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FUNDAMENTOS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA NO BRASIL AULA 3 Prof. Lucas Lipka Pedron 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula abordaremos a formação da cultura filosófica brasileira que se constrói a partir da chamada escola uspiana: uma escola filosófica brasileira que surge da importação de intelectuais e da cultura francesa, do modo francês de fazer filosofia. Seguiremos, principalmente, a obra Um departamento francês de ultramar, de Paulo Eduardo Arantes. Como disse o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804): não é possível ensinar a filosofia, apenas a filosofar. Esta será a tônica sobre a qual será construída a maioria de nossos temas, já que a história da formação do Departamento de Filosofia de São Paulo pode ser lida, pelo menos em seus momentos principais, como um desdobramento dessa concepção sobre o que significa ensinar filosofia. Especialmente com base no que foi denominado Missão Francesa: a vinda de acadêmicos franceses recém-formados para lecionar na USP com o intuito de formar ali uma cultura universitária. Ironicamente, se já estavam vacinados contra a ideia de que a filosofia pudesse ser resumida a um conjunto de doutrinas que, todas reunidas, pudesse ser ensinada passo a passo, essa prudência desembocou num método de reflexão baseado nos clássicos. Sendo todos os clássicos europeus – e o próprio método francês –, a formação filosófica no Brasil não possuía um caráter propriamente nacional. Essa falta de uma cultura filosófica levou Arantes a afirmar que não há por aqui uma cultura filosófica que dê corpo e continuidade às discussões filosóficas no país. Isso certamente resultou de um processo de formação, durante o qual se constituiu uma cultura de leitura e interpretação de textos filosóficos clássicos da história da filosofia – extremamente competente, diga-se de passagem, ganhando destaque inclusive no rol dos grandes debates internacionais. Mas com relação ao debate nacional, sempre ocupou uma espécie de sub-lugar no contexto de produção intelectual e cultural no país. Mas o que pode resultar de uma cultura filosófica fadada à especialização? Ela ainda pode encontrar uma ligação com a realidade que a cerca? São as etapas desse processo de formação, bem como suas virtudes e seus limites, que veremos nesta aula. No primeiro tema passaremos pelas origens francesas e pelos intelectuais importados para cumprir tal missão no Brasil. Abordaremos a influência de Jean Maugüé, professor de liceu na França (algo comparável ao 3 ensino médio brasileiro) que, como primeiro professor trazido de lá para a missão, foi um dos intelectuais mais influentes em solo brasileiro. Tal se deu, como veremos, pela forma como inspirou gerações e gerações de professores e pesquisadores de filosofia desde a década de 1930. Não por menos, Cruz Costa, como o aluno nº 1 do curso de filosofia da USP, não foi só o primeiro aluno de Maugüé no Brasil, como posteriormente seria seu assistente. Passaremos então ao segundo tema, pensando o método trazido por Maugüé para o Brasil, demarcado pelo estudo dos textos e da história da filosofia. Como consequência direta, funda-se um dos pilares do estudo da filosofia no Brasil – o respeito aos clássicos e o debruçar-se sobre a história da filosofia – como principal fonte para o trabalho filosófico. Em seguida, no terceiro tema, veremos nos anos 1960 a contribuição mais consolidada da Missão Francesa. Tal contribuição pode ser vista com base no método estruturalista, trazido de além-mar, para consolidar o método de ler, interpretar e escrever filosofia a partir da escola uspiana. Suas influências ainda podem ser vistas no Brasil, mais de 50 anos depois, na relevância que professores e pesquisadores formados no método estruturalista possuem nos debates filosóficos do país. No quarto tema passaremos para os resultados mais consolidados da Missão Francesa: quando a própria produção filosófica brasileira passa a ser internacionalizada, com os intelectuais gestados e formados na missão uspiana começam a ganhar mais espaço no exterior. Sem dúvida, o maior expoente, a “menina dos olhos” do departamento, será Bento Prado Júnior, cuja obra será lida e comentada internacionalmente. Por último, buscaremos ver algumas das consequências dessa escola nos dias atuais, como a Missão Francesa se expandiu