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7ALÍPIO DE SOUSA FILHOEDITOR Gênero e SexualidadesESTUDOS GAYS Proposta Editorial Publicação semestral de estudos teóricos, pesquisas empíricas, ensaios e resenhas sobre as temáticas de gênero e sexualidade, com destaque para os estudos gays, lésbicos e queer sobre homossexualidades, lesbianidades, transexualidades. A revista publica igualmente trabalhos de teoria social, direitos humanos, cultura e política que dialoguem com a temática central. Bagoas : revista de estudos gays / Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. - V. 1, n. 1 jul./dez. 2007)- . - Natal : EDUFRN, 2007- . v. ; 23 cm. Semestral. Início: jul./dez. 2007. Editor: Alípio de Sousa Filho. Descrição baseada em: v. 1, n.1, jul./dez. 2007. ISSN 1982-0518 1. Ciências Humanas e Sociais - Periódico. 2. Sexualidades - Periódico. 3. Ética sexual - Periódico. 4. Ética moral - Periódico. 5. Homossexualidades - Periódico. I. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. II. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. III. Título. RN/BSE-CCHLA CDU 168.522:3(05) A revista tem registo no Sociological Abstracts Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Reitora: Ângela Maria Paiva Cruz Vice-Reitora: Maria de Fátima Freire de Melo Ximenes CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES Diretor: Herculano Ricardo Campos Vice-Diretora: Maria das Graças Soares Rodrigues EDITOR Alípio de Sousa Filho EDITORES ADJUNTOS Antonio Eduardo de Oliveira Durval Muniz Albuquerque Junior SECRETÁRIO EXECUTIVO José Eider Madeiros BOLSISTA DE APOIO TÉCNICO Glauber Vinícius ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO Laurisa Alves COMISSÃO EDITORIAL Anne Christine Damásio – UFRN Carlos Guilherme Valle – UFRN Cinara Nahra – UFRN Eduardo Anibal Pellejero – UFRN Elisete Schwade – UFRN Makarios Maia – UFRN Márcio de Lima Dantas – UFRN Maria das Graças Pinto Coelho – UFRN Rozeli Maria Porto – UFRN CONSULTORIA EDITORIAL Adriana Piscitelli – UNICAMP Adriana Resende Barretto Vianna – UFRJ Alessandro Soares da Silva – USP Alexandre Câmara Vale – UFC Daniel Welzer-Lang – Univerité Toulouse 2 – França David Foster – Arizon University – EUA Denílson Lopes – UFRJ Edrisi Fernandes – UFRN Emerson da Cruz Inácio – USP Eugênia Correia Krutzen – UFPB Fabiano Gontijo – UFPI Fernando Bessa Ribeiro – UTAD – Portugal Fernando Villamil – Universidad Complutense de Madri – Espanha Francisco Oliveira Barros Junior – UFPI Horácio Costa – USP James Noyle Green - University of Brown – EUA Joel Birman – UFRJ Júlio Simões – USP Laura Moutinho – USP Leandro Colling – UFBA Luiz Fernando Dias Duarte – UFRJ Luiz Mello de Almeida Neto – UFG Luiz Mott – UFBA Luiz Paulo Moita Lopes – UFRJ Lourdes Bandeira – UNB Marcos Antônio Costa – UFRN Márcia Aran – UERJ Maria Helena Braga – UFRN Maria Luiza Heilborn – UERJ Michel Maffesoli – Sorbonne – França Miguel Vale de Almeida – ISCTE – Portugal Miriam Grossi – UFSC Peter Fry – UFRJ Ricardo Barrocas – UFC Paulo Roberto Ceccarelli – PUC-BH Regina Facchini – UNICAMP Robert Howes – University of London – Inglaterra Rogério Diniz Junqueira – INEP Sérgio Carrara – UERJ Sonia Correa – ABIA Steven Butterman – University of Miami – EUA Severino João Albuquerque - University of Wisconsin – EUA Tânia Navarro-Swain – UNB Toni Reis – ABGLT Wilton Garcia Sobrinho – UBC REVISÃO Júlia Ribeiro Fagundes Oscar Maurício Gómez Gómez (para o Espanhol) PROJETO GRÁFICO Janilson Torres CAPA Janilson Torres (a partir da obra anônima "Master of the jardin de vertueuse consolation” - 1470-1475 d.c. - , na qual Bagoas é retratado, intercedendo por Nabarzanes, diante de Alexandre Magno. Visualize o original). EDITORIAL ARTIGOS A inversão sexual entre os Azande E. E. Evans-Pritchard Ser Queer Paul Goodman A homossexualidade perante a lei na França: do pós-guerra à “liberação gay” Geoffroy Huard de La Marre Identidades, cuerpos y educación sexual: una lectura queer Germán S. M. Torres Para uma análise sobre a incorporação de disposições normativas de prescrição dos corpos na contemporaneidade Juliana Perucchi Sexual inversion among the Azande Being Queer The homosexuality in front of the law in France: from postwar to “Gay Liberation” Identities, bodies and sex education: a queer approach Towards an analysis of the incorporation of body-regulating dispositions in contemporary times. 