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A evolução histórica do patrimônio UNESCO

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Aluna: Mariana Alves de Almeida
A evolução histórica do patrimônio 
São diversas as concepções diferentes de patrimônio dentro do espaço multilateral que é a UNESCO. Embora tamanha vastidão de referências possa, em um primeiro momento, parecer enfraquecer a instituição, uma vez que esta trabalha com um campo tão variado e sujeito a interpretações diversas, a atuação da UNESCO demonstra que as noções de patrimônio internas a cada Estado evoluíram através dela para um nível internacional. Assim, a UNESCO possui um rico acervo de reflexões acerca do termo, baseadas em experiências nacionais de seus Estados-membro, que dão, portanto, forma e substância à política de patrimônio da organização (LANARI BO, 2003, P. 22).
A noção francesa de patrimônio 
Em geral, na concepção atual da palavra, entende-se por patrimônio, de forma vaga, como algo referente a bens e tesouros do passado. No entanto, o que se percebe é que 
“a pesquisa histórica revela existirem diferentes camadas de significados, relativas a estágios distintos nos quais a noção de patrimônio se desenvolveu” (LANARI BO, 2003) 
Tais estágios, por sua vez, têm direta correlação com a história da propriedade francesa (LANARI BO, P. 22). Nesse sentido, os autores Jean-Pierre Babelon e Andre Chastel, procuram explicar a sedimentação histórica da noção de patrimônio na França a partir dos seguintes eixos explicativos: o religioso, o monárquico, o familiar, o nacional, o administrativo e o científico. 
A primeira noção de patrimônio é a religiosa, referente à sacralidade incorporada aos objetos. Dessa forma, entende-se que a veneração funda o patrimônio, se estendendo, em seguida, ao espaço da igreja e a centros religiosos inteiros (Idem, P. 23). O patrimônio religioso, assim, se consolida no Renascimento, sobrevivendo à Revolução Francesa (idem.). 
No entanto, o que João Batista Lanari Bo observa é que a monarquia não poderia se sustentar sem fabricar sua própria noção de patrimônio. Assim, o conceito que, em um primeiro momento, surgiu necessariamente imbricado com a religião, acaba por evoluir para considerações de ordem cultural, sendo, então do âmbito do patrimônio monárquico as bibliotecas e arquivos e, posteriormente, monumentos e castelos, assim como as coleções de arte (LANARI BO, P. 23). O patrimônio monárquico, entretanto, não deixa de ser um patrimônio familiar, uma vez que representam os bens e propriedades reais (Idem, P. 24).
	No final do século XVIII, no entanto, a Revolução Francesa introduz grandes transformações na concepção de patrimônio, em especial no que tange à sua apropriação coletiva, uma das materializações do sentimento nacional que se forma no novo sistema político (idem.). Inaugura-se, assim, a noção nacional de patrimônio. 
“Com a Revolução Francesa (...) firma-se junto à noção de patrimônio a idéia de serem necessárias políticas públicas para preservar e valorizar os bens representativos da nação. Tal processo leva, no século 20, à consolidação dos instrumentos legais de proteção ao patrimônio, já agora classificado como bem público” (LANARI BO, 2003, grifo próprio).
No entanto, o que Lanari Bo observa é que, em seguida à transferência dos bens da coroa e do clero para a nação, houve a destruição ideológica de parte desses bens a partir de 1792, o que suscita uma rápida reação de defesa observada nos estágios administrativo e científico da noção de patrimônio, agora já consolidada. Nesse momento, o Estado e a sociedade buscam corrigir os problemas observados na administração do patrimônio durante o curto período histórico da Revolução Francesa (Idem, P. 25). 
