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A obra de Hegel é sistemática, procurando incluir em um sistema integrado todos os grandes temas e questões da tradição filosófica. Após Hegel, a concepção de uma filosofia sistemática entra em crise, em grande parte devido às críticas à pretensão hegeliana. Tentar compreender o sistema hegeliano exige entender sua linguagem própria, altamente técnica que possui um sentido específico no interior de sua obra. As questões discutidas por ele são sucessivamente retomadas em diferentes obras, sob diferentes perspectivas, que completam-se. Para entender uma obra é necessário entender todo o sistema. -A crítica de Hegel a Kant Ocorreu dentro da mesma linha de desenvolvimento do racionalismo moderno, inaugurado pela tentativa de Descartes de encontrar um ponto de partida radical e de fundamentar a possibilidade do conhecimento na consciência, no sujeito pensante. Kant critica o sujeito cartesiano, o caráter psicológico da experiência desse sujeito e os pressupostos metafísicos de uma consciência considerada como dada, sem que se pergunte pela sua origem, pelo processo de formação da subjetividade. Hegel também questiona a dicotomia kantiana entre razão teórica e razão prática, dizendo que é a verdade destes pressupostos que deve ser examinada. Hegel pretende substituir o problema epistemológico da fundamentação do conhecimento pela auto-reflexão fenomenológica da mente, entendendo a fenomenologia como a "ciência dos atos da consciência". Segundo a tradição racionalista, só a partir de critérios seguros sobre a validade de nossos juízos é que podemos determinar se temos certeza de nosso conhecimento. Entretanto, Hegel diz que esta crítica deve ser ela própria conhecimento. A investigação da faculdade cognitiva é ela própria conhecimento, e não pode-se chegar a este objetivo, pois o mesmo já é pressuposto desde o início. Questiona assim a visão da filosofia crítica como propedêutica, como introdução. A filosofia não pode ser entendida puramente como um órganon que trata do instrumento do saber antes do saber, nem ao amor à verdade que não é a própria posse da verdade. Hegel considera que Kant identifica conhecimento com ciência, a partir do paradigma das ciências naturais, sobretudo na física de Newton, que Kant admirava e que toma como ideal normativo de conhecimento, derivando dela um critério da ciência possível em geral. Hegel é contrário a esse privilégio da ciência, que considera um pressuposto não justificado. A ciência é uma manifestação do conhecimento como qualquer outra, a concepção kantiana da teoria do conhecimento como um órganon da razão, como um exame dos meios de conhecimento, parte de um modelo de conhecimento que enfatiza ou a atividade do sujeito conhecedor ou a passividade do processo cognitivo. O instrumento supõe sujeito e objeto como separados, enquanto o meio altera o objeto segundo a própria natureza do meio intermediário; com isso não há possibilidade de um saber absoluto, o que Hegel defende como objetivo último. Para Hegel, a crítica do conhecimento deve abandonar este pressuposto, deixando que o critério da crítica do conhecimento da própria experiência da reflexão. A consciência crítica deve portanto se auto-refletir, reconstruindo seu processo de formação. Hegel questiona igualmente a separação kantiana entre razão teórica e razão prática. Segundo esse questionamento, a Crítica da razão pura pressuporia uma concepção de “eu” diferente da encontrada na Crítica da razão prática. Na primeira, o “eu” se caracteriza pela unidade da autoconsciência e, na segunda, pela vontade livre. Hegel preocupa-se em não ser confundido com os filósofos românticos, que valorizam o sentimento. Sua crítica deve ser situada dentro de uma concepção racionalista, mas que permita alcançar o Absoluto. -Consciência e história A reflexão filosófica deve partir de um exame do processo de formação da consciência. Através da consciência crítica de nossa situação histórica, podemos entender o próprio processo histórico, as “leis da história”, seu sentido e sua direção ,e , dessa forma, podemos ir além da consciência de nosso tempo. Há um compromisso com a ideia de progresso humano no trabalho de Hegel, mas este progresso é sempre julgado do ponto de vista dos que o alcançaram, sendo específico. Se a razão fosse apenas um resultado da mente humana, não poderíamos explicar como corresponde aos fatos, ao menos que ambos fossem criados por uma divindade transcendente. A explicação para a historicidade no pensamento de Hegel consiste em que é apenas ao traçar o caminho pelo qual a razão humana se desenvolveu que podemos entender o que somos hoje. Explicitamos assim o sentido da história, sua direção. Em Lições de Iena, Hegel formula sua concepção do processo de formação da consciência. Trata-se de um tríplice processo constituindo de três elementos básicos: 1. As relações morais: a família ou vida social; 2. A linguagem: processos de simbolização; 3. O trabalho: a maneira como o homem interage com a natureza para dela extrair seus meios de subsistência. Hegel considera que a unidade da autoconsciência não é originária, só podendo ser concebida como resultado de um processo de desenvolvimento que caracteriza-se