13 sumário 15 31 43 63 81 9 99 123 173 199 147 Para além de um kit anti-homofobia: políticas públicas de educação para a população LGBT no Brasil Luiz Mello Fátima Freitas Cláudio Pedrosa Walderes Brito O caso Geisy Arruda: representações midiáticas brasileiras sobre violências contra mulheres Rayani Mariano dos Santos Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa Giovanna Lícia Rocha Triñanes Miriam Pillar Grossi Para se pensar sobre a experiência transexual na escola: algumas cenas Dayana Brunetto Carlin dos Santos Da finada à europeia: experiências de ser, não permanecer e estar travesti na adolescência Tiago Duque A construção da homossexualidade no curso da vida a partir da lembrança de gays velhos Murilo Peixoto da Mota Beyond an anti-homofobic kit: public policies on education for the LGBT population in Brazil The Geisy Arruda case: Brazilian media representations of violence against women To think about the transsexual experience in education: some scenes From the deceased to the "Europeans": experiences of being, not continuing, and temporarily becoming a transvestite in adolescence The construction of homosexuality during life time before recollections of old gay men 223 253 281 309 351 331 Sexualidade e política: uma abordagem a partir do mercado e do consumo Isadora Lins França A homossexualidade no Brasil no século XIX Adailson Moreira De vigilias y sueños: los dibujos eróticos de Helga Montalván Francisco Zaragoza Zaldívar Uma cultura dos contatos: sexualidades e erotismo em duas obras de Gilberto Freyre Thiago Barcelos Soliva Rompendo com a binaridade masculino e feminino nas canções buarqueanas: um estudo de Folhetim e Tango de Nancy Roberto Gabriel Guilherme de Lima RESENHA CONFIANÇA E MEDO NA CIDADE ZYGMUNT BAUMAN Por Daniel Gonçalves de Menezes NORMAS Sexuality and politics: an approach related to market and consumption Homosexuality in the Nineteenth Century Vigils and dreams: the erotic drawings of Helga Montalván A culture of contacts: sexualities and eroticism in two works of Gilberto Freyre Breaking with the binarism masculine/feminine in the Chico Buarque's songs: a study of the “Folhetim” and “Tango de Nancy” 357 349 QUANTOS ARTISTAS PERDEREMOS MAIS? Este ano, a mídia noticiou caso de menino de 12 anos que se matou, em Vitória, vítima de bullying homofóbico na escola. Descrito como criança “alegre e sonhadora”, Roliver de Jesus teria sido continuamente vítima de agressões nas quais era chamado de “bicha”, “gay” etc. Véspera de carnaval, escreveu carta anunciando seu suicídio e enforca-se. Uma colega de Roliver declarou: “ele dizia que queria ser um grande artista”. Fatos assim não são raros no Brasil e em outros países. Para muitas crianças e jovens, a escola tem sido o lugar para o aprendizado do olhar do preconceito, do estigma e da injúria, seja para praticá-los contra outros, seja para suportar a violência de que se é vítima. Esse aprendizado muitas vezes ocorre simultaneamente com a aprendizagem da própria língua. Aprende-se muito cedo que se pode maltratar alguém com palavras e outros aprendem a carregarpor muito tempo (ou para sempre) as sequelas de insultos que funcionam como espécie de interdito à existência. Designados logo cedo por palavras como “bicha”, “veado”, “mulherzinha”, “sapatão”, meninos e meninas, confusos com os sentidos desses termos, vão tendo seus destinos sociais traçados, quando ainda eles pouco ou nada sabem de si. Destinos que podem variar muito: sorte quando são belos! Outros destinos atam alguns sobreviventes ao signo de sua vulnerabilidade psicológica e social produzida pelo estigma. A pergunta que cabe fazer é: por que razão o governo federal brasileiro deixou de implantar o programa Escola sem