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FUNDAMENTOS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA NO BRASIL AULA 2 Prof. Lucas Lipka Pedron 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula abordaremos a resposta que a filosofia formada pela Missão Francesa dá à questão da filosofia nacional; ou melhor, a filosofia nacionalista proposta por Cruz Costa. Nossa aula passará pela crítica de dois dos maiores intelectuais brasileiros dos séculos XX e XXI: Bento Prado Júnior e Paulo Eduardo Arantes. Ambos são pensadores do mesmo círculo intelectual uspiano, mas com formações bastante distintas. Enquanto Bento era muito mais próximo da epistemologia de corte predominantemente francesa – mas não exclusivamente dela –, Arantes é um pensador mais próximo da tradição hegeliana-marxista da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Apesar das diferenças, ambos se preocuparam e se debruçaram sobre problemas da cultura e política brasileira, e esta aula visa justamente mostrar um momento em que ambos discutiram sobre a filosofia no Brasil e a realidade nacional que a concerne: Bento com o artigo “O problema da filosofia no Brasil”, de 1969, publicado originalmente na Itália, pela Aut-Aut, Rivista di Filosofia e Cultura; e Paulo com o texto “Cruz Costa, Bento Prado Jr. e o problema da filosofia no Brasil – uma digressão”, de 1993, publicado no livro A filosofia e seu ensino. O primeiro tema de nossa aula trabalhará a caixa de ferramentas de Bento Prado Júnior. Isto é, analisaremos os conceitos e as percepções que embasam o pensamento e a prática filosófica proposta por ele. Tais conceitos e percepções depois serão usadas para compreender sua crítica à então chamada filosofia brasileira, de Cruz Costa e Vieira Pinto. O segundo tema segue, então, à crítica de Bento à filosofia nacionalista, articulando o primeiro tema com uma crítica filosófica de ordem prática e profissional. Como veremos, o problema de Bento passa por uma questão de método e abordagem profissional para a filosofia. O terceiro tema introduzirá o pensamento de Paulo Arantes e os principais princípios que norteiam sua prática profissional. Passaremos da sua abordagem hegeliana-marxista para a interseccionalidade proposta pela Teoria Crítica frankfurtiana; veremos então por que Antonio Candido era seu modelo de intelectual. No quarto tema, desenvolveremos a crítica de Paulo Arantes a Bento Prado Júnior em seu artigo, e também veremos a diferença na sua 3 abordagem quanto à crítica da filosofia nacionalista de Cruz Costa e Vieira Pinto. Por fim, no quinto tema, passaremos para alguns detalhes que complementam a oposição proposta por Bento e Paulo a Cruz Costa e Vieira Pinto, no enfretamento metodológico entre estruturalismo e existencialismo, e entre a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) – conflito permeado por disputas políticas, sociais e culturais que trará consequências para nossa compreensão do problema da filosofia no Brasil, tal como ela se constitui no país até meados do século XX e como pode aflorar na metade final do século para se constituir em diálogos internacionais no século XXI. TEMA 1 – BENTO PRADO JÚNIOR Bento Prado Júnior foi um dos intelectuais de maior destaque na história recente do Brasil. Aliava um rigor acadêmico e técnico em leitura a uma análise e produção de textos filosóficos impecável; ao mesmo tempo, foi um grande ensaísta, dotado de grande criatividade. Atuou na USP entre 1961 e 1969, sendo caçado pela ditadura militar e desligado do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da instituição paulista. Tornou-se professor do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 1977, e professor emérito da USP em 1998. É autor de inúmeras obras, com destaque para sua tese de doutorado Presença e campo transcendental: consciência e negatividade no pensamento de Henri Bergson, publicada também na França, além de Erro, ilusão, loucura: ensaios, e textos póstumos, como A retórica de Rousseau e outros ensaios, e Ipseitas. Faleceu em 2007, deixando como contribuição não apenas seus diversos textos sobre filosofia e artigos de jornal e revista, como também anos de dedicação como professor e orientador de toda uma geração de professores de filosofia que atuam hoje no Brasil. 