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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO ÉRIKA CERRI DOS SANTOS JUSTIÇA RESTAURATIVA: O USO DE MÉTODOS ADEQUADOS PARA O TRATAMENTO DE CONFLITOS COMO MEDIDA ALTERNATIVA AO ENCARCERAMENTO EM MASSA Vitória, 2021 2 ÉRIKA CERRI DOS SANTOS JUSTIÇA RESTAURATIVA: O USO DE MÉTODOS ADEQUADOS PARA O TRATAMENTO DE CONFLITOS COMO MEDIDA ALTERNATIVA AO ENCARCERAMENTO EM MASSA Artigo apresentado à matéria de Métodos Adequados de Tratamento de Conflitos, ofertada pelo curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para avaliação. Orientador: Trícia Xavier Navarro Vitória, 2021 3 RESUMO O objetivo deste artigo é apresentar a proposta da justiça restaurativa como meio para a diminuição do encarceramento em massa. Levando-se em conta a atual situação do sistema prisional brasileiro e suas consequências sociais, o uso dos métodos adequados para o tratamento de conflitos seria uma nova resposta ao paradigma punitivista, podendo enfraquecer a política do encarceramento através da aplicação da justiça restaurativa. A ideia será analisada a partir da exposição de dados acerca do sistema carcerário no Brasil e sobre a evolução histórica do encarceramento em massa no país, bem como uma explicação sobre a base teórica do sistema punitivista e um panorama sobre as mudanças propostas pelo paradigma restaurativo. Palavras-chave: Justiça restaurativa. Métodos adequados para o tratamento de conflitos. Encarceramento em massa. Sistema carcerário. 4 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………….5 2. O ENCARCERAMENTO EM MASSA…………………………………………………..6 2.1 AS PRISÕES MODERNAS: SURGIMENTO E NOÇÕES TEÓRICAS ………………...8 2.2.1 O perfil da População Carcerária no Brasil: O problema da Seletividade Penal....13 2.2.2 A Lei de Drogas: Um combustível para o encarceramento em massa………………….16 3. OS MÉTODOS ADEQUADOS PARA TRATAMENTO DE CONFLITOS E SUA APLICAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA CRIMINAL ………………………………...17 3.1 A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL …………………………………………....19 3.2. A JUSTIÇA RESTAURATIVA E SEU USO COMO MÉTODO ALTERNATIVO AO ENCARCERAMENTO ……………………………………………………………………....20 4. CONCLUSÃO …………………………………………………………………………….24 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………………..25 5 1. INTRODUÇÃO O sistema punitivo adotado pela política brasileira durante grande parte de sua história acarretou na restrição em massa da liberdade de sua população, principalmente da população negra e pobre. Tal cenário é ilustrado pelo perfil das pessoas encarceradas no país, bem como pelo seu contingente, que ultrapassa os 700 mil. Em consonância, tal modelo se tornou ineficiente no que tange à diminuição da criminalidade e à ressocialização do apenado, criando em toda a sociedade uma sensação de impunidade e de frustração com relação à Justiça brasileira. O encarceramento em massa representa um sistema de herança colonial, calcada no racismo e na discriminação, além de representar também uma consequência de um sistema falido baseado na racionalidade penal moderna. A pena de restrição de liberdade, legitimada por essa racionalidade, é um dos elementos com os quais o brasileiro aprendeu a conviver, aceitando-a de maneira majoritariamente pacífica e quase cega, sem atenção aos prejuízos sociais causados por ela. A necessidade de se pensar em métodos alternativos ao punitivo criou referências à Justiça Restaurativa a partir dos anos 70, como um modelo de resposta ao sistema penal tradicional, com o objetivo de tornar a resolução de conflitos mais humanizada, eficiente e restauradora, a partir da participação e do diálogo das partes envolvidas no conflito. Esse modelo de Justiça faz parte dos Métodos Adequados de Tratamento de Conflitos (MATC’S), os quais se baseiam na consensualidade e no diálogo para a resolução adequada e pacífica das controvérsias. Há, através da justiça restaurativa, a devolução do conflito ao âmbito comunitário, deixando de lado, em grande parte, a participação do Estado e focando na efetiva satisfação das partes e reparação dos danos causados. Este artigo tem como objetivo apontar o uso da Justiça Restaurativa como alternativa à política encarceramento em massa, por meio da contraposição ao sistema punitivista, o qual sustenta o discurso da legitimidade penal e do paradigma retributivo, calcados na retribuição e na vingança. O estudo parte da explicação do fenômeno do encarceramento em massa, através da qual também se aponta as implicações sociais relacionadas à problemática e a situação atual do sistema carcerário brasileiro. Explica-se, também, o paradigma punitivo e a racionalidade penal moderna, arcabouços intensificadores do encarceramento em massa. Por fim, faz-se um panorama sobre os MATC’s, sua origem e sua aplicação no Brasil, bem como o surgimento da Justiça Restaurativa e de que maneira esta poderia diminuir o número de 6 pessoas encarceradas no país. Como método, optou-se pela revisão bibliográfica de autores nacionais e internacionais, bem como de matérias jornalísticas e análise de dados estatísticos acerca do assunto. 2. O ENCARCERAMENTO EM MASSA O conceito de encarceramento em massa foi desenvolvido nos ambientes acadêmicos dos Estados Unidos (EUA), utilizado para descrever o aumento massivo do número de encarcerados envolvidos em torno de certos tipos penais específicos (como o tráfico de drogas, roubo e furto) e concentrado em um grupo social específico. No caso dos Estados Unidos e do Brasil, o encarceramento em massa atinge majoritariamente as populações negra, jovem e pobre. Nos EUA, o encarceramento em massa teve início quando o país estava sob comando de Nixon, na década de 1970, a partir da disseminação do discurso de guerras às drogas. Com essa política, em dez anos, o número de presos em território estadunidense subiu de 514 mil para 1,2 milhão. Em 1994, com a sanção de uma nova lei penal, esse contingente chegou a 2 milhões e até hoje o país ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de encarceramento. Em quatro décadas, a população carcerária estadunidense cresceu 