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Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Ms. Marcio Nunes Revisão Textual: Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos As Virtudes da Engenharia • Introdução • As virtudes da engenharia • Fazendo a diferença: um caso de sucesso • Não está nos livros · O objetivo desta unidade é dar ao estudante a noção de que a engenharia é muito mais do que é ensinada nas escolas. Ela acrescenta ao indivíduo uma excelente capacidade de raciocinar logicamente, de pensar mais realisticamente. A maneira de pensar do engenheiro se diferencia da maneira de pensar da maioria das pessoas. Essa é uma das virtudes da engenharia. · Nesta unidade, é apresentado um diálogo entre um estudante de engenharia e outro de medicina. Pelo diálogo, é possível notar que o pensamento do futuro engenheiro é mais abrangente que o do médico. · Há também a descrição do comportamento de uma inventora britânica, Emily Cummins, que se dedicou a inventar objetos sustentáveis. · E há ainda um fato ocorrido com o autor, em que seu superior o enviou, mesmo recém-formado, para diagnosticar e resolver um problema que surgiu em um equipamento projetado pelo escritório de engenharia em que ambos trabalhavam. OBJETIVO DE APRENDIZADO Nesta Unidade, vamos aprender um pouco mais sobre um importante tema: “As Virtudes da Engenharia”. Então, procure ler com atenção o conteúdo disponibilizado e o material complementar. Não esqueça! A leitura é um momento oportuno para registrar suas dúvidas; por isso, não deixe de registrá-las e transmiti-las ao professor-tutor. Além disso, para que a sua aprendizagem ocorra num ambiente mais interativo possível, na pasta de atividades, você também encontrará as atividades de Avaliação, uma Atividade Reflexiva e a Videoaula. Cada material disponibilizado é mais um elemento para seu aprendizado; por favor, estude todos com atenção. ORIENTAÇÕES As Virtudes da Engenharia UNIDADE As Virtudes da Engenharia Contextualização A criatividade faz parte da vida do engenheiro. Mas nesta unidade você vai acrescentar mais um item ao seu acervo particular: a observação. Observar também faz parte da engenharia. O mundo foi construído a partir da observação de fenômenos e comportamentos e não é diferente na engenharia. Faz parte do papel do engenheiro observar a natureza, informar-se constantemente acerca do progresso das ciências e da evolução da humanidade. As soluções propostas pelos engenheiros em seus projetos têm muito a ver com isso. 6 7 Introdução Comentamos anteriormente que o engenheiro tem que ser criativo e que também não pode ignorar o meio ambiente. Além disso, dissemos que o engenheiro está bastante sintonizado com os problemas da sociedade, sendo, inclusive, essa premissa que conduz o trabalho do engenheiro. Falamos também um pouco da história da engenharia, dando-lhe uma ideia bastante razoável da participação do engenheiro no processo evolutivo da humanidade. Agora que você já tem uma ideia do que a engenharia representa para você, vamos abordar alguns fatos que poderão nortear sua conduta dentro da engenharia. Vamos falar sobre as virtudes da engenharia e também de seus desafios. Vamos também listar alguns casos de sucesso obtidos por engenheiros desconhecidos e que foram motivados pela vontade de ver acontecer. As virtudes da engenharia Vamos iniciar esta unidade apresentando um relato interessante sobre a conduta do engenheiro na sociedade abordada por Bowen, em seu livro Engineering Ethics: Outline of an Aspirational Approach (Ética na Engenharia: Esboço de uma Abordagem Vocacional). O estudo realizado por Bowen é bastante interessante sob o ponto de vista educacional, pois ele aborda problemas corriqueiros por meio de diálogos em seu livro. Ele inicia o texto com uma anedota sobre uma jovem com vocação acadêmica em matemática e que se inscreveu em um curso de engenharia, motivada pelo pensamento de que, como engenheira, ela poderia “dar uma contribuição para o bem-estar dos