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1 Nossa Senhora Aparecida de Josafá Neves: uma análise do sincretismo religioso do Brasil na pintura contemporânea Rafael Molica Resumo Este ensaio crítico se propõe analisar a obra de arte contemporânea Nossa Senhora Aparecida, do artista plástico Josafá Neves. Além de contextualizar a importante trajetória do profissional, o texto aborda a questão dos símbolos e dos signos do trabalho em questão e convida a uma discussão sobre o sincretismo religioso no Brasil, que, neste caso, une o candomblé, a umbanda, a igreja católica e influências indígenas. Palavras chave: Comunicação, Arte, Cultura, Imaginário, Signos, Símbolos, Pintura, Umbanda, Candomblé, Orixás, Nossa Senhora de Aparecida Abstract This critical essay is analyzing a work of art Nossa Senhora Aparecida, by the artist Josafá Neves. In addition to contextualizing an important professional trajectory, the text addresses a question of symbols and the signs of the work in question and invites a discussion on religious syncretism in Brazil, which, in this case, um or candomblé, umbanda, a Catholic church and influences indigenous peoples. Keywords: Communication, Art, Culture, Imaginary, Signs, Symbols, Painting, Umbanda, Candomblé, Orixás, Nossa Senhora de Aparecida A arte de Josafá Neves o acompanha desde os seus próprios primeiros passos. O artista nasceu em 20 de setembro de 1971, na cidade do Gama, no Distrito Federal, e aos 7 anos de idade, mudou-se com a sua família para Goiânia, em Goiás, também no centro-oeste brasileiro. Durante a infância, o artista já exercitava aquilo que tomaria como profissão. "Tenho aptidão artística desde a infância, sempre gostei de desenhar e usava vários suportes como pedras, papel, parede e madeira. Nessa época, com 6 anos de idade, já trabalhava como engraxate para ajudar no sustento da família. Fiz vários trabalhos antes de me dedicar integralmente às artes. Em 1996, na cidade de Goiânia, conheci o artista Sérgio Bleik [nascido em 1968, em Goiânia] que me 2 orientou e foi quando eu decidi que ia viver de arte. Desde então, são 24 anos de muita pesquisa, trabalho e dedicação, e acredito que a arte não se encontra, ela é uma eterna busca", define. Ao longo de sua trajetória, Neves teve seus trabalhos apresentados na 12º Bienal de Havana, em Cuba, onde expôs o seu quadro Negreiros. Neste ano, o profissional abriu o calendário artístico do Museu Nacional da República, em Brasília, trazendo as suas homenagens e reflexões sobre a pluralidade religiosa e a arte na exposição Orixás. A arte de Josafá dialoga primordialmente com a chegada da população africana escravizada ao Brasil, a cultura negra que contribuiu para a miscigenada cultura brasileira, bem como conexões com as divindades do Candomblé e da Umbanda. Entre as suas mostras, também se destaca Diáspora, uma exposição provocativa que oferece quadros e esculturas e traz o empoderamento da cultura negra e suas influências que se perpetuam no Brasil. A coleção de trabalhos foi exposta, inclusive, na I Bienal Del Sur, em Caracas, na Venezuela. As manifestações artísticas integram uma vasta coleção de ilustrações que mostram a crueldade da escravidão africana no Brasil – desde a retirada à força do solo africano, passando pelo transporte em navios negreiros, a transformação de pessoas em mercadoria e a abolição sem a devida inserção social, sempre sob muita violência. Neves trabalha de maneira contundentemente crítica as condições desumanas as quais milhões de pessoas foram submetidas, transformadas em feras - inspiração pontual de uma de suas telas -, o afloramento da cultura negra no Brasil, como a capoeira, e homenageia personagens da cultura brasileira, como Pixinguinha, Milton Santos, Clementina de Jesus, Mãe Stela de Oxóssi, Cartola, Elza Soares, Luiz Gonzaga, Gilberto Gil, Nelson Sargento, Itamar Assunção e também conta com um autorretrato do artista. Trazer tais nomes para arte contemporânea é uma forma registrar o protagonismo negro – vítima de discriminação -, celebrar a sua cultura e retirá-la das sombras, mesmo que esta possua os seus lados sombrios e que precisam ser expostos para que um dia jamais se repitam. O