por essas três dimensões básicas. As relações morais explicam o papel do outro na formação da consciência de um indivíduo. Ele só se torna um sujeito na medida em que é reconhecido como tal pelo outro. Este reconhecimento se dá inicialmente na família e posteriormente na vida social. O trabalho mostra como a consciência é formada igualmente pelo modo como o homem interage com a natureza e a considera como objeto do qual pode extrair os meios de sua subsistência. A linguagem revelou como a síntese do múltiplo de nossa experiência sensível depende do emprego de símbolos que nós próprios produzimos. Assim, a identidade da consciência que nomeia e dessa forma identifica os objetos, não pode ser anterior ao processo de conhecimento, como pensava Kant; ao contrário, é formada no mesmo processo através do qual a objetividade do mundo toma forma na linguagem. As questões do processo histórico de formação da consciência terão seu tratamento mais elaborado na Fenomenologia do espírito. Essa obra se propõe a ser uma teoria universal do conhecimento, uma descrição do fenômeno tal como aparece à consciência. Trata-se de uma auto-apreensão da consciência em suas transformações a partir da apreensão das transformações do objeto da mesma consciência. As formas fenomênicas do objeto são ao mesmo tempo formas fenomênicas do sujeito. Hegel visa acompanhar o sujeito em seus diversos graus de captação do objeto, considerando toda e qualquer experiência que o sujeito tem de seu objeto e também de si mesmo, A experiência que a consciência tem de si mesma corresponde à existência, de uma lei interna do progresso em direção a um novo conhecimento . A experiência da consciência não é somente uma experiência teórica, mas sim toda e qualquer experiência na vida da consciência enquanto conhece o mundo como objeto da ciência, enquanto conhece a si mesmo como vida, enquanto propõe fins e objetivos. É este o caminho da alma. A partir da experiência completa de si mesma, pode chegar ao conhecimento daquilo que é em si mesma. A fenomenologia trata da experiência que a consciência tem de si mesma, não só a consciência individual, mas a experiência que o gênero humano tem de si. Isso envolve duas séries de fenômenos, individual e histórica, considerando o indivíduo particular e o indivíduo universal, o que há de comum a todos os indivíduos. Mas as formas da consciência que o indivíduo percorre não lhe são conscientes, só a ciência as descobre e revela. O modo de compreensão do sujeito é histórico. Hegel pretende incorporar centralmente à filosofia uma reflexão sobre o seu tempo. Cada consciência é sempre consciência de seu tempo, mas ao compreender sua situação histórica, compreende-se como resultado desse processo histórico. Ao compreender o processo histórico compreende a própria lógica interna do processo histórico,assim compreende o desenvolvimento desse processo, podendo transcender o seu momento determinado. As Lições de história da filosofia procura reconstruir a constituição e desenvolvimento da tradição filosófica desde Tales até o período de Hegel, estabelecendo elos entre diferentes correntes e períodos, que são entendidos como visões parciais de um todo, mas não se reconhecem assim. A análise histórica da tradição filosófica mostra a necessidade de superação da oposição entre as correntes, que só pode ser obtida por um sistema como o hegeliano, que integra as demais perspectivas em uma visão do Absoluto. Pode-se considerar que a Fenomenologia do espírito tem como objetivo traçar a “história” do espírito humano, a elevação da consciência do conhecimento sensível ao saber absoluto. O progresso da consciência é um produto da evolução histórica, cujo sentido só será conhecido no “fim da história” pelo filósofo que interioriza este devir em seu pensamento. Hegel estabelece um paralelo entre a consciência individual e o espírito que poderíamos denominar “cultura”. A experiência que a consciência tem de si mesma corresponde à existência ,não de uma lei interna do progresso em direção a um novo conhecimento e ao fato de a consciência seguir esta lei ao transformar-se a si mesma para se dirigir ao objeto. Esta experiência tem uma estrutura dialética que se caracteriza pela diferença entre o ser-em-si (essência) e o ser-para-nós (para o saber, a manifestação). Todo objeto possui ambos, e a verdade consiste na coincidência entre ambos. A variação do objeto ocorre pela diferença entre o em-si e o para-nós. A consciência experimenta que aquilo que ela considera como coisa em si não é simplesmente em si, mas só em si na medida em que é para nós.O objeto da consciência não é o que parece ser, não pode sê=lo enquanto não manifestar-se à consciência como é em-si, idêntico ao sujeito ou espírito a que se manifesta. Isso significa que o objeto não pode ser verdadeiramente conhecido enquanto o seu conhecimento não coincidir com o conhecimento do espírito pelo espírito, enquanto o ser-em-si não coincidir com o ser-para-si. A consciência é o próprio processo, e o processo é dialético na medida em que as fases justapõem-se negativamente. O superior anula o inferior, mas o processo deve incluir tanto o negativo quanto o positivo. O negativo tem de ser de algum modo positivo, já que