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POLITICA DA COMUNICAÇÃO AULA 1

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POLITICA DA COMUNICAÇÃO – AULA 1
INTRODUÇÃO
A política moderna – uma construção surgida de quatro grandes inovações.
O conceito contemporâneo de política, e a própria política moderna, tal como é praticada pela maior parte dos países atualmente, envolve quatro inovações ou quatro origens:
Esse conjunto de práticas, ideias e valores resultante de cada uma dessas origens produziu as inovações institucionais que formam as nossas modernas democracias. Todas essas diferentes origens, mescladas entre si no mundo moderno, dão forma à realidade política que vivemos.
Outra dimensão de grande importância, diretamente relacionada ao mundo das democracias modernas, é a emergência da esfera pública, não apenas ao se pensar o público, o comum, mas também a ideia de publicidade, da visão e da expressão do que é público. Recentemente alguns teóricos começaram a pensar a poliarquia, um sistema mais igualitário ou com um melhor funcionamento da representatividade. Várias garantias institucionais desse modelo estão relacionadas ao papel da mídia, como veremos nos módulos a seguir.
MÓDULO 1
A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE POLÍTICA
Durante a segunda metade do século XX, a democracia se tornou um regime político extremamente popular. Da mesma forma, as repúblicas passaram a ser uma das mais recorrentes imagens de bom governo ou governo equilibrado. A participação popular e as demandas do coletivo em função da política são outra característica. Essa construção é histórica, e a contemporaneidade política do conceito passa necessariamente por seus reconhecimentos. Sendo assim, passamos agora a buscar o entendimento da formação histórica da nossa ideia de política.
A maioria dos regimes se autoproclama democrático, e mesmo regimes ditatoriais se apropriaram de uma parte ou outra da linguagem democrática como forma de legitimar seu poder. Apesar da expansão sem precedentes na adoção do termo democracia para designar os regimes políticos, o termo passou a corresponder a uma ideia popular vaga. Assim, vale a pena começar este tema perguntando: o que significa politicamente a palavra democracia no mundo contemporâneo?
A noção contemporânea de democracia carrega os principais elementos da linguagem e da institucionalidade da política moderna. Para compreendermos o seu significado de modo mais profundo e amplo, é necessário entender que essa forma política é uma mistura de ideias, experiências, instituições e práticas que se formaram ao longo de mais de dois mil anos de história. Com o objetivo de tornar a compreensão dessa longa história mais acessível, podemos dizer que as democracias modernas têm quatro origens históricas, das quais passaremos a tratar.
A DEMOCRACIA DA GRÉCIA CLÁSSICA
Há cerca de dois mil e quinhentos anos (no século V a.C.) ocorreu uma grande transformação entre os gregos antigos na sua forma de se organizar. Muitos estudiosos marcaram esse importante momento, essa mudança profunda de mentalidade como a invenção da política. A História trata esse momento como uma transição importante de modelos palacianos – representados por lideranças familiares – para modelos políticos, adotados pela interação entre grupos aristocráticos diversos. A demokratia ateniense não foi a única, mas é a que foi recuperada mais recorrentemente, transformando-se em um ícone ocidental e fundamento desse modelo político.
Este ponto é muito importante: o passado não é uma reminiscência, algo que fica e nos marca por ser muito importante no passado, mas sim um discurso, uma constante reinvenção.
Portanto, o que foi vivido nas póleis da sociedade grega clássica é importante não pelo que aconteceu, mas por ter sido considerado um evento muito emblemático e repetido por muitas sociedades ao longo da história. Podemos afirmar que a ideia de Ocidente passa pela admiração e reinvenção daquilo que aconteceu na Grécia. Leve essa informação com você para fazer todo o trajeto histórico sobre política.
O que ocorreu nesse período foi a invenção de uma forma de governo que até então era incomum. Predominavam governos compostos por reis ou famílias, que muitas vezes se comparavam a deuses (como no caso do Egito Antigo) ou acreditavam ter origens divinas, ou por tiranos (indivíduos que governavam segundo sua vontade, sem nenhuma restrição) e aristocratas (conselheiros de chefes guerreiros).
No século V a.C., os gregos inventaram uma nova forma de organizar o poder: a maioria dos homens livres e adultos podia decidir os assuntos mais relevantes de sua comunidade e escolher aqueles que exerceriam cargos importantes na direção da cidade-estado. A essa forma de organização política deu-se o nome de “democracia”, que em grego significa “governo do povo” ou “governo popular”.
A democracia era baseada em duas importantes ideias que possuem forte influência até os dias atuais: a isegoria (o direito igual de fala para todos os cidadãos nos debates sobre os assuntos políticos) e a isonomia (igualdade de todos os cidadãos perante a lei – ideal que ainda encontra eco nos Estados democráticos de direito modernos). É elemento importante o fato de que esse modo de governo não legitimava seu poder de forma mágico-religiosa (ou seja, a religião não exercia autoridade nem tornava o poder legítimo). Também não era comum a todos aqueles povos antigos que conhecemos por gregos, mas tornou-se o modo particular de governo de uma cidade independente chamada Atenas. Sobre a democracia ateniense, é importante sabermos que:
	O número de participantes era muito restrito: tratava-se de uma cidade muito menor do que as cidades modernas. Além disso, seus cidadãos (os homens adultos e livres) eram poucos com relação à população geral.
	Apenas homens adultos e livres eram considerados cidadãos, a democracia ateniense excluía mulheres, estrangeiros e escravos – que eram a maior parte da população. Além disso, apenas os filhos de cidadãos atenienses eram considerados cidadãos (filhos de mães atenienses com estrangeiros não contavam nessa categoria).
	A participação dos cidadãos nos assuntos públicos e nos cargos políticos existentes era toda decidida e exercida em reuniões públicas (assembleias). Isso reduzia o espaço dessa forma de organização a apenas uma pequena cidade, como era o caso de Atenas nos tempos da antiguidade clássica.
É importante destacarmos estas três características da democracia grega para compreendermos o quanto ela se distingue das atuais democracias:
	Era restritiva quanto ao direito de cidadania, que era concedido apenas a homens e excluía mulheres, estrangeiros e escravos.
	Era restrita ao pequeno território de uma cidade (ao contrário das democracias contemporâneas que cobrem populações de países inteiros).
	Era restrita a interesses homogêneos, os cidadãos tinham interesses, objetivos e mentalidades muito próximos (ao contrário das democracias contemporâneas, que tendem a ser mais conflituosas em função da sua heterogeneidade, ou seja, das diferenças de interesses, objetivos e mentalidades).
Podemos dizer que a democracia ateniense era uma democracia restritiva se comparada às democracias modernas. Essa característica foi responsável por sua breve existência: essa experiência durou menos de duzentos anos, e os atenienses foram dominados e absorvidos por povos que possuíam formas de organização política que agregavam populações maiores e governavam territórios mais amplos.
A TRADIÇÃO REPUBLICANA
De todas as fontes de origem dos ideais, valores, princípios e instituições que inspiram nossas democracias modernas, a mais longa, diversificada e rica é, sem dúvida, a tradição do pensamento republicano. Rica em experiências, formas institucionais e elaboração jurídico-filosófica, é uma tradição que surge no auge da antiguidade clássica e reaparece com força na Europa da Idade Moderna.
Apesar de ter seus primeiros vestígios no seio da cultura grega clássica, podendo ser vinculada à crítica democrática, à teoria das formas de governo do filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) e à ideia de governo misto do historiador grego Políbio (200-120 a.C.), a tradiçãorepublicana não deve suas origens à democracia grega. Filosoficamente, a concepção polibiana de governo misto ilustra bem as formas institucionais e as relações de governo da maior parte das experiências clássicas do republicanismo: a necessidade de representar todas as formas clássicas de governo em uma só para produzir um governo de grande estabilidade e ordem.