500%1. Esse fenômeno foi classificado pela Comissão das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal como um dos principais desafios da justiça criminal no mundo, ao lado da seletividade criminal e da situação da mulher encarcerada. Segundo relatórios publicados pela Comissão em 2018, o aumentos das taxas de aprisionamento ao redor do mundo não condizem com a diminuição considerável da criminalidade nos países, representando, então, uma desproporcionalidade entre crime e punição2. No Brasil, o encarceramento em massa também representa um problema para a Justiça Criminal. De acordo com dados publicados pelo Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN), o Brasil encarcerava cerca de 700 mil pessoas em 2020, apresentando uma taxa de aprisionamento cinco vezes maior do que a registrada em 1990. Esses números expressivos referentes ao encarceramento no Brasil caracterizam o fenômeno 2 JUSTIFICANDO, 2018 1 CARTA CAPITAL, 2018 7 do encarceramento em massa, marcado pelo aumento massivo do número de pessoas privadas de liberdade e pelas consequências e implicações sociais envolvidas no processo. A principal implicação social relacionada ao encarceramento em massa é a seletividade penal e o racismo. Segundo dados do SISDEPEN, os negros compunham cerca de 67% da população carcerária do país em 2020. Esses dados se mostram frequentes ao longo da história do sistema prisional brasileiro, indicando a seletividade quanto a quem deve ou não ser preso. Sobre isso, Tatiane Vargas diz que: [...] as prisões no país se reafirmam, ano a ano, como um lugar para negros. No Brasil, se prende cada vez mais; no entanto, sobretudo, cada vez mais pessoas negras. Existe, dessa forma, forte desigualdade racial no sistema prisional, materializada não somente nos números e dados apresentados, como pode também ser percebida concretamente na maior severidade de tratamento e sanções punitivas direcionadas aosnegros. Aliadas a isso, as chances diferenciais e restritas aos negros na sociedade, associadas às condições de pobreza que enfrentam no cotidiano, fazem com que se tornem os alvos preferenciais das políticas de extermínio e encarceramento do país3. De acordo com Loïc Wacquant, o processo de encarceramento se relaciona profundamente com questões raciais e classistas, sendo ele utilizado como uma estratégia política para reestruturar a dominação racial e de classe na década de 19604. Seguindo a mesma linha, a filósofa Juliana Borges aponta: Mais do que perpassado pelo racismo, o sistema criminal é construído e ressignificado historicamente, reconfigurando e mantendo essa opressão que tem na hierarquia racial um dos pilares de sustentação.5 Além disso, o encarceramento massivo está relacionado, também, a rebeliões e extremos índices de violência nos complexos penitenciários de todo o Brasil. Isso porque as altas taxas de ocupação são geradoras de diversas outras violações dos direitos humanos, como maus tratos e tortura, gerando conflitos internos entre os apenados. A rebelião mais ilustrativa desse problema, foi a ocorrida no presídio de Carandiru, em 1992. Conhecido como o Massacre de Carandiru, o ocorrido deixou mais de 100 mortos, e foi causado pela revolta dos presos com relação aos modos como eram tratados no complexo. Uma vez relacionado a esses fatores que causam grandes problemas sociais, o encarceramento em massa foi sendo objeto de estudos e pesquisas que visavam a humanização e a diminuição da violência nos presídios, bem como a luta pela igualdade racial e classista ao redor de todo 5 BORGES, Juliana, 2020, p.44 4 WACQUANT, Loïc, 2007 3 VARGAS, Tatiane, 2020 8 o mundo. Dentre as estratégias pensadas para que tal problema fosse amenizado, está a instauração da justiça restaurativa. 2.1 AS PRISÕES MODERNAS: SURGIMENTO E NOÇÕES TEÓRICAS A ideia de prisão está enraizada no imaginário brasileiro e é uma sombra que nos rodeia desde o nascimento. Segundo Juliana Borges, cientista e militante do feminismo negro brasileiro, “nosso pensamento é condicionado a pensar as prisões como algo inevitável para quaisquer transgressões convencionadas socialmente”6. Logo, a noção de prisão está intimamente enraizada e naturalizada em nosso imaginário social, entendida como única solução possível para a punição de pessoas que infringem as normas sociais7. As prisões como são entendidas hoje, entretanto, são instrumentos punitivos recentes na história humana. Nesse sentido, assim como todas as instituições humanas, as prisões possuem uma história e uma função social. Elas nem sempre existiram e precisam ser compreendidas a partir das teias de relações históricas, sociais e jurídicas em que estão inseridas. Grande parte de sua estruturação é relacionada com os processos de transformações político-filosóficas e sociais que ocorreram a partir dos séculos XVIII e XIX, principalmente a partir do surgimento da racionalidade penal moderna, que mudou a forma como a justiça criminal era vista e tratada. Anterior à racionalidade penal moderna, vigorava como método de punição a aplicação de penas de suplício, definidas por Foucault como penas corporais dolorosas8, direcionadas, principalmente, contra pessoas escravizadas. O fim da escravidão em algumas localidades, entretanto, juntamente com a noção de igualdade entre os homens, fez com que as pessoas pensassem em outras formas de punir aqueles que inobservavam a lei. Foi assim que surgiram as prisões modernas. De acordo com Juliana Borges: 8 FOUCAULT, M., 2016, p. 80-81 7 Idem. 6 BORGES, Juliana, 2020, p.35 9 A liberdade do indivíduo, que passa a ser vista como bem e direito, é que ganha a esfera da restrição e toma contornos de pena. Como afirma Foucault, ‘o castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos’9. A racionalidade moderna, por sua vez, é um sistema de pensamento ligado a um conjunto de práticas institucionais que se designam como “justiça penal”10. Essa racionalidade está intimamente ligada à noção de punição como centro do processo penal, com foco no autor do crime, ideia que remete às noções de aplicação penal anteriores a essa teoria, como as idealizadas