em solo nacional, profissionalizando a carreira filosófica brasileira com base no método francês. Veremos também como tal enfrentamento se dá com outras escolas de leitura que surgem como antagonistas da escola uspiana. TEMA 1 – PRIMEIROS CONTATOS Durante a década de 1930, no esforço de modernização da cultura brasileira, e como forma de embate ao Estado Novo getulista, a elite econômica e política paulistana busca uma forma concreta de aprimorar a formação cultural da sua elite. A USP é o resultado desse esforço em formar 4 elites dirigentes, sendo fundada e financiada pelo Estado e pela burguesia paulistana em 1935 – ano da união das diversas faculdades estaduais de São Paulo. A necessidade de formar a elite se deu pela importação de intelectuais estrangeiros, em particular franceses. Paris era a capital cultural do planeta, e sua influência já era grandemente sentida no Brasil – desde a Primeira República houve um esforço em modernizar a cultura do país pelo espelhamento da cultura francesa. Dentre os vários professores que poderíamos citar nesse período, Jean Maugüé é certamente o que mais influenciou a escola uspiana de filosofia. 1.1 Jean Maugüé Maugüé não era apenas um professor – era uma maneira de andar e falar, que alguns de nós imitavam afetuosamente com perfeição; era um modo de abordar os assuntos, hesitando, como quem ainda não decidiu por onde começar e não sabe ao certo o que tem a dizer; e por isso se perde em atalhos, retrocede, retoma um pensamento que deixara incompleto, segue as ideias ao sabor das associações. Mas esse era o momento preparatório no qual, como um acrobata, esquentava os músculos; depois, alçava voo e, então, era inigualável. (Mello e Souza citada por Arantes, 1994, p. 66) Essas palavras sobre Maugüé exemplificam que tipo de professor foi esse francês, que participou, de maneira essencial, na formação de uma cultura filosófica no Brasil. Para entendermos isso, precisamos, contudo, falar da fundação daquela que foi por muitos anos o centro gravitacional ao redor do qual orbitou a filosofia no Brasil durante o século XX: a USP. A USP é resultado da união, em 1934, da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) e diversas outras faculdades com cursos já existentes e em funcionamento há algum tempo, sendo a mais antiga a Faculdade de Direito, fundada em 1827. A informação é mais do que mera curiosidade, pois aponta para uma peculiaridade essencial à compreensão de como viriam a se constituir esses novos cursos, dentre eles o de filosofia: como não havia no Brasil docentes formados nessas áreas para ministrar as aulas, buscou-se a solução pelo que se denominou oficialmente de Missão Francesa. Com o objetivo de preparar professores para ensinar no curso secundário e superior, investiu-se na importação de “mão de obra especializada”, isto é, acadêmicos de diversas áreas formados na França. Entre os nomes mais conhecidos que atravessaram o Atlântico, estão o antropólogo Claude Lévi-Strauss; o historiador da Escola dos Annales Fernand 5 Braudel, o sociólogo Roger Bastide; e – este que realmente nos interessa aqui – o filósofo Jean Maugüé. Maugüé chegou ao Brasil em fevereiro de 1935 (onde ficou até 1944) e foi logo encarregado de estabelecer as condições do ensino de filosofia a ser posto em funcionamento no curso recém-estabelecido. Na bagagem, o professor, que tinha passado uma temporada na Alemanha, trouxe a advertência de um dos mais conhecidos filósofosdaquelas terras, Immanuel Kant: não se ensina a filosofia, apenas a filosofar. Isso significa, em poucas palavras, que a filosofia não possui um objeto próprio em torno do qual seria possível erigir um conjunto de conhecimentos objetivos, capazes de ser transmitidos como um saber positivo. Paulo Arantes se propõe a expor e a refletir sobre os desdobramentos da Missão Francesa no Brasil. Lembrar, na esteira da modernidade trilhada pelos pós-kantianos, que não se ensina filosofia mas apenas a filosofar, era lembrar antes de tudo que a filosofia não possui objeto próprio e que, portanto, essa disciplina invisível e inapreensível não pode se apresentar como um conjunto de conhecimentos objetivamente transmissíveis, o que só agrava a carga de inventiva exigida do professor posto assim em disponibilidade. Noutras palavras, filosofia não é matéria que se ensine; ao contrário do saber positivo, ela não dispõe de um corpo de verdades, constituídas