outros”. No entanto, após visitar a universidade em que tinha se matriculado, ela saiu com a impressão de que a engenharia era uma ciência mais voltada para o seu aperfeiçoamento técnico, ao invés de ser uma ciência focada em tornar o mundo melhor, e então ela decidiu desistir da engenharia e estudar medicina. BOWEN apresenta o tema utilizando uma abordagem em que a maior parte do texto é apresentada sob a forma de um diálogo entre duas pessoas, tornando a leitura bastante agradável. Aborda a questão da escolha da engenharia como profissão, além de enaltecê-la. É possível notar nos diálogos que a engenharia é uma ciência bastante abrangente, tornando-se assim uma profissão de importância fundamental no desenvolvimento das sociedades. Nesta unidade, vamos apresentar apenas um dos muitos diálogos do livro. Trata-se da conversa entre um estudante de engenharia e outro de medicina, onde é possível notar que existe a possibilidade de considerar que a engenharia pode se comparar à medicina como uma profissão em que as pessoas podem escolher se serão motivadas ou não pelo pensamento de que a sua profissão, e seu próprio trabalho individual, dará uma contribuição valiosa para a sociedade. Vamos ao diálogo: 7 UNIDADE As Virtudes da Engenharia Estudante de Engenharia: Estou cansado de tanto ouvir sobre a ética na engenharia nas palestras de que participo. Por que eles insistem tanto nesse assunto? Estudante de Medicina: Ora, simplesmente você está com sorte em ter palestras desse tipo no seu curso. Nós, médicos, temos muito mais ética ensinada em nossos cursos do que vocês. Na medicina nós temos problemas com o consentimento, com a confidencialidade, com o aborto e com a eutanásia. O que há para ponderar em ética na engenharia? Estudante de Engenharia: Não tenho a mínima ideia. Estudante de Medicina: No meu caso, se eu cometer um erro, alguém poderia morrer. No seu caso, talvez alguém pudesse se suicidar após receber um telefonema desonesto... (rindo). Estudante de Engenharia: O que? Você está “por fora”. Saiba que os engenheiros podem matar pessoas todos os dias, assim como os médicos. Aliás, aposto que os engenheiros matam muito mais pessoas do que os médicos. Pense em todas as armas existentes e que permitem realizar essa matança toda... Estudante de Medicina: Eu não havia pensado nisso. Pensando bem, talvez você realmente precise de ética para passar aos seus colegas a ideia de que não devem desenvolver mais armas. Estudante de Engenharia: Caso isso acontecesse, um bom número de médicos ficaria sem emprego, pois deixariam de atender às vitimas das nossas armas... Estudante de Medicina: Eu ficaria muito feliz com isso. Estudante de Engenharia: Mas há boas razões para a fabricação de armas. A menos que você seja um pacifista – e sei que você não é – então você concorda que há situações em que precisamos de militares. E eles têm que estar armados, de alguma forma. Estudante de Medicina: Talvez... Estudante de Engenharia: Mas nós não apenas matamos as pessoas com armas. Mais de um milhão de pessoas são mortas por ano por acidentes automobilísticos em todo o mundo. World Health Organization - Road traffic injuries: http://goo.gl/z2HB9t Ex pl or Estudante de Medicina: Mas isso não é da responsabilidade do engenheiro... Estudante de Engenharia: Eu não tenho certeza. Mas não se esqueça dos acidentes de avião, pontes que caem, desastres nucleares, acidentes, derrames de petróleo. Mesmo quando o médico tenta matar as pessoas, ele normalmente só mata uma dúzia cada vez. Um engenheiro pode matar centenas - ou milhares - sem sequer tentar! 