por Beccaria, Kant e Feuerbach. Segundo Leonardo Sica: Uma rápida revisão da evolução do pensamento penal moderno, demonstra que todas as contribuições até hoje mais destacadas unem-se por um mesmo radical: a obrigação de punir (PIRES, 1998 e 1999). Beccaria trouxe o utilitarismo, afirmando a exigência política e prática em punir para não enfraquecer o efeito dissuasório do direito penal; Kant, por meio do retributivismo, acrescentou a obrigação moral de impor a pena; e, por fim, Feuerbach, (que pode ser substituído por Ferrajoli), transforma essa exigência prática ou moral numa conseqüência jurídica certa e necessária ao cometimento do delito [...].11 Nesse sentido, nota-se que a racionalidade penal moderna tem bases fundantes nas teorias da pena construídas ao longo da história. Essa noção, entretanto, impõe a ideia de punição como sinônimo de bem-estar comum, tornando esta uma necessidade, de sua certeza derivando a segurança social12. Essa filosofia se relaciona com a ideia de retribuição do dano causado, calcando o paradigma penal retributivo, em que há grande crença na aplicação de “castigos”, que nesse caso seriam as prisões, como forma de “corrigir” aqueles que, de alguma forma, infringiram a lei13, legitimando a pena aflitiva como a melhor maneira de garantir que as normas de comportamento sejam efetivamente seguidas14. Essa vertente cria um sistema vingativo-punitivo, se preocupando exclusivamente em “retribuir” o mal causado às vítimas pelo apenado, como forma de contornar a impunidade. Essa crença atinge não apenas o sistema judiciário como também a sociedade como um todo. Segundo Álvaro Pires, a difusão midiática latente das várias tramas discursivas da racionalidade penal moderna foi essencial para que a prisão fosse entendida pelas pessoas como forma de castigo e suplício aos apenados15. Há, a partir disso, uma juridicização da 15 PIRES, Álvaro, 2004, p. 51 14 SANTANA, Selma Pereira; MIRANDA SANTOS, Carlos Alberto, 2018 13 Idem. 12 SICA, Leonardo, 2007, p. 137 11 PIRES, Álvaro, 2004, p. 51 10 PIRES, Álvaro, 2004, p. 51 9 BORGES, Juliana, 2020, p. 42 10 opinião pública pelo sistema penal16, fazendo com que ocorra uma naturalização da ideia de punição, castigo e da justiça retributiva como formas efetivas de controle social. Uma consequência cruel do punitivismo como paradigma, portanto, no âmbito do imaginário social, é a desumanização que isso causa nas pessoas. A partir da noção punitivista, a sociedade passou a acreditar que quanto pior o castigo que o apenado sofre, melhor para que ele "aprenda uma lição”. Tal perspectiva faz com que a sociedade feche os olhos para ou aplauda as barbáries que acontecem nos presídios diariamente, cultivando internamente a noção de vingança. Não há preocupação com a vítima e com os danos causados a ela. Não há preocupação com a adequada ressocialização do preso. Só há a agressão constante aos Direitos Humanos e ao Estado Democrático de Direito, a partir da disseminação da ideia de sofrimento e suplício como instrumentos de tortura. Existe, na sociedade, uma maneira vingativa de enxergar as prisões. Essa noção, entretanto, é desmentida não só pelo aumento notável da violência no país, como também pelo aumento constante dos índices de reincidência criminal no Brasil. No Brasil, atualmente, o Código Penal dispõe sobre medidas restritivas de liberdade em seus artigos 33 e seguintes Essas medidas são definidas como um cerceamento momentâneo de direito fundamental de ir e vir com o objetivo de ressocializar o apenado17. Retém-se a liberdade, que é uma condição fundamental do ser humano, de pessoas que praticam atos ilícitos e que vão contra as leis vigentes atualmente no país, colocando-os em um local, que em tese, é propíciopara a reeducação e desta forma, acredita-se que os mesmos não venham a se tornar reincidentes nos crimes já cometidos18. Essas medidas, entretanto, estão sendo banalizadas e aplicadas de maneira inadequada, perpetuando a noção punitivista dos conflitos e agravando a situação violenta dos sistemas prisionais do país, sendo apoiadas pela teoria da racionalidade penal moderna e pelo paradigma retributivo. 2.2. A SITUAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO NO BRASIL A adoção da justiça retributiva pelo Estado brasileiro acarretou em inúmeras consequências para o País, sendo a mais evidente delas o colapso do sistema carcerário em grande parte dos entes federativos. Nas últimas duas décadas, a população carcerária vem crescendo de 18 SANTOS, João E. Cândido, 2018 17 SANTOS, João E. Cândido, 2018 16 SICA, Leonardo, 2007, p.144 11 maneira exorbitante, como resultado de diversas medidas tomadas pelo Estado, como a Lei Antidrogas e a aplicação inadequada do instrumento da prisão provisória. Observe, no Gráfico 1, os números referentes a esse aumento. Gráfico 1: População Prisional por Ano (2000 -2020) Fonte: SISDEPEN (2020) Os números de 2017 da população carcerária no Brasil representaram um aumento da ordem de 707% em relação ao total de pessoas privadas de liberdade registrado no início da década de 90, classificando o país como o detentor da terceira maior população prisional do mundo19. Em 2020, o número de pessoas privadas de liberdade chegou a 702 mil. Um dado importante, disponibilizado pelo SISDEPEN, é o número de pessoas presas provisoriamente, sem julgamento e sem condenação, no Brasil. Esse número chegou a 209.257 pessoas em junho de 2020, representando aproximadamente 30% da população carcerária total. Em 2014, esse número chegou a mais de 40%20. De acordo com o princípio da presunção de inocência, garantido pela Constituição Federal21, esse número indica que 30% da população carcerária no Brasil em 2020 é inocente. Esses números mostram de que 21 Constituição da República Federativa do Brasil de 2005, art. 5o, inciso LVII. 20 SISDEPEN, 2020 19 Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 2017 12 forma a prisão provisória acentua de forma notável o encarceramento em massa no Brasil, aumentando a população carcerária significativamente. Importante ressaltar que, apesar da diminuição da população carcerária entre os anos de 2019 e 2020, a superlotação ainda é um problema no sistema prisional brasileiro. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, em até 2020 o Brasil apresentava uma taxa de ocupação de 151,8% e um déficit de 231.768 vagas no sistema prisional, um número preocupante considerando as condições necessárias para que o apenado seja devidamente ressocializado. Tal afirmação é ilustrada através do alto índice de reincidência criminal no país, que chegou a mais de 40% durante o período entre 2015 e 201922. Isso porque as condições às quais as pessoas nesse sistema são submetidas chegam a níveis subhumanos, sendo classificadas como inconstitucionais pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF)23. Situações essas causadas pela superlotação dos ambientes penitenciários, pela carência de recursos e de políticas públicas eficientes para a manutenção destes, inobservância dos direitos humanos quanto ao fornecimento de materiais básicos de alimentação e de higiene aos presos, entre outros fatores. Além disso, vale destacar que a estigmatização causada pelo processo penal atinge o apenado durante o resto de sua vida, dificultando seu acesso aos meios básicos de sobrevivência fora da prisão, como educação, saúde e emprego, deixando as pessoas que acabaram de sair do sistema carcerário com poucas alternativas para continuar sobrevivendo no país. Na visão de Wacquant sobre esse processo nos Estados Unidos: Com a tripla exclusão (direitos políticos, exclusão das políticas de assistência social, falta de aparato cultural e acadêmico), a prisão e o sistema jurídico-criminal contribuem mais amplamente para a constante reconstrução da comunidade imaginária de norte-americanos em torno da oposição polarizada entre a família trabalhadora digna de louvor e a subclasse desprezível dos criminosos, vadios e parasitas, uma hidra anti-social de duas cabeças personificada, do lado feminino, na mãe adolescente dissoluta sustentada pela Seguridade Social e, do lado masculino, no integrante perigoso das gangues de rua.24 Essa “morte social” seria a principal responsável pelos altos índices de reincidência penal. Esses altos índices também indicam a defasagem no uso da justiça retributiva como forma de controle social e resolução de conflitos. Nesse sentido, o sistema punitivista utilizado não 24 WACQUANT, Loïc, 2007 23 Em 2015, no julgamento da ADI no347, o STF considerou a situação das unidades carcerárias no país um “estado de coisa inconstitucional”, com violação constante e massiva dos direitos humanos e fundamentais. 22 CNJ, 2020 13 apenas é ineficiente, como também é um dos causadores de uma grande sensação da sociedade: o sentimento de impunidade. [...] o Estado, ao optar pela pena aflitiva, retirando das partes o poder de conduzir a resolução do desencontro, condena-os (à vítima, à comunidade e ao próprio autor) às frustrações e angústias causadas pela sensação de impotência experimentada diante da insuficiência do modelo adotado pela justiça penal, que não atende às suas expectativas.25 Assim, deduz-se que, salvo em alguns casos, em que se tem a imprescindibilidade do afastamento do convívio social, a aplicação da pena de prisão não é aconselhável. Segundo Lilian Rose Lemos e José Eduardo Cardozo, caso esta não seja aplicada dentro de uma dimensão absolutamente excepcional, ela pode trazer mais prejuízos que benefícios à vida social26. Nesse sentido, cabe buscar diferentes opções para aplicação de um modelo mais eficiente de resolução de conflitos no âmbito penal. É necessário, portanto, que seja criado um paradigma baseado no diálogo e no consenso como uma nova forma de reagir à infração27. 2.2.1 O perfil da População Carcerária no Brasil: O problema da Seletividade Penal Segundo Juliana Borges: Abolida a escravidão no país, como prática legalizada de hierarquização racial e social, vemos outros mecanismos e aparatos constituindo-se e reorganizando, ou até mesmo sendo fundados, caso que veremos da instituição criminal, como forma de garantir controle social, tendo o foco os grupos subalternizados estruturalmente.28 Assim como diversos outros autores ao redor do mundo, Juliana Borges denuncia a seletividade penal e a classifica como uma forma transformada de punir a população negra. Esse pensamento também é defendido por Wacquant: [...] há muito tempo o aparelho penal serve de acessório da dominação etnorracial, por ajudar a estabilizar um regime alvo de ataques ou a transpor o hiato entre regimes sucessivos; assim, os Códigos Negros da época da reconstrução, depois da guerra de Secessão, serviram paa manter em seu luga a mão-de-obra afroamericana após o fim da escravidão, enquanto a criminalização dos protestos pelos direitos civis no sul da década de 1950 visava a retardar a agonia do sistema Jim Crow. Mas o papel da instituição carcerária hoje em dia é diferente, pois, pela primeira vez na história dos EUA, foi elevada à condição de principal máquina de formação da raça29. 29 WACQUANT, Loïc, 2007 28 BORGES, Juliana, 2020, p. 41 27 GIMENEZ, Charlise Paula Colet; SPENGLER, Fabiana Marion, 2018 26ROCHA, Lilian Rose Lemos; CARDOZO, José Eduardo, 2017, p. 723 25 SANTANA, Selma Pereira; MIRANDA SANTOS, Carlos Alberto, 2018 (grifo nosso) 14 Sob esse viés, a teoria Labelling Approach30, de etiquetamento social, ganha visibilidade. Segundo ela, a cor da pele do indivíduo, bem como sua condição social é essencial para que as pessoas o “rotulem” como “bandido”. A teoria ressalta também que tal poder de rotulação está enraizada principalmente nas elites brancas sociais, que o utilizam como forma de discriminação e opressão da populaçãonegra e pobre. No Brasil, essa perspectiva ganhou forma através dos estudos de Howard Becker e tem se tornado um instrumento utilizado para entender de que forma “as interações entre os profissionais do sistema de justiça criminal e determinadas classes de cidadãos retificam as desigualdades sociais”31. Segundo dados do SISDEPEN, cerca de 67% da população carcerária do país é negra32. Observe o Gráfico 2: Gráfico 2: Composição da População por Cor/ Raça no Sistema Prisional Fonte: SISDEPEN, 2020 32 Segundo o IGBE, a população negra corresponde à população parda mais a população preta. 