de tal sorte que dispense o talento do professor, tolerado nestes casos como um mero acidente, quando existe. […] Visto que a filosofia não tem objeto, ela se confunde com o filósofo, o seu ensino vale o que anda pela cabeça daquele que a ensina. (Arantes, 1994, p. 64) A maneira de o filósofo francês lidar com isso era, justamente, algo da ordem de uma personificação da filosofia. Ao se dedicar às suas exposições, isto é, ao modo como os assuntos filosóficos seriam tratados em sala de aula, Maugüé se propunha a gerar, digamos, “uma experiência de reflexão filosófica”. Uma ilustração disso podemos encontrar nos relatos sobre suas aulas, a começar pelo fato de ele sempre iniciá-las com uma menção a filmes, notícias, exposições etc., que eram comentadas e analisadas filosoficamente. Se a filosofia não possui domínio próprio, não podendo ser ensinada como doutrina, então ela poderia, talvez, ser ensinada por alusões. Não se trata, portanto, de abordar a filosofia a partir de um sistema fechado que se constrói de maneira autorreferente, mas de filosofar por uma reflexão viva sob a forma do ensaio, o qual, pelo menos desde o jovem Lukács (1885-1971), constrói-se pela intersecção com a cultura que lhe serve de material. Segundo os relatos apresentados por Paulo Arantes – relatos das mais variadas figuras do pensamento nacional, como Oswald de Andrade, 6 Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido –, Maugüé era capaz de conduzir o discente nas aventuras da reflexão apaixonante, como se lhes ensinasse a filosofia em ato, de maneira contagiante. Mas se essa verve marcante de Maugüé também podia ser interpretada como algo um tanto generalista, carente de rigor e de técnica – especialmente se comparada à “técnica” acadêmica que posteriormente viria a se desenvolver ali mesmo, na USP, como veremos –, é preciso ressaltar que o conteúdo das aulas não advinha do mero improviso ou teatralidade, nem se baseava nas produções culturais do momento. Havia já desde o primeiro momento da Missão Francesa, encabeçada por Maugüé, a aplicação de dois preceitos que seriam seguidos à risca, e criariam raízes profundas, mantendo-se vivos até a mais recente história da filosofia no Brasil: o ensino deve ser principalmente histórico e feito pela leitura dos textos clássicos de filosofia. O impacto dessas diretrizes não será pequeno em terras nacionais. Acontece que o consumo das grandes novidades europeias era, especialmente antes da chegada dos franceses, entusiasmado e constante por aqui – certo filoneísmo, como diria Cruz Costa –, mas isso era feito, de maneira geral, sem muita organização ou sistematicidade, o que não permitia uma assimilação enraizadora, que servisse à construção de uma cultura filosófica brasileira. Daí Paulo Arantes se pôr a imaginar o desconforto de Maugüé diante do “apetite verdadeiramente macunaímico com que pilhávamos as grandes marcas filosóficas internacionais” (Arantes, 1994, p. 72). Eis a necessidade, segundo o francês, de estabelecer métodos rigorosos e modernos para estudar filosofia no Brasil, propriamente os mesmos que serviam como fundamento para seu ensino na França, ao ponto de Michel Foucault, quando de sua visita à USP em 1965 – momento em que o método importado na Missão Francesa já se encontrava mais do que consolidado –, afirmar ter encontrado aqui um “departamento francês de ultramar”. TEMA 2 – UMA QUESTÃO DE MÉTODO Tal “departamento francês de ultramar” é a melhor expressão do método com que se ensinava a pensar filosofia. Era uma questão, primeiramente e sobretudo, de método. Maugüé propunha uma cartilha a ser seguida: o primeiro passo seria incutir uma certa disciplina intelectual, um método de leitura paciente. Por segundo, havia a necessidade de um domínio mínimo da história 7 da filosofia com base na leitura dos clássicos. Por último, e somente então, as novidades poderiam ser filtradas quanto à sua relevância e acomodadas sobre a sólida camada histórica acumulada que daria a ela um sentido aproveitável e mais duradouro. Nessa medida, a Missão Francesa tinha a princípio, segundo Antonio Candido, “menos uma função específica, de formar especialistas em filosofia, do que a função genérica de criar uma atmosfera favorável ao espírito crítico” (citado por Arantes, 1994, p. 80). O que o filósofo de além-mar esperava trazer para cá era justamente o que ele teve oportunidade de aprender em seu