1.1 O problema da filosofia no Brasil Analisaremos aqui o artigo “O problema da filosofia no Brasil”, de Bento Prado Júnior, publicado na revista italiana Aut-Aut, Rivista de Filosofia e 4 Cultura, em 1969. Ele começa com alguns questionamentos: há de fato uma filosofia brasileira, para se poder falar dela? Faz sentido pensar em filosofia com nacionalidade, ou isso seria contrário ao espírito universalista da própria filosofia? Como resposta, o autor nota que o que se entendia por filosofia brasileira até então sofria com dois preconceitos: o psicologismo e o historicismo. Psicologismo, segundo ele, é a ideia de uma filosofia como expressão de um pensamento nacional que permaneceria idêntico com o passar do tempo, isto é, um determinado modo de pensar que, independente da época, seria reconhecido como brasileiro. Já o historicismo seria a visão de que a filosofia, ao contrário, seria uma certa expressão de época, mas sem uma história própria. A conjunção de ambos os preconceitos dificultaria a diferenciação entre uma filosofia com nacionalidade, brasileira ou não, e uma mera ideologia. Em contraposição, Bento pensa um modelo para uma “filosofia brasileira” baseado na literatura brasileira por Antonio Candido. Para nosso autor, a investigação de Candido consegue mostrar a diferença entre expressões literárias e literatura de fato, sendo que a segunda produz um sistema articulado que ultrapassa a mera coleção de expressões literárias. Para Bento, haveria no Brasil expressões filosóficas, mas não um sistema filosófico de assinatura brasileira. E mesmo essas expressões seriam ainda muito superficiais perto de uma filosofia europeia. 1.2 Psicologismo Psicologismo é a concepção filosófica que coloca a psicologia como ciência fundamental; seria com base nela que todas as outras derivam. Assim, todas as formas científicas seriam expressões do espírito humano. Lógica, epistemologia, estética, metafísica e outras áreas do saber poderiam ser explicadas em seus fundamentos pela análise dos processos mentais dos seres humanos relativos a essas disciplinas. Essa concepção pode ser remontada a uma certa leitura que se fez de Descartes e sua epistemologia: tudo que o sujeito constitui são formas de pensamento, inclusive os sentimentos e afecções; e o critério para a verdade, entendida como certeza do sujeito, passa a ser a clareza e evidência. Assim, uma ciência que estuda justamente essa dimensão do sujeito, concebida como psiquê (alma ou mente), deverá ser, por assim dizer, a epistemologia originária. 5 O problema clássico apontado sobre essa abordagem vem do fato de que, nessa ciência, sujeito e objeto se confundem. Isto é, seria uma psiquê que, como sujeito de conhecimento, tem por ser objeto outra psiquê, tratada como objeto pela primeira psiquê, justamente por ser o sujeito do conhecimento. Ou seja, para o psicologista, tudo se passa como se a mente fosse transparente para si mesma, e ela pode reconhecer as formas do seu pensar e conhecer no seu processo de desenvolvimento, de modo direto, puro, sem projeções do próprio sujeito sobre si mesmo. Dessa impossibilidade de uma análise neutra do eu sobre si, os críticos exigem uma liberdade para as faculdades do espírito, e que o objeto de cada uma tem papel preponderante na sua formação. Outra questão que deriva dessa crítica é que, usando o psicologismo para explicar a formação de uma sociedade, o psicologista acaba por falsear a história, escolhendo arbitrariamente fatos que servem para compora visão do espírito no presente. 1.3 Historicismo Enquanto o psicologismo buscava reduzir tudo a fatos psicológicos e explicar a realidade com base na psicologia, historicismo é uma corrente de pensamento que estabelece uma diferença de natureza entre as ciências humanas e exatas, defendendo a ideia de que as humanas não devem se inspirar nem copiar os modelos de produção de conhecimento das exatas para trabalhar com suas questões. Para o historicista – que, num certo sentido, vai além do psicologista –, o ser humano é um ser histórico e, logo, é na história que deve buscar os fundamentos do desenvolvimento de suas possibilidades. Tudo que é humano seria possível de ser fundamentado historicamente: a sociedade, a política, as ideias, a economia, as artes etc. Num sentido mais radical, os próprios indivíduos – os sujeitos do psicologismo – não passariam de um vetor resultante de forças históricas. O primeiro problema que qualquer crítico do historicismo aponta é a possibilidade de liberdade dos indivíduos, pois, se são completamente levados por forças da história, como poderiam agir livremente? Mas o ponto que gostaríamos de destacar – e que vai ser o alvo da crítica de Bento – é que o historicismo carrega consigo uma visão da história como um progresso teleológico. Isto é, como se toda mudança na história ocorresse em vista de um fim posto de antemão. 