31 SOARES, Flávia Cristina; RIBEIRO, Ludmilla Mendonça Lopes, 2018 30 Tradução Livre: Abordagem de rotulação 15 Além disso, 95% dessa população é masculina e 41,40% têm entre 18 a 24 anos de idade. Outros dados se referem à escolaridade dos apenados. Em 2019, 6% da população carcerária era analfabeta, 9% era alfabetizada e apenas 12% tinham o ensino fundamental completo. Com base nas estatísticas, conclui-se, então, que a política do encarceramento em massa está voltada para o aprisionamento de jovens negros, em sua maioria com baixa escolaridade. Segundo o Mapa do Encarceramento Jovem, a aplicação desigual de regras e procedimentos judiciais com base em raça e cor foi objeto de diversos estudos, os quais chegaram a inúmeras conclusões que confirmaram a existência da seletividade penal no Brasil. No que se refere ao campo da justiça criminal, destacam-se os estudos pioneiros de Edmundo Campos Coelho (1987), Ribeiro (1995), Sam Adamo (1983) e Boris Fausto (1984). As conclusões destes autores apontaram que, em relação à seletividade racial, nos períodos analisados, aos negros eram aplicadas penas mais severas comparativamente aos brancos. Pesquisas posteriores, como as de Adorno (1996) e Kant de Lima (2004), apontaram que mesmo a transição para o regime democrático não corrigiu a produção da desigualdade racial do campo da justiça criminal. Já Vargas (1999) verificou que em crimes de estupro, na fase judicial do oferecimento da denúncia, a porcentagem de brancos e negros acusados é próxima, entretanto, na fase da sentença há mais condenação para pretos e pardos. Publicada nos anos 2000, uma pesquisa da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) analisou todos os registros criminais relativos aos crimes de roubos, no estado de São Paulo, entre 1991 e 1998. A constatação foi que réus negros são, proporcionalmente, mais condenados que réus brancos e permanecem, em média, mais tempo presos durante o processo judicial (BRASIL, 2015, p. 15). 33 Reforça-se o que diz Juliana Borges: Mais do que perpassado pelo racismo, o sistema criminal é construído e ressignificado historicamente, reconfigurado e mantendo essa opressão que tem na hierarquia racial um dos pilares de sustentação.34 A partir disso, reforça-se a existência de uma seletividade penal com base na raça no Brasil, resultado da estruturação racista dos sistemas de poder estatal e da predominância da elite no sistema judiciário, a qual é responsável pela criação da figura negra criminosa e da aplicação do Labelling Approach no sistema penal brasileiro. Esse fenômeno é uma herança de um passado escravocrata, cujas raízes se baseiam em discriminação e opressão do povo negro. A ideologia punitivista adotada pelo sistema penal brasileiro reforça o ideal retributivo justamente através da noção de "retribuir o mal com o mal”. Quando esta é associada a diferentes discriminações, principalmente de raça, ilustradas pela figura da seletividade penal, se torna uma ferramenta direcionada exclusivamente para a punição de grupo social já pré 34 BORGES, Juliana, 2020, p. 44 33 Mapa do Encarceramento Jovem, 2015 16 determinado, ferindo garantias constitucionais e perpetuando estruturas de opressão e de manutenção de desigualdades sociais. Tendo em vista a atual situação do sistema carcerário e a perpetuação das desigualdades raciais no país, portanto, reforça-se a ideia da aplicação de um novo paradigma penal que seja capaz de amenizar ambos os problemas, tendo em vista a satisfação da vítima e a correta readequação do transgressor à sociedade. 2.2.2 A Lei de Drogas: Um combustível para o encarceramento em massa A política antidrogas teve início nos Estados Unidos durante o governo Nixon e foi importada para o Brasil como forma de diminuir o uso e o tráfico de drogas no país. Atualmente, aproximadamente 32% das pessoas presas no Brasil foram condenadas através das tipificações estabelecidas na Lei Antidrogas35. A partir disso, conclui-se que este é um dos principais fatores responsáveis pelo aumento nas taxas de encarceramento no país, já que antes de sua vigência, o número de pessoas presas por causa do tráfico de drogas representava cerca de 14% da população carcerária36. Observa-se no gráfico 1, na página 11, o grande aumento no número de prisões após 2006, o ano em que a lei foi promulgada. Entre os principais motivos desse aumento exacerbado está a dificuldade em diferenciar o usuário de drogas do traficante, tendo em vista os termos notadamente subjetivos presentes na lei em questão37, que dificultam a decisão do juiz e abre espaço para a discricionariedade do julgador em estipular se a substância apreendida seria para uso pessoal ou não. Segundo o artigo 28, §2o da legislação, o juiz deverá atender à natureza e à quantidade de substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. Essa discricionariedade abre grande espaço para o fenômeno de Labelling Approach (etiquetamento social) no sistema Judiciário, o que é ilustrado pelo perfil de pessoas condenadas ou absolvidas por tráfico de drogas em paralelo com a quantidade de entorpecentes que portavam no momento da prisão. Segundo dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2018, nos casos de apreensão de somente um tipo de droga, os 37 Cristiano Maronna, 2018 36 SISDEPEN, 2020 35 SISDEPEN, 2020 17 negros foram mais condenados mesmo portando quantidades menores do que as portadas pelos brancos. A discrepância existe principalmente no que tange ao porte de maconha. 