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na sala de aula pedagógica PRESENÇA E D . 1 52 . A N O 2 3 M A IO . 20 19 R $ 4 9 ,9 0 JUVENTUDE Educação se torna ferramenta para protagonismo na periferia ENTREVISTA Professor da UnB, Genuíno Bordignon defende a valorização de saberes na EJA INDICAÇÃO Documentário retrata a escolarização pelo olhar de jovens e adultos Educação de Jovens e Adultos: direito, acesso e permanência Educação de Jovens e Adultos: direito, acesso e permanência Inicio este artigo convidando leitores, estudan-tes, pesquisadores, educadores e coordena-dores de EJA a refletir sobre quatro questões que aqui serão desenvolvidas sobre o direito, o acesso e a permanência dos sujeitos na EJA. A primeira é sobre o que há de mais central na EJA, quem é o público da Educação de Jovens e Adultos e por que esteve excluído do direito à educação por tanto tempo. A segunda ques- tão se refere às suas trajetórias, indagando com quais esperanças e motivações esse público re- toma seus estudos. A terceira nos leva a pen- sar sobre como essas expectativas são acolhidas pelas escolas de EJA, e, para concluir, recorro a Paulo Freire (2011), que diz que “constato não para me adaptar, mas para mudar”, e pergunto: é possível ir além? Revista Presença Pedagógica18 DESTAQUE QUAL É O PÚBLICO DA EJA? POR QUE ELE ESTEVE EXCLUÍDO DO DIREITO À EDUCAÇÃO POR TANTO TEMPO? Comecemos por trazer os dados dos censos sobre a condição de escolarização da po- pulação com 15 anos ou mais. Do total da população brasileira de 208 milhões, cerca de 16 milhões (8%) permanecem na con- dição de analfabetismo, sem o domínio da leitura e da escrita. Aproximadamente 35 milhões são considerados analfabetos fun- cionais, ou seja, frequentaram a escola por um ano, dois, três, até quatro anos, mas, durante a vida, não deram continuidade ao uso da leitura e da escrita, chegando a re- troceder à condição de analfabetismo. Há ainda aqueles que interromperam, ou foram levados a interromper seus estudos em algum momento da vida, nos anos finais do Ensino Fundamental. Somando, chegamos a aproximadamente 65 milhões de brasi- leiros sem o Ensino Fundamental completo, que é o mínimo da escolaridade básica. E quais as razões, os motivos que levaram e levam parcela significativa da população bra- sileira a interromper seus estudos? Primei- ramente, não se pode esquecer que nossa sociedade é marcada por uma desigualdade social, fruto de históricas injustiças sociais. O livro Morte e vida severina, lançado por João Cabral de Melo Neto em 1955, descreve a vida dramática de uma família que perambula pelo interior do Brasil em busca da sobrevi- vência até chegar a uma cidade grande, onde reproduzirá as características de vida de famí- lias pobres vivendo em mocambos. Em 1944, Cândido Portinari já havia eternizado a reali- dade dos migrantes no quadro Os retirantes. Quando nos aproximamos dos sujeitos que buscam a EJA e perguntamos sobre as ra- zões de terem parado os estudos, muitos são aqueles que mencionam a necessi- dade de trabalhar para ajudar em casa. Que criança no Brasil precisa deixar a escola para ajudar em casa? São as crianças pobres, que, tendo uma vida à margem dos direi- tos, começam a assumir responsabilidades de adultos em suas casas. A falta de direi- tos básicos, como moradia decente e renda digna, fruto do trabalho dos pais, coloca essas crianças em situação de vulnerabili- dade social. Esses fatores fizeram e fazem com que muitas delas tivessem que perma- necer em casa para cuidar dos irmãos me- nores, ou mesmo de algum familiar doente. Um outro fator muito citado como motivo para a interrupção dos estudos foi a inexis- tência de escolas próximas para o prosse- guimento da escolarização, sobretudo, entre os que vieram de cidades do interior do país. No caso das mulheres, uma razão recor- rente é a proibição dos pais de frequen- tarem a escola. Esse motivo merece uma reflexão profunda sobre as marcas do ma- chismo em nossa sociedade, as quais per- passam as classes sociais. O filme Eles não usam black-tie, cujo roteiro foi es- crito por Gianfrancesco Guarnieri em 1958, elucida essa problemática ao tra- tar as contradições do comportamento de um líder operário nas relações domésti- cas. Outro fator que, muitas vezes, é de- terminante do afastamento de mulheres de famílias pobres da escola é a gravidez precoce. É necessário cruzar os dados de gravidez de adolescentes pobres com a interrupção dos estudos para termos uma ideia do quanto esse número é expressivo. 