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1 A questão do autoritarismo na teoria política de Nicos Poulantzas: crítica e atualidade1 Theófilo Codeço Machado Rodrigues (UERJ) Introdução O declínio da democracia liberal parece ser o grande tema da agenda da ciência política nesse início do século XXI. Nos últimos anos, livros e mais livros foram publicados pela literatura especializada com um mesmo objetivo: tentar explicar as razões que levaram países até então considerados como democracias estáveis a transitarem para governos tidos como autoritários. Sob esse registro, as eleições de Recep Erdogan na Turquia, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Viktor Orbán na Hungria, Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil parecem ser exemplares. Mas não há como entender esse fenômeno atual sem um retorno aos clássicos e um dos autores que certamente se encaixa nessa categoria é Nicos Poulantzas. Na teoria política contemporânea, sua obra constitui importante contribuição para a compreensão do fenômeno autoritário. Com efeito, praticamente toda a sua produção realizada entre 1968 e 1979, ano de sua trágica morte, perpassa de algum modo temas como o autoritarismo, o totalitarismo, o fascismo etc. O presente artigo analisa a obra de Poulantzas em busca de suas interpretações do autoritarismo num sentido amplo. Para tanto, são analisados os principais textos em que o autor, de algum modo, ofereceu tratamento conceitual para o tema. Isso é o que ocorre em Poder político e classes sociais, de 1968, em Fascismo e ditadura, de 1970, em Notas sobre o totalitarismo, de 1973, em A crise das ditaduras, de 1975 e, finalmente, em sua obra de maturidade, O Estado, o poder, o socialismo, de 1978. Nesses textos, Poulantzas debate temáticas como o fascismo na Alemanha e na Itália, o totalitarismo na obra de Hannah Arendt e as ditaduras da década de 70 em Portugal, Grécia e Espanha, além de formular o seu original conceito de “estatismo autoritário”, que não se confunde com os termos anteriores. Intérpretes de Poulantzas como Bob Jessop e Ernesto Laclau também foram recolhidos para uma melhor avaliação de sua obra. 1 44º Encontro Anual da ANPOCS 2 O artigo está estruturado em cinco seções. A primeira apresenta as diferenças entre o “Estado democrático-parlamentar” e o “Estado de exceção” na obra de Poulantzas. As quatro seções seguintes indicam definições de totalitarismo, fascismo, ditadura e estatismo autoritário ao longo da obra do autor. “Estado democrático-parlamentar” versus “Estado de exceção” Longe de uma interpretação esquerdista vulgar que poderia considerar de forma homogênea qualquer tipo de Estado burguês, Poulantzas diferencia o “Estado democrático-parlamentar” do “Estado de exceção”. Ainda que sejam todas formas de um Estado capitalista, há diferenças entre essas formas. Por um lado, o “Estado democrático- parlamentar” se caracteriza pelo “sufrágio universal, pluralidade dos partidos e organizações políticas, relações particulares entre o Executivo e o Parlamento, regulamentação jurídica das respectivas esferas de competência entre os diversos setores e os aparelhos de Estado” (1976, p. 72). Já os “Estados de exceção” possuem características opostas: Supressão dos representantes políticos tradicionais (partidos políticos) das próprias frações do bloco no poder, eliminação do sufrágio, deslocamento do papel dominante, entre os aparelhos de Estado, para o aparelho repressivo (exército em primeiro plano), reforço acentuado do centralismo “burocrático” do Estado, hierarquização e recuperação dos centros de poder real do Estado e das cadeias de transmissão (1976, p. 72-73). Como o próprio nome faz entender, os Estados de exceção não constituem a forma normal do Estado capitalista. Essa forma normal é constituída por instituições democráticas e a liderança hegemônica da classe burguesa é estável e segura. Já os Estados de exceção são respostas a crises de hegemonia da classe burguesa no interior do Estado capitalista (JESSOP, 2009, p. 136). Como bem observa Jessop (2009, p. 136), “enquanto