país natal, a saber: ler através dos filósofos, de várias épocas e territórios, o seu próprio país e época. Não há dúvida de que, ao se propor a criar uma cultura análoga por aqui, o francês foi fundamental para todo o desenvolvimento da filosofia no país, mesmo que estritamente produzido na e para a academia – para “consumo próprio”, diria Paulo Arantes. São vários os pensadores e as pensadoras que descendem dessa visão de Maugüé, geração após geração que, uns mais e outros menos, tentaram realmente pensar seu país e sua época com base na leitura e interpretação dos clássicos – como veremos. Daí surgiram, por exemplo, Cruz Costa, que foi assistente de Maugüé e estava na sua primeira turma no curso de filosofia. Posteriormente, nomes como José Arthur Giannotti, Ruy Fausto, Oswaldo Porchat e Bento Prado Júnior formaram uma geração de notáveis filósofos, que marcaria a entrada inconteste da produção filosófica brasileira no cenário mundial. O Brasil em nada ficava devendo em qualidade e novidade com relação às abordagens europeias, mas isso era a parte visível e mais brilhante de um trabalho que foi iniciado por Jean Maugüé em 1934. Tragicamente, Maugüé, em seu retorno à França, não passa no exame nacional para ingressar na docência em ensino superior, um concurso nacional para a carreira docente do país (e não realizado por instituição ou estado como no Brasil). Exercerá então, até o final da vida, a profissão de professor de filosofia para o liceu. Sua maior contribuição, porém, é sem sombra de dúvida a fundação de uma escola de filosofia, a escola uspiana. Se na França Maugüé não pôde contribuir ao ensino superior e à produção acadêmica de filosofia, pior para os franceses, como diria Arantes. No Brasil ele foi o responsável pela revolução da filosofia na década de 1930, inspirando gerações e gerações de intelectuais brasileiros. 8 TEMA 3 – OS ANOS 1960 Após a saída de Maugüé, a importação dos intelectuais franceses tornou-se a importação de uma escola específica francesa: o estruturalismo. Se no final do século XIX e começo do XX o Brasil importara o positivismo francês de modo tão intenso, o pós-guerra trouxe uma nova perspectiva de lidar com a realidade e com o texto filosófico. 3.1 O método estrutural […] filosofia era matéria de ensino especializado, dotado de repertório técnico próprio para cujo domínio se recomendava a leitura isenta dos clássicos, assunto portanto sem continuidade com as finalidades prático-poéticas davida. (Arantes, 1994, p. 188) Não é possível falar sobre a experiência filosófica que se instaurou no Brasil nos anos 1960 sem um esclarecimento inicial quanto a um certo estruturalismo que ganhou corpo na USP pouco depois da saída de Maugüé em 1944. No final dos anos 1940 e começo dos 1950, três intelectuais franceses contribuem para disseminar a semente do estruturalismo em terras brasileiras. Victor Goldschmidt, orientador de vários filósofos paulistanos, mesmo nunca tendo sido professor em São Paulo; Martial Gueroult, que se instala no departamento de filosofia entre 1948 e 1950; e Gilles-Gaston Granger, que chegou em 1947 e partiu em 1953. Todos eles exerceram grande influência sobre os acadêmicos uspianos a partir de uma grande novidade conhecida como método estrutural de leitura de textos ou, como diria Gueroult, tecnologias de leitura. Na definição clássica de Gueroult, uma leitura estrutural diz respeito a seguir a ordem das razões do texto, isto é, o que importa na apreensão de um texto filosófico não é o conjunto de dogmas que ali podemos encontrar, não importa o que o autor estabeleceu como verdade objetiva; antes e exclusivamente importa descobrir a maneira como se pode encadear a estrutura da exposição dos problemas filosóficos levantados pelo autor. Curiosamente, isso dá um caminho e, ao mesmo tempo, justifica a máxima kantiana sobre só ser possível “ensinar a filosofar”. Para um adepto do método estrutural, a filosofia, já que não possui objeto próprio, não pode apresentar uma verdade objetiva sem cair em dogmatismo; mas o que compõe seu modo de proceder – o seu filosofar – é a sua estrutura, que pode ser 9 apreendida pela decantação capaz de separar o conteúdo objetivo da malha estrutural do pensamento que apreende essa objetividade. Desse modo, a verdade – que a filosofia nunca deixou de buscar – praticamente se confunde com a busca pela verdade, com o método. Isso significa que os sistemas filosóficos – cujos nós o método estrutural ia desatando – se mostravam incomensuráveis com a realidade, ao ponto de não fazer sentido submeter as razões do texto a um teste de realidade. Com o método como sinônimo de verdade, instauram-se “duas realidades”, a prosaica da experiência, e a da filosofia, que não tinha por que voltar à experiência para receber sua validação. “Uma filosofia não ensinava verdades, era apenas bem ou mal construída” (Arantes, 1994, p. 215). Ensinar a filosofar passa a ser, pelo menos com essa perspectiva, ensinar a apreender a arquitetônica dos textos. 