71% dos negros foram condenados e a apreensão mediana é de 145g. Entre os brancos, as condenações foram de 64%, com apreensão mediana de 1,14kg da droga. Como consequência do paradigma punitivo penal e das estruturas sociais baseadas em discriminação racial, herança colonial, ocorre o agravamento das mazelas sociais e estigmatização ligadas às questões de raça e ligadas ao uso de drogas, favorecendo o crescimento da criminalização e da marginalização desses grupos sociais específicos. A Lei de Drogas, entretanto, aborda amplamente em seu corpo normativo fatores da Justiça restaurativa. Ela rompe com as leis vigentes anteriormente, introduzindo uma política de prevenção do uso de drogas e de reinserção social ao usuário. Porém, a alta subjetividade presente na lei, como indicado anteriormente, dificulta a aplicação do tratamento diferenciado entre os usuários e os traficantes. Assim, o usuário é “afastado do tratamento adequado e política de atenção, para aproximar-se, novamente, do problema da segurança pública”38. A Lei, logo, fracassou no sentido de dar ao usuário o tratamento adequado e restaurativo, pendendo-os novamente sob uma perspectiva punitivista. Hoje, representa um dos fatores mais extenuantes do encarceramento em massa. Tal fato indica que os elementos da justiça restaurativa não devem ser dispostos de maneira isolada, mas, sim, de maneira que certos elementos sociais, como raça e classe, sejam considerados. 3. OS MÉTODOS ADEQUADOS PARA TRATAMENTO DE CONFLITOS E SUA APLICAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA CRIMINAL Os métodos adequados para tratamento de conflitos (MATC’s) surgiram como uma forma de desafogar o sistema Judiciário e tem como base fundante a Teoria da Justiça Multiportas, desenvolvida por Frank Sander. Com o processo de hiperjudicialização,a lentidão do Poder Judiciário começou a se tornar um problema extremamente presente em todo o mundo. Sob essa perspectiva, surgiram teorias e estudos que visavam a amenização dessa problemática, principalmente a partir dos anos 60. A noção principal relacionada a esses métodos está na 38 CONTIN, Alexandre Celioto; ZANETTI, José Carlos Trinca 18 análise das peculiaridades de cada caso, a qual permitiria o direcionamento destes a um tratamento adequado. No Brasil, os MATC’s têm origem no Brasil Império, através do instituto primitivo da conciliação. Mesmo após a Independência, o Brasil manteve esse instrumento, classificando sua aplicação prévia como obrigatória antes do ajuizamento da demanda judicial. Depois, no Código de Processo Civil de 1973, tais métodos também foram amplamente abordados, determinando que a conciliação poderia ser aplicada em qualquer momento processual. Alguns anos depois, ainda, a Constituição Federal de 1988 reforçou ainda mais a noção e a importância da resolução pacífica e consensual das controvérsias através de seu preâmbulo e dos artigos 4o e 98, dentre outros. A Resolução no 125 do CNJ, entretanto, foi o marco mais importante da aplicação dos métodos adequados para tratamento de conflitos no país. Esta trata da Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflito de interesses no âmbito do Poder Judiciário e tem como premissas atingir a máxima eficiência da justiça e garantir acesso a esta, além de consolidar a política permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos métodos consensuais de tratamento de conflitos. Atualmente, com o avanço nos estudos acerca desses métodos, as pessoas conseguem resolver seus conflitos judiciais de maneira mais rápida sem necessariamente precisarem entrar com um processo de tutela jurisdicional a partir de um tratamento mais humanizado e adequado de seus requerimentos. É mais comum, entretanto, a aplicação destes no âmbito civil. Em 2015, o Novo Código de Processo Civil (CPC/2015) trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro outras novidades acerca do assunto, estabelecendo o uso e o estímulo da mediação e da conciliação tanto em sua Parte Geral (arts. 3o, 149 e Seção V, Capítulo III), quanto em sua Parte Especial ( arts. 334, 566, 725, 515, etc.). No final dos anos 70 e começo da década de 80, entretanto, começaram a surgir projetos que buscavam a aplicação desses métodos também no âmbito penal, em que a vítima e o agressor tentam, de maneira pacífica, chegar a um acordo que visa a reparação dos danos causados pelo delito. O desenvolvimento das práticas restaurativas tiveram início no Canadá e na Nova Zelândia, com resultados positivos acerca da resolução dos conflitos, mas foi na década de 1990 que essa visão de justiça começou a ser efetivamente teorizada pelo criminologista Howard Zehr. 19 Maciana de Freitas enfatiza que, para Zher, a participação de todos os envolvidos no conflito (vítima, ofensor e comunidade) garantiria um espaço de fala que pode representar uma importante medida no controle do poder punitivo. Nesse sentido, o modelo de justiça restaurativa colaboraria significativamente na diminuição dos números de encarceramentos39. Em um âmbito internacional, a Resolução no 2002/12 da Organização das Nações Unidas (ONU) foi um grande passo para a difusão da Justiça Restaurativa a um nível global. Através dela, há a exposição de diversos princípios básicos que servem de norteadores para a utilização do método na seara criminal pelos Estados-membros. A premissa principal da Justiça Restaurativa se funda na busca da restauração dos danos causados pelo agressor, a partir da responsabilização adequada do mesmo de maneira educativa e não punitiva. Isso, porém, deverá ser feito em conjunto com a vítima, a partir do estabelecimento de um diálogo entre as partes. No Brasil, esse método gradativamente vem ganhando espaço no âmbito penal. 