	A percepção moderna de patrimônio tem início na distância histórica que o observador estabelece entre o mundo contemporâneo a que pertence e o passado do qual ele estuda apenas vestígios (idem.). Assim, se reconhece o valor histórico dos monumentos, cuja preservação enfatiza a continuidade do presente com as realizações de gregos e romanos na Antiguidade, por exemplo (Idem, P. 26). Nas palavras de Lanari Bo, “o patrimônio transforma-se em alegoria da História”. A modernidade, entretanto, acarreta também alguns riscos: os efeitos adversos do turismo começam a ameaçar a gestão do patrimônio, uma vez que, além de se reconhecer o patrimônio como ativo econômico, o expõe simultaneamente à depredação (idem.). Dessa forma, a preocupação atual quanto ao patrimônio está diretamente relacionada à questão da sua preservação frente à ameaça de autodestruição que as práticas patrimoniais per se representam.
A noção brasileira de patrimônio
A concepção brasileira de patrimônio está muito ligada à questão da identidade nacional, conceito esse associado ao repertório de traços culturais com relação aos quais os membros de uma nação se identificam, sendo, assim, “um conjunto de narrativas por meio das quais intelectuais nacionalistas e outras categorias sociais concebem a cultura brasileira enquanto um objeto permanente de desejo e de busca” (LANARI BO, 2003, P. 27). 
Os intelectuais de destaque no comando institucional do patrimônio brasileiro são Rodrigo Mello Franco de Andrade e Aloísio Magalhães, que buscavam escolher fragmentos da cultura brasileira para se preservar. Dessa forma, para eles, o conceito de patrimônio estava diretamente ligado à possibilidade de perda, sendo a mesma causa e efeito de sua proteção (idem.).
“Selecionar e salvar da perda e da degradação material fragmentos da história artística e arquitetônica, como é o caso do barroco brasileiro, significa eleger pontos de contato com o passado, de modo a permitir à sociedade contemporânea identificar-se e estabelecer uma continuidade imaginária com o conjunto patrimonial da cultura brasileira” (LANARI BO, 2003). 
Andrade e Magalhães, então, chegam a afirmar que a eleição de patrimônios e o seu consequente “tombamento” é um nome jurídico para essa possibilidade de perda (idem.). Nesse sentido, é importante citar o Sphan, criado em 1937, durante o Estado Novo, responsável pela institucionalização da prática do tombamento (Idem, P. 28). Visava-se, assim, segundo Lanari Bo, “a busca da identidade nacional por meio da preservação e da conservação do patrimônio físico”. Além disso, deve-se frisar que a noção de patrimônio brasileira é muito abrangente, abarcando desde obras de arte e arquitetônicas a manuscritos, fotografias e artefatos indígenas, conferindo também estatuto de patrimônio histórico e artístico nacional à produção cultural popular e afro-brasileira. Dessa forma, a concepção brasileira de patrimônio se afasta da perspectiva essencialmente monumentalista e sacralizadora, e também mais elitista, como a dos franceses (idem.). 
O conceito de patrimônio natural
A evolução do conceito de patrimônio natural esteve, durante muito tempo, associada à aspectos científicos das questões referentes ao meio ambiente (LANARI BO, 2003, P. 30). Assim, em um primeiro momento, eram esses aspectos os motivadores da sua proteção, aos quais foi acrescido, posteriormente, o valor simbólico do patrimônio natural (idem.). As primeiras iniciativas estatais de proteção à natureza remontam do ano de 1872, quando foi regulamentado o primeiro parque natural, Yellowstone, nos Estados Unidos (idem.). A UNESCO, por sua vez, fazendo uso de sua vocação interdisciplinar, desempenha um importante papel na convergência dos aspectos natural e cultural do conceito de patrimônio, como bem explicita os artigos 1 e 2 da Convenção do Patrimônio Mundial de 1972 (idem.). O que Lanari Bo explica é que “às preocupações com o meio ambiente juntaram-se os objetivos culturais de preservação”. Assim, fica claro que a proteção ao patrimônio natural na UNESCO não se restringe às preocupações científicas com o meio ambiente, como aquelas referentes à diversidade biológica, à preservação dos biomas e ecossistemas, assim como o combate à desertificação. A Convenção de 1972 enfatiza também a função simbólica da proteção ao patrimônio natural. Nesse sentido, a aproximação entre as noções de patrimônio cultural e natural tem sido objeto de discussãoem diversos países, fazendo surgir a percepção de que a paisagem é também um objeto cultural (Idem, P. 31). Nas palavras de Lanari Bo, ela “exibe, além dos atributos físicos, resultado de diversas ações humanas”. Em razão dessa evolução do conceito de patrimônio natural, agora muito imbricado a aspectos culturais, muitos sítios naturais incluem em suas propostas para inscrição na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO a presença de populações indígenas em harmonia com esse ambiente (idem.). Outro conceito que nasce dessa nova concepção de patrimônio natural é, por fim, o de cultural landscape, paisagens construídas pelo homem, segundo tradições culturais, como, por exemplo, as plantações de café em Cuba (idem.).  
Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural
	
A Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural foi assinada em 1972 na Conferência Geral da UNESCO em Paris. A Convenção começa, em seus artigos 1 e 2, por definir as noções de patrimônios cultural e natural a serem adotadas pela organização. Sendo o primeiro, o patrimônio cultural: 
“[...] os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico” (UNESCO, 1972, grifo próprio). 
E o segundo, o patrimônio natural: 
“[...] os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por conjuntos de formações de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; as formações geológicas e fisiográficas, e as zonas estritamente delimitadas que constituam habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas detentoras de valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural” (UNESCO, 1972). 
Pormenorizadas as concepções de patrimônio identificadas pela organização, a Convenção explicita que cabe a cada Estado-parte identificar, proteger e conservar o patrimônio cultural e natural que se encontra em seu território, reunindo esforços tanto com recursos próprios quanto por meio da cooperação internacional. Nesse sentido, apesar de os patrimônios delimitados nos artigos 1 e 2 se constituírem como patrimônios universais, a Convenção salvaguarda o respeito à soberania dos Estados em que se encontram tais patrimônios, ao mesmo tempo em que reconhece o dever da comunidade internacional em cooperar para a sua proteção, desde que solicitado pelo Estado em cujo território se encontra o referido bem. Para os fins da Convenção, entende-se, então, por proteção internacional do patrimônio mundial cultural e natural o estabelecimento de um sistema de cooperação e de assistência internacional, visando o auxílio dos Estados-partes nos esforços empreendidos, tanto no que diz respeito à preservação, quanto no que remete à identificação de tais patrimônios. 
A Convenção estipula também, por fim, um Comitê do Patrimônio Mundial junto à UNESCO, primeiramente, composto por 15 Estados-membros da Convenção, eleitos em Assembleia Geral por ocasião de sessões ordinárias da Conferência Geral da UNESCO, posteriormente à primeira sessão ordinária da Conferência Geral seguinte à entrada em vigor da Convenção, a quantidade de Estados-membro passou a ser 21. É importante ressaltar, ainda, que a escolha dos Estados-membro do Comitê deve respeitar a representação equitativa das regiões e culturas do mundo e, não obstante, os Estados-parte devem nomear como seus representantes pessoas qualificadas na área de patrimônio cultural ou natural. Além disso, é interessante observar que, em princípio, o mandato de cada Estado-membro do Comitê é de 6 anos, podendo, no entanto ser reduzido voluntariamente, como aconteceu em 2005, quando os membros eleitos na 15a Assembleia Geral resolveram limitar o seu mandato a 4 anos, visando dar a chance a outros Estados de participarem do Comitê. 
É de responsabilidade do Comitê, com base nos artigos 1 e 2 da Convenção, atualizar uma lista com os patrimônios mundiais culturais e naturais que julgue de valor universal excepcional, dentre os bens submetidos ao Comitê pelos Estados-parte da Convenção:
“[...] o Comitê estabelece, atualiza e divulga, sob o nome “Lista do Patrimônio Mundial”, os bens do patrimônio cultural e do patrimônio natural, definidos nos artigos 1 e 2 da presente Convenção, que considere de valor universal excepcional com a aplicação dos critérios por ele estabelecidos, e divulga a lista atualizada pelo menos a cada dois anos” (UNESCO, 1972, grifo próprio). 