De maneira simplificada, é como se o governo misto juntasse a democracia (governo do povo), a aristocracia (governo dos melhores) e a monarquia (governo de um rei) numa mesma forma de governo. Em tese, isso eliminaria os defeitos e as instabilidades de cada uma das formas descritas, seus riscos de degeneração e desequilíbrio, produzindo uma forma de governo estável, equilibrada e ordenada.
Saiba mais
Para termos uma ideia clara do que significa essa tradição, precisamos atentar que nos notórios movimentos intelectuais da modernidade – Renascimento e Iluminismo – as teorias filosóficas sobre a República – gregas e romanas – foram relidas e influenciaram toda a imensa corrente de filósofos políticos que enriqueceram a tradição republicana nos tempos modernos: Nicolau Maquiavel (1469-1527), John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Montesquieu (1689-1755) e Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo. Também inspiraram pensadores políticos e homens de Estado que tiveram fundamental importância na gestação dos republicanismos constitucionais inglês e americano entre os séculos XVII e XVIII, como o inglês John Harrington (1561-1612) e federalistas estadunidenses, como Alexander Hamilton (1755-1804), John Jay (1745-1829) e James Madison (1751-1836).
Historicamente, a tradição republicana se “encarnou” na República Romana (entre os séculos VI e I a.C.), nas cidades-estados renascentistas de Veneza e Florença (entre os séculos X e XVIII) e na Inglaterra e nos Estados Unidos (séculos XVII e XVIII). Institucionalmente, sua grande inspiração foram as instituições da República romana clássica que ilustram também a ideia de governo misto: o poder popular tinha espaço através da magistratura dos tribunos da plebe, os aristocratas exerciam funções no Senado, a função monárquica do governo era exercida pelos cônsules.
Desse modo, o povo e os aristocratas participavam do governo, e estavam amalgamadas as três formas clássicas de governo: a democracia (representada pelos tribunos da plebe), a aristocracia (representada pelo Senado) e a monarquia (representada pelos cônsules). Tanto a cidade renascentista de Florença como a cidade de Veneza (recordada por ter mantido um regime republicano que durou centenas de anos) tinham instituições semelhantes e foram referências de governos mistos para os pensadores republicanos modernos.
Essa breve exposição da tradição republicana e da noção de governos mistos pode lembrar bastante as democracias modernas – sobretudo aquelas que são repúblicas federativas presidencialistas – como é o caso do Brasil e dos Estados Unidos da América. Mas é importante notar três grandes diferenças entre a história e as ideias da tradição republicana e a vida política das democracias contemporâneas:
	As repúblicas de governos mistos tinham que lidar com dois grupos de interesse opostos, mas homogêneos: o povo e a aristocracia. O mundo contemporâneo possui uma multiplicidade de grupos de interesses muito mais complexa.
	Os governos mistos tinham cargos que eram populares e aristocráticos, ocupados, respectivamente, por aqueles que eram oriundos de cada um desses grupos: um plebeu nunca se tornava senador no mundo da República romana. O Senado era reservado somente aos aristocratas nascidos de famílias antigas e poderosas. Tal situação se repetiu em outras repúblicas históricas, como as de Florença, Veneza e Inglaterra dos séculos XVII e XVIII.
	A participação pública, por meio de cargos e magistraturas importantes, era limitada a uma cidade central: não existia uma cidadania nacional como a das democracias modernas. O cidadão da República romana era somente o romano nascido em Roma de famílias romanas, o mesmo ocorria em Florença, Veneza e Inglaterra dos séculos XVII e XVIII.
Podemos dizer que as democracias contemporâneas são mais democráticas que as repúblicas antigas e modernas. Além disso, elas possuem uma institucionalidade capaz de representar muito mais que apenas dois interesses opostos (povo versus aristocracia). Mas o que queremos dizer aqui com representação de interesses? Trataremos disso a seguir ao abordarmos a terceira fonte de origem das democracias contemporâneas.
O GOVERNO REPRESENTATIVO
No taxation without representation!
Essa sentença – traduzida para o português como: “Não pagaremos impostos se não tivermos representação!” – foi o slogan de uma das mais importantes revoluções dos tempos modernos: a Revolução Americana (1776-1783).
O que nos interessa aqui não são propriamente os acontecimentos, cenários e personagens dessa história, mas a invenção do governo representativo. Ao falarmos da democracia grega e da tradição republicana, observamos como suas origens e práticas históricas tiveram a limitação de serem localizadas em territórios muito pequenos: centralizados em apenas uma cidade (Atenas, a cidade de Roma, Florença, Veneza etc.).
Mesmo na Inglaterra, com a invenção de um Parlamento (dividido a princípio em Câmara dos Lordes – ocupada pelos aristocratas – e a Câmara dos Comuns – ocupada por aqueles que não tinham origem familiar na nobreza britânica), a participação era reduzida apenas aos habitantes da grande cidade que era Londres no século XVII. Desse modo, não eram todos aqueles que viviam sob o governo londrino – o governo inglês da época – que podiam participar das grandes decisões tomadas no Parlamento. Muitas dessas decisões eram relativas aos impostos cobrados, aos preços das mercadorias etc. E com o advento da Câmara dos Comuns, muitos negociadores, investidores e comerciantes (que não vinham de famílias nobres) passaram a tomar parte nessas decisões econômicas que os afetavam.
Antes da invenção da Câmara dos Comuns, era corriqueiro que a realeza e os nobres aumentassem os impostos sobre esses grupos mercantis e de negociadores para seus próprios fins. Ao tomarem parte nas decisões públicas, essa nova classe de comerciantes e negociantes prósperos passou a ter a capacidade de proteger seus próprios interesses. Mas isso se resumia apenas aos prósperos comerciantes e homens de negócio da grande cidade de Londres, não a todos aqueles que viviam sob o governo da recém-criada monarquia parlamentar inglesa.
Assim, eram poucos os que, sob o domínio do governo londrino, tinham meios de defender seus interesses: sendo que aqueles que viviam nas longínquas colônias do nordeste da América do Norte sequer tinham suas vozes ouvidas no recém-criado Parlamento de Londres.
O Parlamento inglês aberto aos “comuns” foi produto de um intenso conflito ocorrido na Inglaterra do século XVII, marcado por uma guerra civil – a Revolução Inglesa (1640-1651) –, uma ditadura – o período do Protetorado (1653-1659) – e uma ampla conciliação entre os grupos em conflito durante a Revolução Gloriosa (1688-1689). Esta última é chamada assim por ter transformado as instituições políticas sem guerra ou conflito sangrento: esse acordo entre as partes, que fez cessar o conflito, deu origem ao Parlamento e à Constituição moderna da Inglaterra.
Durante o período de 1640 a 1689, as longínquas colônias do nordeste da América do Norte se viram esquecidas por seus governantes, absorvidos nos conflitos mencionados. Elas edificaram uma vida bastante próspera e mais igualitária entre homens e mulheres brancos do que a realidade europeia do outro lado do Oceano Atlântico (não tão igualitária: lembremo-nos de que em alguns lugares dessas colônias, mas não em todos, existia a brutal escravidão negra – como houve no Brasil, na mesma época).
Não era um mundo perfeito, mas havia mais prosperidade – e menos luxo – do que na Europa da época, apesar das grandes desigualdades existentes. Durante essas décadas de abandono relativo dos assuntoscoloniais por parte dos interesses britânicos, os colonos do norte da América puderam se autogovernar com um nível de autonomia muito grande para a época.
Com o fim dos conflitos ingleses, o governo britânico começou a reorganizar seus interesses nas suas colônias do outro lado do Atlântico mediante taxações e outras intervenções nos assuntos das colônias. Entretanto, seriam as taxações diretas sobre mercadorias como o chá (Lei do Chá, de 1773), o açúcar (Lei do Açúcar, de 1764) e sobre documentos impressos (Lei do Selo, de 1775), que taxava em moeda britânica revistas, jornais, documentos oficiais e outros materiais impressos pelos colonos americanos, que inflamariam o ânimo dos colonos.
