bravo (2000), Conh (2001), Faleiros (2000) e Draibe (1990), um desenvolvimento lento, frágil e tardio, além de historicamente manter íntima relação com o processo de acumulação capitalista, no sentido de que, por um lado, o seu uso e gestão pelo Estado se dá como mecanismo de intervenção na sociedade brasileira, objetivando, em última instância, garantir a reprodução das relações sociais fundamentais dessa sociedade. Por outro, as políticas de proteção social, nos diversos contextos histórico-políticos de constituição da sociedade brasileira, representam também um processo de luta e conquista de cidadania do povo, em especial dos setores organizados. Não obstante, a efetivação e consolidação das Políticas Sociais, em particular das Políticas de Saúde, como conquista da cidadania, não está acabado, pois vem sendo (re) construído e (re) efetivado ao longo da história do país, apesar dos avanços, recuos, limites e dificuldades de ordem e natureza variadas ainda não plenamente superados e que convivem, ao mesmo tempo, com novos desafios e exigências, impostos por uma sociedade em permanente mudança. Nesses termos, os diversos problemas relacionados à área de saúde no Brasil, nos seus diferentes momentos históricos, vêm, desde a década de 1920, sendo postos, pela sociedade, como uma questão a ser enfrentada pelo poder público de forma mais sistematizada. Na verdade, os problemas sociais e os da área da saúde se agravam por conta de um conjunto de alterações nos modos de organização social, econômica e política, tendo, 163 segundo Bravo (2000, p.105), “como indicadores mais visíveis o processo de industrialização, a redefinição do papel do Estado” e outros requerimentos advindos, principalmente, da classe trabalhadora, o que fez com que o Estado adotasse medidas mais planejadas para atender aos reclamos da reestruturação por que passava a sociedade, à época. Nesse contexto de profundas mudanças na organização econômica, política e social, as Políticas de Saúde no Brasil se vêem, no decorrer de sua trajetória, transpassada por dilemas e impasses ainda não superados e, às vezes, agravados, como, por exemplo, a falta de recursos financeiros próprios para o setor, o incentivo e privilégio aos serviços médicos do segmento privado em detrimento da valorização do público e a ênfase nas medidas de caráter mais curativo que preventivo. É que, até então, a saúde era compreendida sob a lógica de ausência de doenças, deslocada, assim, de uma visão mais ampla, que as vê no interior de um processo social, histórico e contraditório, em permanente transformação e acomodação. No Brasil, esse entendimento estreito só veio a ser superado, alcançando-se uma amplitude mais expressiva, com a Constituição de 1988, porquanto “a proteção social, até então praticamente restrita aos contribuintes do sistema previdenciário, foi estendida à população em geral [...], bem como se viu afirmada a universalização dos serviços de saúde e de assistência social” (COHN, 2001, p.55). É, pois, nessa Carta, que há a tentativa de superação do velho conceito de saúde, relacionado à ausência de doenças, agora tida como um direito do cidadão e um dever do Estado, que deve gestá-la para todos, sem nenhuma distinção de raça, sexo, cor ou classe social. Com efeito, com o Texto de 1988 a saúde passa a definir-se sob uma ótica mais ampla, compreendida no contexto das condições sócio- econômicas dos indivíduos, grupos e classes sociais, inserindo-se nelas a moradia, a educação, a alimentação, o trabalho, o lazer e a cultura vivenciados pela população e agora um direito universal, independentemente de qualquer contribuição prévia, uma vez que se trata de elemento da cidadania dos homens e mulheres do país. A saúde, por esse ângulo, é um processo social sempre em construção e maturação e, assim, nunca acabado, podendo-se, então, dizer que “o sistema de saúde transitou do sanitarismo campanhista (início do século XX até 1965) para o modelo médico-assistencial privatista, até chegar, no final dos anos 80, ao modelo plural, hoje vigente, que inclui, como sistema público, o SUS” (MENDES, 1999, p.58). Na verdade, um dos primeiros sistemas de Política de Saúde adotados no Brasil, como forma de enfrentamento da questão social, deu-se no início do século XX, foi o “Sanitarista Campanhista”, levado a cabo pelo Estado brasileiro sob dois sub-setores: saúde 164 pública e medicina previdenciária. A concepção de saúde do modelo campanhista baseava-se numa explicação monocausal dos problemas relacionados à área que, segundo Mendes (1999,p.58), “se explicam por uma relação linear entre agente e hospedeiro”, entendendo-se então que o combate à doença