Homofobia, sendo o bullying homofóbico na escola tão corriqueiro e de efeitos tão perversos? Pergunta especial caberia à Presidente da República, Dilma Rousseff, que vetou o kit educativo contra a homofobia proposto pelo MEC: quantas crianças como Roliver de Jesus, com sonhos de serem artistas, poetas, escritores, filósofos, cientistas, médicos, arquitetos, juízes etc., perderemos mais, por suicídio ou assassinato, sem que nossos governantes promovam políticas educativas de combate à homofobia? O que mais governantes e gestores públicos esperam para se decidirem por corajosas políticas de enfrentamento às crueldades praticadas contras gays, lésbicas e transexuais na sociedade brasileira? 9 editorial 10 Como produto de uma educação social generalizada nas famílias e reforçada nas escolas e pelas mídias, a homofobia somente pode ser combatida por meio de uma contraeducação à educação homofóbica. Contraeducação crítica à ideologia da heterossexualidade como única via normal da sexualidade, estigmatizante da homossexualidade como anormalidade, disfunção sexual, desvio moral. Essa contraeducação não pretende ser “propaganda da homossexualidade” (como equivocadamente a Presidente da República falou à nação), mas crítica ao preconceito homofóbico e relativização de instituições históricas como a cultura da heterossexualidade, que, negando-se como invenção histórica, impõe- se como um fato natural. Aliás, se o assunto for propaganda, que dizer da heterossexualização da esfera pública por meio de outdoors, novelas, publicidades, canções, como uma espécie de reiteração social obsessiva da heterossexualidade como norma? Para aqueles que vivem o massacre do preconceito e da discriminação, decisões são esperadas dos governantes, em todos os níveis, que sejam portadoras da esperança que teremos uma sociedade sem homofobia amanhã. De governos que se apresentam como comprometidos com transformações, não se pode aceitar que permitam a chantagem política, de natureza religiosa ou outra, em nome da governabilidade, admitindo que atrocidades continuem a acontecer contra aqueles que o preconceito pretende isolar como uma maldita espécie sexual à parte. O Brasil não necessita apenas de desenvolvimento econômico, mas também de desenvolvimento cultural, intelectual, moral. Não o terá se continuar conservador e homofóbico. _______________________________ Na organização deste número, por colaboração dos autores que nos enviaram seus artigos e pelo trabalho de nossos consultores, conseguimos conjugar reflexões teóricas e metodológicas sobre as questões da homossexualidade, travestilidade e gênero nas suas diversas interfaces com outras questões sociais. Reunindo na mesma edição textos clássicos e textos que tratam de questões da atualidade brasileira e mundial, oferecemos às leitoras e aos leitores reflexões críticas sobre temas que constituem o foco da revista. Menção especial cabe fazer às traduções de Evans-Pritchard e Paul Goodman: a primeira, realizada por Felipe Bruno Martins 11 Fernandes e Dennis Wayne Werner, oferece a leitura em português de texto do antropólogo britânico que está entre os principais expoentes da fundação e desenvolvimento da antropologia; seu texto sobre a homossexualidade entre os Azande, como esclarecem os tradutores, “é citado como fundador de um subcampo da etnologia comprometido com os estudos de sociedades não homofóbicas”. A tradução publicada nesta edição tem a permissão da American Anthropological Association. O segundo, a tradução de Paul Goodman, é colaboração entusiasmada do tradutor Chico Guedes, que fez chegar a Bagoas texto do escritor estadunidense, um ensaio de 1969, pioneiro no uso político do termo queer antes que se convertesse, em resposta à homofobia, numa categoria acadêmica e do ativismo. A partir desta edição, a Bagoas estará disponível também no Portal de Periódicos da UFRN http://www.periodicos.ufrn.br/ojs, em continuidade ao princípio de ampliação do acesso ao conhecimento produzido nas universidades. Continuamos com o site http://www.cchla.ufrn.br/bagoas