Figura 9. Festa do Chá de Boston, de autor desconhecido
Tais taxações – entre outras – eram consideradas abusivas para os colonos da América do Norte, que viam isso como uma situação injusta por não terem seus interesses representados no Parlamento britânico. Daí o slogan da Revolução Americana ter sido “No taxation without representation” – ou seja, tratava-se inicialmente de uma exigência por representação no Parlamento britânico em função das taxações serem vistas como ilegítimas na ausência de uma representação colonial.
O desenvolvimento desse conflito culminou com a Independência Americana. Contudo, a demanda por representação por parte dos colonos americanos foi uma experiência que os influenciou a produzir uma forma de governo que levasse em conta a representação como um fator de grande importância. Desde a convenção que deu origem à Constituição americana (1787) até o modo como foi configurado o governo pós-independência, a representação teve um papel central e extremamente inovador na história da política moderna. A prática moderna de populações elegerem representantes que agem como mediadores de seus interesses na condução dos assuntos públicos, em um país de grandes proporções (a princípio apenas nas treze colônias originais), foi uma contribuição legada ao mundo moderno pelos nascentes Estados Unidos da América.
Outro elemento importante oriundo da experiência política estadunidense desse período foi a subordinação do poder militar à autoridade presidencial eleita e de natureza civil, aspecto que ganharia bastante importância em todas as democracias constitucionais modernas. Porém, devemos lembrar que a representação por voto nos Estados Unidos era bastante limitada em suas origens.
Apesar da representação americana ter sido, historicamente, um elemento inovador nas práticas de governo e um diferencial com relação à tradição republicana europeia, ela padecia de grandes limitações quando comparada às nossas democracias modernas por três motivos centrais:
	Tratava-se de uma lógica de representação restritiva, pois apenas homens brancos livres, proprietários de terras e alfabetizados podiam eleger seus representantes. Essas características designam o que chamamos de voto censitário: por estipular critérios que restringem o nível de participação política das populações.
	Os votos eram por distritos e não por pessoa. A lógica de que cada pessoa corresponde a um voto não era aplicada.
	A lógica do voto censitário não permitia que negros e mulheres votassem. Eles eram, portanto, excluídos do “governo representativo” dos Estados Unidos.
Ao longo dos séculos, a representação e o direito ao voto nos EUA foram ampliados em um longo processo de conflitos e pressões por grupos diferentes da sociedade civil. Mas foi apenas em 1965 que o direito ao voto universal (aberto a todos e sem nenhuma restrição) foi adotado nos Estados Unidos.
Podemos dizer, como frisamos anteriormente, que as desigualdades existentes nos Estados Unidos na época da fundação de seu sistema de governo representativo restringiam bastante as suas inovadoras práticas de representação. A relação entre interesse e representação era demasiado restritiva. Essas restrições relativas à igualdade de todos os cidadãos no exercício da cidadania, do direito de voto e de, portanto, ter seus interesses representados na esfera dos assuntos políticos e no governo nos levam à quarta origem das democracias contemporâneas: a lógica da igualdade.
A LÓGICA DA IGUALDADE
Tal como as três origens distintas das democracias modernas que abordamos anteriormente, a lógica da igualdade tem sua própria história e não se vincula àquela da tradição democrática grega, nem da tradição republicana e nem da invenção da representação. Suas origens são modernas e podem ser reconduzidas ao humanismo e aos movimentos puritanos do século XVI que ressignificaram todo um conjunto de ideias religiosas.
O humanismo clássico teve o papel de trazer para a cultura europeia do século XVI o homem para o centro dos debates da época, relegando as discussões teológicas para um segundo plano, como afirma Skinner (1996). Foi do seio do humanismo clássico que surgiram as discussões filosóficas sobre tolerância religiosa e da dignidade humana como valor civilizacional de importância.
Figura 11. Retrato de Erasmus de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”, por Quentin Matsys
Já o puritanismo teve um papel fundamental nos movimentos religiosos e políticos do século XVII ao trazer para a linguagem político-religiosa da época a ideia de igualdade dos homens perante Deus. As ideias religiosas de igualdade entre os homens pregadas pelos puritanos tiveram bastante impacto na Inglaterra e nos Estados Unidos e influenciaram muitos movimentos políticos entre os séculos XVII e XVIII.
Mas uma outra corrente filosófica teve uma influência mais radical nesse processo de defesa da igualdade entre os homens: o Iluminismo. Movimento intelectual de grande abrangência na Europa (Inglaterra, Países Baixos, Itália, Alemanha e, principalmente, França), o Iluminismo trazia em sua bagagem uma forte crítica ao Antigo Regime, ao clero e ao obscurantismo, forças que submetiam a maioria dos homens ao poder de poucos: os aristocratas e o clero.
Na França, as ideias dos filósofos iluministas (principalmente de Jean-Jacques Rousseau – crítico feroz das desigualdades, tal como podemos ver em sua obra Discurso sobre a desigualdade entre os homens) inspiraram os revolucionários de 1789 e, principalmente, a ala mais radical (os jacobinos) a derrubar o regime monárquico existente. O lema da Revolução Francesa (1789-1799), “Igualdade, Fraternidade e Liberdade”, tinha como inspiração o iluminismo francês.
A crença iluminista e religiosa da igualdade entre os homens foi uma ideia bastante radical na época, mas teve, num primeiro momento, sua realidade limitada aos homens proprietários frente aos aristocratas que perdiam seus direitos de nascença.
Apesar dos direitos políticos e da cidadania terem se expandido com as revoluções dos fins do século XVIII e início do século XIX, eles ainda excluíam os pobres, as mulheres e, nas Américas, outras etnias, como negros e indígenas.
Seriam os movimentos sufragistas do século XIX que expandiriam o voto e os direitos de cidadania às mulheres e, posteriormente, no século XX, sob a rubrica dos direitos humanos universais, a lógica da igualdade se expandiria a outros povos e etnias. Essas ideias de igualdade tiveram histórias e crenças com fontes distintas, com bases sociais e movimentos diferentes e ocorreram em cada país moderno em épocas diversas. Essa lógica da igualdade formou o que chamamos de sufrágio universal, que é a última característica das democracias modernas abordadas aqui.
Vamos ouvir o professor Rodrigo Rainha aprofundando sobre a questão da Igualdade.
MÓDULO 2
A GÊNESE DA ESFERA PÚBLICA
Quando nos debruçamos sobre as quatro origens da política e das democracias modernas, vimos que a participação política na experiência da democracia grega na antiguidade e das repúblicas clássicas era limitada apenas a uma vida em certas cidades centrais. Isso ocorria em função de as decisões e a participação nos assuntos públicos serem privilégio de uns poucos que podiam adentrar espaços bem delimitados.
Esses espaços foram se tornando mais abertos àqueles sem privilégios de nascença, mais “públicos”.A participação física em espaços públicos foi uma grande limitação da experiência republicana ao longo da história, sendo o alargamento da participação política ligado, nos últimos duzentos anos, a um fenômeno singular que trataremos aqui – a gênese da esfera pública.
Esfera pública não é o mesmo que espaço público. Usaremos uma definição de esfera pública que nos ajudará a perceber essa diferença:
Arena da discussão e do debate público nas sociedades modernas, podendo ser espaços formais e informais. (GIDDENS, SUTTON, 2017)
A definição nos chama a atenção para um ponto: a esfera pública surgiu com a emergência da sociedade moderna – ou seja, não existia antes do século XVI. Isso não quer dizer que ela surge exatamente aí; pelo contrário, ela se desenvolveu nesses últimos quatro séculos até adquirir as características que atualmente podemos destacar. Para compreendermos melhor, analisaremos o principal fator relacionado aos seus primeiros desenvolvimentos: o surgimento de um público leitor.