6 Tal forma de concepção do mundo leva o historicista a cometer um erro muito similar ao do psicologista: olhar para a história e selecionar arbitrariamente os fatos para analisar somente o que lhe convém. Ele só considera como históricos os fatos que contribuem para confirmar a visão de mundo que pretende asseverar como verdadeira. Tanto o psicologismo quanto o historicismo acabam por falsear a história que pretendem contar, a fim de confirmar uma visão parcial da realidade por meio de uma seleção arbitrária de elementos que constituem o recorte ideológico da realidade com a qual operam. TEMA 2 – A CRÍTICA DE BENTO PRADO JÚNIOR À “FILOSOFIA BRASILEIRA” Diante desse dilema do pensamento nacional, Bento Prado Júnior se propõe a pensar uma formação da filosofia brasileira que escape dessas premissas claudicantes. O modelo a que Bento recorre é inspirado no livro Formação da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido. Muito além de crítico literário e professor da USP, e ao lado de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, entre outros grandes nomes, Candido foi um dos maiores pensadores e intérpretes do Brasil. Ainda que tivesse formação em ciências sociais e uma leitura marcada pela sociologia, elaborou suas pesquisas sobre literatura brasileira. E é justamente a ele que devemos uma visão das expressões literárias brasileiras como formadoras de uma literatura nacional consolidada, sistemática. O que chama a atenção na obra de Candido é a forma como ele consegue montar um quadro para a literatura brasileira sem partir de um ponto de chegada, que seria a situação atual dessa forma de cultura e de sociedade brasileira de sua época. Isto é, ele respeitou a forma histórica, o tempo próprio de cada obra e a forma como elas e seus autores se relacionavam internamente, produzindo um sistema capaz de dar forma a uma literatura brasileira sem o filtro do nacionalismo ou da realidade nacional. Assim, partindo de Antonio Candido e desse modelo de pensar a produção literária brasileira, Bento Prado Júnior direciona sua crítica às obras de João da Cruz Costa e Álvaro Vieira Pinto (analisadas anteriormente). Mas 7 tal crítica se direciona de maneira diversa, levando em conta também a dicotomia de perspectiva entre o psicologismo e o historicismo. Para Vieira Pinto, filosofia é a conversão de uma atitude ingênua para uma consciência crítica; mas, como observa Prado Júnior, a natureza dessa conversão proposta seria ética ou existencial, e não epistemológica. Sem definir um estatuto teórico para o que se pretende com “filosofia brasileira”, torna-se muito difícil distingui-la da mera ideologia. Há de se ponderar que uma ideologia pode ter valor filosófico, como no caso do marxismo, mas a superposição da psicologia existencialista em Vieira Pinto impede o distanciamento científico que a perspectiva marxista carrega. Assim, Bento considera que as complexidades de formular deliberadamente uma visão não científica de mundo se multiplicam no programa filosófico de Pinto. Bento critica também a intenção nacionalista desse programa, pois, se a consciência “autêntica” é uma consciência nacional, se a nação é um universal concreto, a essência da política emigra para o espaço que separa as nações, nas suas relações de dependência ou de contestação: esses “organismos” desconhecem toda contradição interna. Toda crise interna só poderá ser entendida como a interiorização da relação de subordinação que a nação suporta em relação ao exterior, e uma ideia como a de classe social não pode receber significação política essencial. (Prado Júnior, 1969, p. 8) O que Bento levanta contra Vieira Pinto – e em certa medida também contra Cruz Costa – é a crítica clássica ao nacionalismo como categoria política. Se é verdade que a nação é a realização máxima da política, isso direciona o debate ao choque ou confronto entre nações e a apagar, geralmente de forma simbólica e materialmente violenta, as contradições internas dentro da mesma nação ou Estado. Tal forma de compreender a política foi uma ferramenta fundamental na instauração dos totalitarismos do século XX. Não à toa, Pinto foi um dos intelectuais do movimento integralista brasileiro. A questão para Bento é que Pinto alia o universalismo hegeliano a um perspectivismo nacional, fazendo assim uma leitura contemporânea de Hegel eivada de existencialismo e marxismo. Desse caldo surge a ideia de nação como universal concreto para mim, dependendo, portanto, da finitude da consciência tal como compreendida pelo existencialismo sartreano e heideggeriano (duas influências de Vieira Pinto). No entanto, sob essa concepção, o universal concreto seria de fato a situação do pensador que compreende a realidade nacional em sua gênese histórica, como prescreve o 8 método materialista histórico marxista, e que pode, assim, encarnar uma perspectiva nacional. Politicamente, isso coloca o filósofo