8 9 Estudante de Medicina: Realmente. Em contraposição, nós somos modelos de virtude. Pense sobre isso, eu não consigo imaginar uma profissão mais virtuosa. Estudante de Engenharia: Tenho dúvidas disso. Quero dizer, claro, os médicos estão lá para ajudar as pessoas, mas geralmente você trabalha uma pessoa de cada vez. Nós podemos afetar a vida de milhões de uma só vez. Estudante deMedicina: Será que encontrar a cura da lepra, da tuberculose e da varíola não teve valor? E a invenção dos antibióticos? Qualquer um desses salvou milhares, senão milhões de vidas. O que é que a engenharia tem que se aproxime disso? Estudante de Engenharia: Ok, mas ainda continua sendo apenas uma pessoa de cada vez, porém em sequência, mesmo que o intervalo de tempo entre cada evento seja mínimo. No entanto, a engenharia não trata apenas de automóveis e armas. Pense na irrigação, que levou à drenagem de grandes áreas de terra dos Países Baixos, por exemplo, e a rega de outras áreas que antes eram estéreis. Sem engenharia, as pessoas ainda estariam usando fazendas medievais. Elas mal poderiam alimentar-se, e muito menos a todos os outros. Estudante de Medicina: Você sempre tem uma saída... Estudante de Engenharia: Mesmo no campo dos cuidados de saúde, eu aposto que os engenheiros têm um impacto maior do que médicos. Estudante de Medicina: Agora você forçou... Estudante de Engenharia: Nem um pouco. O British Medical Journal teve um voto em 2006 sobre o maior avanço na medicina, e você sabe do que se trata? BBC News - Sanitation ‘best medical advance: http://goo.gl/EHrRVX Ex pl or Estudante de Medicina: Antibióticos? Estudante de Engenharia: Não! Vou te dar uma pista. Não foi a classe médica que levou o crédito. Estudante de Medicina: Essa não sei. Estudante de Engenharia: Saneamento. Água limpa. Pense nos casos de disenteria que você terá que cuidar. Havia pessoas que morriam de doenças que já haviam sido erradicadas, em grande parte graças ao uso de vasos sanitários dotados de ducha higiênica; o contato da pele com água contaminada causava o problema. Além disso, pode-se considerar o notável avanço na tecnologia de construção, permitindo que as pessoas vivam ou trabalhem em casas de melhor qualidade, em vez de favelas; sem falar do avanço no desenvolvimento de aquecimento para as casas no inverno e do ar condicionado no verão. Há também melhores estradas e sistemas de transporte, graças aos engenheiros. Você pode rir de mim, dizendo que eu somente desenvolvo automóveis, mas os médicos nos dias de hoje dependem de 9 UNIDADE As Virtudes da Engenharia pacientes e remédios que chegam até eles por meio de ambulâncias e em veículos refrigerados, respectivamente. Você jamais poderia realizar um transplante de coração sem engenharia! Estudante de Medicina: Ok, ok. Entendi. Você pode fazer algumas coisas boas também. Estudante de Engenharia: E quem você acha que faz as válvulas cardíacas artificiais que você coloca nos pacientes? Ou os marca-passos ? Ou os quadris artificiais e joelhos ? Todos vêm de engenharia ! Estudante de Medicina: Ok, eu disse. Ok. Estudante de Engenharia: E não pense que os médicos podem levar todos os méritos acerca dos remédios! Somos nós também – os engenheiros químicos. E quanto ao futuro ? O que a medicina pode oferecer ? Estudante de Medicina: O céu é o limite. Agora que temos o genoma humano mapeado estamos chegando a uma melhor compreensão dos genes e assim podemos realmente olhar para os seres humanos e desenvolver técnicas para acabar com as doenças. Nós podemos ser capazes de erradicar completamente a doença geneticamente herdada, e prever com precisão a chance de uma pessoa de contrair câncer ou doença cardíaca, de tal forma que as pessoas poderão modificar seus estilos de vida e assim evitar o pior. As drogas e tecnologia que estamos desenvolvendo podem prolongar a vida e melhorar a sua qualidade. E você ? Estudante de Engenharia: Essas são algumas coisas muito boas, eu admito. Mas eles não são apenas brinquedos para ricos ? Quer dizer, quem se beneficia com eles? As pessoas ricas nos países ricos. O que você está fazendo para os pobres em países menos ricos ? A engenharia oferece soluções para países menos ricos através da concepção de poços baratos, proporcionando a irrigação e permitindo a construção de hospitais e sistemas de transporte. Estudante de Medicina: Sim, mas outros engenheiros gastam seu tempo trabalhando em carros de luxo e jatos