3.2 Gérard Lebrun Se o início da Missão Francesa, nos anos 1930, confunde-se com a figura de Jean Maugüé, seu último capítulo, nos anos 1960, não pode ser dissociado da figura de Gérard Lebrun, que na sua primeira passagem pelo Brasil, de 1960 a 1966, teve papel fundamental na formação do “estilo franco- uspiano de mexer com filosofia” (Arantes, 1994, p. 276). Isso se dá porque “a tal formação […] de fato se precipitou e só se completou mesmo nos anos 1960, aliás fortemente impulsionada por outro professor francês, Gérard Lebrun” (Arantes, 1994, p. 276). E o apreço por Lebrun não pode se confundir com a ideia de que entre os dois a presença estrangeira não tenha sido significativa. Mas é que o estudo historiográfico dos clássicos, trazido e inaugurado por Maugüé, e o método estruturalista trazido pela tríade Goldschmidt, Gueroult e Granger convergiram no pensamento e ensinamento de Lebrun de forma mais bem acabada. Além disso, como se não bastasse, foi com Lebrun que a herança kantiana estruturante da cultura filosófica brasileira ganhou corpo visível, quando da publicação de Kant e o fim da metafísica, em 1972. A lição que Lebrun tira de Kant – e deixa no departamento francês de ultramar – é que a filosofia não é mais juízo de verdade, pelo menos desde as três críticas1 escritas pelo alemão entre o final do século XVIII e o início do XIX. 1 Crítica da razão pura (1781), Crítica da razão prática (1788) e Crítica do juízo (1790). 10 A quimera metafísica de expor a verdade sobre a totalidade da existência – que Kant expunha como um devaneio dogmático do pensamento – deve agora dar lugar, pelo menos para toda filosofia que queira embarcar na modernidade, à crítica não do conhecimento do objeto, mas da própria capacidade de conhecer, isto é, não só do que podemos conhecer, mas também do modo como conhecemos. Em outras palavras, o que nos resta é a estrutura do pensamento, que só pode ser apreendida pelo estudo da história da filosofia; afinal, o que Kant havia derrubado era o projeto delirante de uma ciência absoluta. O que Lebrun deixou na filosofia brasileira foi a convicção, de raízes kantianas, de que não é a resposta que importa, mas a pergunta, ou seja, não importa o sentido da objetividade que se conhece, mas o pano de fundo sobre o qual o conhecimento é possível. Isso influenciou grandemente quem viria a receber a alcunha de “musa do departamento”, Bento Prado Júnior, que certamente é um capítulo à parte nessa história. TEMA 4 – A MUSA DO DEPARTAMENTO Num país como o nosso, onde a cultura filosófica era inexistente, não se podia esperar que fôssemos imediatamente produtores de uma filosofia nacional, menos ainda em um recém-criado departamento de filosofia à moda francesa. Nesse sentido, a Missão Francesa foi, acima de tudo, necessária enquanto um período inicial de acumulação filosófica, sem o qual não seria possível produzir uma reflexão propriamente nacional. No entanto, paradoxalmente, o indispensável confinamento da filosofia na academia também a distanciaria da experiência da realidade nacional. A figuração de uma vida nacional ganharia corpo, primeiramente, na literatura, como havia mostrado Antonio Candido na Formação da literatura brasileira, de 1959. Por seu turno, a filosofia, pelo seu próprio modo de ser, não se prestava a expor a realidade concreta, muito menos na esteira do método estrutural que criou raízes em São Paulo, restringindo a filosofia a assunto de profissionais. Nesse sentido, parecia evidente que a filosofia “não teria mesmo nada a dizer a um espírito brasileiro em formação. Não contribuindo em nada para a descoberta do Brasil” (Arantes, 1994, p. 173). É aí que entra em cena Bento Prado Júnior, filósofo que se formou em 1965, nessa cultura filosófica já bem instituída na USP, mas que nem por isso 11 foi modelado à imagem e semelhança do método estrutural francês. Isso se deveu especialmente pela sua veia literária: “em meados dos anos 1960, Bento Prado Júnior era uma ilha de literatura cercada de filosofia por todos os lados” (Arantes, 1994, p. 170). Além do mero gosto, o tino para a literatura tinha um motivo filosófico: para Bento, já era hora de a filosofia procurar públicos mais amplos, com uma forma de apresentação que o não especializado pudesse compreender e apreciar. 