como um vanguardista da cultura nacional, único apto a dirigi-la, tal como a caricatura do rei-filósofo de Platão. De qualquer forma, a história do espírito nacional seria sempre vista pelo filtro do nacional-desenvolvimentismo. Ou seja, Pinto conseguiria unir ao mesmo tempo as deficiências de ambos os preconceitos (psicologismo e historicismo) a sua leitura da filosofia brasileira. Já em Cruz Costa, o que Bento identifica de mais problemático é uma teleologia entre um futuro esperado e o passado do Brasil – onde tal futuro proposto acaba por justificar todo o passado. Uma espécie de anacronismo ou justificação post factum, que recobre possíveis descontinuidades históricas e deixa de lado acontecimentos e interpretações que contradigam a visão de mundo meramente ideológica do autor, perdendo a objetividade de sua análise. Assim, para além da crítica à visão política nacionalista e seus perigos, há também, por parte de Bento, uma defesa da filosofia vista pelo ideal científico de neutralidade. Uma reflexão pura, que deve ser, por princípio, desinteressada em relação aos problemas práticos mais imediatos, ainda que esse princípio de neutralidade e desinteresse assuma um sentido equívoco: princípio como fundamento e como começo, pois é o início de uma reflexão que pode, em seu desenvolvimento, chegar ao trato dos problemas práticos. TEMA 3 – PAULO EDUARDO ARANTES Já tendo sido caracterizado como intelectual destrutivo, Paulo Arantes segue como um dos pensadoresmais ativos do Brasil e um dos maiores intelectuais marxistas da contemporaneidade, não só no Brasil como no mundo. Graduou-se em filosofia em 1967 na USP, e obteve seu doutorado em 1973 na Universidade de Paris X, com a tese Hegel e a ordem do tempo, publicada em francês, no original, e traduzido para o português por Bento Prado Júnior. É autor de uma vasta obra, com importantes contribuições ao estudo de várias áreas, em especial a literatura e a filosofia, com seus textos “O sentimento da dialética” e “Ressentimento da dialética”. Sua obra mais recente é a coletânea de ensaios e entrevistas O novo tempo do mundo, em que demonstra a incrível capacidade de pensar o sistema atual partindo do ponto de vista da periferia do capitalismo. 9 Atualmente é professor aposentado do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, coordena a coleção Estado de Sítio, da editora Boitempo, e colabora com a Escola Nacional Florestan Fernandes, centro de formação e educação popular do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Foi aluno de Bento Prado Júnior, a quem dirigiu diversas críticas, mas que, ao mesmo tempo, sempre se referiu como “mestre”, por quem nutria intensa admiração. Assim como Bento, além de sua obra e intervenções no cenário cultural e político do Brasil, é responsável pela formação de toda uma geração de professores de filosofia política. Um dos pontos de interesse nessa história é a vocação da USP no contexto da cultura filosófica nacional, de modernização do pensamento brasileiro. É na USP que os problemas da formação brasileira se tornam mais abrangentes: é a especialização no pensamento e a consequente transformação da filosofia em assunto, antes de tudo, acadêmico; com a ressalva de que a simples entrega ao tecnicismo importado não garante o encontro do assunto perdido. Essa busca na intersecção de outras fontes, como literatura, sociologia e história, costuma dar bons frutos. A USP, de certa forma, era fruto tardio de uma vocação que se instaura na filosofia a partir dos séculos XVII e XVIII pelo mundo ocidental – sua transformação em uma disciplina acadêmica cada vez mais restrita ao âmbito universitário, e menos interventora na cultura geral dos países. Além disso, temos o fato de a USP ter sido criada pela elite paulista para se opor ao getulismo e, sem dúvida, ecos dessa rivalidade são sentidos nas críticas ao nacional-desenvolvimentismo. Paulo Arantes, muito próximo da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, tinha na interseccionalidade de saberes o modo de construir uma crítica social concreta. Talvez a angustiante falta de assunto da filosofia brasileira, que convida sempre o pensador a começar do zero (e pensar em uma formação, como veremos no próximo tema), seja, em boa verdade, sintoma da tecnização acadêmica da filosofia no mundo, e não uma particularidade brasileira. Mas Arantes acredita ser possível ver, nesse movimento da cultura filosófica brasileira geral, um movimento análogo ao da vida intelectual de Antonio Candido: um elã de busca da identidade de sistema próprio, seguido de um acúmulo de conhecimentos técnicos e, por fim, a construção ou concretização do sistema intencionado de princípio. 