particulares. E o que isso contribui para a população pobre ? Muito dinheiro é gasto no desenvolvimento de carros, aviões e outros dispositivos chamados de “suprassumos” da engenharia e que têm levado à confusão em que estamos com o clima do mundo. Isso é uma mancha muito grande na reputação da engenharia, eu diria. Estudante de Engenharia: Eu não acho que você pode culpar uma profissão pelas consequências não intencionais de suas ações passadas. Não conhecemos médicos que teriam sido responsáveis pelas mortes de pessoas que utilizavam sanguessugas nos tratamentos médicos do século XIII ! Estudante de Medicina: Não, mas há uma pequena diferença no espaço de tempo entre as sanguessugas medievais e poluidores do século XX. 10 11 Estudante de Engenharia: É justo. E eu aceito que os engenheiros ainda podem estar contribuindo para o aquecimento mundial por não encontrarem soluções com rapidez suficiente, continuando a produzir bens que pioram a situação. No entanto, caso não haja engenheiros para resolver o problema do aquecimento global, teremos que voltar a viver em casa de pau a pique e com a agricultura no quintal de casa... Estudante de Medicina: Então, a sociedade pagou para levar-nos a esta confusão e agora a sociedade deve pagar para sairmos dela? Eu acho que você perdeu a sua vocação - a política soa mais em seu lugar. Estudante de Engenharia Ha, ha. Seriamente, se quisermos manter nosso atual padrão de vida, a solução virá de engenheiros: parques eólicos, energia solar, mais veículos eficientes... somos nós que desenvolvemos essas tecnologias. Estudante de Medicina: Hmmmm.... eu não sei. Bom, que tal tomarmos uma cerveja ? Fazendo a diferença – um caso de sucesso O texto a seguir refere-se a Emily Cummins, uma inventora britânica ganhadora de vários prêmios, entre eles o Ten Outstanding Young People of the World, de 2010. Trata-se de um caso de sucesso reconhecido em engenharia. Neste relato, é possível notar que ideias simples podem fazer a diferença. Quando Emily tinha quatro anos, seu avô lhe deu um martelo e começou a lhe ensinar como fazer brinquedos a partir de materiais que encontrava em seu jardim. Ela começou a gostar do fato de poder fazer algo útil a partir de resíduos, e assim nasceu seu interesse em design sustentável. Seu avô lhe havia inflamado a criatividade. Em sua juventude começou a se informar sobre as propriedades dos diferentes materiais existentes e também a manusear vários materiais utilizando as ferramentas disponíveis na época, em sua casa. Na escola secundária começou a ganhar prêmios por seus projetos. O primeiro foi um distribuidor de creme dental para pessoas que sofrem de artrite - como o seu avô, por exemplo, que tinha dificuldades para espremer os tubos de alumínio na época. Emily utilizou um sistema de alavancas que espremiam os tubos de creme dental com um simples empurrão; essa simples inovação significava que não só seu avô poderia usá-lo para escovar os dentes, mas que qualquer outra pessoa que tivesse dificuldade para espremer praticamente qualquer tubo poderia se beneficiar do aparelho. Um dispositivo que no início foi projetado para distribuir creme dental para o seu avô acabou se tornando multifuncional e útil para uma diversidade de outras aplicações. 11 UNIDADE As Virtudes da Engenharia Figura 1 – O dispensador de creme dental projetado por Emily Cummins Fonte: emilycummins.co.uk Na esteira desse projeto, a escola em que estudava, a South Craven School, em West Yorkshire, na Grã Bretanha, decidiu encaminhá-la para uma competição nacional de engenharia, onde ela teve a sorte de ser um dos vencedores. Infelizmente, no entanto, ela não havia solicitado a patente do seu produto e assim perdeu todos os direitos sobre ele. Apesar de que isso tenha sido muito decepcionante, ela ainda mantinha grande satisfação em ver seu avô usando o distribuidor conformeinicialmente previsto e também se alegrava em saber que outras pessoas o estavam utilizando em contextos que ela nunca havia antes