o consentimento predomina sobre a violência constitucionalizada em estados normais, os estados de exceção intensificam a repressão física e conduz a uma “guerra aberta” contra as classes dominadas”. Essa diferenciação conceitual, contudo, não se dá apenas entre o “Estado democrático-parlamentar” e o “Estado de exceção”. Por “regimes capitalistas de exceção”, o autor categoriza três regimes distintos: fascismos, ditaduras militares e 3 bonapartismos (1976, p. 7). As próximas seções tratam dessas categorias e de outras mais como o estatismo autoritário e o totalitarismo2. Uma definição de totalitarismo Poder político e classes sociais, livro de 1968, é considerado o marco de entrada de Poulantzas na teoria política contemporânea, sua primeira grande obra teórica (MOTTA, 2009). Sob forte inspiração althusseriana, esse livro foi também a primeira aplicação da leitura estruturalista em uma investigação do Estado (CARNOY, 1988). Como se fosse um verdadeiro manual de ciência política marxista, o jovem Poulantzas, com apenas 32 anos de idade, construiu nesse denso texto as bases teóricas e as principais definições conceituais que passaria a utilizar pelo resto de sua vida, ainda que com algumas variações. Ali encontramos suas formulações sobre noções como bloco no poder, cena política ou formação social, entre tantas outras. Mas é a definição de totalitarismo, que já aparecia ali, que nos interessa no momento. Em geral, o conceito de totalitarismo é confundido com o de fascismo. Para Poulantzas, no entanto, não são dois conceitos sinônimos. Totalitarismo, diz Poulantzas (1986, p. 290), “conota simplesmente um caráter particularmente ‘forte’ do poder de estado, ainda que se tenha tentado distingui-lo do ‘autoritarismo’”. Isso significa que o totalitarismo não deve ser reduzido à um fenômeno político preciso. Aliás, o totalitarismo pode estar presente até mesmo em regimes liberais. Segundo Poulantzas (1986, p. 290), as características do totalitarismo “não se encontram de modo algum em oposição com a forma de Estado liberal propriamente dita: os fenômenos reais mascarados por esta ideologia política encontram-se presentes na forma do Estado liberal, precisamente na medida em que se relacionam ao tipo capitalista de Estado”. O fascismo, portanto, não deve ser confundido com autoritarismo ou com totalitarismo, pois, do contrário, qualquer forma concreta de Estado seria mais ou menos fascista. Como se vê, trata-se ainda de uma formulação muito incipiente. Por isso podemos concordar com Bob Jessop (2009, p. 135) quando diz que Poder político e classes sociais “ofereceu comentários limitados sobre o absolutismo, o bonapartismo, o bismarckismo, o fascismo e o totalitarismo”. 2 Embora mencione o bonapartismo como um exemplo de regime de exceção, não há na obra de Poulantzas uma sistematização mais complexa sobre esse conceito. Por essa razão, as ditaduras bonapartistas não serão abordadas neste artigo. 4 Em 1973, Poulantzas avançou no tema ao publicar na revista francesa Tel Quel suas Notas sobre o totalitarismo em que faz uma resenha crítica do livro Linguagens Totalitárias de Jean-Pierre Faye. Em verdade, interessa-nos menos a leitura que Poulantzas faz de Faye e mais a crítica que desfere contra Hannah Arendt na conclusão do texto. Como sabemos, Arendt havia publicado em 1951 seu clássico Origens do totalitarismo. Poulantzas é irônico ao resumir o livro de Arendt: Les Origines du Totalitarisme (1951) de H. Arendt (que fez escola), foi uma das bíblias dos democratas anglo-saxões-alemães durante os anos da “’guerra-fria’. É bastante conhecida a linha político-ideológica principal deste livro: comunismo = fascismo, Stalin = Hitler, os“anormais” (comunistas-fascistas) assemelham-se, e viva a democracia ocidental (POULANTZAS, 1974, p. 112). O centro da crítica de Poulantzas reside na ausência completa da ideia de luta de classes na obra de Arendt. O autor vai além ao demonstrar para Arendt que, ao contrário do que ela sugere, “o fascismo e as outras formas do Estado burguês são, todas, formas do Estado capitalista” (POULANTZAS, 