10 Paulo Arantes articula um nacionalismo útil a uma crítica filosófica que dispensa esse particularismo da realidade nacional, mas sem deixá-la de lado. Ao concordar com a crítica de Bento sobre a falta de rigor conceitual das expressões filosóficas brasileiras, ainda ressalta que o tecnicismo conceitual uspiano pode não ser suficiente para criar algo como uma “filosofia brasileira” e pode nos condenar a “filósofos de rabeira” e eternos comentadores de textos europeus. Ele vê a trajetória intelectual de Antonio Candido (e ela mesma para além de sua obra) como um modelo para a filosofia que, de forma magistralmente dialética, consegue conjugar o impulso por um sistema da filosofia nacional com um apego crítico ao rigor conceitual e, juntos, abrem uma possibilidade para que algo como uma filosofia sistematicamente brasileira possa surgir. TEMA 4 – A REALIDADE NACIONAL Sob essa perspectiva, o nacionalismo de Cruz Costa, criticado por Bento, não seria tão superficial sob a ótica de Paulo Arantes. Possuía, é claro, uma dimensão basbaque, como todo “-ísmo”, que deixa a crítica de lado em alguns momentos em favor de um dogma. Mas possuía sobretudo uma dimensão importante como antídoto ao filoneísmo transoceânico que acometia o pensamento brasileiro e que, na prática, era tão ou mais prejudicial que o nacionalismo, ao se propor pensar a realidade nacional. Mais do que um simples nacionalismo simbólico, tratava-se de uma preocupação material com a realidade do Brasil. É bem verdade, também, que não era necessário ser um nacionalista stricto sensu para negar a neofilia e pensar a problemática da dependência e do atraso de um país do terceiro mundo como o Brasil. Porém, o nacionalismo de Cruz Costa fazia aparecer essas questões num meio sempre mais preocupado com o último filósofo da moda na França ou Alemanha, traço herdado de uma característica levantada pelo próprio Cruz Costa – a do conhecimento como distintivo de classe social. Um bom exemplo disso é o próprio Paulo Arantes: intelectual extremamente ativo, que se propõe a pensar o mundo a partir da periferia do sistema capitalista. Isso o faz transcender o nível nacional e o coloca como um dos grandes pensadores do mundo contemporâneo. 11 Vale ainda lembrar do espírito de época que com certeza marca Cruz Costa na esteira do Modernismo, da Revolução de 1930 e de todo o caldo cultural do país na primeira metade do século XX, voltado à construção de uma identidade nacional pós-colonial e pós-imperial. Mas, se Cruz Costa não tinha um método filosófico rigoroso e sistemático, a partir do qual entraria no exame da realidade nacional, tinha ao menos a determinação disciplinada de estudá-la e a clareza de sua importância. Paulo Arantes resume a situação de Cruz Costa da seguinte maneira: um pensador com um bom diagnóstico da situação, capaz de afastar as questões que lhe trariam problema, mas que ainda tinha uma enorme dificuldade no momento propositivo. Alguém muito capacitado em ler sua época a partir de uma chave de leitura, mas que não conseguia explicar o que lia com tamanha clareza. 4.1 A crítica à realidade nacional e a Bento Prado Júnior Cruz Costa parte de uma história das ideias do Brasil, isto é, das formas dominantes de pensamento no país de acordo com cada época. Essa história começaria com a nova escolástica portuguesa, filha da Reforma Católica do século XVI, que se tornaria uma forma de pensamento crítica e consciente de si, e propriamente brasileira, somente a partir do século XIX, e tomaria forma de uma filosofia já no século XX. Álvaro Pinto, de forma semelhante, faz uma história do Brasil nos moldes de uma fenomenologia do espírito nacional, mostrando como as formas de expressão da identidade brasileira foram se relacionando ao longo da história até chegarem no século XX, pós-colonial e pós-império, e se revelarem como a identidade nacional propriamente dita. No entanto, é impossível distinguir essas formas de pensamento nacional da mera ideologia. Porque, além dos preconceitos historicistas e psicologistas já apontados, ambas as expressões filosóficas estão comprometidas previamente com uma visão de mundo nacionalista. Tal proceder metodológico não só deturpa a história como desloca a discussão política para um campo nocivo: as experiências nacionalistas no século XX remontavam ao nazifascismo da Segunda Guerra, à ditadura do Estado Novo de 1930 e à ditadura militar de 1964. Foram essas experiências nacionalistas o componente afetivo que levou o pensamento político no Brasil e no mundo, principalmente depois da metade do século XX, a rechaçar a ideia de12 nacionalismo como perigosa. Por fim, essa tentativa de pensar um projeto ideológico