imaginado. Nessa época, então, ela decidiu que deveria construir mais produtos para ajudar as pessoas. Sua segunda invenção ajudou a tornar mais segura e eficiente as viagens das mulheres e crianças africanas, que muitas vezes andavam muitos quilômetros ao longo de um dia inteiro somente para buscar água em apenas um ou dois recipientes. Emily projetou um carrinho que permite que uma única pessoa possa transportar até cinco recipientes de água (o mesmo veículo também podia ser adaptado para transportar lenha ou outras cargas pesadas). O transporte de potes de água sobre as cabeças dessas mulheres fazia com que tivessem problemas nas costas, a longo prazo: quando isso acontecia, essas mulheres começavam a ensinar seus filhos a fazerem o mesmo, tornando-se um círculo vicioso. Seu projeto veio ao encontro desse problema e, além disso, foi concebido para ser fabricado na própria África, podendo criar assim novos postos de trabalho, permitindo que as crianças voltassem a frequentar a escola e melhorando a qualidade de vida das pessoas. Com esse produto, Emily foi indicada para o Prêmio Nacional de Design Sustentável e também teve a sorte de estar entre os vencedores. Em seu projeto de conclusão do curso na escola, Emily decidiu criar uma espécie de refrigerador portátil e sustentável, que pudesse ser alimentado por energia renovável. Construído a partir de sucata - tubos, peças sobressalentes para automóveis e materiais ordinários domésticos -, sem necessidade de eletricidade e destinado a ser alimentado com água não potável; esse projeto não era adequado 12 13 para o mercado do Reino Unido, mas era ideal para utilização em países do terceiro mundo. O “refrigerador” foi constituído por dois cilindros, um dentro do outro. Entre esses cilindros havia um material absorvente, como areia ou lã, que era encharcado com água. Quando o aparelho era colocado em um ambiente quente, a energia térmica fazia com que a parte exterior do dispositivo “suasse.” À medida que a água evaporava, calor era transferido do cilindro interior para o exterior, o que, por conseguinte, tornava aquele mais frio. Dentro desse cilindro interior eram acondicionados os produtos a serem conservados. O seu “refrigerador” sustentável constituiu-se em uma melhoria sobre o sistema que utilizava gelo ou outros líquidos mais frios, onde os produtos que eram armazenados entravam em contato direto com a água utilizada para arrefecê-los. Devido aos riscos de contaminação, apenas água potável - um bem bastante escasso em algumas partes do mundo em desenvolvimento - podia ser utilizada nesses refrigeradores. Além disso, apenas frutas, legumes e itens armazenados em recipientes herméticos podiam ser mantidos com segurança. Além de poupar a preciosa água potável, o aparelho de Emily também era higiênico e seco - o que permitia “refrigerar” uma maior variedade de produtos perecíveis, tais como carne e medicamentos, o que antes não era possível. Figura 2 – O refrigerador portátil sustentável projetado por Emily Fonte: www.emilycummins.co.uk Ela desenvolveu sua “geladeira” durante o tempo que esteve na universidade, porque desejava que a maior quantidade possível de pessoas pudesse construir seus próprios refrigeradores, e assim acabou doando os direitos do projeto para praticamente todos os municípios da África do Sul. Muitas mulheres nesses municípios estão produzindo refrigeradores a partir de sucata, não só para fornecer refrigeração em áreas onde esse bem não está disponível, mas também para capacitar mulheres para que possam se sustentar, visando, mais uma vez, a criação de postos de trabalho. Algumas pessoas questionaram Emily acerca da concessão livre de seus projetos, o que os tornava “open-source” – liberando-os para construção livre. Ela sempre respondia: “É simples: estou convencida de que essa é a coisa certa a fazer. Estou motivada pela necessidade humana, bem como pelos princípios de sustentabilidade, e os meus produtos nunca teriam feito a diferença que têm feito hoje se eu tivesse tomado o caminho egoísta e decidido fazer tanto dinheiro quanto possível. Como uma inventora, meu sonho é ver as pessoas se beneficiando de meus produtos. Eu sinto que comecei a conseguir o que me propus a fazer desde o princípio”. 