3.1 A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL Desde o final dos anos 90, o Brasil começou a adotar, em alguns casos, a Justiça Restaurativa como melhor forma de resolver conflitos e restaurar os laços sociais destruídos por eles. O modelo foi estudado pioneiramente no Rio Grande do Sul, em 1999, e hoje é muito utilizado para a resolução de conflitos juvenis. Em 2012, foi efetivamente inserido no ordenamento jurídico com a Lei 12.594/12, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Esse sistema tem, como uma de suas bases, a execução de medidas socioeducativas a partir da priorização de práticas ou medidas restaurativas, que, sempre que possível, atenda às necessidades das vítimas40. Ao redor do país, hoje, diversos estados aplicam esse modelo diante de determinados conflitos. Em São Paulo, o método restaurativo tem sido usado por escolas para a prevenção de conflitos e para evitar o agravamento destes. Na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o Núcleo de Estudos em Processo e Tratamento de Conflito (NEAPI) utiliza a justiça restaurativa da mesma maneira, através do projeto de Mediação Escolar. Em Brasília, na 40 Lei no 12594/12, art. 35, III 39 FREITAS E SOUZA, Maciana, 2018 20 Bahia e no Maranhão o método é utilizado em crimes de pequeno e médio potencial ofensivo e em certos casos de violência doméstica. Em 2018, O Centro de Justiça Restaurativa da Defensoria Pública Geral do ceará intermediou a realização de acordos em 83% dos casos tratados pelo núcleo41. A Justiça Restaurativa começou a ganhar força em território braisleiro em 2016, quando houve a inserção de algumas diretrizes para a prática desse método no Poder Judiciário brasileiro, através da Resolução no225/2016 do CNJ. Esse documento, em seu primeiro artigo, define a justiça restaurativa como: [...] um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, [...] O mesmo dispositivo ainda impõe que: os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma: I – é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indireta mente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos. (…) III -as práticas restaurativas terão como foco as necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para o fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade de reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo fato danoso e as implica ções para o futuro. De maneira evidente, a Resolução insere no ordenamento jurídico brasileiro uma inovação a nível nacional que ameaça o paradigma punitivo e retributivo da justiça, priorizando a participação efetiva de todas as partes envolvidas no conflito e tirando do Estado o total controle sobre o sistema penal, além de se preocupar efetivamente com a resolução do conflito em si, e não com a punição do agressor. 3.2. A JUSTIÇA RESTAURATIVA E SEU USO COMO MÉTODO ALTERNATIVO AO ENCARCERAMENTO A necessidade de se pensar em um novo paradigma se baseia no fracasso do atual sistema em refrear efetivamente a violência e ressocializar adequadamente o apenado, fatores que demonstram a ineficiência da aplicação da justiça tradicional. 41 Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará, 2019 21 As práticas restaurativas já são utilizadas pelo povo maori, na Nova Zelândia, há muitas gerações. Nestas comunidades ancestrais, existe a sobreposição dos interesses coletivos sobre os individuais, despertando em seus componentes o sentimento de pertencimento social. Como o crime era visto como algo destruidor de relações sociais, os Maori’s utilizavam-se de procedimentos restaurativos calcados na finalidade de resolver conflitos e controvérsias de maneira pedagógica, solucionandoquestões que envolviam sentimentos de vingança e de traumas. A justiça restaurativa, por sua vez, tem como objetivo principal a mudança no paradigma punitivista e retributivo presente na seara penal ao redor de todo mundo, trazendo uma abordagem mais humanizada e mais eficiente para o tratamento de conflitos envolvendo a área penal. Segundo a filosofia central desse método, a punição da infração não é o suficiente se sua causa principal não for resolvida e a vítima não for efetivamente compensada pelo dano causado, nem se satisfazer com as medidas tomadas para isso. Esse método é uma resposta que leva as partes a reparar, de maneira coletiva, os danos causados, através de práticas alternativas que não envolvem o Poder Judiciário42. Esse novo paradigma foi precedido de movimentos que já buscavam alternativas ao desgaste da justiça penal retributiva, como o abolicionismo e a vitimologia43. Isso ocorreu principalmente nos Estados Unidos nas décadas entre 60 e 80, e, somados à crise da ideia de ressocialização por meio do encarceramento, constituem um marco para o surgimento do paradigma restaurativo44. Nesse novo modelo, a condenação à pena de prisão é afastada em alguns casos, afirmando-se as vantagens para a reintegração adequada do agente ofensor e dando maior atenção às necessidades das vítimas, de maneira mais pacífica45. Além disso, o modelo restaurativo ainda representa uma ferramenta que prioriza a defesa das garantias fundamentais, “desafiando as matrizes autoritárias do processo penal brasileiro em nome de um eficientismo penal”46. Segundo Santana e Miranda Santos: Isto criaria um sistema de dupla entrada: mediação e punição, gerando outras possibilidades, fora do círculo punitivo, como tentativa de quebrar o ciclo da 46 FREITAS E SOUZA, Maciana, 2018 45 Idem 44SANTANA, Selma Pereira; MIRANDA SANTOS, Carlos Alberto, 2018 43Esses movimentos tiveram grande força na década de 80, sendo o abolicionismo marcado pela ideia de rejeição completa do sistema de justiça penal tradicional e a vitimologia caracterizada pela primazia da reparação dos danos causados à vítima pelo crime praticado 42 CAMPANÁRIO, Micaela Susana Nóbrega de Abreu, 2013 22 violência. Além disso, e a justiça punitiva passaria a ser residual e aplicada nos casos mais graves, de extrema necessidade já que para alguns o principal papel da justiça penal é o de possibilitar a aplicação das sanções penais, conforme a ideologia de lei e ordem, e tão somente de forma residual caberia à justiça penal garantir os direitos fundamentais47. Ressalta-se, então, que o modelo proposto pela Justiça Restaurativa não é totalmente substitutivo ao modelo atual: ambos devem coexistir de modo a garantir a correta aplicação da justiça, uma vez que não há condições de abstrair do sistema punitivo para determinadas situações48. Essa premissa é encontrada no artigo 2o da Resolução 225/2016 do CNJ, a qual indica que a aplicação dos procedimentos restaurativos podem ocorrer de forma alternativa ou concorrente com o processo convencional, sendo as implicações do caso consideradas à luz do sistema processual, devendo sempre ser analisadas as melhores soluções para as partes envolvidas e a comunidade. Nesse sentido, Maciana de Freitas acredita que a justiça restaurativa pode reforçar na comunidade uma cultura democrática pautada