de realidade nacional – a partir da qual surgiria a filosofia brasileira – era muito distante do rigor conceitual, de inspiração científica, que se cobrava da filosofia para que ela pudesse se profissionalizar. Para além de Prado Júnior, Paulo Arantes se debruça sobre a questão da filosofia na cultura brasileira. Para ele, Bento deixa de notar a pobreza das fontes a partir das quais pensavam Cruz Costa e Álvaro Pinto, apesar de toda a efervescência cultural da primeira metade do século XX no país, preocupada justamente em compreender o Brasil como país e a cultura brasileira como nossa identidade: época do Modernismo, das obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Caio Prado Júnior, o próprio Antonio Candido, e muitos outros. Tudo isso ocorre, vale lembrar, tendo como pano de fundo a política nacional-desenvolvimentista, modernizadora e nacionalista de Getúlio Vargas, e um desdobramento da política modernizadora e nacionalista da Primeira República. Mesmo assim, toda essa produção era ainda muito nova, e faltava tempo para sua crítica – o que formou uma percepção dogmática da identidade nacional em formação, influenciando os pensadores que seguiram essa esteira sem o aporte crítico que a filosofia exige. Tendo isso em mente, Paulo concorda com Bento sobre a tomada de Antonio Candido como modelo de historiador crítico das ideias no Brasil, até porque foi o próprio Paulo Arantes que alertou Bento Prado sobre essa possibilidade à época do artigo. Candido cumpriria muito bem sua missão de investigar a data de nascimento da literatura brasileira sem recair nos preconceitos historicistas e psicologistas que vitimavam nossos filósofos. Ele foi capaz de compreender a causalidade interna entre as obras de nossa literatura, mas também a originalidade de cada uma, sem recortar arbitrariamente a história para justificar seu ponto de vista atual. Isto é, ele colocou em prática uma visão da história que respeitava as expressões em suas relações com os fatos da cultura nacional. TEMA 5 – ESTRUTURALISMO, NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO, DIRIGISMO: USP CONTRA ISEB Paulo retoma a crítica de Bento a Vieira Pinto, lembrando a origem desta, o artigo de Gérard Lebrun, professor francês radicado na USP, em 13 colaboração com o governo da França. Na verdade, o artigo em questão, “A ‘realidade nacional’ e seus equívocos”, é uma reedição das críticas ao existencialismo, corrente de pensamento de origem alemã, cujos principais filósofos desse primeiro momento seriam Karl Jaspers e Martin Heidegger (ainda que este negasse pertencer a tal escola), inspirados por Agostinho, Pascal, Nietzsche, Kierkgaard, Dostoiévski, tendo grande repercussão na França, influenciando Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, entre outros, que pensavam poder conceber a cultura com base em ontologia e ética. Também à fenomenologia, de cunho husserliana e heideggeriana, para quem o objeto deve ser analisado em suas aparições para a consciência, isto é, em suas expressões de fato. Enfim, de certa forma se reinscreveu essa querela europeia – estruturalismo contra fenomenologia-existencial – no Brasil, sendo que o estruturalismo acusa de anticientífica e obscurantista a filosofia husserl- heideggeriana e sua prole, tão fecunda na França de Sartre e Merleau-Ponty. A crítica acaba por desembocar em nova crença: de que o estruturalismo era a superação do suposto obscurantismo fenomenológico-existencialista. O método estruturalista se opõe, de certa forma, ao modo como Vieira Pinto e Cruz Costa procediam: ao contrário de buscar a explicação da realidade em fatos expressos, o estruturalismo defende que tal explicação deve ser buscada nas relações subjacentes aos fatos mais do que nos próprios fatos. Isto é, as expressões do espírito no tempo não são tão reveladoras quanto as relações ocultas aquém e além dessas expressões. Não é por acaso que Bento recorre a Michel Foucault como contraponto da filosofia da realidade nacional. À época o pensador francês era visto como o maior expoente do estruturalismo, com sua teoria das epistemes exposta em As palavras e as coisas, defendendo que a história não é linear, mas repleta de descontinuidades, e que as expressões do espírito de uma época são frutos de relações de saber e discursos que subjazem ao próprio fenômeno. Vieira Pinto assumia declaradamente – talvez resquício do integralismo de juventude – a intensão dirigista da cultura para o filósofo. Ele fez parte da Ação Integralista Brasileira (AIB) na década de 1930, durante o Estado Novo, movimento político extremamente nacionalista e próximo do fascismo, e apesar de ter rompido com o movimento anos mais