e com a versão impressa da revista, disponível à venda em livrarias e pelo nosso site. Que nossa alegria com a edição de mais um número da Bagoas seja também a alegria de nossas leitoras e leitores! Alípio de Sousa Filho Editor 12 Artigos 1 2E. E. Evans-Pritchard Antropólogo, Universidade de Oxford Tradução: Felipe Bruno Martins Fernandes Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e do Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária e Científica com o Brasil (CAPES/COFECUB) EHESS/Toulouse) complex.lipe@gmail.com Revisão: Dennis Wayne Werner Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Doutor em Antropologia pela City University de Nova York (CUNY) dennisww@redel.com.br École des Hautes Études en Sciences Sociales ( 1Inversão sexual entre os Azande Sexual inversion among the Azande 16 Resumo A relação homossexual masculina e feminina parece ter sido comum entre os Azande em tempos passados. Entre homens, essa relação era aprovada nas companhias militares de homens solteiros. Entre mulheres, a relação era descrita como frequente nas práticas em casas poligâmicas, apesar de altamente desaprovada. Palavras-chave: Sudão – região sul. Azande. Inversão sexual. Abstract Male and female homosexual relationship seems to have been common among the Azande in past times. Between males it was approved of in the bachelor military companies. Between females it is said to have been a frequent, though highly disapproved of, practice in polygamous homes. Keywords: Sudan – southern. Azande. Sexual inversion. 1 Publicação original: EVANS-PRITCHARD, E. E. Sexual Inversion among the Azande. American Anthropologist, New Series, v. 72, n. 6, p. 1428-1434, dec. 1970. Texto reproduzido com a permissão da American Anthropological Association (AAA). 2 Sir Edward Evan (E. E.) Evans-Pritchard nasceu na cidade de Crowborough/Inglaterra, em 21 de setembro de 1902, e morreu no mesmo país em 11 de setembro de 1973, na cidade de Oxford, poucos anos após ter recebido a honraria de cavaleiro, em 1971 (para conhecer este ritual britânico, veja LEACH, Edmund. Once a knight is quite enouch: como nasce um cavaleiro britânico. Mana, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, apr. 2000). Foi professor de Antropologia Social na Universidade de Oxford. Dessa geração de antropólogos, foi um dos primeiros a dar centralidade ao papel da experiência do pesquisador na pesquisa de campo antropológica, sendo reconhecido até os dias de hoje pelo racionalismo com o qual analisava sua entrada em campo. Um dos principais representantes da escola antropológica estrutural-funcionalista britânica, esse autor começou seu trabalho de campo dentre o povo Zande em 1926, defendendo sua tese de doutorado em 1927. Esse trabalho resultou no clássico Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (publicado em 1937). O texto que se segue é uma nota do autor sobre o trabalho com esse povo africano. Entretanto, essa nota foi publicada quase quarenta anos após sua escrita (1970) e em outro país, os Estados Unidos, no ano da primeira marcha gay em Nova York (celebrando a Rebelião de Stonewall, ocorrida em 1969), e quandoo tema das homossexualidades tinha finalmente sido liberado nas discussões acadêmicas naquele país. A tradução desse artigo surge da análise realizada por Walter L. Williams no verbete “Antropologia”, do Dictionnaire de l'Homophobie (TIN, Louis George. Presses Universitaires de France, 2003). No referido verbete, Evans-Pritchard é citado como fundador de um subcampo da etnologia comprometido com os estudos de sociedades não homofóbicas. O texto que se segue é visto por Walter L. Williams como uma grande contribuição para esse empreendimento. Evans-Pritchard é também autor de inúmeras outras obras, dentre elas a clássica monografia intitulada “The Nuer: A Description of the Modes of Livelihood and Political Institutions of a Nilotic People”, publicada originalmente pela Clarendon Press/Oxford em 1940 e traduzida para o português. É inquestionável que a homossexualidade masculina, ou melhor, a