1974, p. 113). Em 1978, com O Estado, o poder, o socialismo fica mais claro que para Poulantzas o totalitarismo nunca foi um regime específico, mas sim uma forma geral do Estado capitalista, em particular do Estado de exceção. Por essa razão, formas totalitárias podem ser encontradas no fascismo, nas ditaduras militares ou no bonapartismo (POULANTZAS, 1980, p. 83 e 240). Contudo, isso não significa dizer que em regimes democráticos não haja também elementos totalitários. Isso fica mais claro nos regimes democráticos contemporâneos, que possuem a marca do estatismo autoritário, como veremos adiante. Mas antes precisamos passar por melhores definições do fascismo e das ditaduras. O fascismo: Alemanha e Itália Poder político e classes sociais sofreu rigorosas críticas por ser considerado uma obra demasiadamente formalista, abstrata, ou, de um abstracionismo estruturalista (LACLAU, 1978; MILIBAND, 2008)3. Esse problema foi corrigido em Fascismo e 3 Uma resposta de Poulantzas contra Laclau e Miliband foi publicada na New Left Review, em 1976. Ver POULANTZAS, 2008. 5 ditadura, texto de 1970, em que analisa situações concretas de formações sociais como a alemã e a italiana, ambas no período fascista (MOTTA, 2010). Para Poulantzas (1972a), o fascismo faz parte da etapa imperialista do capitalismo e ocorre, em particular, naquelas formações sociais que são consideradas elos fracos da cadeia imperialista, no caso a Alemanha e a Itália, países que passaram por processos distintos de desenvolvimento do capitalismo. Mas dizer que o fascismo está localizado na etapa imperialista do capitalismo ainda significa pouco. Afinal, outros regimes políticos também estão historicamente localizados no mesmo lugar. Nesse mesmo momento histórico coexistem regimes democrático parlamentares e regimes de exceção. O fascismo é um caso típico de regime de exceção. A pergunta que se segue é: o que diferencia a forma dos Estados democrático parlamentares dos Estados de exceção? A resposta liberal é bem diferente da resposta de Poulantzas. Teóricos do totalitarismo como a já mencionada Hannah Arendt entendem que a principal diferença entre esses dois tipos de Estado está na autonomia das instituições da sociedade civil em relação ao Estado. Segundo Poulantzas, esses autores entendem tais diferenças do seguinte modo: O Estado “totalitário” – o fascismo, por exemplo – seria “essencialmente”, pela sua natureza, distinto do Estado “pluralista- institucionalista”. Neste último, existiriam instituições ou organizações autônomas entre o Estado, por um lado, e os indivíduos da sociedade civil, por outro. Estes “corpos intermediários” entre o estado e o indivíduo seriam as garantias da liberdade, mensurável, bem entendido, como autonomia do indivíduo em relação ao estado. Estas instituições “autônomas” e “livres” seriam os partidos, os sindicatos, as instituições culturais, as escolas, a igreja, até (e inclusive) as diversas associações locais, desportivas, etc. [...] Quanto ao Estado totalitário, caracterizar- se-ia, precisamente, pela pertença de todas as instituições ao estado, por uma estatização do conjunto da vida social, e, portanto, pela ausência de instituições “autônomas” entre o indivíduo e o Estado (POULANTZAS, 1972b, p. 102-103). Como sabemos, na tradição althusseriana, mas também gramsciana, em que Poulantzas está inserido, esses “corpos intermediários” entre indivíduos e Estado são, na verdade, “aparelhos ideológicos do Estado” que estão presentes em todas as formações 6 sociais complexas. Isso significa dizer que, tanto nos Estados democrático parlamentares quanto nos Estados de exceção, esses corpos intermediários pertencem ao Estado de alguma forma. Há uma diferença, portanto, entre a interpretação liberal e a marxista. Com efeito, o que diferencia os dois tipos de Estado é a relação desenvolvida entre esses “aparelhos ideológicos de Estado” e os chamados “aparelhos repressivos de Estado”. No Estado fascista, os “aparelhos ideológicos de Estado” legitimam os “aparelhos repressivos de Estado”, ou, dito de outro modo, o “papel da repressão