tarde, isso ainda permaneceu como uma mácula entre seus colegas intelectuais. Tal característica, somada 14 ao nacionalismo dirigista e à filiação existencialista do autor, causava ojeriza em seus colegas uspianos, refratários à institucionalização de uma forma de filosofar. Tal projeto de institucionalização era o que pretendia, em grande medida, o Iseb, uma espécie de escola de governo propagadora do nacional- desenvolvimentismo, do qual fizeram parte diversos intelectuais de renome do país. Foi criada em 1955 por Juscelino Kubitschek e extinta em 1964 pela ditadura militar, que exilou diversos de seus membros, dentre eles o próprio Vieira Pinto. Não é exagero dizer também que parte das motivações que levaram os filósofos uspianos a criticar Álvaro Pinto são de motivo não tão nobre: antagonizar o que o Iseb representava, especialmente naquele contexto. Tratava-se de uma instituição desenvolvimentista, de inspiração getulista – uma antítese do que a USP havia sido criada para representar: fundada pela elite paulista, sua função era se opor a Getúlio Vargas. Contra a vocação dirigista dessas expressões filosóficas nacionais, isto é, contra essa tentativa de transformar filósofos em historiadores de ideias – que passariam a ditar o que é a cultura brasileira propriamente dita –, o método de Bento Prado Júnior, como notará Paulo Arantes, será, pelo menos à época do artigo, o estruturalismo. Foi também o estruturalismo, aliado a um fazer de história da filosofia, que a Missão Francesa que ajuda a fundar o departamento de filosofia da USP trouxe na bagagem. Para eles, Álvaro Pinto recobre seu hegelianismo com existencialismo, o que geraria muito mais problemas do que soluções para seu modo de pensar. Bento faz referência em seu texto a um artigo de Gérard Lebrun, “A ‘realidade nacional’ e seus equívocos”, de 1961, e Paulo nota que esse artigo reproduz no Brasil as querelas que já aconteciam entre estruturalistas e existencialistas na França. O estruturalismo é um método, como já vimos, que busca uma explicação para seu objeto de pesquisa não apenas considerando as expressões históricas factuais que se relacionam com ele, mas também outras relações que não alcançam o nível de fatos consumados e que agem na formação do objeto de alguma forma, considerando, assim, a história também em suas descontinuidades e as relações destas com os objetos filosóficos em questão, evitando – segundo os próprios estruturalistas – que se forme uma visão parcial e ideológica da história, e aproximando a abordagem do pesquisador a uma maneira mais científica de ver a realidade. Nesse sentido, o 15 estruturalismo seria um antídoto contra os preconceitos historicistas e psicologistas, justificando a escolha de Bento por esse método, ao menos naquele momento. Por fim, se o apego à técnica refinada da filosofia, como abstração e crítica cultural desinteressada, garantia à USP certa dignidade metodológica e técnica perante o Iseb, também a afastava do meio político nacional em ebulição (do período democrático pós-Estado Novo, entre1945 e 1964), em uma participação mais efetiva. Porém, Antonio Candido via nesse espírito aparentemente desinteressado dos uspianos um apego à contemplação de problemas abstratos da teoria pura, um caldo de cultura que levaria ao exame crítico preocupado da realidade de forma mais radical do que aqueles expressamente propostos a pensar a realidade nacional. NA PRÁTICA É comum em nossa prática profissional na filosofia, seja na docência ou na pesquisa, nos depararmos com uma dificuldade de análise metodológica dos problemas que nos propomos a refletir, explicar e demonstrar. Esta aula busca problematizar justamente as consequências dessa dificuldade: quando o método para desenvolver a análise não é proposto de maneira dialética, a ser pensado na relação entre processo relacional entre sujeito e objeto, contemporizada e contextualizada para refletir e expor os problemas inerentes a toda escolha feita durante nossas exposições. Vimos essa questão no que Bento propôs como psicologismo e historicismo: dois preconceitos que permeiam e embasam os textos de Cruz Costa e Vieira Pinto. Mas também vimos na exposição de Paulo Arantes, ao mostrar o contexto de disputa epistemológica entre estruturalismo e existencialismo, algo que não aparece textualmente na crítica de Bento, mas é uma chave de leitura da realidade contextual, necessária para compreender os interesses e intenções não declaradas, e por vezes não conscientes, de toda leitura da realidade. Não se trata absolutamente de buscar uma metodologia que seja completamente imparcial e neutra, capaz de ler objetivamente todo e qualquer problema, situação ou relação