era possível pelo rompimento dessa relação linear, através de medidas intervencionistas de cunho repressivo. A adoção do modelo é uma resposta às adversidades da conjuntura dos anos de 1930, cujos acontecimentos principais se vinculavam à crise mundial do capital, a chamada “grande depressão”. Trata-se de uma conjuntura de franca expansão urbano-industrial do país, marcada por forte crise social, com desemprego, baixos salários e migração do campo, o que agravava profundamente as condições de vida da população que, nesse momento, organizava-se de modo crescente e significativamente, reivindicando melhorias e garantias de direitos, como dentre outros, férias e redução da jornada de trabalho. Tal contexto, se comparado a outros períodos, conclamava o Estado brasileiro a redirecionar suas ações e a reconhecer os problemas sociais e seus reflexos na área da saúde como questão política a ser enfrentada e solucionada sob seu comando e direção. São, por isso, elaborados e implementados pelo Estado, como resposta, aparatos político-estratégicos de intervenção na saúde, procurando canalizar as tensões sociais que, à época, se formavam. Assim, a grande preocupação do governo na área da saúde pública, pelo menos no início, volta-se para a melhoria das condições sanitárias básicas da população, principalmente no setor urbano do país, já que, na área rural, as ações foram tímidas e pouco intensas. Por conseguinte, nas décadas de 1930 e 1940, as medidas centrais se referem ao planejamento de campanhas sanitárias e à coordenação dos serviços estaduais de saúde, sob o comando do Departamento Nacional de Saúde (DNS), que leva para as principais cidades e para as áreas rurais o combate às endemias, como malária, febre amarela, gripe espanhola, varíola, dentre outras doenças comuns à época. Não obstante, segundo Draibe (1990), Bravo (2000) e Faleiros (2000), o principal interesse do governo com as campanhas sanitárias era sanear os portos marítimos e as ruas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, visando proteger o comércio e a nascente indústria, de modo a garantir o processo de acumulação do capital. O governo também agiu, embora com menos ênfase, no campo da medicina previdenciária, implementando-se em 20 de janeiro de 1923, por lei do deputado paulista Elói Chaves, as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP‟s), na verdade a primeira forma de seguro para os trabalhadores. A CAP‟s pioneira foi a dos ferroviários, criada pelo decreto federal 4.682, de 24 de janeiro de 1923, que estendia os benefícios para outras empresas com 165 mais de cinqüenta empregados em seus quadros, sendo esse tipo de previdência fortalecido pelo poder público nos anos de 1960 (COHN, 2001), valendo porém lembrar que, já em 1919, tinha sido aprovada, por ações do senador paulista Adolpho Gordo, uma lei de seguros de acidentes de trabalho operados por seguradoras particulares. O principal caráter das CAP‟s era promover amparo médico assistencial aos formalmente inseridos no mercado de trabalho que para elas contribuíam, de modo que o acesso a esses serviços era, assim, restrito, com as CAP‟s organizadas por empresas e administrado e financiado o sistema pelo empresariado e os trabalhadores. Em 1933, foram criados, pelo governo brasileiro, os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP‟s), que abrangiam serviços diferenciados, como aposentadorias, auxílios- doença e auxílios-funeral, também não estendidos a todas as categorias de trabalhadores, já que, num primeiro momento, destinavam-se apenas às ligadas à infra-estrutura de serviços públicos e, posteriormente, a outros setores, como os ferroviários e os portuários. Para Bravo (2000 p.106), a criação desse sistema “pretendeu estender para um número maior de categorias de assalariados urbanos os seus benefícios como forma de antecipar as reivindicações destas categorias e não proceder a uma cobertura mais ampla”. Na verdade, só tinham acesso a esses benefícios os trabalhadores reconhecidos, pelo governo, como integrantes de categorias importantes ao processo de produção que se encontrassem em situação ocupacional legitimada pelo vínculo contratual contributivo. Nesses termos, só eram cidadãos os trabalhadores com profissão reconhecida em lei como atividade laborativa, de modo que homens e mulheres não enquadrados nesse perfil eram tidos como pré-cidadãos, condição essa que abrangia larga parcela da população brasileira, como os trabalhadores do campo. A carteira de trabalho passa então a ser o principal instrumento de exercício e garantia dos direitos sociais, de tal forma que a esse tipo de cidadania Santos (W., 1979, p.75) atribui o adjetivo “regulada”, devido ao caráter de obrigatoriedade de vínculo formal ao mercado de trabalho. Mas, a partir dos anos de 1940 e 1950, tem-se um grande desenvolvimento econômico no país e, conseqüentemente, um expressivo aumento da massa segurada, fase em que o Estado investiu, sobremaneira, no campo da saúde pública, com medidas de melhoria das condições sanitárias das cidades (saneamento básico, cobertura vacinal, etc). Embora importantes, tais inversões não eliminaram, de forma significativa, o quadro de doenças infectocontagiosas e parasitárias, os grandes índices de mortalidade infantil e a mortalidade em geral. 