13 UNIDADE As Virtudes da Engenharia Não está nos livros Nem sempre praticar engenharia significa cair em cima dos livros e efetuar cálculos monstruosos. Praticar a engenharia é também uma arte, sempre focada em um objetivo concreto. É isso mesmo. A engenharia tem literalmente “os pés no chão”. Enquanto os físicos brincam com seus experimentos e tiram conclusões acerca do invisível – nada contra o seu trabalho; ao contrário, as realizações da física são o combustível para a engenharia – os engenheiros constroem dispositivos utilizáveis. Veja o seguinte fato que ocorreu comigo, eu mesmo, o autor deste tópico. Na época em que isso aconteceu eu tinha apenas 25 anos e havia saído recentemente da escola de engenharia, onde passei quase seis longos anos e me formei em engenharia mecânica. Trabalhava há poucos meses em um pequeno escritório de projetos de engenharia, em que a quantidade de engenheiros não passava de cinco. Nessa época, o pessoal do escritório havia projetado um dispositivo denominado “flash dryer”, um tipo de secador, que era utilizado no caso em questão para secar caulim, matéria- prima muito utilizada na indústria química, de papel e celulose e farmacêutica. Trata-se de um pó branco, encontrado na natureza em algumas regiões do planeta. Quando o projeto foi concebido, eu ainda não trabalhava ali. Uma pequena empresa localizada no sul de Minas Gerais havia encomendado o projeto ao escritório e a construção foi entregue a uma pequena caldeiraria do interior do estado de São Paulo. O secador do tipo “flash” é um equipamento constituído por uma fornalha que produz gases em alta temperatura, uma tubulação longa para que a matéria úmida possa se secar (coluna de secagem), um ciclone separador, onde a matéria-prima é separada dos gases e recolhida para ser embalada e um ventilador que promove a exaustão dos gases. Há também um filtro para recolher as partículas mais finas que passaram pelo ciclone. Veja o esquema do equipamento na figura 3 a seguir. Figura 3 – Esquema do secador “flash dryer” Fonte: Acervo do Autor 14 15 Depois que o equipamento foi instalado e entrou em operação, surgiram alguns problemas. O caulim era alimentado constantemente entrando na corrente de gases quentes, pela parte inferior do aparelho. Em condições normais, o caulim úmido, ao entrar na corrente gasosa, era arrastado por ela, indo em direção ao ciclone separador, onde chegava com teor de umidade baixo e era recolhido para ser embalado e transportado. Porém, o proprietário do equipamento estava se queixando de que às vezes o caulim úmido não entrava na corrente gasosa e acabava caindo no fundo da coluna de secagem. Quando a quantidade de caulim que ali caía era pequena, ninguém se incomodava com isso; porém, quando a pilha de caulim úmido crescia, acabava bloqueando a passagem dos gases quentes, ocasionando o desligamento do queimador da fornalha, que é uma medida de segurança contra o sobreaquecimento. Como esse problema começou a ocorrer com relativa frequência, o proprietário se dirigiu primeiramente ao fabricante, que por sua vez se dirigiu ao escritório para obter uma solução para o problema. Após uma análise criteriosa do projeto, antes e após a construção, não foram encontradas evidências de erros pelo pessoal do escritório. Tudo estava de acordo com as especificações requeridas para o conjunto caulim-secador. Foi então que eu fui chamado pelo meu gerente para uma conversa. No início, achei que ele queria apenas me instruir acerca do seria um secador tipo flash, mas depois percebi que eleiria me enviar, sozinho, ao local onde estava instalado o equipamento, para uma verificação in situ. Fazia apenas alguns meses que eu havia me formado e aquilo me deixou um pouco preocupado, porém logo percebi que essa seria