NEWSLETTERS, SALÕES, CAFÉS E FILÓSOFOS: A EMERGÊNCIA DA ESFERA PÚBLICA CLÁSSICA
O surgimento da esfera pública é singular na história e tal fenômeno se desenvolveu apenas nos últimos quatro séculos. Tem correlação com uma série de invenções técnicas: da tipografia de Gutenberg às novas embarcações que permitiram viagens e comércio pelas regiões “descobertas” do século XVI em diante. Porém, o mais importante disso tudo não foram as invenções tecnológicas apenas, e sim a profunda transformação ocorrida com o surgimento de um público leitor.
O que significa a expressão público leitor?
Um público leitor é uma grande população de leitores – seja de que gênero de texto for. Vivemos em um mundo onde nunca houve um público leitor tão amplo: ideias, informações, sentimentos, percepções, notícias e acontecimentos circulam de forma escrita, podendo ser lidos por massas cada vez maiores de pessoas de um modo inimaginável nos últimos séculos. Esse público discute, comenta e escreve também, expressando-se de modo a conferir ainda mais dinamismo a esse movimento de circulação.
Mas sempre existiu essa grande massa de leitores?
A resposta a essa pergunta é um absoluto não!
Durante a maior parte da história, apenas uma minúscula parcela de pessoas dominava a técnica de ler e escrever: somente uma limitada aristocracia governante e seus funcionários (escribas, secretários etc.) era alfabetizada. A maior parte das pessoas era iletrada e ignorava qualquer forma de conhecimento formal como compreendemos atualmente.
Essa situação só começou a se modificar no século XVI e com o advento do protestantismo no século XVII. Ainda assim, as tipografias, recém-inventadas por Gutenberg, imprimiam sobretudo Bíblias – não jornais, livros e revistas. E mesmo com essa restrição, a Reforma Protestante foi um poderoso agente alfabetizador: como acreditavam que todos os homens eram dotados de uma luz natural e, por isso, capazes de acessar a palavra divina dos Testamentos, tratou-se de alfabetizar as massas conforme o protestantismo se disseminava.
Mas não foi exclusivamente o protestantismo que criou o público leitor moderno, precondição para a formação da esfera pública moderna. Esse fenômeno esteve ligado também a outros fatores, como a criação de novas formas, gêneros e modos de leitura. E as discussões ao redor desses escritos, promovidas em diferentes espaços (formais e informais), desempenharam um papel de grande importância na formação da esfera pública. Abordaremos a seguir diferentes aspectos desse fenômeno, que juntos deram origem à esfera pública.
NEWSLETTERS E PRAÇAS DE COMÉRCIO
As primeiras circulações de periódicos estiveram profundamente ligadas à ampliação das atividades mercantis entre a Europa e outros continentes, aos interesses dos mercadores e às bolsas de valores primitivas que surgiram nas grandes cidades europeias.
Essa necessidade de circulação de notícias estava associada inicialmente à demanda de informação dos grupos de comerciantes e investidores do comércio ultramarino surgida em meados do século XVII. De acordo com Brigs e Burke (2006), nos primeiros jornais desse gênero – surgidos em Amsterdã –, já havia críticas à Igreja e ao governo.
Não existem leitores somente físicos. O espaço das praças de comércio era o local da reunião de muitos leitores de “ouvido”, leitores que multiplicavam a troca dos conhecimentos e, ainda que multiplicassem as informações a partir da força de um senso comum recorrente, faziam a cultura letrada circular. O termo em inglês – clássico entre os estudiosos de comunicação – fundamenta-se na tradição das cartas medievais. Cartas que uma vez recebidas eram lidas de forma pública. Então, quando a prensa, os jornais, os livretos começam a circular, não é possível imaginar a multiplicação automática de letrados, mas sim uma multiplicação efetiva de leitores – em todas as suas formas.
A ESFERA LITERÁRIA
O surgimento de gêneros literários novos como o romance de sentimentos (como A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau) e o romance de formação (como Os anos de aprendizado do Jovem Wilhelm Meister, de Johann Wolfgang Goethe), de ampla circulação no século XVIII entre a população letrada, estimulou novas formas de identificação entre os leitores.
Figura 15. Edição de 1795 de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Johann Wolfgang von Goethe
Por se identificarem com os personagens, os leitores sentiam empatia por eles para além da língua, classe social, sexo e país. Também foram importantes no sentido de formarem uma ideia geral e compartilhada de que as pessoas eram semelhantes em função de seus sentimentos íntimos, estimulando bastante uma noção sentimental de um senso de igualdade no público leitor de romances.
Entre os séculos XVII e XVIII, foi extremamente comum a formação de círculos literários nos salões das casas de senhoras abastadas, que reuniam pessoas em discussões sobre esses livros e promoviam debates e reflexões que abarcavam a vida cotidiana, a realidade sentimental e a noção de igualdade produzida pela leitura desses escritos.
Mais uma vez, devemos notar a maturação de longos processos históricos que se reproduzem na construção dessa esfera literária. Era comum, nas cortes e depois nas ruas, a reunião para ouvir os contadores de história. São famosos na literatura das tabernas e guardavam de cabeça as histórias rimadas e as multiplicavam. O mundo dos séculos XVIII e XIX era cada vez mais urbano, mais cheio de gente e informação, porém, as heranças ficaram. Agora eram os leitores públicos, os leitores de jornais, os jovens e tropeçadores leitores. No Brasil, livros famosos saíam em capítulos em séries de jornal; na França, alguns livretos muito picantes – como o de Marquês de Sade (1740-1814) – multiplicavam-se e faziam crescer o interesse pela leitura.
AS IDEIAS FILOSÓFICAS E POLÍTICAS – CLUBES, CAFÉS E SALÕES
Figura 16. No salão de Madame Geoffrin, por Anicet Charles Gabriel Lemonnier
A ampla circulação de livros entre os grupos letrados da Europa moderna, principalmente no século XVIII, deu origem a espaços informais de discussão e associações que se expandiriam para além da lógica dos salões literários: as discussões ao redor de tratados filosóficos e políticos (gênero filosófico propriamente moderno) e de troca de opiniões sobre os acontecimentos fermentaram com grande força em países como a Inglaterra e a França.
Na Inglaterra, alguns dos primeiros jornais ingleses, como o Spectator, que começou a ser publicado em 1711, tinha como objetivo explícito trazer a Filosofia para fora das instituições acadêmicas a fim de ser tratada em clubes, assembleias, mesas de chá e cafés. O caso da França também é emblemático quanto a esse fenômeno – sendo o iluminismo francês extremamente importante para sua compreensão.
A Luz da Razão, – palavra-chave da época, utilizada para se opor à tradição, à fé, à superstição e ao preconceito – associada à noção de crítica (utilizada como forma de problematizar os excessos e abusos dos governos monárquicos e da Igreja católica francesa), teve umpapel fundamental na criação da linguagem que formaria a ideia de público na França da época.
Eles se consideravam homens de letras e são vistos por muitos como os primórdios do intelectual público moderno, no sentido de serem os primeiros intelectuais independentes de patronos e por terem sido agentes engajados em promover um debate amplo sobre os assuntos públicos referente aos regimes sob os quais viviam. Difundiram suas ideias na França e fora dela para homens e mulheres, apesar de terem pouca intenção de atingir o povo.
Figura 17. François-Marie Arouet de Voltaire, por Nicolas de Largillière
As monarquias e os governos da época impunham uma forte censura aos escritos filosóficos (esta era menor na Inglaterra porque, após o período revolucionário de 1640 a 1688, criou-se um ambiente de maior tolerância e ampliação dos debates acerca dos assuntos de governo em função da criação do Parlamento), uma vez que estes eram considerados subversivos, ou seja, afetavam a ordem estabelecida por promoverem a agitação e o descontentamento.
Esse fator fez com que a discussão sobre esses escritos e ideias permanecesse fora dos ambientes formais, tornando extremamente importante a cultura oral dos cafés, clubes, associações e salões (encontros organizados por senhoras aristocráticas para promover debates com intelectuais). Além disso, a censura estimulava uma circulação extremamente importante de correspondência privada entre intelectuais de diferentes nações da Europa, o que foi um poderoso fator de circulação das ideias políticas da época.