166 Os anos de 1950, 1956 e 1963 são considerados por alguns estudiosos, como Draibe (1990) e Bravo (2000), como os de maior aplicação de recursos públicos na área da saúde. Nesses períodos, os governantes priorizaram os serviços previdenciários e médicos prestados pelos IAP‟s, deixando em segundo plano a compra dos serviços médicos dos setores particulares, que por causa disso exerciam uma grande pressão sobre o governo, no sentido de fortalecer e expandir o seu atendimento hospitalar, não incentivado, naquele momento. Essas estruturas do setor privado que visavam ao atendimento médico hospitalar, montadas a partir da década de 1950, foram intensamente valorizadas na década seguinte, já na ditadura militar, pela ampliação da política assistencial para alcançar, por esse meio, a legitimação do regime de exceção. Instaurara-se, então, no cenário político brasileiro, um governo militar, que adotava um discurso desenvolvimentista de integração nacional e propunha a modernização e o crescimento do país, com investimentos em setores estratégicos, como transportes, estradas e comunicação, de sorte que esse momento, marcado sobretudo pelo enfoque econômico, não se refletisse, com a mesma ênfase na esfera social. Mesmo assim, a ditadura, através do golpe militar, não representou “para a sociedade brasileira a afirmação de uma tendência de desenvolvimento econômico-social e político que modelou um país novo” (BRAVO, 2000, p.107), havendo, nessa fase, um profundo agravamento dos conflitos e problemas sociais e uma desmesurada repressão dos movimentos sociais organizados. Mas, ainda antes do período ditatorial, havia forte pressão dos trabalhadores, que cobram do Estado uma maior eficiência do sistema previdenciário. São formuladas, então, várias normas, entre elas a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) que, editada em 1960, propôs a uniformização dos benefícios prestados pelos IAP‟s, os quais assumiram a assistência médica individual a todos os beneficiários, apesar de a ditadura militar de 1964 adotar o modelo do “privilegiamento do produtor privado” (idem, 2000, p.105), de modo que a Política de Saúde estatal passa, a partir daí, a ser marcada, de um lado, pela valorização expressiva da medicina e da previdência privadas, em que a prática médica volta-se mais para os interesses da lucratividade, em detrimento da saúde pública, e, de outro, pela ênfase no perfil assistencial, com vistas a aumentar o controle do Estadosobre a sociedade, aliviando as tensões sociais e assegurando a acumulação do capital e a “paz social”. Nesse sentido, Cohn (2001, p.45) assevera que esse processo de privatização da saúde promovido pela política previdenciária é de tal monta, sobretudo a partir da criação do INSS no início do regime militar, que no interior da própria Previdência Social, 167 enquanto imagem pública, inverte-se a relação beneficio/prestação de serviços médicos, apesar de os dados orçamentários mostrarem o contrário. Essa inversão demonstra a crescente importância que a assistência médica vem assumindo no interior da Previdência Social. Desse modo, o Estado brasileiro, comandado pelos militares, adotou, segundo Bravo (2000, p.107), medidas baseadas no “binômio repressão-assistência [...], com a finalidade de aumentar o poder de regulação sobre a sociedade [...] e o alijamento dos trabalhadores do jogo político, com sua exclusão na gestão da previdência, ficando-lhes reservado o papel de financiadores [da política previdenciária]”, o que ocorreu concomitantemente ao processo de unificação da Previdência Social, em 1966, como resposta ao interesse estatal de incrementar o papel regulador e interventor sobre a sociedade. Aliás, esse modelo médico-assistencial, valorizador do setor privado, enaltece a “medicalização da vida social” (BRAVO, 2000, p.107), representada por ações de assistência médica curativa individual em detrimento das de caráter preventivo, dirigidas à coletividade, por isso que, doravante, a ênfase na assistência médica privada impossibilitará o