19 Revista Presença Pedagógica Leôncio Soares Professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-doutor, doutor e mestre em Educação e graduado em Letras Em decorrência disso, muitas vão seguir a vida como mães solteiras, ou constitui- rão famílias, mas precisarão dedicar seu tempo a cuidar do próprio filho. Outro aspecto declarado pelos estudan- tes da EJA como desmotivador é o fato de a escola não ser considerada o lugar deles. Relatos de situações de constran- gimentos vividas ao frequentar a escola são comuns entre eles, desde a discrimi- nação pela situação de pobre, resumida na frase “criança de pé no chão aqui não pode estudar” até os rituais de humilhação ao tentar fazer uma leitura em voz alta e ser recriminado como “mobral”. Há que se considerar que o direito de reto- mar os estudos só foi conquistado na Cons- tituição Federal de 1988. Antes dela, eram remotas as possibilidades de maiores de 15 anos, jovens, adultos e idosos retomarem a educação formal em escolas públicas. Em suma, foram elencadas algumas das ra- zões por que os sujeitos da EJA estiveram excluídos do direito à educação por tanto tempo. São 500 anos de negação do direito à educação. Não é favor, não é privilégio. COM QUAIS MOTIVAÇÕES E ESPERANÇAS ESSAS PESSOAS RETOMAM SEUS ESTUDOS? A segunda questão é decorrente da pri- meira. Para aqueles que tiveram seus es- tudos interrompidos, segundo as razões expostas acima, é de se perguntar: com quais motivações e esperanças retomam seus estudos? Assim como foram muitos os motivos que os levaram à interrupção da esco- larização, são também variadas as mo- tivações e as expectativas que os fazem retomar os estudos. A primeira motivação que se destaca entre eles é o desejo, que muitas vezes se reveste de um sonho, adormecido, de um dia voltar para a es- cola. Aliado a esse desejo, existe tam- bém a pressão, no campo de trabalho, por uma escolaridade mínima, requerida até mesmo para se manter no posto. Se, antes, era possível ingressar em determi- nados postos de trabalho apenas com a exigência do ensino primário, equivalente às séries iniciais do Ensino Fundamen- tal, como, por exemplo, ocorre com co- bradores de ônibus, atualmente se requer o Fundamental completo. No caso específico das mulheres, que buscam conhecimentos para ter condi- ções de acompanhar os filhos nos deveres de casa, é muito interessante perceber a alteração de expectativa. Muitas chegam a declarar que entraram por causa dos fi- lhos, mas descobriram o gosto por estudar e permaneciam pela realização pessoal. Já aqueles que vêm para a escola depois de muitos anos, ou mesmo sem nunca terem estado nela, denunciam na expres- são “não ser passado para trás” o estado de insegurança, de dependência e de ex- ploração no qual estão imersos nas rela- ções familiares, trabalhistas, comerciais e bancárias da sociedade. Encontramos ainda nesse grupo pessoas que expressam o anseio de aprender a ler para praticar a leitura da bíblia. Revista Presença Pedagógica20 DESTAQUE Há também o grupo dos mais idosos, cuja expectativa se diferencia, em alguns as- pectos, da dos mais jovens. Os idosos não têm a intenção de se submeter a concur- sos, nem pensam em fazer um curso su- perior. Usufruem do espaço escolar como forma de socialização. Dada a inexistência de espaços públicos, nos bairros periféri- cos em especial, encontram nas escolas a possibilidade de socializar e estabelecervínculos de amizade. O conjunto dessas motivações representa o que Paulo Freire, em sua Pedagogia do oprimido, caracterizou como uma vocação do ser humano de se libertar da situação- -problema na qual está inserido, em um movimento de busca por Ser Mais, que in- sere a escola no conjunto de outras lutas por melhores condições de vida. COMO ESSAS EXPECTATIVAS SÃO ACOLHIDAS PELAS ESCOLAS DE EJA? No passado, a acolhida aos adolescen- tes, jovens, adultos e idosos se dava por meio de cursos noturnos. Desde o Império que escolas para adultos foram criadas em pequeno número, na maioria das vezes, seguindo