fazer 3 arte negra no Brasil pode ser visto como sinônimo de resistência, uma vez que se trata de uma nação composta justamente pela desigualdade social1 e pelo encarceramento da população negra2. Para as suas pesquisas, o artista recorre aos livros de bibliotecas públicas viagens a Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Em meio as suas inspirações, a série que produziu afro indígena homenageia o pintor Rubem Valentim (1922-1991), a quem Neves define como "referência fundamental na construção da identidade cultural negra no Brasil". Nascido em Salvador, capital baiana, Valentim também explorou em sua carreira o universo religioso, onde utilizou os signos geométricos relacionados ao Candomblé e à Umbanda. Entre os itens da exposição Diáspora, o público se depara com o quadro Nossa Senhora Aparecida, de 300X200cm, um notório retrato da miscigenação cultural brasileira com a africana. Neves explica o que utilizou de referências para a obra. “A exposição Diáspora traz a Nossa Senhora Aparecida com toda sua força de majestade mestiça, coroada como uma rainha das congadas, fazendo-a digna de sua importância na fé milagrosa que alimenta o imaginário religioso de um povo que a leva aos altares católicos e da sincrética e eclética Umbanda. Nela, a Aparecida, os brasileiros depositam suas últimas esperanças de um milagre de cura, de uma vida melhor para si, mais não só, também para o Brasil do qual ela é, depois da Bandeira Nacional, o ícone mais famoso e perfeito de nossa identidade cultural e espiritual.” 1 Segundo informações do estudo A Escala da Desigualdade - Qual foi o impacto da crise sobre a distribuição de renda e a pobreza?, de 2019, feito pela Fundação Getúlio Vargas, a população negra teve um queda de 8% de renda, entre maio e julho. Até agosto de 2019, a concentração de renda aumentou pelo 17º trimestre seguido. Conforme ainda o estudo, "nem mesmo em 1989, que constitui o nosso pico histórico de desigualdade brasileira, houve um movimento de concentração de renda por tantos períodos consecutivos". 2 De acordo com a pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, em seu estudo Mapa do Encarceramento – Os jovens do Brasil, ocorreu no país, entre os anos 2005 e 2012, um crescimento de 74% da população prisional brasileira, chegando a 515.482 presos. A pesquisa constatou que "quanto mais cresce a população prisional no país, mais cresce o número de negros encarcerados" (Sinhoretto, 2015), sendo esta primordialmente masculina e jovem (entre 18 e 29 anos). Durante o período analisado, a população negra cresceu chegando a 60,8%, somando 295.242 de pessoas, em número absoluto. 4 Elementos da obra de arte Divindade que remete aos cristãos, Nossa Senhora da Conceição Aparecida é uma das denominações atribuídas a Maria, mãe de Jesus, e que, ao longo da história da humanidade, já recebeu 160 títulos de invocações diferentes, segundo Edesia Aducci (1998) no livro Maria e seus títulos gloriosos, como, por exemplo, Nossa Senhora de Guadalupe (México), Nossa Senhora da Abundância (Itália), Nossa Senhora do Pilar (Espanha) e Nossa Senhora de Fátima (Portugal). A obra de arte, assim como a imagem na qual ela foi inspirada, apresenta a divindade com pele negra, diferente da Maria europeia que, embora nasceu em Nazaré, no Oriente médio, é apresentada na cor branca, assim como ocorre com Jesus e outros santos. A referência negra teve início no ano de 1717, conforme Aducci (1998), em Guaratinguetá – na época se chamava Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá -, a 180km de São Paulo. A imagem foi encontrada pelos pescadores Domingos Garcia, João Alves e Felipe Pedroso no rio Paraíba do Sul, provavelmente menos de 5 anos após ter sido descartada, em um diaque a pesca não se iniciou de maneira bem sucedida. Ao lançar a sua rede em direção às águas, João retirou o corpo da imagem. A cabeça foi encontrada logo na sequência. Curiosamente, eles conseguiram capturar muitos peixes logo após encontrar a estátua. Figura 1: quadro Nossa Senhora Aparecida e imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Créditos: Josafá Neves e Santuário Nacional Aparecida 5 O primeiro oratório dedicado à Nossa Senhora da