relação sexual entre jovens guerreiros e rapazes, era comum em tempos pré- europeus entre os Azande e, como assinalou Czekanowski (1924, p. 56), citando Junker (1892, p. 3-4), não há quaisquer razões para supor que a 3homossexualidade foi introduzida pelos Árabes , como alguns já pensaram. Todos os Azande que conheci bem o bastante para discutir esses assuntos afirmaram que a homossexualidade feminina (lesbianismo) também era praticada em casas poligâmicas em tempos passados e ainda o é no presente (1930). Este ensaio reúne informações sobre ambas as práticas e apresenta traduções de alguns textos sobre o assunto, coletados entre os Azande do 4Sudão há quarenta anos . Antes da imposição da regra do governo europeu, havia muitas disputas entre os diferentes reinos (EVANS-PRITCHARD, 1957b, 1957c). Parte da população masculina adulta de cada reino era organizada em companhias militares de abakumba, “homens casados”, e aparanga, “homens solteiros”. Essas mesmas companhias, para além das funções militares, serviam na corte de várias formas, inclusive os homens das companhias eram chamados para trabalhar nas lavouras dos reis e dos príncipes (EVANS- PRITCHARD, 1957a). No presente relato, não nos referiremos outra vez às companhias de homens casados. Fazia parte do costume das companhias de homens solteiros, alguns dos quais viviam em tempo integral nas cabanas do reino, tomarem rapazes-esposas. Isso era, sem dúvida, produzido pela escassez de mulheres disponíveis para o casamento nos tempos em que os mais ricos mantinham grandes haréns, o que só era possível para eles porque eram necessários muitos recursos para se obter uma esposa e esses homens tinham mais facilidade do que homens pobres para consegui-los. A maioria dos homens jovens, consequentemente, casava-se tarde, quando tinha em torno de trinta anos – e isso se devia ao fato de as meninas ficarem noivas (em um sentido legal, já casadas) bastante novas, muitas vezes, desde o nascimento. Dessa forma, a única maneira pela qual os jovens podiam obter satisfação com uma mulher era por meio do adultério. Entretanto, o adultério era uma solução muito perigosa para resolver o problema do jovem, em função da multa muito 17E. E. Evans-Pritchard n. 07 | 2012 | p. 15-30 3 N.T.: Evans-Pritchard refere-se às problemáticas dadas pelo nascente movimento homossexual na Europa, particularmente no final do século XIX e início do século XX, em um sentido muito semelhante àquele proposto por Borrillo (2010) com relação às ideias difundidas por inúmeras ideologias (nazismo, comunismo etc.), sempre se referindo à homossexualidade como uma prática do “outro”, remetendo assim a uma possível causa externa dessas práticas. Fonte: BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 4 N.T.: Levando-se em conta que a publicação original desse texto aconteceu no ano de 1970. alta que seu pai teria que pagar caso fosse descoberto – vinte lanças e uma mulher, o que significava, concretamente, o pagamento de duas mulheres ao marido. Algumas vezes, o marido ficava tão enfurecido que recusava a compensação e escolhia, em vez desta, a mutilação do ofensor, cortando suas orelhas, lábio superior, genitália e mãos. Assim, com o risco sendo tão alto, era comum aos solteiros cautelosos das companhias militares que viviam na corte, caso não se satisfizessem com a masturbação – prática que não era considerada vergonhosa, embora nenhum jovem a fizesse em público –, casarem-se com rapazes para, dessa forma, “satisfazerem” com eles suas necessidades sexuais. Um jovem de boa posição em sua companhia talvez pudesse ter mais de um rapaz (kumba gude). Para esses rapazes, seus companheiros guerreiros eram badiya ngbanga, “amantes da corte”. Acredito que o desaparecimento total dessa instituição em tempos pós-europeus mostra que o reconhecimento dessa união temporária entre um jovem e um rapaz era decorrente das dificuldades no passado de estes se satisfazerem com relações heterossexuais. É verdade que as companhias militares também desapareceram, mas os Azande atribuem (corretamente, ao que acredito) o abandono do costume ao fato de o casamento para jovens ter se tornado mais acessível e ao desarranjo geral da moral, incluindo a supressão das punições habituais nos casos de adultério e fornicação. O casamento entre rapazes era devido, como dizem os Azande, à zanga ade, “carência de mulheres”. Como pontuou um homem: “qual homem preferiria um rapaz ao invés de uma mulher? Ele seria um tolo. O amor por rapazes surgiu pela carência de mulheres”. Dessa forma, os Azande falavam do casamento entre rapazes como um kuru pai, “costume antigo”, ainda que eu não tenha escutado nenhum homem falar sobre dormir com um rapaz com desagrado – na pior das hipóteses, consideravam o costume como algo engraçado. Mesmo na minha época, os Azande falavam de um homem que antes foi o rapaz-esposa de algum guerreiro da mesma forma como nós, na Inglaterra, falamos de alguém 5que tinha sido o fag de alguma celebridade. Também é necessário esclarecer que, como na Grécia antiga, até onde podemos julgar, quando os rapazes- esposas cresciam e quando eles e seus maridos posteriormente se casavam com mulheres, passavam a ter uma vida normal de casados, como qualquer 6outro casal. Não havia os urnings que existem no sentido europeu moderno. 18 5 N.T.: Termo específico da época de publicação do artigo usado para referenciar uma espécie de “escravo” de um colega mais velho nas escolas particulares inglesas. 6 N.T.: Termo específico da época de publicação do artigo usado por Kraft-Ebing para homossexuais passivos convictos. O costume do casamento entre rapazes desapareceu antes de minha primeira visita ao território Zande, o que impossibilitou a observação direta. Dependo, dessa forma, apenas dos relatos sobre o passado, os quais eram unânimes entre os homens mais velhos. Tenho usado propositadamente os termos “esposa”, “marido” e “casamento” porque, como os textos a seguir deixarão claro, se tratavam de uniões legais nos modelos de um casamento normal (pelo menos enquanto durassem). O guerreiro pagava o preço da noiva (por volta de cinco lanças ou mais) para os pais do rapaz e realizava serviços para eles da mesma forma que faria se tivesse casado com uma das suas filhas. Caso ele provasse que era um bom marido, os pais então substituiriam o filho por uma filha. Também, se outro homem tivesse relações com o rapaz, ele poderia, como me contaram, processá-lo no tribunal por adultério. Os rapazes eram “mulheres”: “Ade nga ami”, eles diriam, “nós somos mulheres”. Um rapaz era chamado por seu amante como diare, “minha esposa”, e o rapaz o chamaria de kumbami, “meu marido”. O rapaz comeria fora da vista dos guerreiros da mesma forma que as mulheres não comem na presença de seus maridos. Os rapazes realizavam muitos dos serviços menores que uma mulher cumpria diariamente para seu marido, tais como a coleta de folhas para sualimpeza sanitária, a coleta de folhas para sua cama, a coleta de água, o corte de lenha, a ajuda no roçado das lavouras do pai de seu esposo e o fornecimento de mensagens e mantimentos cozidos de sua casa para a corte para complementar aqueles dados pelo príncipe, mas não cozinharia mingau para ele. No que diz respeito a esses serviços, o que devemos manter em mente é que um rapaz na corte não tinha a mãe ou as irmãs para cuidarem dele. Também o rapaz-esposa carregaria o escudo de seu marido quando a companhia estivesse em viagem. Deve ser entendido que ele realizava esses serviços a fim de que a relação não fosse pensada como inteiramente de natureza sexual, uma vez que deveria ser entendida como tendo um lado educacional. No que diz respeito ao lado sexual, à noite, o rapaz dormiria com seu amante, que manteria com ele, por entre as coxas, relações sexuais (os Azande demonstravam aversão à possibilidade de penetração anal). Os rapazes conseguiam o máximo de prazer que podiam ao friccionar seus órgãos na barriga ou na virilha do marido. De qualquer maneira, embora existisse esse lado da relação, era claro nos relatos dos Zande que também havia o conforto em compartilhar uma