OS PRIMEIROS JORNAIS
Muitos dos primeiros jornais, mais parecidos com o que chamamos por esse nome atualmente, surgiram no século XVIII e eram derivados dessa efervescente cultura dos cafés, salões e clubes surgida em meados do século XVII. A princípio, não eram grandes veículos de discussões políticas diretas, tratavam de manifestações artísticas (peças de teatro, literatura), publicavam contos, retratavam acontecimentos da vida cotidiana europeia, curiosidades etc.
O conteúdo dessas manifestações pode parecer um tanto trivial, contudo, seus editores demandavam de seus leitores uma ampla participação: pedindo que cartas com opiniões sobre todos esses assuntos fossem enviadas, sendo a maioria publicada. Isso estimulava uma cultura de troca de opiniões, um ambiente cultural de debate diversificado e fazia com que os jornais tivessem uma função de fóruns de discussão.
Figura 18. A Liberdade guiando o povo, por Eugène Delacroix
Já os acontecimentos políticos ganhariam destaque com os eventos efervescentes da Revolução Francesa: pelo menos 250 jornais foram fundados nos últimos seis meses do ano de 1789 na França. O ambiente político tumultuado do fim do século XVIII e da maior parte do século XIX (marcado por guerras, revoluções e movimentos populares de todo tipo) não somente estimulou os jornais a tratar os acontecimentos políticos, mas também uma cultura de panfletos de associações e movimentos sociais dos mais diversos: operários, sufragistas (defensores da ampliação do direito de voto) etc.
Todos esses fatores foram fundamentais para emergência do que chamamos de esfera pública. Apesar de seu desenvolvimento ter sido iniciado em ambientes informais (cafés, salões, clubes e associações) em função da censura dos governos monárquicos da época, o período de revoluções (Revolução Inglesa, Revolução Americana, Revolução Francesa e as Revoluções de 1830 e 1848) foi transformando a realidade política mais centralizada, fechada e aristocrática em formas políticas, republicanas e democráticas mais abertas. Assim, houve a ampliação da esfera de debates, opinião e discussão sobre os assuntos políticos, sociais e culturais, formando, portanto, as bases da esfera pública moderna.
Os debates que eram reservados apenas às discussões orais em ambientes informais ampliaram sua circulação por meio de jornais, revistas e periódicos de todos os tipos, podendo ser acessados por um grande público e discutidos nos mais diversos espaços sociais. Essa esfera, abstrata por ser discursiva (independente do meio pela qual se propaga) e se situando no espaço onde discussões e debates ocorrem (formais ou informais), é o que chamamos de esfera pública – sendo que a sua formação teve uma imensa influência e importância para o desenvolvimento das democracias como as conhecemos atualmente.
No século XIX, a esfera pública se opõe à esfera íntima, espaço da intimidade e da privacidade, ou seja, a dimensão das relações íntimas, da família, dos sentimentos pessoais. Por muitas décadas tratava-se de duas esferas distintas e rigidamente separadas. Atualmente, poderíamos dizer que as fronteiras entre elas se tornaram muito mais difusas. Além disso, com a multiplicação de novas mídias para além do texto impresso em função da multiplicação de novas tecnologias comunicacionais no século XX (primeiro o rádio, depois a televisão, e no final do século XX a internet), pode-se dizer que emergiram novas arenas constituintes da esfera pública.
Fonte: blackzheep/Shutterstock.
Do mesmo modo, pode-se dizer que dos séculos XVIII e XIX aos séculos XX e XXI, ocorreu uma transformação na esfera pública muito grande com o surgimento da mídia de massa, que profissionalizaria todas as etapas de produção técnica da comunicação, formando grupos comerciais de comunicação, entre outros. Para muitos estudiosos da esfera pública, da mídia e da teoria da comunicação, tal mudança causou grandes transformações na esfera pública do século XX aos dias atuais.
HABERMAS E O DEBATE CONTEMPORÂNEO SOBRE A ESFERA PÚBLICA
Figura 20. Jürgen Habermas em 2007
No que se refere aos debates contemporâneos sobre a esfera pública, um trabalho de grande influência no tema foi a análise do filósofo alemão Jürgen Habermas no texto Mudança estrutural da esfera pública (1962). Nessa obra, Habermas preocupa-se em reconstituir a gênese histórico-sociológica da esfera pública e percebe que, em suas origens, ela envolvia a reunião de indivíduos igualitariamente como em um fórum para o debate público. Esse período inicial de desenvolvimento da esfera pública é chamado por Habermas de esfera pública burguesa.
Entretanto, em sua perspectiva, essa promessa inicial de desenvolvimento da esfera pública não se cumpriu: a emergência da mídia comercial, com uma linguagem de massa e baseada no entretenimento, teria feito a esfera pública definhar gradualmente.
Pela mídia comercial ser prisioneira da renda das propagandas e dos índices de audiência, haveria uma deformação de toda a possibilidade de formação de um debate público racional e aberto, sendo que a manipulação e o controle da audiência com fins de audiência por meio do entretenimento também começam a surgir.
Assim, a esfera pública deixa de ser uma arena de debates e torna-se uma esfera onde o consenso é fabricado pela publicidade. Essa atrofia da esfera pública, causada em parte pela mídia de massas, faz com que o entretenimento prevaleça sobre os debates e as polêmicas, enfraquecendo a participação dos cidadãos no debate público. Isso produziu um deslocamento na avaliação da importância da mídia com relação à esfera pública: de uma promessa capaz de engajar muitos indivíduos de maneira igualitária na arena dos assuntos públicos, ela teria – com a mídia de massa – mudado de foco e passado a constituir-se como parte dos problemas que concorrem contra o amadurecimento da esfera pública.
MUDANÇAS NA RELAÇÃO ENTRE AS ESFERAS ÍNTIMA E PÚBLICA: RICHARD SENNETT E AS TIRANIAS DA INTIMIDADE
Outra análise de grande importância nos estudos relativos às transformações na esfera pública contemporânea aparece no livro, do sociólogo Richard Sennett, O declínio do homem público: as tiranias da intimidade (1977). Para o sociólogo americano, a distinção entre as esferas pública e íntima tem se tornado cada vez mais tênue e diluída, sendo que nas últimas décadas podemos falar de uma “colonização da esfera pública pela esfera íntima”.
Figura 21. Richard Sennett em 2010
Isso se daria em função do fenômeno midiático da excessiva publicidadeao redor das grandes personalidades, o que afetaria a vida pública no sentido de as características pessoais e sentimentais dos homens públicos (sua vida privada, honestidade e sinceridade) terem ganhado mais importância do que características fundamentais em outros períodos, como o comprometimento público, a dedicação aos assuntos políticos etc.
Resumindo
Vamos recuperar o nosso debate:
A noção de que o espaço público é de um coletivo limitado para informações é ilusória. Demonstramos que a esfera pública sempre existiu – só não tinha essa concepção, essa materialização. O que Sennett aponta, cria, discute, é que o fato de haver uma mudança significativa do privado, retirando de esferas públicas elementos que não se tinha clareza de que eram intercessões, criando um novo espaço, uma nova esfera e que – dialogando com o primeiro módulo – transforma a política como um exercício da esfera pública, retirando seus aspectos privados e modificando suas dinâmicas privadas como contra o interesse público.
Vamos ouvir o professor Rodrigo Rainha refletindo sobre esfera pública.
MÓDULO 3
POLIARQUIA
O conceito de poliarquia foi desenvolvido pelo cientista político estadunidense Robert Dahl como uma forma mais realista de avaliar os regimes políticos contemporâneos. Em função de nenhum país contemporâneo conseguir encarnar em níveis absolutos a ideia de uma democracia plena, Dahl concebeu seu conceito de poliarquia como um modo de categorizar e nivelar o quanto os regimes políticos existentes se aproximam de um regime mais ou menos democrático.