Conceição Aparecida, assim chamada e popularizada na pequena comunidade que a encontrou, foi feito por Atanásio, filho do pescador Felipe, onde deu-se início a reza do terço a das devoções à imagem. Aducci (1998) descreve uma das primeiras situações inexplicáveis relacionadas a ela no livro. Em uma dessas rezas, estando a noite serena, apagaram-se repentinamente as velas que iluminavam a imagem de Nossa Senhora, e, querendo alguém acendê-las de novo, vê o povo, com pasmo, que as velas por si sós, sem ninguém lhes tocar, acendem-se de repente! (Aducci, 1998, p. 301) Inspirada na imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, proclamada padroeira do Brasil em 1930, o artista manteve alguns elementos simbólicos e que colaboram para identificar a divindade, como as mãos postas em oração, amplamente popular no imaginário católico e que remete à interseção e rogação pelos fiéis, e o manto que a envolve nas cores azul escuro e rico em detalhes. Tais elementos são suficientes para garantir a identificação de quem contempla a imagem. Recorrendo à técnica mista de óleo sobre tela, giz pastel e tecido chita, Neves buscou trazer ao seu trabalho símbolos da série arquétipos afro-indígena. A conexão com Oxum, para o artista, também é evidente. “Fiz uma pintura de Oxum do mesmo tamanho 300X200cm, para a atual exposição Orixás no Museu Nacional em Brasília, e posicionei uma do lado da outra trazendo essa referência do sincretismo”, afirma. Segundo Reginaldo Prandi (2007), em seu livro Mitologia dos Orixás, Oxum é uma das divindades relacionadas como orixás dos rios africanos e seria uma das esposas de Xangô, considerado praticamente o grande patrono das religiões dos orixás no Brasil. Ela seria quem governa o amor e a fertilidade bem como a dona do ouro, da vaidade e a senhora das águas doces. O culto dos orixás também conta com a entidade Iemanjá (ou Yemanjá, tendo Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora dos Navegantes como referências cristãs, muito popular na Umbanda), uma das divindades mais conhecidas no Brasil. Esculpida e desenhada com pele mais clara, cabelos compridos pretos - uma vez que também recebeu influências europeias na sua representação3 -, sobre as águas e deixando cair pérolas das mãos, ela é considerada a senhora das grandes águas, a mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, quem rege tanto o equilíbrio emocional como a loucura e "está presente em muitos mitos que falam da criação do mundo" (Prandi, 2017, p.22). 3 Entre outros estudiosos, a informação é defendida por Helena Theodoro, pesquisadora em história comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como mostra reportagem de Mariana Schreiber (2020) para a BBC Brasil. 6 No Brasil, ganhou a soberania dos mares e oceanos, regidos na África por Olocum, orixá esquecido no Brasil e pouco lembrado em Cuba, a ainda senhora do oceano, das profundezas da vida, dos mistérios insondáveis (Prandi 2017, p.22) Embora possuam diferentes representações no imaginário, Maria, Oxum e Iemanjá costumam remeter ao divino feminino, à sabedoria, à ancestralidade e à maternidade, seja de Jesus no cristianismo, seja dos orixás. A tela Nossa Senhora Aparecida de Neves traz como fundo tons azuis e símbolos geométricos típicos da religiosidade africana e mais um exemplo da influência de Valentim no trabalho do artista. “No símbolo central faço uma fusão em um terço católico: unindo a cruz a um dos símbolos da série arquétipos afro indígena”, complementa, representando a influência dos índios nativos na formação cultural brasileira. A coroa dourada é outro elemento semelhante entre a Nossa Senhora Aparecida de Neves e a imagem que o inspirou. Embora ele quisesse remeter à humildade em outros elementos, o adereço se manteve evocando a honraria digna da divindade. “Eu preservo a cor ouro no manto e na coroa, simbolizando a linhagem de reis e rainhas ancestrais do povo negro. O tecido chita faz referência às tradições de cultura popular, significa simplicidade e sabedoria.” Como não poderia deixar de ser, a coroa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida carrega história. De acordo com Júlio Brustoloni (1984), no seu livro A Senhora