noite na cama em companhia. A palavra “rapaz” (kumba gude) aparentemente deve ser traduzida livremente, pois, a partir do que escutei, os mancebos deveriam ter entre doze e vinte anos. Quando deixassem de ser rapazes, eles adeririam às companhias de 19E. E. Evans-Pritchard n. 07 | 2012 | p. 15-30 guerreiros de seus ex maridos e tomariam por sua vez rapazes como esposas; dessa forma, o período de casamento era também um período de aprendizado. Não posso apresentar números de casamentos com rapazes, entretanto, posso afirmar que a prática era aceita e comum. Obtive listas com séries de tais casamentos de vários homens mais velhos, mas seria de pouco proveito tentar documentar tais séries com nomes, uma vez que já se passou muito tempo (65 anos após a morte do rei Gbudwe). Antes de apresentar os textos, há que se declarar ainda que alguns membros da nobreza reinante se envolviam em relações sexuais homossexuais. Normalmente, eram os filhos jovens de príncipes que permaneciam na corte até seus pais entenderem que era a hora de dar-lhes uma esposa e distritos para sua administração. Eles se mantinham distantes do harém de seus pais e tomavam rapazes plebeus como serviçais e para seu prazer sexual. Parece que o príncipe, por maior número de esposas que pudesse ter, também dormia eventualmente com um rapaz, em vez de ficar sozinho na noite anterior de uma consulta ao oráculo, uma vez que a relação sexual com uma mulher era um 7tabu nessas ocasiões . Era dito que “kumba gude na gberesa nga benge te”: “um rapaz não arruína o oráculo de veneno”. Fora isso, soube apenas de um príncipe sênior – deposto pela administração – que, apesar de ter muitas esposas, ainda dormia habitualmente com rapazes. Por essa e outras razões, ele era considerado pelos Azande como levemente louco. Ninguém deve tirar conclusões precipitadas, como Czekanowski fez sobre os registros de Junker a propósito dos rapazes que acompanhavam o príncipe Zande onde quer que ele fosse, pois todos os reis e príncipes são acompanhados por pajens, que eram tratados por seus mestres com notável indulgência, em contraste com o distanciamento severo com o qual seus superiores eram usualmente tratados. Texto coletado com Kuagbiaru (EVANS-PRITCHARD, 1963a, p. 277- 280), um homem muito conhecedor da vida da corte nos tempos passados, que foi um rapaz-esposa e, como chefe de uma companhia de guerreiros na corte de Príncipe Gangura, muitas vezes foi marido de rapazes: Antigamente os homens costumavam ter relações sexuais com rapazes da mesma forma que eles tinham com esposas. Um homem pagaria uma multa para outro caso 20 7 N.T.: Em sua monografia clássica sobre o povo Zande, Evans-Pritchard (1978) se refere a algumas interdições rituais para a consulta do oráculo de veneno, entre elas, a impossibilidade de o homem adentrar a consulta após ter mantido relações sexuais com mulheres (p. 179), porém, não faz referência à existência de práticas sexuais entre homens. Já no que tange às relações sexuais entre mulheres, o autor realiza algumas discussões e salienta que essas práticas são comuns nos haréns dos príncipes. Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. ele tivesse tido relação sexual com seu rapaz. As pessoas pediam a mão de um rapaz com uma lança, da mesma 8forma que pediam a mão de uma menina a seus pais . Todos os jovens guerreiros que estavam na corte, todos tinham seus rapazes. As cabanas dos homens jovens que ficavam ao redor da corte, todos os rapazes-amantes ficavam nestas cabanas. Eles construíam suas cabanas grandes e compridas e havia vários jovens em cada cabana, cada um em seu próprio lugar, juntamente com seu capitão. Seus rapazes-amantes também dormiam nas cabanas. Quando chegava a noite, eles acendiam o fogo em frente à cama dos maridos, cada um acendia um fogo em frente à cama do seu amante. Quando os jovens guerreiros começavam a ficar com muita fome na corte eles mandavam seus rapazes-amantes para a casa de seus pais [do rapaz] para buscar comida para eles. Os rapazes- amantes iriam à casa dos pais e retornariam