acesso de muitos brasileiros aos serviços de saúde, reforçando a exclusão, aumentando as desigualdades sociais e agravando a condição de pobreza de expressiva parcela da população. Isso se dava porque para os governos do período, a saúde necessitava de características capitalistas, devendo incorporar as modificações tecnológicas ocorridas no mundo e, nesse sentido, nada mais coerente que a prática médica orientar-se para a lucratividade, favorecendo a capitalização da saúde e a hegemonia do setor privado. Com tais marcas, as Políticas de Saúde, no plano nacional, apresentam, no período da ditadura militar, graves contradições e tensões, como a ampliação dos serviços e a não disponibilização suficiente de recursos financeiros para o setor, sem mencionar o jogo de interesses provenientes das conexões burocráticas entre o Estado-gestor das políticas, o empresariado-médico-executor e as idéias do emergente Movimento Sanitário. Este movimento originou-se no Brasil ainda nos anos de 1960, ligado aos trabalhadores da saúde que participavam de lutas que a reivindicavam como um direito de todos, exigindo serviços descentralizados com qualidade e abrangência a todos os brasileiros, sem distinção, não sendo possível deixar de sublinhar que o embate incluía a superação do regime autoritário, idéias essas que se fortaleciam e ganhavam força no Brasil de então (TEIXEIRA, 1989). A correlação de forças entre os interesses do setor privado e os do Movimento Sanitário, diferentes e contrários, levou, como estratégia de sobrevivência do autoritarismo 168 burocrático, à formulação de propostas de reforma da estrutura organizacional do Estado que, ao ter de fazer concessões, não obteve pleno êxito. Na verdade, o Estado não logrou alterar a direção da saúde naquele momento, caracterizada fortemente por medidas curativas e pela contratação de serviços do setor privado para executá-las. Ademais, a tentativa do Ministério da Saúde de adotar medidas de saúde pública, objetivando ampliar e interiorizar as ações, através da “implantação de estrutura básica de saúde pública e o aumento de cobertura, viabilizadas por programas pilotos” (BRAVO, 2000, p.108), também não se efetivou, por serem limitadas e de pouca abrangência. Como exemplo podem-se mencionar os casos do Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) e o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento no Nordeste (PIASS), ambos pouco exitosos. Nessa fase, a Política de Saúde apresentava-se, dentro desse arcabouço estatal, como eminentemente assistencialista-clientelista, embasada na concessão e na troca de favores, políticos e pessoais, estando ausente, assim, qualquer noção de direito ou cidadania. Somente no final do período militar o Ministério da Saúde amplia as medidas de saúde pública para fora do circuito urbano, levando, para o interior do país, a atenção primária e aumentando a cobertura e a estrutura do sistema de saúde, até então frágil e excludente. Devido ao fato de o Estado ser o maior financiador do sistema, através da Previdência Social, e por ser o maior prestador de atenção médica, o setor privado devia ter, mas não teve, em contrapartida, um processo de fiscalização rigoroso da qualidade dos serviços oferecidos à sociedade, das prestações das contas apresentadas e dos critérios adotados para as compras de serviços de saúde, o que lhe favoreceu o crescimento vertiginoso (COHN, 2001). Na década de 1970, acentuou-se a tendência de organização do sistema de saúde, com a cobertura previdenciária expandindo-se para a população urbana e parte da rural, sem embargo do aprofundamento do aspecto privatista, sendo elaborado pelo governo o Plano de Pronta Ação (PPA), que objetivava não só universalizar a atenção às urgências, mas também apresentar um novo parâmetro assistencial, denominado de medicina de grupo, viabilizada por convênios com empresas, além de reorganizar as relações da Previdência Social com os prestadores de serviços, por diferentes formas de pagamento pelos contratos firmados. Outro aspecto relevante é que, em 1977, o sistema de saúde se baseará no Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social (SINPAS), instituído pela Lei Federal nº 6.439, composto pelos Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social (INAMPS), Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social (IAPAS). 