física é necessariamente acompanhado por uma intervenção particular da ideologia, que legitima essa repressão” (POULANTZAS, 1972b, p. 105). As ditaduras: Portugal, Grécia e Espanha Com a queda das ditaduras militares em Portugal e na Grécia, em 1974, e os sinais de que o mesmo ocorreria em breve com o regime franquista na Espanha, a preocupação de Poulantzas girou para o que definiu como a crise das ditaduras. A crise das ditaduras, é, aliás, o título do livro publicado em 1975 em que analisa as condições políticas que permitiram a transição democrática nesses três países. Para cumprir com esse objetivo, Poulantzas segue uma metodologia bem clara em que observa a estrutura política dessas ditaduras a partir de cinco dimensões: o contexto imperialista mundial; a relação das ditaduras com os Estados Unidos e a Europa; as classes dominantes; as classes populares; e os aparelhos de Estado. Em cada uma dessas dimensões, o autor estabelece as diferenças entre regimes democráticos-parlamentares, ditatoriais e fascistas. Nessa obra, Poulantzas faz questão de distinguir os casos espanhol, português e grego dos já mencionados alemão e italiano, ou seja, diferenciar fascismo e ditaduras militares. Podemos listar três características principais que estão interconectadas que destoam os dois regimes: a capacidade de mobilização de massas; o lugar da dominação ideológica e da coerção; e a fragilidade do regime. Em primeiro lugar, a capacidade de mobilização das massas é um importante elemento de diferenciação entre os regimes ditatoriais e os fascistas. Ditaduras militares “se diferenciam, de fato, dos regimes fascistas clássicos (de tipo nazismo alemão ou fascismo italiano) pela incapacidade de virem a ser verdadeiros movimentos estruturados de massa” (1976, p. 46). Esse isolamento das ditaduras em relação às massas deve-se ao fato de não terem forjado “organizações próprias de enquadramento e de mobilização – partido fascista, sindicatos relativamente “representativos” – das massas” (1976, p. 63). Por óbvio, isso não significa 7 dizer que não haja elementos “fascistas” nas sociedades de regime ditatorial; o ponto é que esses elementos não são o suficiente para superar a “forma dominante da ditadura militar” (1976, p. 63). Em segundo lugar, ditaduras militares e regimes fascistas se diferenciam no lugar ocupado pela dominação por repressão e pela dominação ideológica. Regimes democráticos-parlamentares e regimes fascistas se apropriam de forma mais clara de “aparelhos especialmente destinados à dominação político-ideológica da classe operária e das massas populares” (1976, p. 65). O mesmo não ocorre com as ditaduras militares que, por essa razão, são obrigadas a manterem a dominação pela via da repressão permanente. No fascismo, os escalões intermediários do Estado estão unificados e mobilizados pela estrutura político-ideológica fascista; nas ditaduras militares, não há essa unificação ideológica nas camadas intermediárias do Estado, o que a torna impregnada pela luta de classes (1976, p. 67). A terceira dimensão que difere regimes ditatoriais dos fascistas diz respeito à fragilidade dos primeiros. As ditaduras são mais vulneráveis que os regimes fascistas, pois nas ditaduras há contradições nos aparelhos ideológicos de Estado: contradiçõesentre o exército e as universidades; entre o exército e a imprensa; entre o exército e a magistratura; entre a administração e a imprensa; entre a administração e as universidades etc. Por óbvio, contradições também existem nos regimes fascistas. Mas esses regimes “constituem um aparelho (o partido fascista), que além de um papel junto às massas populares funciona, também, e sempre paralelamente ao controle policial, como um aparelho que de certa forma reúne os outros sob sua autoridade e os mantém coesos” (1976, p. 96). Isso não existe nas ditaduras militares. Por essa razão, Poulantzas aponta a existência de militantes de esquerda nas universidades espanholas e o investimento dos militantes comunistas no aparelho sindical corporativista português. Sobre esse último aspecto, uma