da Conceição Aparecida - história da imagem da capela e das romarias, trata-se de um presente da princesa Isabel e do marido, Conde d’Eu, em uma visita à capela em 8 de dezembro de 1898, amplamente divulgada pelos jornais da época. A piedosa princesa doou a Nossa Senhora uma riquíssima coroa de ouro que até o dia de hoje é usada na Imagem. É de ouro 24 quilates, pesa 300 gramas e tem 24 diamantes maiores e 16 menores. Seu valor material é muito grande e bem maior o seu valor histórico, pois com esta coroa, doada pela libertadora dos escravos, a Imagem de Nossa Senhora Aparecida foi solenemente coroada em 1904. (Brustoloni, 1984, p.115) O presente, portanto, indica um triste dado histórico do Brasil. A coroa é mais antiga do que o tempo em que a abolição da escravatura aconteceu no país, assinada justamente pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888 e que não contemplava políticas públicas para que essas pessoas, recém-libertas, tivessem um lugar para viver e um trabalho para se sustentar. A coroa que ornamenta reis e divindades que costuma ser primordialmente dourada é a forma utilizada por inúmeras gerações da história como símbolo de liderança, poder, sabedoria e possui seu lugar na dicotomia ocidental. Tais símbolos e signos foram objetos de estudo de Gilbert 7 Durand (2012), no livro As estruturas antropológicas do imaginário, divididos em regime diurno e noturno na história, no folclore e nas crenças. Segundo o autor, uma série de signos e símbolos se encaixam nesses dois grandes grupos. Além do notável isomorfismo do sol, dos cabelos e barbas brancas que não deixam de fazer pensar nos atributos de Faro, trata-se sempre de cambiantes de sol, de moças com cabelos de ouro, de cavaleiros resplandecentes, de vestes e de barbas "brancas como flores entre os espinhos". O dourado é, assim, sinônimos de brancura. Esta sinomínia é ainda mais nítida no Apocalipse, onde a imaginação do apóstolo visionário liga numa notável constelação os cabelos brancos como neve ou lã, os olhos flamejantes e os pés brilhantes do Filho do Homem, a sua face "resplandecente como o sol" e a coroa dourada, o gládio e os diademas. (Durand, 2012, p.148) Embora a imagem que serviu de inspiração para o quadro se encontre no maior santuário mariano do mundo, não se sabe exatamente muitos detalhes da sua criação. De acordo com o pesquisador Rodrigo Alvarez (2014), no livro Aparecida - A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil, aquela imagem de pouco mais de 2,5kg não foi confeccionada para tamanha importância para um país. No Brasil que ainda era uma colônia portuguesa, as pequenas imagens de Nossa Senhora da Conceição eram feitas de por vários artesãos e tinha-se o hábito de adquiri-las para oratórios de famílias ou para pequenas capelas de fazendas. Se aquela Nossa Senhora não chamou atenção entre as muitas outras santas de barro que saíram do mesmo forno, no dia em que se quebrou, alguns anos depois, é que não haveria nenhum motivo mesmo para guardá-la. E assim ela foi jogada nas águas do rio. Pois santo quebrado, qualquer católico sabia, era mau agouro na certa (Alvarez, 2014, p. 16) A representação da simplicidade da arte de Neves resplandecena colorida, tropical, florida e popular chita, utilizada por Neves na vestimenta de sua Maria. O tecido se originou na Índia medieval e era chamada de chintz em híndi (derivada do sânscrito) e significa pinta ou mancha. Segundo o artigo de Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita, quem levou a novidade à Portugal foi Vasco da Gama, em 1498, nação que passou a comercializar o tecido por toda a Europa, como pintado e a chita de Alcobaça. A chita no Brasil foi tecida duas influências diferentes. Enquanto os índios que viviam no país antes do descobrimento já fiavam tecidos de algodão e os tingiam com cores subtraídas do pau-brasil e de outras plantas naturais, ela passou por mudanças após a chegada de Pedro Alvares Cabral na Bahia, em 1500. A facilidade de lavar somada à característica de material mais leve para ser utilizado em climas tropicais tornaram a popularização da chita inevitável nos armários e 8 nas casas do Brasil colonial. O algodão brasileiro também