O conceito de poliarquia é desenvolvido e categorizado em dois livros de Dahl, Um prefácio à teoria democrática (1956) e Poliarquia: participação e oposição (1971). Os temas centrais desses dois livros são abordados em uma obra mais acessível, atualizada e com um caráter mais didático: A democracia e seus críticos (1989). De maneira geral, definem-se como uma poliarquia plena os sistemas democráticos modernos em funcionamento nos países desenvolvidos.
Levando em conta o conjunto de obras mencionado anteriormente, poderíamos dizer que as características apontadas para o desenvolvimento de uma poliarquia plena (ou seja, de um regime político com características contemporaneamente consideradas democráticas, exercidas de maneira ampla e generalizada) são de duas naturezas:
	Relativas a um critério ligado às oportunidades disponíveis aos cidadãos e suas instituições
	Relativas ao seu caráter moderno, dinâmico e plural
CARACTERÍSTICAS DAS INSTITUIÇÕES E OS DIREITOS NECESSÁRIOS
À EXISTÊNCIA DE UMA POLIARQUIA
Para Dahl (2005), a democracia é um sistema político que tem, como uma de suas características, a qualidade de ser inteiramente, ou quase, responsivo a todos os seus cidadãos. Para que um sistema seja considerado democrático sob as condições delimitadas, todos os cidadãos devem ter oportunidades plenas de:
Formular suas preferências;
Expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo por meio da ação individual e da coletiva;
Ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte de preferência.
Para que essas preferências sejam devidamente passíveis de prática, é necessário um conjunto de garantias institucionais, como podemos ver a seguir:
	Para a oportunidade de:
	Formular preferências
	Exprimir preferências
	Ter preferências igualmente consideradas na conduta de governo:
	São necessárias as seguintes garantias institucionais:
	 Liberdade de formar ou aderir organizações;
 Liberdade de expressão;
 Direito de voto;
 Direito de líderes políticos disputarem apoio;
 Fontes alternativas de informação.
	 Liberdade de formar ou aderir organizações;
 Liberdade de expressão;
 Direito de voto;
 Elegibilidade para cargos políticos;
 Direito de líderes políticos disputarem apoio;
 Fontes alternativas de informação;
 Eleições livres e idôneas.
	 Liberdade de formar ou aderir organizações;
 Liberdade de expressão;
 Direito de voto;
 Elegibilidade para cargos públicos;
 Direito de líderes políticos disputarem apoio;
 Fontes alternativas de informação;
 Eleições livres e idôneas;
 Instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência.
Quanto mais inclusivas são essas oportunidades, maiores podem ser os níveis de contestação e, portanto, o nível de responsividade de determinado sistema político; e, desse modo, maior poderá ser o nível de uma poliarquia. Entretanto, não são apenas esses conjuntos de oportunidades referidos às garantias institucionais delimitadas anteriormente que atestam o funcionamento de uma poliarquia e sua estabilidade. Existem, além das características elencadas, um conjunto de fatores que está interrelacionado à existência de uma poliarquia, como veremos no próximo tópico.
OUTROS FATORES QUE PROPICIAM A FORMAÇÃO E ESTABILIDADE
DE UMA POLIARQUIA
Sociedade Moderna, Dinâmica e Pluralista (MDP):
De acordo com Dahl (2012), pode-se perceber que, historicamente, as sociedades associadas ao desenvolvimento de uma poliarquia plena são marcadas por uma série de fatores interrelacionados:
	Nível relativamente alto de crescimento e de renda e riqueza per capita
	Alto nível de urbanização
	População agrícola em rápido declínio ou relativamente pequena
	rande diversidade ocupacional
	Ampla alfabetização
	Número comparativamente grande de pessoas que frequentaram instituições de nível superior
	Ordem econômica na qual a produção é desenvolvida principalmente por empresas relativamente autônomas e cujas decisões são orientadas para mercados nacionais e internacionais em níveis relativamente altos de indicadores convencionais de bem-estar, como médicos e leitos hospitalares para cada mil pessoas, a expectativa de vida, a mortalidade infantil, a porcentagem de famílias com diversos bens de consumo duráveis e assim por diante.
Muitos desses fatores podem ser condensados em três ideias-chave: modernidade, dinamismo e pluralismo social.
Sobre a ideia de modernidade, podem ser compreendidos fatores como níveis mais altos de riqueza, renda, consumo e educação; maior diversidade ocupacional, ou seja, ampla gama de empregos diversificados; aumento da população urbana em proporção à rural; diminuição crescente da importância econômica da agricultura em função de setores econômicos que agregam maior valor à produção.
Sobre a categoria do dinamismo, podemos compreender fatores como o crescimento econômico, a competição empresarial e a possibilidade da ascensão do padrão de vida. E, por fim, sobre o pluralismo, seriam fatores como uma ampla gama de associações, grupos e organizações relativamente autônomos, particularmente no âmbito da esfera econômica.
Essas três ideias condensam uma série de fatores econômicos, sociais e técnicos que formam o que Dahl conhece por países ou sociedades modernas, dinâmicas e pluralistas (o que o cientista político chama de MDP).
De acordo com Dahl (2012), uma sociedade ou um país com os fatores agregados ao MDP é marcado pelas seguintes características:
A dispersão dos recursos políticos, tais quais o dinheiro, o conhecimento, o status e o acesso às organizações;
A dispersão das localizações estratégicas, particularmente em assuntos econômicos, científicos, educacionais e culturais;
A dispersão das posições de negociação, tanto manifestas quanto latentes, nos assuntos econômicos, na ciência, nas comunicações, na educação e em outras áreas.
Uma sociedade com essas características tende a promover a inibição da concentração de poder em poucas pessoas ou grupos, dispersando-o entre uma série de grupos e pessoas independentes. Além disso, esses fatores favorecem atitudes, convicções e crenças favoráveis às ideias democráticas, como a de que ganhos conjuntos podem ser obtidos com o aumento dos resultados e de que a negociação e a barganha podem levar a acordos benéficos para toda a sociedade.
Portanto, essas características podem promover um sistema político competitivono qual o acordo é considerado normal: sem que as partes políticas em oposição sejam vistas como inimigas ou dispostas em um conflito impossível de ser equilibrado. Mas a relação entre MDP e poliarquia não é uma relação de causa e efeito: uma sociedade com MDP pode não ser necessária e nem suficiente para garantir a poliarquia – historicamente, existem exceções a isso.
MÍDIA E POLIARQUIA: ALFABETIZAÇÃO, EDUCAÇÃO, INFORMAÇÃO
E PLURALISMO
O conjunto de oportunidades plenas que os cidadãos devem ter em um sistema considerado como uma poliarquia (formular, exprimir e ter preferências igualmente consideradas na conduta do governo) depende de várias garantias institucionais, entre elas duas que são interrelacionadas à mídia: a liberdade de expressão e o acesso a fontes alternativas de informação.
Quando falamos aqui em liberdade de expressão, trata-se de liberdade de crítica (no sentido filosófico do termo, como vimos quando tratávamos da gênese da esfera pública), que poderíamos condensar com a seguinte definição:
O direito protegido por lei à liberdade de expressão, particularmente à expressão política, incluindo a crítica às autoridades, à conduta de governo, ao sistema político, econômico, social e à ideologia dominante. (DAHL, 2012)
Quanto ao acesso a fontes alternativas de informação, Dahl (2012) as define do seguinte modo: acesso a fontes alternativas de informação que não sejam monopolizadas pelo governo ou por nenhum outro grupo em particular.
Mas vejamos que esses itens não se sustentam autonomamente, eles estão vinculados a quatro fatores:
	Alfabetização
	Educação
	Informação
	Pluralismo
O acesso à informação plural por um público alfabetizado e que tenha ao menos um nível de instrução médio é um fator muito mais importante para a formação de uma poliarquia que outros fatores elencados. Eles são fundamentais para a produção de uma opinião pública que possa amadurecer ao longo do tempo. Além disso, a correlação entre alfabetização ampla, acesso à educação – mesmo que modesta – e de uma pluralidade de meios de informação pode fazer com que países e sociedades satisfaçam os níveis mínimos requeridos para o funcionamento de uma poliarquia, mesmo em sociedades predominantemente agrícolas e que não tenham nenhuma indústria.