observação merece ser feita. Poulantzas tem razão em apontar que as ditaduras enfrentam maiores contradições internas derivadas da falta de uma coesão ideológica quando comparadas aos regimes fascistas. Contudo, pela experiência dos casos históricos por ele selecionados é difícil concordar com a afirmação de que isso signifique uma maior instabilidade dos regimes, ou, como ele prefere, uma maior vulnerabilidade. Ora, os dois regimes fascistas duraram 12 anos na Alemanha e 20 na Itália, ao passo que as ditaduras permaneceram no poder por aproximadamente quarenta anos na Espanha e em Portugal. Ou seja, os casos concretos selecionados por 8 Poulantzas apontam na direção contrária de sua tese. Por um lado, alguém poderia argumentar que o fim dos regimes fascistas foi derivado da guerra e não de contradições internas. De fato, isso parece ter ocorrido. Por outro lado, alguém poderia contra argumentar que a não participação direta na guerra seja justamente um elemento constitutivo da estabilidade das ditaduras e que as diferencia dos fascismos. Enfim, esse é um debate em aberto, mas que mostra uma fragilidade pontual do argumento de Poulantzas sem, no entanto, desqualificar a sua tese geral. O conceito de estatismo autoritário Na conclusão de A crise das ditaduras, Poulantzas já havia começado a perceber que elementos autoritários também estariam presentes nos próprios regimes democráticos-parlamentares dos países capitalistas daquela fase do imperialismo na década de 1970. Na sua avaliação, esses países passam por uma série de “transformações estruturais (econômicas, políticas, ideológicas) que a crise do capitalismo só faz acentuar e que tem efeitos consideráveis sobre todo Estado capitalista” (1976, p. 101). Essas transformações permitem a institucionalização de uma aparelhagem “tecnocrática- autoritária” que acentua a consolidação do Executivo em relação ao Parlamento o que leva ao fim uma certa forma de “democracia política” (1976, p. 101). Esse advento da aparelhagem “tecnocrática-autoritária” percebida pelo autor o faz concluir que “o caráter ‘democrático’ destes regimes [...] não deve ser medido conforme um ideal de regimes parlamentares já pertencentes ao passado” (POULANTZAS, 1976, p. 101). O que aparecia apenas como um insight da conclusão do livro de 1975 foi melhor desenvolvido três anos depois em O Estado, o poder, o socialismo, livro de 1978, por meio do conceito de estatismo autoritário. Estado, o poder, o socialismo é certamente a obra mais importante de Poulantzas, fruto de sua produção mais madura e publicado apenas um ano antes de sua trágica morte. Não cabe aqui recuperar tudo o que é exposto na obra, mas sim o tema desenvolvido na quarta parte do livro intitulada O declínio da democracia: o estatismo autoritário. Com esse conceito de estatismo autoritário Poulantzas observou de forma pioneira a nova forma que os regimes democráticos assumiriam a partir da década de 1970. Num linguajar claramente marxista, esse estatismo autoritário corresponde, diz o autor, “à fase do imperialismo e do capitalismo monopolista nos países dominantes” (POULANTZAS, 1980, p. 235). Há aqui um elemento importante. Seria o estatismo autoritário um tipo particular de regime de exceção como o fascismo ou a ditadura? Poulantzas é taxativo na negação. “Este Estado 9 não é nem a forma nova de um verdadeiro Estado de exceção, nem, propriamente a forma transitória para um tal Estado: ele representa a nova forma “democrática” da república burguesa na fase atual” (POULANTZAS, 1980, p. 240). Com efeito, Poulantzas foi perspicaz ao perceber a gênese dessa nova forma do regime democrático que é ainda mais nítida nesse início de século XXI. Por estatismo autoritário Poulantzas (1980, p. 234) entende “a monopolização acentuada, pelo Estado, do conjunto de domínios da vida econômico-social articulado ao declínio decisivo das instituições da democracia política”. Mais do que isso, “o estatismo autoritário caracteriza-se por uma dominação das cúpulas do executivo sobre a alta administração e pelo crescente controle político desta por