uma boa oportunidade para aprender um pouco sobre secagem. Nunca havia visto um secador desse tipo antes, e muito menos participado de um projeto. Aquilo era para mim algo completamente novo. Nem durante o período em que estive na escola fiz algum exercício parecido. Teria que investigar o assunto por minha própria conta. O gerente marcou a data da viagem para mim, que seria em um final de semana (lá ia eu perder um sábado e um domingo) e me entregou alguns instrumentos. Sua intenção era que eu fizesse algumas medições de vazão, temperatura e velocidade dos gases, corrente elétrica nos motores e também da umidade do caulim, antes e depois da operação. Para isso ele preparou uma maleta com vários instrumentos, incluindo um tubo de Pitot, manômetro de coluna inclinada, amperímetro e voltímetro, termômetro e um dispositivo estranho, parecido com uma garrafa térmica, de aço inoxidável, que servia para medir a umidade de material sólido granulado ou pulverizado, que eles chamavam de umidímetro. Nunca tinha visto tal equipamento. Então ele passou a me instruir sobre seu funcionamento: uma determinada quantidade da amostra de material era pesada e colocada dentro da garrafa, juntamente com uma ampola de vidro fechada que continha carbureto de cálcio em pó e duas esferas de aço dessas utilizadas em rolamentos. Fechava-se hermeticamente a tampa do aparelho, que possuía um manômetro tipo Bourdon no topo, e em seguida chacoalhava-se vigorosamente o aparelho, de forma que as esferas de aço quebrassem a ampola e o carbureto, sendo liberado, entrava em contato com o material úmido, cuja reação resultante produzia gás acetileno. Como a garrafa era hermeticamente fechada, o gás sob pressão acionava o manômetro 15 UNIDADE As Virtudes da Engenharia e a pressão final resultante era lida e seu valor comparado com os valores de uma tabela, de onde se tirava a umidade do material. Para outra medição, uma nova ampola de carbureto era utilizada. Na figura 4 a seguir pode ser visto um equipamento comercial semelhante àquele que eu utilizei nesse trabalho. Figura 4 – Medidor de umidade de material sólido pulverizado comercial Fonte: www.solocap.com.br No dia combinado para a viagem, o proprietário da empresa que construiu o secador veio até o escritório e seguimos juntos para o local, na sexta-feira à tarde. Assim, no sábado pela manhã iniciamos os trabalhos. Aqueles dias estavam frios e chuvosos. Quando chegamos, o secador estava trabalhando. Após observá-lo por alguns minutos, resolvi iniciar o trabalho executando algumas medições. Antes de sair do escritório, meu chefe havia me fornecido as principais especificações técnicas do equipamento: vazão, temperatura dos gases, umidade do material, etc. Comecei pela vazão. Com a ajuda do pessoal do construtor do equipamento, medi a vazão dos gases na coluna de secagem utilizando tubo de Pitot e logo constatei que estava de acordo com o valor de projeto. A temperatura dos gases também estava dentro dos limites. Apanhei uma amostra do material úmido e fiz minha primeira medição com o umidímetro. Para adquirir experiência com o aparelho, fiz três medições consecutivas e notei que também a umidade do caulim estava dentro dos parâmetros. Antes do meio dia comecei a ficar preocupado, pois o construtor esperava de mim uma resposta positiva para a solução do problema. Eu tinha que lhe dar algum retorno. Então fiz o seguinte: medi a corrente elétrica no motor do ventilador de exaustão e notei que estava abaixo da corrente nominal. Então pensei: “Bom, se está abaixo da nominal, o motor pode admitir um pouco mais de carga. Vou restringir a passagem dos gases, aumentando a velocidade dos mesmos na região entre o alimentador e a fornalha”. Essa medida poderia acarretar um pequeno aumento da potência consumida pelo ventilador, mas também poderia salvar o projeto. Desenhei uma espécie de “venturi” para ser inserido dentro da tubulação, com uma seção de passagem menor que a 16 17 original. Com isso, os gases quentes teriam sua