4.1 Filosofia e literatura Como diz Paulo Arantes, “devemos portanto a Bento Prado a invenção de um gênero específico, que se poderia chamar de filosofia uspiana da literatura” (1994, p. 234). Mas a intersecção entre filosofia e literatura era mais do que a divulgação para públicos não especializados e não acadêmicos. Sua suspeita filosófica era que o momento expressivo era tão importante para a exposição filosófica quanto uma definição conceitual bem armada. Desde essa concepção, o filósofo uspiano passou a privilegiar a linguagem como lugar de manifestação das questões propriamente filosóficas. A bem dizer, onde se poderia encontrar um arcaísmo filosófico, aquele do lugar abstrato do trabalho conceitual, ele localizava, estrategicamente, a necessária reflexão sobre a linguagem ela mesma que deveria servir de antídoto contra seu uso instrumental. No entanto, essa linguagem autorreferente de Bento Prado Júnior não fala,como poderíamos esperar, meramente de si mesma. Na medida em que a linguagem fosse capaz de se libertar da necessidade de signos fixados em relações de significação estanques, ela deixaria de ter um uso instrumental e poderia expressar a dimensão da experiência concreta, que não se deixa capturar de maneira unívoca. É nesse sentido que a linguagem filosófica deveria se aproximar da linguagem literária, pois esta é justamente a linguagem que não está subordinada à determinação da objetividade e, por isso, pode realmente falar da vida sem restrições. Não é por acaso que Bento Prado Júnior toma como objeto filosófico de análise a prosa de Guimarães Rosa, para quem um único léxico não bastava. Nela, a linguagem não era meramente denotativa, nem enxugada sob um aparato conceitual. Se a linguagem enquanto mediadora entre humanos e coisas só pode falar da realidade de maneira restritiva, limitada à função 12 prática, de significação particular, a prosa de Guimarães Rosa se construía como a mediação ela mesma, lugar de condensação da experiência vivida, “supressão de todo interlocutor” (Prado Júnior, 2017, p. 177), pois precede a linguagem gramatical. A linguagem, então, aparece menos como um sistema de signos que permite a comunicação entre sujeitos do que como um “elemento”, como um horizonte, solo universal de toda existência e todo destino. Não é o sujeito “falante” que dá a verdade da linguagem, mas aquilo que ele cala, discurso secreto e absoluto que está na raiz de todo e qualquer discurso explícito. (Prado Júnior, 2000, p. 196) Para Bento Prado Júnior, a literatura, exemplificada na obra de Guimarães Rosa, é capaz de falar pela forma o que a filosofia não pode falar pelo método, e não custaria nada aproveitar algo disso. 4.2 A novidade do ensaio Essa aproximação entre filosofia e literatura ainda precisaria atender à exigência de uma forma filosófica expressiva, que não estivesse presa às coagulações inerentes à filosofia entendida como sistema. Essa forma seria a grande novidade apresentada por Bento Prado Júnior à comunidade filosófica paulista: o ensaio. É claro que o ensaio enquanto gênero literário já existia há muito. A inovação ficou por conta de Prado Júnior ter encontrado uma forma de fazê-lo florescer no solo da especialização acadêmica que tinha se construído com base no intencional afastamento de conteúdos e formas prosaicas. Quanto mais avançou nessa ideia, tanto mais o nosso filósofo quis se aproximar da “poesia pura”, para usar um termo de Paul Valéry, que lhe era caro. Isto é, mais ele buscava teorizar – e agora isso significava construir uma forma ensaística expressiva – sobre uma linguagem não maculada pela intenção designativa, destituída das coisas mundanas e, por isso mesmo, capaz de iluminar o mundo na dimensão do que não cabe na gramática normativa. O que importa aqui, mais do que compreender as filigranas do argumento do filósofo, é perceber que Prado Júnior encontra, na esteira do método estrutural por meio do qual foi formado, um jeito de transformar a distância com relação ao mundo – a linguagem pura, no caso – em mergulho na experiência concreta. Bem ao estilo de quem entende que “pensar é jogar- se contra os limites da representação e subvertê-la” (Prado Júnior, 2004, p. 170). 