o mesmo formato do ensino comum para as crianças. Na passagem do Império para a República, em 1889, o Bra- sil tinha 82% de sua população em situa- ção de analfabetismo. Naquele período, o fato de ser mulher impedia o exercício do voto, atividade cidadã negada também aos considerados analfabetos. Em 1932 as mu- lheres conquistaram o direito de votar, en- quanto os analfabetos só o obtiveram com a Constituição Federal de 1988. m arigold_ 8 8 e kali9 /iStock.com 21 Revista Presença Pedagógica A busca por aprender mais sempre foi acompanhada de movimentos que procu- ravam ampliar o grau de emancipação dos grupos excluídos do acesso ao conheci- mento. Assim é com os moradores das periferias, os trabalhadores do campo, os indígenas, os quilombolas. A resposta às demandas desses coletivos, na expressão de Miguel Arroyo (2017), são as políticas afirmativas de direitos que, exatamente por estarem voltadas aos grupos exclu- ídos, representam o resgate da humani- dade roubada. Por um longo tempo, o atendimento a essa demanda se deu por meio de cam- panhas. Em 1947, o governo federal criou 10 mil classes de alfabetização em todos os municípios do País, dando início à Campanha de Educação de Adultos, que se estendeu até 1963. Ainda hoje lidamos com as marcas deixadas por essas ini- ciativas, como o aligeiramento no aten- dimento, a improvisação das ações e o trabalho do voluntariado. José Carlos Barreto e Vera Barreto, no texto “Um sonho que não serve ao sonhador”, nos alertam sobre a necessidade de se va- lorizar o momento de acolhimento desses sujeitos de direitos que, por terem ficado afastados da escola por muito anos, cons- troem todo um imaginário sobre o local, as atividades e o professor em sala de aula, e se sentem desestimulados quando a realidade não se identifica com a ima- gem desejada. Isso não significa que a es- cola terá que ser semelhante à que eles não frequentaram tempos atrás. O que os autores destacam é a importância do processo de ingresso, de chegada, a ser negociado aos poucos, partindo do mais tradicional em direção ao diferenciado. Encontramos na história da educação re- gistros que apontam a necessidade de se preparar o docente para trabalhar com jovens e adultos. No entanto, nem sem- pre essa necessidade foi assumida pelas instituições formadoras de professores, o que nos faz deparar, até os dias de hoje, com a expressão “caí na EJA” como res- posta de professores indagados sobre como ali chegaram. Em oposição a essa situação, temos encontrado educadores que dizem ter se jogado na EJA, em alu- são à convicção com que assumiram tra- balhar nesse segmento. “ ” Revista Presença Pedagógica22 REPORTAGEM Atender à diversidade de que se compõe o conjunto desses sujeitos aponta para as especificidades desse público, e um dos aspectos a ser contemplado é o da flexibi- lidade dos tempos e dos espaços. Se são outros sujeitos, logo precisamos de outras pedagogias, diria Miguel Arroyo (2017). Se o que mais os caracteriza é ter o tempo tomado pelo trabalho, a escola precisa se cercar de mecanismos de acolhimento e de permanência. Não pode ser meramente a réplica do ensino comum de crianças e adolescentes. Há que ter um desenho cur- ricular que explore as potencialidades dos sujeitos e não que os exclua, novamente, por suas limitações. O processo de enturmação é desafiador, uma vez que o modelo seriado foi criado para atender a uma pretensa homogeneiza- ção das crianças. Como os jovens, adultos e idosos trazem históricos diferenciados, segundo seus percursos e experiências de vida, e a enturmação precisa levar em conta a bagagem de saberes e conhecimentos acumulados que carregam. Nesse sentido, planejar as atividades dentro e fora da sala de aula favorece o estabelecimento de rela- ção entre o vivido e o a ser aprendido. Entre as atividades diferenciadas de um currículo comum às crianças está a produ- ção de recursos didáticos. São muitas as iniciativas criativas em relação a recursos para além dos livros didáticos existentes, como produção de textos a partir de his- tórias de vida, elaboração de projetos com temáticas próximas à realidade dos estu- dantes, criação de vídeos aproveitando o potencial da turma etc. Um outro aspecto que vem sendo enfren- tado com ousadia na EJA é a avaliação. Se