em valores como a participação, diálogo, igualdade, justiça social e respeito aos direitos humanos49. Segundo a autora, ainda, a implementação da justiça restaurativa pode proporcionar ao agressor a chance de se reinserir na sociedade com uma significativa mudança de comportamento. Maciana se apoia em Zher, que diz que: Tal responsabilidade talvez ajude a resolver as coisas para a vítima, pois poderá atender as necessidades dela. Talvez traga uma resolução também para o ofensor, pois um pleno entendimento da dor que causou pode desestimular um comportamento semelhante no futuro. A oportunidade de corrigir o mal e de torna-se um cidadão produtivo poderá aumentar sua autoestima e encorajá-lo a adotar um comportamento lícito50. Em síntese, o paradigma restaurativo tem por objetivo conciliar de maneira eficaz os interesses das partes envolvidas no conflito, reconstruindo as relações destruídas, retirando o estado e devolvendo à vítima e à sociedade em geral o controle e a resolução do conflito penal51. Em comparação ao sistema punitivo de justiça, há grandes vantagens na adoção da Justiça Restaurativa. O Quadro 1 abaixo demonstra de maneira comparativa as características e bases teóricas que diferenciam os paradigmas punitivo e retributivo. 51 SANTANA, Selma Pereira; MIRANDA SANTOS, Carlos Alberto, 2018 50 ZHER, Howard. 2008, p. 42-43 49 FREITAS E SOUZA, Maciana, 2018 48 SICA, Leonardo, 2007, p. 34 47 SANTANA, Selma Pereira; MIRANDA SANTOS, Carlos Alberto, 2018 23 Quadro 1: Principais diferenças entre os paradigmas punitivo e restaurativo ABORDAGEM PUNITIVA ABORDAGEM RESTAURATIVA Tem a culpa como elemento central. Tem a resolução do conflito como elemento central. Tem foco no fato delituoso que já ocorreu. Foco nas consequências que o fato delituoso causará no futuro52. Há uma secundarização das necessidades das partes envolvidas no conflito. As necessidades das partes envolvidas e da comunidade são primárias. Enfatiza as diferenças entre ofensor e vítima. procura pelo comum entre o ofensor, a vítima e a comunidade. Imposição de dor considerada normativa. Restauração e reparação consideradas normativas. Foco voltado ao ofensor e ao crime, a vítima deixada em segundo plano. As necessidades da vítima são centrais, contudo não se despreza o autor e a comunidade. O Estado soberano como único responsável pela resposta à conduta delituosa Reconhecidos os papéis da vítima, do ofensor e da comunidade na resposta ao crime. Fonte: SANTANA, Selma Pereira; MIRANDA SANTOS, Carlos Alberto, 2018 Dentre as vantagens mais destacadas, está a possibilidade de resolver efetivamente o conflito com a substituição do encarceramento pelo diálogo e acordo entre as partes envolvidas. Esse resultado pode ser alcançado através de diversas práticas restaurativas, como a mediação penal, que surge como uma reação pacífica e adequada ao ordenamento jurídico nacional, capaz de ocupar o lugar da privação da liberdade em vários casos. Observe a citação: É evidente o contraponto estabelecido entre a Justiça Restaurativa e o modelo clássico de Justiça Retributiva, na medida em que aquela propõe a retomada do protagonismo pelas partes envolvidas no evento danoso, dando-lhes voz e poder no processo de construção de um acordo que recomponha o tecido social lesionado. Há, com efeito, uma ruptura com a racionalidade hierárquica do poder punitivo, horizontalizando a relação como meio para que a vítima seja acolhida e o ofensor adequadamente responsabilizado e conscientizado acerca dos danos provocados pelo seu comportamento.53 Em síntese, a limitação da exteriorização da ação penal a partir do afastamento da possibilidade da condenação à restrição de liberdade e a priorização pela satisfação das 53COSTA, Daniela Carvalho Almeida da; MACHADO JÚNIOR, Elisio Augusto de Souza, 2018, p. 85 52 A justiça restaurativa enfoca as consequências do crime e as relações sociais afetadas pela conduta (SICA, Leonardo, 2007, p. 26-27) 24 necessidades das vítimas tem grande potencial para a diminuição do encarceramento em massa, caso a justiça restaurativa seja aplicada de maneira eficiente54. 4. CONCLUSÃO O encarceramento em massa reflete a violência do Direito Penal em agir de modo vingativo e punitivo com relação àqueles que agem de forma contrária à disposta em lei. O paradigma punitivo, responsável por legitimar esse modelo de justiça, é fundado na racionalidade penal moderna, a qual não admite a aplicação de qualquer outro modo de resolução de conflitos a não ser a restrição de liberdade e punição enquanto característica principal da reação penal. Como consequência, há, no âmbito penal, a perpetuação dediferenças raciais e classistas, bem como o prolongamento da estigmatização acerca dos apenados que, ao cumprirem sua pena, se veem sem muitas alternativas fora da cadeia. O paradigma punitivo, além disso, se mostra falido ao serem analisados os dados referentes à sua aplicação: altos índices de reincidência, constantes violações aos direitos humanos dentro dos presídios, aumento nos índices de violência. Nesse sentido, a Justiça Restaurativa surge como uma alternativa suplementar a esse cenário de violência e ineficiência, calcando suas bases nos princípios gerais dos Métodos Adequados de Tratamentos de Conflitos, estes aplicados constantemente no âmbito civil. A Lei de Drogas indica, entretanto, que a aplicação da Justiça Restaurativa não deve apenas ser disposta em lei de maneira isolada. Há de se fazer ligações entre diversos fatores sociais e econômicos, visando o uso efetivo de tais técnicas. Através desse novo modelo, a pena de prisão é afastada em alguns casos e há o foco na reparação do dano causado pelo agressor em conjunto com sua adequada inserção na sociedade através do diálogo, da consensualidade e, por fim, de um acordo entre as partes envolvidas, diminuindo consideravelmente o encarceramento. Devolve-se à vítima e à comunidade o poder de resolver conflitos. 54 SANTANA, Selma Pereira; MIRANDA SANTOS, Carlos Alberto, 2018 25 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Paula. 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