Em países onde se generalizou o acesso às primeiras letras e onde houve uma prematura ampliação dos meios de informação escritos, formou-se precocemente alguma forma de poliarquia, mesmo em condições rurais, como, por exemplo, Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Noruega, Finlândia e Islândia.
O CONTROLE CIVIL DA COERÇÃO VIOLENTA
Um fator de grande importância para a formação e estabilidade de uma poliarquia é aquilo que Dahl chama de controle civil da coerção violenta, ou seja, a submissão das forças policiais e militares ao poder civil. Uma das características do Estado são seus instrumentos para coerção física cuja tarefa é a ameaça ou o emprego da violência para a manutenção da ordem e da segurança.
Nos parâmetros de uma poliarquia, duas condições são necessárias para o exercício democrático: 1) Que o poder civil seja capaz de efetivar o controle das forças de coerção (militares e policiais); 2) Que os próprios civis que controlam as forças de coerção estejam sujeitos ao processo democrático.
Historicamente, quatro fatores têm ajudado nessa questão:
	Quando países reduzem seus contingentes militares e policiais à sua virtual insignificância (como nos casos do Japão e da Costa Rica).
	Quando as forças militares ou policiais são dispersadas em seus comandos em uma série de controles locais (o que é comum nos países de língua inglesa).
	Quando as tropas militares são formadas por pessoas com fortes convicções democráticas compartilhadas pela sociedade civil (como no caso da Europa pós-Segunda Guerra Mundial, onde as tropas terrestres são formadas por alistamento para breves períodos – ou seja, todos são civis de uniforme).
	O profissionalismo militar doutrinário, que incute nos militares profissionais a criação e a manutenção de crenças relacionadas ao regime democrático ao qual estão submetidos e que devem proteger por fidelidade.
O quarto fator citado pode causar certas distorções, de acordo com Dahl:
Todavia, sob certas circunstâncias, o controle civil de uma instituição militar profissional num país democrático pode ser prejudicado. O controle civil é ameaçado quando o profissionalismo cria um profundo abismo social e psicológico entre os militares e civis, de forma que, como ocorreu no Brasil em 1950 e 1960, os militares se tornam uma ordem social claramente à parte, uma casta militar isolada da sociedade civil. Ou ainda, se os profissionais acreditam que os interesses fundamentais da instituição militar estão ameaçados pela liderança civil, é provável que resistam ao controle civil e é possível que o rejeitem inteiramente, como ocorreu no Brasil em 1964, em Gana em 1965, e na Argentina, repetidas vezes, entre 1955 e 1983.
(DAHL, 2012, p.392-393)
Assim, lideranças militares podem também, se não são devidamente doutrinadas pelo profissionalismo militar na crença e no dever de proteger o governo ao qual devem se submeter, ameaçar a estabilidade de uma poliarquia plena.
Em outras palavras, podem, em função de desordem, conflito civil, polarizações agudas, crises econômicas contínuas, efetivar golpes militares – e desarticular poliarquias instáveis, como ocorreu no Brasil em 1964, no Chile e no Uruguai em 1973 e na Argentina em 1976. A presença ou ausência de uma poliarquia não pode ser definida apenas pelo controle civil da coerção violenta, mas esse fator é um elemento que contribui para a estabilidade de um sistema poliárquico.
NOVAS MÍDIAS, NOVOS ATORES: A ESFERA PÚBLICA CONTEMPORÂNEA
Cientistas sociais sérios não costumam fazer muitas previsões quando se defrontam com fenômenos novos ou se encontram em meio a processos em curso: é sabido que é mais fácil compreender rigidamente processos que se estabilizaram ou ciclos de mudança que já terminaram.
Nos últimos 30 anos, com a expansão da internet e de outras redes de computadores, atividades econômicas, sociais, políticas e culturais têm sido cada vez mais estruturadas ao redor dessas novas redes informacionais, transformando nesse processo muitos modos tradicionais de nos relacionarmos, trabalharmos, produzirmos e a maneira como a esfera pública funciona.
Apesar dessa ampla difusão e popularização tecnológica sem precedentes, a lógica, a linguagem e os limites da internet ainda não são completamente compreendidos pelas disciplinas acadêmicas que não pertencem diretamente a essa esfera tecnológica. A velocidade de transformação tecnológica, em ciclos mais curtos, ligada à emergência de novos serviços e mídias, contando com um número maior de agentes engajados em suas diversas utilizações, vem tornando cada vez mais difícil uma análise aprofundada desses fenômenos. Trata-se de um desafio para a pesquisa acadêmica, por isso há certa dificuldade para produzir estudos empiricamente embasados que analisem com rigor as transformações econômicas, políticas e sociais causadas pela aplicação crescente das tecnologias informacionais.
Esse vácuo de conhecimento acerca dos efeitos, limites e consequências múltiplas da expansão crescente dessas novas tecnologias tem sido preenchido frequentemente mais pela boataria, pelas visões utópicas ou distópicas e pela ideologia que permeiam a compreensão dos fenômenos ligados a esse tema, o que é comum ocorrer em tempos de rápida mudança social.
As últimas décadas têm sido repletas de previsões futurológicas apresentando um porvir de consequências simplistas baseadas nas maravilhas da tecnologia, enquanto, por outro lado, surgiram imagens de distopias críticas sugerindo os efeitos alienantes da internet antes mesmo deles acontecerem. Paralelo a isso, a mídia desejosa de informar seu público ansioso por novidade, mas carente das capacidades de analisar de modo rigoroso e embasado as diversas transformações em curso, espalhou boa parte dessas previsões futurológicas – negativas e positivas– com todos os elementos descritos (CASTELLS, 2003 p. 8-9).
O aumento de agentes operando nas redes de computadores, que tem se expandido massivamente nas últimas décadas, gerou efeitos ambivalentes. Por um lado, foi extremamente importante na emergência de movimentos populares em diversos países, como, por exemplo: a Primavera Árabe, em 2011, possibilitada pela internet e pelas redes sociais; o Occupy Wall Street, também em 2011; as manifestações ocorridas na Turquia, em 2013, no Brasil, em 2013 e 2014, e também no Chile, em 2011 e 2013 (CASTELLS, 2017). Por outro lado, as relações entre os meios de comunicação e as redes sociais podem gerar efeitos corrosivos e causar crises no funcionamento das democracias liberais:
Nossas vidas titubeiam no turbilhão de múltiplas crises. Uma crise econômica que se prolonga em precariedade de trabalho e em salários de pobreza. Um terrorismo fanático que fratura a convivência humana, alimenta o medo cotidiano e dá amparo à restrição da liberdade em nome da segurança. Uma marcha aparentemente inelutável rumo à inabitabilidade de nosso único lar, a Terra. Uma permanente ameaça de guerras atrozes como forma de lidar com os conflitos. Uma violência crescente contra as mulheres que ousaram ser elas mesmas. Uma galáxia de comunicação dominada pela mentira, agora chamada pós-verdade. Uma sociedade sem privacidade, na qual nos transformamos em dados. E uma cultura, denominada entretenimento, construída sobre o estímulo de nossos baixos instintos e a comercialização de nossos demônios.(CASTELLS, 2018, grifo nosso)
A ampliação das novas tecnologias tem, portanto, gerado efeitos ambíguos e ainda pouco compreendidos em suas implicações diretas com o âmbito da esfera pública. Segundo Castells (2018), a hipotética “ágora virtual”, profetizada por vários utopistas tecnológicos, tem gerado muitos problemas em tempos onde as “notícias falsas” circulam na “velocidade do sinal eletrônico”: gerando problemas de deslegitimação para as mídias tradicionais e nos mecanismos institucionais das democracias estabelecidas.