concebemos que os sujeitos são outros, em relação às crianças do ensino comum, e que as técnicas e os métodos de ensi- no-aprendizagem precisam atender a essa nova realidade, logo, as formas de ava- liação terão que acompanhar esse estilo diferenciado. Em lugar de atividades pa- dronizadas, que, muitas vezes, aferem o desenvolvimento dos estudantes somente de forma quantitativa, há que introduzir iniciativas variadas, que possam observar e avaliar o processo de aprendizagem de jovens, adultos e idosos. É POSSÍVEL IR ALÉM? Se entendermos o período da redemo- cratização do País como um momento de conquistas de direitos, muitos dos quais inscritos na Constituição Federal de 1988, podemos observar que o que se seguiu foi a luta pela efetivação de direitos, entre os quais o direito de todos à educação. Na EJA, a garantia desse direito se deu pelo acesso à escola pública daqueles que haviam interrompido seus estudos. Vimos que, no momento inicial, esse acesso se caracterizou pela reprodução junto aos adultos, pela escola, do ensino direcio- nado às crianças. O momento agora seria o de avaliar quais acúmulos já temos, ao longo dos últimos 30 anos de múltiplas experiências com a EJA, para avançar em relação às questões diagnosticadas e garantir a permanência dos jovens, adultos e idosos na escola. Revista Presença Pedagógica 23 REFERÊNCIAS ARROYO, Miguel. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA; itinerários pelo direito a uma vida justa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. BARRETO, José Carlos; BARRETO, Vera. Um sonho que não serve ao sonhador. Alfabetização e Cidadania, ano 2, n. 1, p. 31-37, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autono- mia: saberes necessários à prática edu- cativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011. SOARES, Leôncio. Trajetórias compar- tilhadas de um educador de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. Segundo Freire (2011), “ensinar exige refle- xão crítica sobre a prática”. Assim, é pre- ciso refletir: quais as questões que nos desafiam? Uma primeira grande questão já foi mencionada no texto: como construir uma proposta de EJA que atenda às espe- cificidades de seus sujeitos? Para respon- der a essa questão, poderíamos identificar experiências em curso há muito tempo e nos debruçar sobre suas potencialidades. Destacaria aqui o CMET – Centro Muni- cipal de Educação do Trabalhador Paulo Freire, da Prefeitura de Porto Alegre, com 30 anos de existência. Uma segunda questão se refere ao que já existe acumulado nas formas de organi- zação da EJA. Para Freire (2011), “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo”. Há um vasto e rico material construído nas redes públicas, desde projetos político-pedagó- gicos, passando por desenhos curriculares e produção de materiais, até experiências de formação continuada de professores. Em parte, esse material tem sido objeto de pesquisas de mestrado e doutorado nas universidades, o que ampliaria o campo a ser estudado e analisado. Há ainda os do- cumentos produzidospelos Fóruns de EJA e pelos Eneja’s, resultantes de amplas dis- cussões ao longo dos últimos 20 anos. Estamos completando 10 anos da reali- zação da Confintea VI – Conferência In- ternacional de Educação de Adultos. Pela primeira vez, a Unesco organizou uma conferência do status da Confintea no he- misfério sul, e o Brasil a sediou. De certa forma, sua realização no Brasil reconheceu e legitimou as ideias e práticas que aqui se desenvolvem em relação à educação de pessoas jovens e adultas. A terceira questão que trago para este texto é o embate vivido no campo da EJA: gesto- res têm afirmado que “a EJA vai acabar”. As estatísticas não deixam dúvidas ao apon- tar a existência de aproximadamente 65 milhões de brasileiros sem o Ensino Fun- damental completo. Esse dado revela que não é possível propor um projeto de cres- cimento econômico para o País sem inves- timentos no desenvolvimento social. Assim sendo, as demandas para a educação dos jovens, adultos e idosos estão dadas como grande desafio para o Brasil, revelando que a EJA não tem como acabar. O que é pro- vável é que queiram acabar com a EJA. 24 Revista Presença Pedagógica REPORTAGEM
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