	Assim, a inscrição de um patrimônio na referida lista tem como pré requisito o consentimento do Estado em que se encontra. No âmbito dos bens elencados na Lista do Patrimônio Mundial, é essencial lembrar também que existem aqueles que se encontram ameaçados - pelos mais diversos motivos, desde guerras, esquecimento, a erupções vulcânicas - e que devem ser acrescidos na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo, atualizada cada vez que as circunstâncias o exigirem. Nessa mesma lista constam também as estimativas de custo das operações de salvaguarda e assistência solicitadas nos termos da Convenção. Segundo o Artigo 13, parágrafo 8, “as decisões do Comitê são tomadas por maioria de dois terços dos membros presentes e votantes”. Vale ressaltar, no entanto, que a não inclusão de um bem do patrimônio cultural e natural em uma das duas listas não significa a ausência de valor universal excepcional.
	A Convenção estipula, ainda, a criação de um Fundo do Patrimônio Mundial a ser utilizado nas intervenções para a salvaguarda do patrimônio mundial cultural e natural, quando solicitado pelo Estado-membro em que o referido bem se encontra. Para tal, o Comitê estabelece uma ordem de prioridade de suas ações, levando em conta a importância dos bens, a necessidade da assistência internacional, a urgência e, principalmente, em que medida a proteção de tais bens poderia ser feita pelos próprios meios desse Estado. 
Os recursos do Fundo são constituídos pelas contribuições obrigatórias e contribuições voluntárias dos Estados-partes da Convenção; pelas doações de outros Estados, da UNESCO, por outros organismos do sistema das ONU ou outras organizações intergovernamentais, organizações públicas ou privadas ou pessoas físicas; pelos juros advindos dos recursos do Fundo; pelo produto de receitas das campanhas em favor do Fundo, e quaisquer outros recursos permitidos pelo respectivo regulamento elaborado pelo Comitê. 
“[...] os Estados-partes da presente Convenção comprometem-se a depositar regularmente, a cada dois anos, para o Fundo do Patrimônio Mundial, contribuições cujo montante será calculado segundo percentual uniforme aplicável a todos os Estados, por decisão da assembleia geral dos Estados-partes da Convenção (...). A contribuição obrigatória dos Estados-partes da Convenção não poderá ultrapassar, em caso algum, 1% de sua contribuição ao orçamento regular da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura” (UNESCO, 1972). 
A assistência prestada pelo Comitê, por solicitação do Estado-parte onde se encontra o bem em risco, finalmente, poderá se configurar das seguintes formas, de acordo com o artigo 22 da Convenção: 
“a. estudo dos problemas artísticos, científicos e técnicos levantados quanto à proteção, à conservação, à valorização e à reabilitação do patrimônio cultural e natural, conforme o definido nos parágrafos 2 e 4 do artigo11 da presente Convenção; b. disponibilização de peritos, técnicos e mão-de-obra qualificada para garantir a correta execução do projeto aprovado; c. formação de especialistas em todos os níveis na área de identificação, proteção, conservação, valorização e reabilitação do patrimônio cultural e natural; d. fornecimento de equipamento que o Estado interessado não possui ou não tem condições de adquirir; e. empréstimos com juros reduzidos, sem juros, ou reembolsáveis em longo prazo; f. concessão, em casos excepcionais e especialmente motivados, de subvenções não-reembolsáveis” (UNESCO, 1972). 
	Vale salientar, no entanto, que o Fundo não é, em princípio, a única fonte de financiamento dos programas de assistência internacional aprovados pelo Comitê. Como consta no artigo 25 da Convenção, as ações necessárias poderão ser parcialmente financiadas pela comunidade internacional, assim como a participação do Estado beneficiário de  tal assistência deve constituir uma parte expressiva dos recursos alocados para tal projeto, salvo quando sua situação econômica debilitada não o permita. 
Referências:
LANARI BO, João Batista. Proteção do patrimônio na UNESCO: ações e significados. Brasília: UNESCO, 2003. 
CONVENÇÃO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL. UNESCO, 1972. 
Eu, Mariana Alves de Almeida, autorizo a publicação deste trabalho por João Pedro Barretto no site Passei Direto (PD produtores).

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