A própria popularização das notícias falsas nos meios digitais tem sido objeto de estudos na área de Comunicação e Jornalismo: seja analisando suas peculiaridades atuais e sua propagação nas redes, seja sob uma perspectiva de que se trata de um fenômeno semelhante a outros já ocorridos anteriormente em momentos de ampliação da esfera pública e de meios de informação alternativos.
É possível vermos positiva ou negativamente todos os fenômenos citados? É possível adotar uma narrativa acerca do futuro da esfera pública e suas relações com as novas tecnologias informacionais com o rigor acadêmico e alicerçado nos estudos de mídia e das Ciências Sociais atuais? Muito tem sido produzido na área atualmente, mas é difícil analisar ainda todas as suas consequências e os seus limites.
Vamos ouvir o que o professor Rodrigo Rainha tem a nos dizer sobre essa relação.
No debate atual, para além da análise das Ciências Sociais, como é colocada a questão dos movimentos sociais e políticos, da relação entre a mídia tradicional e a emergência das mídias alternativas, da ascensão de novos atores sociais e no que tange às novas tecnologias de informação? A seguir, fazemos uma síntese desses debates em três tópicos.
· Movimentos sociais e políticos
Dentro do contexto entre mídia e política, é importante citar que, principalmente a partir de 2010, houve a emergência de movimentos sociais e políticos que aparentavam ter três características gerais:
1) Busca por uma ação política direta;
2) Espontaneidade e abertura participativa;
3) Reivindicações específicas no início que se desenvolvem em pautas mais gerais.
Quando observamos certos movimentos, como o Occupy Wall Street (EUA, 2011), a Primavera Árabe (Oriente Médio e Norte da África, 2010), o movimento dos coletes amarelos (França, 2018) e as chamadas Jornadas de Junho (Brasil, 2013), é possível dizer que se trataram de movimentos de cunho social e político, manifestados de modo imediato e direto.
Isso quer dizer que tais movimentos não eram condicionados pelo intermédio de partidos políticos ou sindicatos – que até então se estruturavam como os próprios mediadores entre os indivíduos que possuíam demandas e os representantes nas instituições políticas.
Exatamente por isso eles possuem como característica comum não apenas a retomada de protestos de rua – ação política muito marcante nas décadas de 1960 e 1970 –, mas ainda se utilizaram da internet, principalmente das redes sociais, como meio de expor reivindicações, cobrar resoluções e exigir transparência diretamente.
Pode-se dizer que há uma maior abertura participativa, uma vez que cada indivíduo se faz como agente político engajado, não só confirmando a noção de uma crise de representação iniciada na última década, como ainda o fato desses movimentos apresentarem uma ação espontânea e até mesmo explosiva – basta um evento marcado no Facebook ou certa mobilização simbólica (caso dos coletes amarelos) para que se espalhe um entusiasmo crescente nos indivíduos e, por conseguinte, que eles se auto-organizem em tais manifestações. Isso marca a emergência de novos atores sociais, modificando também o próprio modo de fazer política.
Por conta dessa espontaneidade e abertura participativa, é possível observar uma espécie de ligação cronológica em tais manifestações, uma vez que elas começam por demandas específicas (lembremo-nos de que as Jornadas de Junho foram incialmente deflagradas pelo aumento ínfimo nos preços do transporte público) e geram uma mobilização maior das massas que aumentam o escopo das reivindicações para demandas mais gerais, tais como o fim da corrupção ou o combate às desigualdades sociais.
· Mídias alternativas
Principalmente com o advento da internet, começou-se a colocar em questão o modo como a informação é produzida e quais agentes se implicam financeiramente no campo midiático. Na medida em que o monopólio dos conglomerados de comunicação se tornou alvo de debates (a questão de grandes mídias que concentram o aparato informativo), mídias alternativas começaram a surgir, facilitadas pela internet e seu acesso mais democrático.
Assim, observa-se a eclosão de grupos que se propõem a comunicar estando fora de grandes corporações que até então ditavam o modo como a informação deveria ser veiculada – lembremos de certos modelos televisivos que se tornaram ultrapassados ou ainda o próprio jornal, mídia extremamente tradicional que cada vez mais perde leitores e assinantes. Um grande exemplo disso são revistas eletrônicas, sites de notícias e canais no YouTube que funcionam a partir de autogestão colaborativa (caso da Mídia Ninja) ou financiamento digital (crowdfunding) – como é o caso do The Intercept, que já se ramificou globalmente por meio desse tipo de financiamento.
O maior apelo desses canais midiáticos ditos alternativos é a recusa de estar refém de interesses, algumas vezes escusos, dos canais conservadores e tradicionais de mídia. Isso permite um movimento contra-hegemônico no âmbito da esfera pública, visto que contesta essa mídia tradicional pautada fundamentalmente em uma imparcialidade questionável, sendo possível se perguntar a quem interessam certas informações e quais grupos lucram com elas.
É dentro desse contexto que a própria ideia de informação imparcial passa a ser questionada, abrindo lugar para a possibilidade de uma mídia engajada ou ainda que deixe de modo transparente seus próprios referenciais teóricos e inclinações – como é o caso de editoriais prévios, a exemplo da revista de economia The Economist.
· Minorias e representatividade
É importante salientar que com a modificação atual tanto dos movimentos sociais e políticos como dos próprios canais de informação alternativos, há uma crescente democratização nesses campos que, justamente, abre espaço para protagonistas que até então eram social e politicamente negligenciados. É o caso de certas minorias sociais que se alicerçam em pensamentos identitários e ganham espaço e representatividade com meiosmidiáticos que fogem das grandes corporações tradicionais.
Em termos políticos, essas mesmas minorias acumulam certas exigências no que se refere ao seu lugar na participação política, exigindo uma democracia que não seja apenas formal (ou seja, que não se limite ao voto de representantes muito distantes do eleitorado dos grupos minoritários), buscando uma expansão do sentido de representação e uma democracia real. Isso retroalimenta o alargamento da esfera pública que deixa de ter um perfil tradicional e se torna mais multicultural.
A ideia de multiculturalismo reflete um movimento cada vez mais intenso de pluralidade de culturas acompanhado de um reconhecimento mútuo dos indivíduos enquanto coparticipes da democracia.
A esfera pública também se torna a arena de divulgação e discussão de certas correntes de pensamento que possuem uma implicação claramente política, como feminismo, teoria queer, pensamento decolonial etc. A questão da representatividade e da necessidade do reconhecimento das demandas dos grupos minoritários envolvidos nessas correntes das ciências humanas começa a se fazer ouvir.
A própria popularização de conceitos como lugar de fala e necropolítica são evidências não só da politização das minorias que exigem voz e mudança social, como ainda apontam demandas políticas cada vez mais democráticas – como, por exemplo, uma representação política cada vez mais paritária entre os gêneros masculino e feminino.
Um exemplo claro que não apenas demonstra uma abertura maior para agentes políticos até então negligenciados e que possuem um modo de participação profundamente condicionado pela internet e novas mídias sociais é o caso do Black Lives Matter, campanha virtual direcionada à discussão sobre racismo que conjuga elementos de militância, exigindo dos representantes políticos ações positivas no combate à discriminação e violência contra a comunidade negra.
CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste tema, apresentamos a relação entre comunicação e política. Vimos que o conceito de política contemporânea é uma construção histórica, política e filosófica que tem como conceitos fundamentais a democracia, a república e a representatividade.
Aprendemos também que comunicar não é um mero ato, está em meio a uma complexa relação social. Essa relação social se manifesta de maneira política, por isso, é preciso definir seus espaços, seu entendimento, seu mundo e, para tanto, mergulhamos na história da esfera pública.
Por fim, entendemos a complexidade da estrutura política contemporânea por meio do conceito de poliarquia, segundo o qual o poder de comunicar encontra-se com o poder político no mundo contemporâneo, na internet e nas demandas de grupo.

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