vestiu os escravos, o que trouxe denotação de um “tecido barato” e um “pano popular” (Simili e Barbeiro, 2016). Mesmo assim, a chita já ocupou seu lugar nas mesas das cozinhas brasileiras, em grifes do universo da moda e em estamparia de móveis. Imagem e sincretismo Ao longo da história, a criação de imagens e santidades possuem uma simbiose de tradições, uma vez que se nutriu da mistura do sagrado judaico e o costume greco-romano de se relacionar com heróis e imagens. Assim, a origem delas, seja de Jesus, Maria, orixás ou santos, guarda para si o sagrado bem como uma documentação histórica daquele povo que o venera, como pontuam Leandro Karnal e Luiz Estevam de O. Fernandes (2017) que analisam a questão em Santos fortes - raízes do sagrado no Brasil. Os autores também observam a ambiguidade na forma como a criação de imagens é pontuada. No Novo Testamento da Bíblia, constata-se que Deus ordenou que colocassem querubins na arca da aliança, imagens, que guardariam justamente leis que proíbem a produção delas mesmas. "O próprio Deus é menos rigoroso com as regras do que os teólogos que falam em seu nome" (Karnal e Fernandes, 2017, p.7). Embora a Igreja Católica defina quem mereça a santidade, a popularização de um santo fica a cargo, na prática, do povo. O quadro O enterro do conde de Orgaz, a obra mais famosa do pintor El Greco, ilustra essa questão no sagrado. Datado de 1586 e que celebrou o enterro do homem que dá nome ao trabalho, ele mostra alguns santos em primeiro plano. Já os menos populares foram pintados menores e renegados a planos secundários, algo longe de ser o caso de Maria, soberana também na quantidade de representações. As referências da Nossa Senhora Aparecida de Neves abarcam as técnicas do artista e o sincretismo religioso que formou a cultura brasileira. O ponto inicial dessa característica surgiu na costa atlântica da África. A região em formato de arco abriga o rio Níger, que nasce entre a Guiné e a Serra Leoa, se estende pelo Mali, o deserto do Saara, Níger, Benin e desemboca no mar da Guiné, somando mais de 4 mil quilômetros de trajeto. Justamente esta região foi e ainda é um dos grandes centros das religiões e das culturas iorubás e testemunhou milhões de seres humanos serem escravizados para as Américas (Karnal e Fernandes, 2017). De maneira próspera, escondida e clandestina, trouxeram como bagagem as suas visões de mundo e as suas crenças. Assim, originou-se a Santeria, em Cuba, e o Candomblé e a Umbanda, no Brasil. Atraindo fiéis 9 que buscam por harmonia e paz, as brasileiras possuem particularidades nas suas teogonias, aprendizados, rituais, estéticas e éticas, mas, até hoje, acumulam uma característica infeliz em comum: são constantemente vítimas do racismo e intolerância religiosa no país. O percurso dos orixás também vivenciou predominantes períodos tortuosos ao longo da história. Como exemplar, Exu, também conhecido com Legba, Bará e Eleguá, é a entidade que desempenha a função de conectar o divino e os seres humanos (Prandi, 2007). Sem ele, não seria possível as pessoas se comunicarem com os orixás. Assim como diversas outras entidades deste panteão, ele recebeu fama ingrata por conta o subjugo dos europeus. Na época dos primeiros contatos de missionários cristão com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os dias de hoje (Prandi, 2007, p.21). Se por um lado o cristianismo, o judaísmo e o islamismo possuem diversos livros sagrados, o Candomblé e a Umbanda não contam com a mesma longa tradição literária, o que diferencia suas representações no imaginário. A realidade dessas religiões passou a mudar há pouco tempo. Para Prandi (2007), o Candomblé acompanhou o seu grande crescimento na década de 1960: da Bahia avançou por todo o Brasil e a Santaria cubana passou a ganhar espaço nos Estados Unidos por conta dos imigrantes hispano-americanos. A recente expansão do Candomblé no Brasil envolveu forte adesão de segmentos sociais diferente daqueles em que se originou no Brasil a religião dos orixás, com a inclusão de adeptos não necessariamente de origem negra e que são provenientes de camadas sociais com maior escolaridade e habituadas à idéia da informação pelo livro (Prandi, 