aquele” (POULANTZAS, 1980, p. 259). Além disso, os próprios interesses econômicos estão presentes no interior da administração do Estado: A burocracia de Estado, sob a autoridade das cúpulas do Executivo, torna-se não só o lugar, mas o principal agente da elaboração da política estatal. Não se trata de um estabelecimento de compromissos políticos no meio parlamentar, ou seja de uma elaboração pública dos interesses hegemônicos sob a forma de interesse nacional. Os diversos interesses econômicos estão diretamente presentes doravante, transcritos na íntegra, no seio da administração (POULANTZAS, 1980, p. 260). O estatismo autoritário, como dissemos, é uma nova forma do regime democrático no período pós-década de 1970. Mas, ainda que seja uma modalidade de regime democrático, isso não significa supor a não existência de elementos de um regime de exceção em seu interior. Nas palavras de Poulantzas (1980, p. 242), “esse Estado, pela primeira vez provavelmente na existência e na história dos Estados democráticos, não apenas contém elementos esparsos e difusos de totalitarismo, mas cristaliza seu agenciamento orgânico como dispositivo permanente e paralelo ao Estado oficial”. Não se trata de uma contradição ou de um paradoxo pois, como sustenta o próprio autor, “toda a forma democrática de Estado capitalista comporta tendências totalitárias” (POULANTZAS, 1980, p. 241). Esse momento histórico da década de 1970 não é trivial. É exatamente o momento do declínio do Estado de bem-estar social pós-crise do petróleo de 1973, ou seja, o fim dos chamados “anos dourados” do capitalismo, na simbólica expressão de Hobsbawm (1995). Por essa razão, Poulantzas (1980, p. 246) argumentará que “o estatismo 10 autoritário é também a verdade que surge dos escombros do mito do Estado-providência ou do Estado bem-estar”. Essa crise econômica determina a própria crise política que transforma o regime democrático. Com a incapacidade de investimento do Estado em políticas sociais em decorrência da crise do petróleo, aumenta a distância entre a democracia política e a democracia social. Essa é uma das transformações que caracteriza o estatismo autoritário. A transformação do sistema partidário é também uma característica desse período de gênese do estatismo autoritário. Na medida em que a administração tende a monopolizar o papel de organizador político das classes sociais e da hegemonia, os partidos perdem essa função. Ao mesmo tempo, há uma “‘desideologização’ desses partidos, o desaparecimento de seus traços ideológicos marcantes e sua transformação em partidos despersonalizados” (POULANTZAS, 1980, p. 267). Para Poulantzas, a manutenção da democracia representativa e das liberdades pressupõe não apenas a pluralidade de partidos, mas também um funcionamento orgânico relativamente distante do aparelho administrativo central do Estado. Isso se perdeu com o advento do estatismo autoritário. Sobre esse processo, o autor nos diz: Esses partidos,mais que lugares de formulação política e de elaboração de compromissos e alianças com base em programas mais ou menos precisos, mais que organismos que mantém laços efetivos de representação com as classes sociais, constituem desde então verdadeiras correias de transmissão das decisões do executivo (POULANTZAS, 1980, p. 266). De certo modo, ao elaborar o conceito de estatismo autoritário Poulantzas antecipou muitos dos debates que a teoria política travaria a partir da década de 1990 como as críticas da terceira via, da pós-política (MOUFFE, 2015) e da cartelização do sistema partidário (KATZ e MAIR, 1995). Um dos principais intérpretes de Poulantzas, Bob Jessop percebe essa antecipação feita por Poulantzas, embora não desenvolva o tema4. Ao analisar a política ocidental da década de 1990 e dos primeiros anos do século XXI, o sociólogo britânico observa que “o Novo Trabalhismo é uma ilustração particularmente constrangedora dessas tendências, 4 Jessop (2009) também apresenta críticas ao desenvolvimento do conceito de estatismo autoritário, mas esse é um tema a ser trabalhado em outro momento. 