as fases não se aniquilam ao se superarem, mas se conservam. A negatividade é o motor do processo, conduzindo a um novo ato de apreensão. Portanto, Hegel procura mostrar como se passa do saber fenomênico, da consciência comum, ao saber absoluto. A consciência comum já é um saber absoluto que não se reconhece como tal. A fenomenologia pretende assim ser um conhecimento do Absoluto, que não é apenas uma substância, mas sujeito. O Absoluto não é algo inacessível ao saber, mas é o saber de si mesmo no saber da consciência, a auto-reflexão.Hegel parte da consideração do saber tal qual está na consciência, o saber fenomênico, o que, se auto criticando, chega ao saber Absoluto. Não há mais separação entre a reflexão e o Absoluto, a reflexão devendo ser vista como um momento do Absoluto. Faz parte da essência do absoluto manifestar-se à consciência, e é nisso que consiste a consciência em si. A fenomenologia do espírito examina assim as etapas do progresso da consciência. A primeira etapa é a consciência sensível, que pensa apreender o concreto na sensação. Porém, atinge apenas um universal abstrato indeterminado, um aqui e agora de qualidades que sempre se alteram. Entretanto, o objeto só pode ser apreendido na percepção a partir do conceito, que permite identificar qualidades sensíveis como propriedades de um objeto determinado. A segunda etapa consiste no entendimento, que pretende chegar à essência dos fenômenos, ao sistema de forças que constitui sua interioridade. O mundo supra-sensível é um produto do entendimento. Ao retirar o véu que cobre o real, procurando penetrar nas coisas, encontramos apenas a nós mesmos. A consciência torna-se, com isso, consciência de si, descobrindo nela própria o ser que julgava encontrar fora dela. Descobre portanto em si o desejo que a faz adquirir uma certeza de si, opondo-se ao objeto, àquilo que é outro, destruindo-o se for preciso. Não podemos entender a estruturação da consciência apenas pela consideração da individualidade, mas sim como parte de um processo de interação com o outro. Temos a consciência infeliz. A infelicidade na tomada de consciência de si é a expressão de um dilaceramento no interior do próprio ser. A consciência se vê em luta contra a natureza, sente-se solitária devido à sua separação da realidade, do objeto que vê como distante de si, a partir de uma dicotomia entre sujeito e objeto. Eis o começo da filosofia: a insatisfação de uma consciência dilacerada por seu estado de divisão interna. É preciso superar as falsas oposições que produzem a infelicidade, mas é também preciso passar pela infelicidade para chegar-se à felicidade. Passamos assim à razão observadora e ativa que envolve uma mudança de atitude em relação ao mundo, do qual não mais se afasta, mas busca observá-lo para atuar nele. É assim que o conceito se estabelece a partir da natureza. É a ação que eleva a consciência do em si ao para si, por meio da dialética do interior e do exterior. A consciência só pode saber o que é após realizar-se efetivamente por seus atos. O Espírito Subjetivo dá assim lugar ao Espírito Objetivo, que se manifesta através da moral, do direito de da história, e finalmente ao Espírito Absoluto, através da religião, da arte e da filosofia. Ao atingir o saber absoluto, o filósofo prioriza aquilo que lhe era exterior. O saber absoluto eleva-se acima da temporalidade, reconciliando os aspectos históricos com uma verdade atemporal. -A dialético do senhor e do escravo É um texto fundamental da análise hegeliana do processo de formação da consciência, uma imagem feita da importância da relação com o outro na construção da identidade. Hegel procura retratar o processo de constituição da identidade da consciência em sua luta pelo reconhecimento pelo outro, a outra consciência. Inicialmente, uma consciência visa submeter-se a outra, ao aprendê-la como objeto. Porém, precisa ser reconhecida pela outra, precisa considerá-la como sujeito. Assim, a outra consciência é ao mesmo tempo sujeito e objeto. O senhor submete o escravo, contudo, uma vez que a relação é dialética, dependendo ele próprio de que o escravo o reconheça como senhor, assim o superior depende de que o inferior o reconheça como superior. Trata-se de um conhecimento desigual. Por outro lado, o senhor reconhece implicitamente o escravo como outra consciência, já que sabe que este não é uma coisa, e se dirige a ele como sujeito. O escravo, na medida em que trabalha, interage com a natureza, encontra a si mesmo, a consciência trabalhadora, chega assim à intuição do ser independente como intuição de si mesma. Portanto, através do trabalho o escravo supera sua condição de consciência submetida à do senhor, enquanto que o senhor, na medida em que depende do reconhecimento do escravo e de seu trabalho, se rebaixa a uma condição inferior. Assim, dialeticamente, as posições se invertem. A dialética do senhor e do escravo descreve uma relação assimétrica entre duas consciências que se tratam como sujeito e objeto, e não uma relação entre dois sujeitos, como deveria ser, uma relação de reconhecimento múltiplo e recíproco. Só ao atingir o saber absoluto a consciência será capaz do reconhecimento universal.
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