13 Para ficarmos com a imagem a que o próprio autor recorreu, podemos dizer que Bento Prado Júnior queria expressar o que ele tentou mimetizar sob a imagem filosófico-literária do arabesco, propriamente a natureza paradoxal própria da literatura: “palavra silenciosa e verdade que não é do mundo: somente um arabesco no ar e (efêmera) estrela que arde apenas um instante, mas que pesa, no entanto, e que ilumina” (Prado Júnior, 2000, p. 217). Se ele conseguiu ou não, pouco importa diante do seu grande feito para a filosofia nacional: “simplesmente lhe devemos a invenção do ensaio filosófico paulistano” (Arantes, 1994, p. 176). TEMA 5 – MISSÃO CUMPRIDA? Diante da carência de uma filosofia própria, que era sentida em território nacional antes da Missão Francesa, a filosofia aqui produzida pelo menos pôde encontrar seu lugar junto às demais produções filosóficas internacionais – afinal, compartilhavam a mesma abordagem “tecnológica” dos sistemas filosóficos. Daí ser possível falar de um Bergson de Prado Júnior, ou de um Espinoza de Chauí, ou de um Hegel de Arantes, ou Heidegger de Benedito Nunes. São leituras dos clássicos da história da filosofia, que agora são lidos e interpretados por chaves de leitura de intelectuais brasileiros. Mais do que isso, hoje são leituras que rivalizam e influenciam a filosofia em discussão internacional, colocando a produção filosófica brasileira a par da produção mais avançada da filosofia ocidental. É certo, portanto, que a Missão Francesa foi um sucesso: talvez não pelo seu objetivo original junto às elites paulistanas, mas certamente com o legado que deixa para a filosofia em terras brasileiras. O que se pode chamar de “cultura filosófica no país” deriva, em grande parte, da semente plantada por Maugüé e cultivada não só pelos demais professores franceses que aqui desembarcaram, mas também, e especialmente, pelas gerações de estudantes brasileiros de filosofia que reproduziram e aperfeiçoaram o método entusiasticamente, podendo, inclusive, utilizá-lo para ultrapassá-lo, como o fez Bento Prado Júnior. Mas é preciso dizer, como vimos até aqui, que se toda essa confusão com que a filosofia chega e se instaura no Brasil problematizou grandemente a própria ideia de um pensamento constituinte nacional, uma filosofia brasileira, tal debate é por muito ultrapassado em sua linha temporal. Os problemas e a 14 realidade social que alimentavam a discussão filosófica até meados da década de 1980 no Brasil mudaram grandemente nos dias de hoje. Entre Getúlio, Kubitschek, nacional-desenvolvimentismo e os dias de hoje, passamos por uma ditadura militar, a instauração da Nova República, dois presidentes impedidos desde a redemocratização, além da criação e desenvolvimento (pela exportação do modelo uspiano e pelo antagonismo de outras escolas à escola uspiana) de várias faculdades de filosofia no Brasil. Se não podíamos afirmar sobre uma filosofia brasileira até a primeira metade do século XX, em pleno século XXI a valorização do pensamento e dos pensadores brasileiros nos mostra uma outra história. Se todo o processo de formação da escola uspiana começa com a importação do modelo e do pensamento francês, a missão a que se prestava certamente não foi cumprida – afinal, a elite paulistana que buscava tomar o poder de Getúlio não foi bem- sucedida em sua tarefa. No entanto, o legado da Missão Francesa se estende para além do próprio alcance direto que a missão possuiu. E que, hoje, volta-se em a voga a discussão de uma filosofia do Brasil deve ser o maior atestado do legado da missão. NA PRÁTICA A produção filosófica no Brasil é demarcada, hoje, por várias escolas e leituras fundadas em diálogo com a escola uspiana. Compreender o processo de surgimento da escola uspiana é compreender como a filosofia, a partir da segunda metade do século XX, começa a se disseminar e se desenvolver no Brasil. Trata-se de encontrar no passado as chaves de interpretação do presente. Tais chaves, mais do que abrir o presente, dão sentido a ele. Se hoje o ensino e a pesquisa em filosofia, seja na educação básica, seja na superior, se volta sempre ao diálogo com os clássicos