11 mas os mesmos traços também são completamente evidentes nos Estados Unidos, na Itália, na Espanha, na França, na Alemanha e em várias outras sociedades metropolitanas” (JESSOP, 2009, p. 141). Ao mencionar o Novo Trabalhismo, Jessop está indicando, precisamente, a política da chamada “terceira via” como um exemplo do estatismo autoritário. Ao avaliar o estatismo autoritário nos tempos mais recentes, Jessop (2009, p. 141) aponta ainda que “uma grande ênfase em temas de segurança nacional e policiamento preventivo associada à assim chamada guerra contra o terror em casa e no exterior também reforçam o ataque aos direitos humanos e às liberdades civis”. Considerações finais A recente ascensão de movimentos de extrema-direita e de governos autoritários no período pós-crise econômica de 2008 exige da teoria política um retorno aos clássicos para uma melhor compreensão do fenômeno. Entre esses autores está Poulantzas, um “clássico moderno” na expressão de Bob Jessop (2009). Como vimos no presente artigo, ao longo de toda sua obra Poulantzas esteve preocupado com o tema do autoritarismo e dos regimes de exceção – fascismo, ditaduras militares e bonapartismos. A partir de estudos concretos do fascismo na Itália e na Alemanha, e das ditaduras militares na Grécia, na Espanha e em Portugal, o autor pôde sistematizar as principais características de cada regime. No entanto, a leitura de Poulantzas nos sugere que o conceito de “estatismo autoritário” talvez seja o mais promissor para a análise da conjuntura política do início do século XXI, ao mesmo tempo em que o próprio conceito precisa ser atualizado ou ressignificado. Em primeiro lugar, faz-se necessário dizer que o “estatismo autoritário” não deve ser confundido com fascismo ou ditadura, pois “ele representa a nova forma ‘democrática’ da república burguesa na fase atual” (POULANTZAS, 1980, p. 240). De acordo com o autor, essa nova fase do capitalismo é marcada por um declínio dos partidos como canais de representação política, pela exclusão de instituições participativas de nossa vida política e por surgir dos escombros do Estado de bem-estar social. De certo modo, poderíamos sugerir que, até o fim do século XX, o ápice desse “estatismo autoritário” teria sido aquilo que a literatura especializada definiu como “terceira via” (GIDDENS, 2001) ou como “neoliberalismo progressista” (FRASER e JAEGGI, 2020). Mas a ascensão de movimentos de extrema-direita no início do século XXI mostra que esse “estatismo autoritário” pode estar chegando em um grau ainda mais elevado. 12 A questão que precisa ser respondida em outro momento é: essas novas experiências políticas da extrema-direita no início do século XXI são expressões qualitativamente mais densas do “estatismo autoritário” ou precisaríamos de um novo conceito para defini-las? Não obstante algumas atualizações necessárias, seu conceito de “estatismo autoritário” parece descrever bem o cenário de avanço do autoritarismo do início do século XXI. Por outro lado, poderíamos ressaltar, com Jessop, que há problemas nos conceitos poulantzianos que precisam ser reelaborados. De qualquer modo, tudo isso nos atesta a vitalidade de sua teoria política para os atuais estudos do autoritarismo. Referências bibliográficas CARNOY, Martin. Estado e teoria política. Campinas, SP: Papirus, 1988. FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020. GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 2001. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. JESSOP, Bob. O Estado, o poder, o socialismo de Poulantzas como um clássico moderno. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 17, n. 33, p. 131-144, June 2009. Katz, R.; Mair, P. Changing Models of Party Organization and Party Democracy: The Emergence of the Cartel Party. Party Politics, 1(1), pp.5–28, 1995. LACLAU, Ernesto. Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 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O Estado capitalista: uma resposta a Miliband e Laclau. Crítica Marxista, n.27, p.105-127, 2008.
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