2007, p.19). Conforme as pesquisas de Vagner Gonçalves da Silva (2005), em Candomblé e Umbanda caminhos da devoção brasileira, o praticante do Candomblé era chamado de calundu, de origem banto4, bem como batuque ou batucajé. Estas eram as formas encontradas, até pelo menos o século XVIII, para se referir às danças coletivas, cantos e músicas com o apoio de instrumentos de percussão, invocação de espíritos, cura mágica, adivinhação e sessões de possessão. Na Bahia, o viajante português Marques Pereira, hospedado em uma fazenda, não conseguiu dormir devido ao 'estrondo dos tabaques, pandeiros, canzás, botijás e castanhetas, com tão horrendo alarido que lhe pareceu 'a confusão do inferno'. Reclamou na manhã seguinte ao seu anfitrião, que se desculpou dizendo que se soubesse que o barulho iria perturbar o sono do viajante, mandaria que naquela noite 'não tocassem os pretos seus calundus'" (Silva, 2005, p.43-44). 4 Banto ou bantu, que significa ser humano, designam um conjunto entre 300 e 440 línguas e reúne povos que vivem em 9 milhões km² e formam 130 milhões de pessoas, embora se precise levar em conta a diversidade cultural (Giroto, 1999). 10 Outros relatos foram registrados em Pernambuco e em Minas Gerais, onde vivia Luzia Pinto, "publicamente conhecida por ser feiticeira, 'fazendo aparições diabólicas por meio de umas danças, a que chamam vulgarmente calundus'"(Silva, 2005). O que se nota mais uma das diversas vezes que foi feita uma interpretação negativa dos europeus e seus descendentes ao se deparar com os rituais considerados obscuros, pagãos e vindos de uma cultura inferior. Tais cultos entregavam o sincretismo que ocorria no Brasil, já que misturavam elementos africanos com os católicos, como crucifixos e anjos, do espiritismo e ainda as superstições populares europeias, como a adivinhação por meio de espelhos. Os cultos ocorriam na escuridão da mata, longe dos olhos dos senhorios das fazendas, ocultos em divindades católicas, nas senzalas e, após a abolição dos escravos, em casas de homens recém-libertos, onde posteriormente seriam criados os primeiros templos dedicados ao Candomblé e que alguns se preservam atualmente. Somente na Constituição de 1824 e após a independência do Brasil, garantiu-se a liberdade de culto. A Igreja Católica, que antes perseguia a fé de origem africana, passou a se posicionar com superioridade ao lado das elites brancas (Silva, 2005). De acordo com Paulo Petronilio Correia (2011), no artigo Poder e Transfiguração do Imaginário no Candomblé, os terreiros acumulam uma dimensãoestética na qual são exibidos signos do cosmo religioso em questão, como nas casas de Nações Keto que é habitual serem expostos berrante, par de chifres e a cadeira onde o orixá senta que é considerada sagrada - simbolizava poder. Assim, o Candomblé, dentro de seus contornos antropológicos, é formado por esse complexo simbólico que ganha uma força e um contorno sagrado. Assim, a força de uma religião está na maneira como ela desenha o símbolo sagrado. (Correia, 2011, p.24-25) Mais jovem do que o Candomblé, o nascimento da Umbanda ocorre nas décadas de 1920 e 1930, por Zélio de Moraes, e “se quer genuinamente nacional, uma religião à moda brasileira” (Silva, 2005, p. 125). Ela reuniu a classe média kardecista (doutrina espírita criada na França por Allan Kardec em meados do século XIX) do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul que passou a acrescentar elementos das tradições religiosas afro-brasileiras, uma forma de a tornar legitimamente aceita, com o status de uma nova religião" (Silva, 2005, p. 106). No entanto, os primeiros elementos já eram praticados no final do século XIX, como na cabula, onde os chefes de culto eram chamados de embanda. Na Umbanda, há novamente o culto a divindades africanas e aos santos católicos e também aos 11 caboclos, e conceitos da doutrina kardecista que produziam a mistura de ideias racionais e religiosas (Silva, 2005, p. 106). Ademir Barbosa Junior (2014), em O livro essencial da Umbanda, explica, por sua vez, que a religião agrega, além do catolicismo, religião africana e kardecismo, a Pajelança, que seriam os conhecimentos indígenas, e o orientalismo. Em linhas