169 No final dos anos de 1970, o surgimento de novos atores sociais impulsionam e revigoraram os movimentos da sociedade civil, que requerem uma maior eficiência e a ampliação da oferta dos serviços sociais, em particular dos serviços de saúde. É nessa conjuntura que se fortalece, no Brasil, o Movimento de Reforma Sanitária, que defendia melhores condições para os serviços de saúde, que encampava a luta contra a ditadura militar, e se aliou aos movimentos mais amplos da sociedade civil, no sentido não só do restabelecimento da democracia no país, mas também da articulação de um conjunto de forças políticas canalizadoras das exigências e dos anseios de alteração da Política de Saúde brasileira. Segundo Bravo (2000, p.113), o Movimento tinha, como idéia central, “assegurar que o Estado atue em função da sociedade, pautando-se na concepção de Estado democrático e de direito responsável pelas políticas sociais e, por conseguinte, pela saúde”. Desse modo, as lutas e movimentos levados a efeito, nesse momento histórico, contribuem para que a problemática da saúde alcance expressão significativa nos espaços legislativos e na sociedade civil organizada, passando a ser considerada, consoante Mendes (1994, p.42), como um direito universal e suportada por um Sistema Único de Saúde, constituído sob regulação do Estado, que objetive a eficiência, eficácia e eqüidade e que se construa através do incremento de sua base social, da ampliação da consciência sanitária dos cidadãos, da implantação de um outro paradigma assistencial, do desenvolvimento de uma nova ética profissional e da criação de mecanismos de gestão e controle populares sobre o sistema. Isto, aliás, é fortalecido nos anos de 1980, com a superação, em meio a uma profunda e duradoura crise econômica que ainda hoje se reflete na conjunturado país, do regime ditatorial. Mas, a fim de reorganizar os serviços de saúde acontece, em março de 1986, em Brasília, a VIII Conferência Nacional de Saúde, na qual “todo o movimento encetado pelo projeto contra-hegemônico nos campos político, ideológico e institucional, desde o início dos anos 70, vai confluir para esse acontecimento” (MENDES, 1994, p.41), daí ter essa Conferência representado um grande avanço em defesa da ampliação e universalização dos serviços de saúde, até porque promoveu a mobilização maciça da sociedade civil organizada, pela reunião de diversos setores e segmentos sociais. Para Mendes (1994), as conclusões dessa Conferência tiveram desdobramentos consideráveis no âmbito da Comissão Nacional da Reforma Sanitária, uma vez que os ideais nela defendidos foram reconhecidos e acolhidos, constituindo-se o Evento num forte instrumento político e ideológico, com influência sobre dois processos que se iniciam em 1987. O primeiro, no âmbito do Executivo, ocorreu em 20 de julho, com a criação, pelo Decreto 94.657, do Sistema Unificado e Descentralizado de 170 Saúde (SUDS), resultado de acordos do Ministério da Saúde com os governos estaduais, em substituição às Ações Integradas de Saúde (AIS), implantadas na década de 1980 como medida de contenção de despesas com assistência médica, até então vista como a causa do déficit orçamentário do governo. O segundo se deu no Congresso Nacional, que elaborava a nova Carta Magna do país, promulgada no ano seguinte, 1988. A VIII Conferência difere das demais em dois pontos principais, sendo o primeiro o seu caráter democrático, já que contou com ampla participação das forças comprometidas com a temática da saúde. O segundo se expressa na sua dinamicidade processual, pois antes de sua realização ocorreram encontros preparatórios nos municípios e estados, até alcançar o plano nacional, tendo sido o relatório final da Conferência aprovado nas comissões técnicas da Constituinte, em meio a um amplo consenso das forças sociais nela representada. Em suma, após muitas discussões e embates, a saúde tem o conceito ampliado na Conferência e reafirmado na Constituição de 1988, passando a definir-se como produto das condições de habitação, moradia, educação, renda, emprego, lazer e transporte da população, de sorte que passa a ser vista a partir da realidade histórica e social da sociedade brasileira. Essa nova concepção de saúde, reorganizada na lógica dos princípios defendidos pela Reforma Sanitária, foi incorporada na transição do Sistema Unificado Descentralizado de Saúde (SUDS) para o Sistema Único de Saúde (SUS). É que se visava constituir, de fato, um sistema de saúde capaz de responder amplamente aos anseios da sociedade brasileira, em sua histórica luta pela superação de um modelo altamente comprometido com os interesse privados e imediatos dos grupos dominantes. O SUS, em suas idéias basilares, caracteriza-se pela descentralização nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e tem como prioridade a universalização e a eqüidade dos serviços de saúde para todos os brasileiros, independentemente de qualquer contribuição social, com a participação complementar da iniciativa privada. Nesse contexto, a saúde é considerada como um direito universal e um dever do Estado, conforme preceitua o artigo 196 da Constituição Federal de 1988. Aliás, Mendes (1999, p.62) diz que a saúde na nova Constituição é definida como resultante de políticas sociais e econômicas, como direito de cidadania e dever do Estado, como parte da Seguridade Social e cujas ações e serviços devem ser providos por um Sistema Único de Saúde, organizado segundo as seguintes diretrizes: descentralização, mando único em cada esfera de governo, atendimento integral e participação comunitária. 