velocidade aumentada nessa região, justamente por entravar o material úmido no secador (veja a figura 5 a seguir). A tensão foi grande; se não desse certo, não saberia mais o que fazer. Após o almoço o venturi estava pronto. O pessoal técnico do construtor instalou-o conforme eu havia solicitado e então iniciamos as medições de vazão, temperatura e corrente elétrica. A corrente estava dentro do limite; a vazão dos gases caiu um pouco, mas a velocidade subiu conforme esperado. Pedi para que iniciassem a produção e o caulim foi injetado no secador. Durante aproximadamente uma hora, tudo parecia que estava indo muito bem; não estava caindo caulim no fundo da coluna. Porém, depois desse tempo, começou a cair novamente, agora em um escala menor. Meu alívio durou pouco: em um dado momento, uma quantidade grande de caulim começou a cair, para meu desespero. A frustração foi grande. Sairíamos dali derrotados. Sem saber mais o que fazer, subi até a plataforma que era o local do equipamento por onde o caulim era injetado no secador. Fiquei observando atentamente por alguns minutos a maneira como o operador alimentava o secador. Ele utilizava uma pá comum de pedreiro, pegando o caulim a partir de um monte. O local era descoberto e não havia proteção contra intempéries. Havia chovido naqueles dias e o caulim que chegava nessa plataforma continha certo teor de água. Embora eu já tivesse medido esse teor, mesmo assim fiquei observando a operação. Foi então que me deu um estalo; então desci e fui pegar o umidímetro. Tomei duas amostras, uma da parte superior do monte e outra da parte inferior. Medi as duas. As medições comprovaram minhas suspeitas: o material da parte de baixo do monte estava com a umidade bem acima do limite máximo especificado para o caulim, pelo fato de a água migrar para baixo. Já era noite quando isso aconteceu. Chamei então o construtor do equipamento e lhe apresentei as conclusões. Todos no local aceitaram que essa era a causa do problema. Voltamos para São Paulo no domingo pela manhã. Figura 5 – Esquema da coluna de secagem Fonte: Acervo do Autor 17 UNIDADE As Virtudes da Engenharia Ao retornar ao escritório fui recebido por todos os engenheiros, que queriam saber como eu havia chegado àquela conclusão certeira. Eu lhes disse que nem eu mesmo saberia dizer, talvez a causa tenha sido o temor de que eu retornasse de lá frustrado por não solucionar o problema. Mas no fundo, posso dizer que muitas vezes a solução de um problema de engenharia não está nos livros, mas sim no próprio local onde ele acontece. Por meio da observação razoável e do bom senso, muitos problemas poderão ser resolvidos. Permaneci no escritório por mais quatro anos e nunca soube que o problema com o secador de caulim tenha retornado. Na planta, os operadores modificaram o sistema de alimentação, não mais pegando caulim de um monte, mas sim de uma prancha horizontal, onde o caulim era colocado previamente e com isso entrava mais seco no secador. 18 19 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Flash Dryer Animation Animação de um flash dryer: (ARC ANIMATION. Flash dryer animation. https://goo.gl/jqUEyS Sites Médicos e engenheiros são profissionais com nível superior mais bem pagos do Brasil. http://goo.gl/z8P1H6 Um dos inventos de Emily Cummins na África: Young inventor’s solar-powered fridge changes lives in Africa. http://goo.gl/icSEyj 19 UNIDADE As Virtudes da Engenharia Referências EMILY CUMMINS HOMEPAGE. Disponível em: <http://www.emilycummins. co.uk/>. Acesso em: 21 jul. 2016. BOWEN, W. R. Engineering Ethics: Outline of an Aspirational Approach. Editora Springer: UK - 2008. JCI UNITED KINGDOM.Ten Outstanding Young People of the World, de 2010. Disponível em: <http://www.jciuk.org.uk/ten-outstanding-young-persons/>. Acesso em: 21 jul. 2016. VANDENBURG, W. H., and KHAN, N. How Well is Engineering Education Incorporating Societal Issues. Journal of Engineering Education 83: 357-61, 1994. 20
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