sócio-histórica que se apresente ao filósofo. Trata-se de saber que tal metodologia, em especial para o trabalho da filosofia, é impossível. Conscientes dessa impossibilidade, podemos buscar uma 16 metodologia de pesquisa, exposição, escrita e docência que assuma os problemas contextuais inerentes a toda perspectiva. Trata-se de compreender que o filósofo é um ser inserido num mundo. Dotado de toda uma história, sua leitura da realidade nunca será pura nem objetiva. Aceitar a parcialidade de uma perspectiva nunca é um problema, desde que ela seja declarada, e a própria parcialidade seja exposta textualmente como problema. Cruz Costa e Vieira Pinto, ao propor leituras da realidade nacional, não o fizeram. Bento o fez parcialmente, mas ainda escondia, por trás de seu texto, as disputas epistemológicas e entre escolas – uma oposição sobretudo política entre a elite paulistana e a elite carioca (então capital do governo). FINALIZANDO Para Bento Prado Júnior e Paulo Arantes, as expressões filosóficas brasileiras não se coordenariam sistematicamente para podermos dizer que exista uma filosofia propriamente brasileira. Tal foi nosso problema nesta aula. Mesmo grandes expressões filosóficas, como as de João da Cruz Costa e Álvaro Vieira Pinto, sofreram com premissas bastante questionáveis do ponto de vista de uma análise conceitual mais rigorosa. Isto é, ambos os autores reconstruíam uma história das ideias brasileiras e da identidade nacional, escolhendo de maneira arbitrária as formas de expressão do espírito nacional e os fatos históricos de acordo com suas respectivas visões de mundo. Essa forma de trabalhar com a história falseia o presente e serve mais para que os autores em questão fundamentem um projeto de Brasil e de filosofia nacional do que para explicar uma realidade concreta, tal como ela se apresentava. Dessa forma, tanto Bento Prado Júnior quanto Paulo Arantes concordam que o modelo ideal para buscar tal filosofia nacional seria Antonio Candido, que conseguiu, na análise literária, mostrar como as expressões literárias brasileiras se articulavam, não apenas se influenciando diretamente, mas nas suas diferenciações também. Seu encadeamento monta um quadro sistemático de temas e modos de abordar esses temas que eram propriamente brasileiros e que foram se relacionando com o tempo até que, a partir do século XIX, passamos a poder falar de uma literatura brasileira propriamente dita. Isso não se passava com a filosofia. Havia, notam os autores, uma carência de assunto filosófico propriamente nacional, o que levava todo 17 pensador que quisesse formular uma filosofia brasileira a começar a pensar essa história do zero, mitigando relações entre as expressões filosóficas brasileiras. Isso, aliado a uma admiração pela novidade, principalmente europeia, tornava inexistente uma filosofia brasileira. Esta ainda não teria sua “certidão de nascimento” lavrada, como nossa literatura teve no século XIX, da forma como aponta Antonio Candido. Bento Prado Júnior e Paulo Arantes eram filósofos de formação uspiana, e isso contribuiu muito para sua visão crítica da tentativa de uma filosofia brasileira. Ainda que Cruz Costa também fosse formado pelo mesmo caldo que formou Bento e Arantes, isto é, a Missão Francesa na USP, seu caminho era muito mais próximo dos membros da cultura nacional ligados ao nacional- desenvolvimentismo. A USP, especialmente o Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, tinha uma vocação muito mais técnica do que criativa, por assim dizer. Sua preocupação era muito mais com o apego a um rigor conceitual e com uma visão da filosofia como uma contemplação “neutra”, de inspiração científica, do que com a do filósofo como projetista da cultura local. 18 REFERÊNCIAS ARANTES, P. E. Cruz Costa, Bento Prado Jr e o problema da filosofia no Brasil – uma digressão. In: ARANTES, P. E. et al. (Org.). A filosofia e seu ensino. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Educ, 1993. p. 23-66. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. CRUZ COSTA, J. Contribuição à história das idéias no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. LEBRUN, G. A “realidade nacional” e seus equívocos. Revista Brasiliense, São Paulo, n. 44, p. 43-62, nov./dez. 1962. PRADO JÚNIOR, B. O problema da filosofia no Brasil. In: Alguns ensaios: filosofia, literatura e psicanálise. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1985. p. 153- 171. VIEIRA PINTO, Á. Consciência e realidade nacional: a consciência crítica. Rio de Janeiro: Iseb, 1960a. _____. Consciência e realidade nacional: a consciência ingênua. Rio de Janeiro: Iseb, 1960b.
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