da filosofia (na velha, eterna e sempre crucial pergunta: Por que ler os clássicos hoje?), muito disso se deve a um evento que ocorreu há quase 90 anos. Compreender o processo de fundação e formação da faculdade de filosofia da USP é compreender como e por que a filosofia é retirada como disciplina, durante a ditadura militar, da grade curricular do ensino básico; e também é compreender como,após seu retorno em 2009, todo marco teórico e metodológico para o ensino de filosofia na educação básica retorna à primeira 15 lição da velha cartilha ensinada por Maugüé aos primeiros alunos do curso de filosofia da USP em 1935. A história da filosofia é, senão a matéria-prima, certamente o instrumento indispensável para a prática filosófica. Se a filosofia é de alguma forma uma matéria que não se ensina; se, de fato e na prática, só se ensina a filosofar, não é senão pela leitura dos clássicos que tal feito é possível. No entanto, é preciso ir além da leitura de textos de outros tempos e outros lugares. Hoje é preciso (porque indispensável, e porque certeiro), por toda a convulsão social brasileira, a leitura não somente dos clássicos europeus, mas também dos latino-americanos, dos africanos e dos ameríndios. A educação filosófica no Brasil, mais do que um retorno a Kant, necessita também dialogar com as obras de autores brasileiros – de Cruz Costa a Chauí, de Safatle e Ribeiro a Arantes. Hoje os clássicos não são mais somente aqueles estudados nas décadas de 1930, 1950 ou 1960. Hoje, textos de autores como Paulo Arantes e Bento Prado Júnior, ou de autores indígenas, como Kopenawa e Krenak, ou Fanon, são os clássicos que devem compor uma história da filosofia no e do Brasil. FINALIZANDO Nesta aula acompanhamos o processo de formação, tal como descreve Paulo Arantes, de uma das principais escolas de pensamento e produção filosófica do país: a escola uspiana. Fundada em meio ao esforço da formação intelectual proposta pela elite econômica e política paulista, a escola uspiana de filosofia é o maior resultado do que examinamos até este ponto do curso. Trata-se da conjunção entre modernidade e marco civilizatório europeu, com o projeto de formação de uma cultura e identidade nacional. De Jean Maugüé a Gérard Lebrun, passando por nomes como Lévi- Strauss, Martial Gueroult e Michel Foucault, a Missão Francesa fundou um dos pilares do pensamento e da produção filosófica brasileira contemporânea. A escola uspiana é o resultado da conjunção entre a leitura minuciosa de textos clássicos da história da filosofia, trazida primeiro por Maugüé, e o pensamento estruturalista que surge no pós-guerra francês, disseminado por Gueroult e Granger, mas também por Goldschmidt, culminando em um dos maiores professores e pesquisadores em filosofia no Brasil, Gérard Lebrun. 16 Dessa convulsão surge, como o grande expoente da filosofia no Brasil, Bento Prado Júnior. Mais do que ler os clássicos europeus, Bento (agora tão íntimo para nós) funda uma filosofia pautada no diálogo direto com a literatura; um ensaísta que busca na linguagem da literatura brasileira a forma e o conteúdo de uma nova filosofia. Uma filosofia que dialoga com uma realidade tão propriamente brasileira, na qual, nas palavras de Noel Rosa, “Tudo aquilo que o malandro pronuncia/ Com voz macia é brasileiro, já passou de português” (1933). Assim, a Missão Francesa cria uma escola filosófica a partir da importação cultural, num misto de modernização e processo civilizador, conjunto com um desejo neofilista, e cujo legado é o estado da filosofia hoje no Brasil. Uma filosofia plural e difusa, hoje com várias influências e diálogos quanto pareceria impossível por aqui na década de 1930. Mais do que fundar um departamento francês do outro lado do Atlântico, a Missão Francesa fundou não a filosofia, mas a discussão filosófica acadêmica e popular no Brasil. 17 REFERÊNCIAS ARANTES, P. A filosofia e seu ensino. São Paulo: Educ, 1993. _____. Um departamento francês de ultramar. São Paulo: Paz e Terra, 1994. _____. Fio da meada. São Paulo: Paz e Terra, 1996. NÃO TEM TRADUÇÃO. [Compositor]: Noel Rosa. [Intérprete]: Francisco Alves. Rio de Janeiro: [S.n.], 1933. PRADO JÚNIOR, B. Alguns ensaios. São Paulo: Paz e Terra, 2000. _____. Erro, ilusão, loucura. São Paulo: Editora 34, 2004. _____. Ipseitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
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