171 O SUS, como sistema de saúde organizado sob essas diretrizes, está amparado pela Lei Orgânica da Saúde (Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990), pelas Constituições Estaduais e pelas Leis Orgânicas Municipais (MENDES, 1994), sem mencionar a Lei Federal nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que dispõem sobre a participação da comunidade no processo de gestão do SUS e sobre os recursos destinados à área. Para a sociedade brasileira, essa legislação expressou as conquistas inscritas na Carta Magna de 1988, reafirmando, de forma concreta, os princípios defendidos pela Reforma Sanitária e a esta incorporados. As análises anteriores indicam que, a partir dos movimentos da sociedade civil posteriores à década de 1970 e à promulgação da Constituição de 1988, as noções de direito e cidadania ganham destaque no debate nacional e no processo de formulação e implementação das Políticas Públicas, em especial as Políticas de Saúde e, por conseguinte, as de Saúde Mental. É, aliás, nesse contexto que tais Políticas, a serem viabilizadas nas três esferas de governo, defendem a saúde como direito do cidadão e dever do Estado, numa definição eminentemente política, que apregoa a transição para uma cidadania plena 4 , superando os aspectos compensatórios, embasadores dos modelos pretéritos. Nesses anos, o arcabouço teórico-prático do campo da saúde ocorria, conforme Mendes (1999, p.63), “coetaneamente com o avanço inexorável de uma crise fiscal e política do Estado, que sinalizava o esgotamento da estratégia nacional-desenvolvimentista e da coalizão sociopolítica que a sustentou durante os anos de esforço industrializante e de fracassos sociais”. Assim, o Estado, imerso em crise, adquire novas responsabilidades para com a sociedade, embora, no final dos anos de 1980, depois da efervescência política da transição democrática cujo ápice se dá no Governo Sarney, seja notável a retração na implementação dos ideais da Reforma Sanitária, principalmente na defesa da saúde como direito, exercido num sistema único e descentralizado que viabilize o atendimento universal. De forma que se ter, no final de 1980, a saúde como direito de todos e dever do Estado significa palmilhar um processo não acabado, desafio este a ser enfrentado pela sociedade brasileira, nos anos de 1990, tendo em vista que essa perspectiva contraria interesses de grupos privados, que defendem a continuidade do padrão de capitalização desses serviços que, décadas atrás, tiveram vertiginoso crescimento, estimulado pelo próprio Estado, agora, 4 A cidadania é, nesses termos, concebida como uma construção e reconstrução permanente de conquistas de direitos, num ambiente democrático, superando as condições de formalidade e legalidade, que assegura a Constituição Federal de 1988. Assim, será entendida aqui na sua forma mais ampla, como um processo histórico, político e social em permanente movimento e aperfeiçoamento. Nesse sentido, consultar por exemplo, Dagnino (1994) e Telles (1994). 172 em face da realidade do SUS, não querem correr os riscos impostos pelo mercado, no qual se dão disputas por melhores preços e maior qualidade. Ademais, os obstáculos à construção do SUS, são intensificados, nesta década, em razão do modelo econômico-político do país, norteado, a partir de então, pelas propostas neoliberais, surgidas por volta dos anos de 1970. Estas idéias, oriundas da Inglaterra e dos Estados Unidos, espraiaram-se pelo mundo, sobretudo os de regime capitalista, atingindo fortemente as nações periféricas, como o Brasil, já que a base ideológica do neoliberalismo finca-se na contenção severa dos gastos estatais, o que afeta preferencialmente a gestão das políticas sociais e, por conseguinte, a Política de Saúde Pública. Presencia-se então no Brasil e no mundo, nos anos de 1990, a hegemonia do discurso e das práticas neoliberais, na verdade um intenso ataque do grande capital, vinculado aos grupos dirigentes, às garantias constitucionais, resultando no
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