gerais, etimologicamente, Umbanda é um vocábulo que decorre do umbundo e o quimbundo, duas línguas africanas, com o significado de "arte de curandeiro", "ciência médica", "medicina" (...). Quanto ao sentido espiritual e esotérico, Umbanda significa "luz divina" ou "conjunto de leis divinas". A magia branca praticada pela Umbanda remontaria, assim, a outras eras do planeta, sendo denominada pela palavra sagrada "Aupiram", transformada em "Aumpram" e, finalmente, "Umbanda"(Junior, 2014, p.19). Para Neves, o criador de obra Nossa Senhora Aparecida, a junção de elementos de diferentes culturas foi fundamental para que a raízes africanas florescessem no país. “O sincretismo religioso foi uma importante estratégia do povo negro para manter viva a espiritualidade africana, foi uma forma de organização e preservação de costumes inseridos dentro dos moldes católicos já que não se tinha a liberdade de cultuar suas divindades.” O resultado híbrido também não pode ser desagregado de sua origem e de sua autenticidade, o que faz com que a mistura da cultura brasileira jamais se desprenda da cultura negra. O ponto de vista é defendido por Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo que observa o sincretismo religioso na América, em seu livro Da Diáspora - Identidades e Mediações Culturais. (...) a forma como os deuses africanos haviam sido combinados com santos cristãos no universo complexo do vodu haitiano constitui uma mistura específica, que apenas se encontra no Caribe ou na América Latina - embora haja análogos onde que sincretismos semelhantes tenham emergido na esteira da colonização (Hall, p. 32) O sincretismo religioso do cristianismo integra os estudos do teólogo e filósofo Leonardo Boff (1994) que no livro Igreja: carisma e poder faz ampla análise sobre o assunto. Sob o olhar dele, o sincretismo ocorre quando o núcleo essencial da fé cristã se "corporifica dentro dos quadros simbólicos de uma outra cultura" Boff (1994). A atividade missionária, a proclamação do Evangelho e o convite da conversão seriam os passos iniciais para que isto ocorra. Após o Concílio Vaticano II (1961), tomou-se emprestado aquilo que possa glorificar e ilustrar a graça do Criador. Por outro lado, também nota - se uma tendência contrária. (...) Pode ocorrer o processo inverso: uma religião entre em contato com o cristianismo e, ao invés de ser convertida, ela converte o cristianismo para dentro da sua identidade própria. Elabora um sincretismo, utilizando elemento da religião cristã. Ela não passa a ser cristã porque sincretizou dados cristãos. Continua pagã e articula 12 um sincretismo pagão com conotações cristãs. Parece que algumas pesquisas têm revelado este fenômeno com a religião ioruba (candomblé ou nagô) no Brasil. Ela acomodou, assimilou e transformou características cristãs conservando a sua identidade ioruba. O cristianismo não converteu, foi convertido. (Boff, 1994, p.174) Entre as festas populares brasileiras que evocam o sincretismo religioso, a Lavagem do Bonfim impõe-se como uma das mais famosas. Em 2020, a celebração completou 275 anos e reuniu católicos, candomblecistas e turistas para homenagear mais uma vez o Senhor Bom Jesus do Bonfim e Oxalá. A festividade reuniu 2,5 milhões de pessoas e percorreu 8 km, de acordo com reportagem do telejornal Jornal Nacional. Realizada de maneira inclusiva, ela é uma das provas de que é possível a coexistência de diversas crenças de maneira pacífica e harmônica, como todas elas ensinam como deve ser a vida ao lado de outros seres humanos. Nossa Senhora Aparecida, rogai por nós. Referências bibliográficas Aducci, E. (1998). Maria e seus títulos gloriosos. São Paulo: Edições Loyola Alvarez, R. (2014). Aparecida - A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. São Paulo: Globo Livros Bernardo, A. (2017, 12 de outubro). BBC News Brasil. Nossa Senhora Aparecida: 10 perguntas sobre a santa padroeira do Brasil que, 300 anos depois, continuam sem respostas definitivas. Acedido em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41585684 Boff, L. (1994). Igreja: carisma e poder. Rio de Janeiro: Editora Ática Brustoloni, J. (1984). 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