com montantes agradáveis de mingau e galinha cozida, além de cerveja. Os parentes do rapaz o escoltariam [quando ele era casado] da mesma forma que eles escoltavam uma noiva [no seu casamento] para seu marido com muita comida boa. Entretanto, os rapazes não cozinhavam eles mesmos o mingau para seus maridos, eles cozinhavam mandioca e batata-doce para seus amantes. Eram as mães [dos rapazes] que cozinhavam mingau em suas casas, e ótimas carnes. Alguns cozinhavam galinhas. Eles juntavam toda essa quantidade de comida e levavam para onde estavam seus maridos. Todos esses jovens e seus amantes; não havia esquecimento dos rapazes de sua tarefa de prover comida para seus maridos. Mas o mingau que eles serviam a eles, eles escondiam parte da carne no meio do mingau para dar aos seus maridos, porque eles eram como 9esposas . Seus amantes não aprovavam que eles rissem alto como homens, eles desejavam que eles falassem suavemente, como falavam as mulheres. Quando todos os jovens guerreiros iam roçar as lavouras do príncipe cada um levava seu amor. Quando chegassem ao cultivo, eles construiriam uma grande cabana para seu 8 Um homem daria uma lança no momento de pedir a mão da menina em casamento como a primeira prestação do dote. No caso dos rapazes, a admissão da lança igualmente constituía um casamento legal. 9 No preparo de uma refeição para convidados, uma esposa Zande frequentemente guardava parte nos fundos para que seu marido pudesse, secretamente, ter uma segunda refeição quando os convidados fossem embora. 21E. E. Evans-Pritchard n. 07 | 2012 | p. 15-30 capitão e colocariam uma cerca ao redor. Nesse campo, cheio de rapazes, sendo de outra maneira o capitão ficaria sozinho. Então os jovens começariam a construir pequenos abrigos adjacentes à cabana do capitão, o acampamento ia longe, atravessando riachos. Mas todos os rapazes ficavam no cercamento que eles haviam erguido para o capitão. Quando anoitecia, os rapazes se dispersavam, cada um para a cabana do seu amante e acendiam ali um fogo para ele. Cada um ia acender o fogo na cabana de seu amante. Na manhã seguinte eles se encontrariam no cercamento do capitão. Nenhum jovem poderia entrar ali sem permissão. O capitão dava a eles a refeição atrás do cercamento. Apenas se o capitão estivesse bem disposto acerca de algum jovem guerreiro que ele o convidaria para entrar no cercamento e compartilhar a refeição com ele. Todos os outros nunca entrariam no cercamento; eles veriam seus amores à noite. Os jovens roçariam a lavoura até oanoitecer e então eles retornariam para o local de dormir. Os amores já teriam preparado a cama dos maridos e acendido o fogo para eles na cabana. Texto coletado com Ganga (EVANS-PRITCHARD, 1962, p. 16-17), um dos capitães das companhias de guerreiros do rei Gbudwe: Isso é sobre como homens se casavam com rapazes quando o rei Gbudwe era senhor de seus domínios. Naqueles dias, se um homem tivesse relações com a esposa de outro homem, o marido mataria ele ou cortaria suas mãos e genitais. Então por essa razão um homem costumava casar com um rapaz para ter orgasmo entre suas coxas, o que acalmaria seu desejo por mulheres. Se um rapaz era uma boa esposa para seu marido, cinco lanças seriam pagas por ele, e por outro, até dez lanças. Um marido que fosse generoso com seus sogros, eles lhe dariam depois uma mulher; dizendo que se ele era bom para um rapaz, seria melhor ainda para uma mulher. Se ele se casasse com uma mulher seus sogros se beneficiariam muito. Este seu menino, ele não toleraria ver outro homem perto; eles brigariam, e se levassem o caso diante do [rei] Gbudwe, Gbudwe disse ao homem que foi atrás do rapaz do outro que ele deveria pagar ao homem lanças [em compensação], uma vez que ele tinha ido atrás do rapaz do outro. Também existiam homens que, apesar de terem [mulheres] esposas, ainda assim se casavam com rapazes. 22 Quando a guerra eclodiu, eles levaram seus rapazes com 10eles , mas eles não levavam seus rapazes para o lugar da batalha; os rapazes ficavam atrás no campo, porque eles eram mulheres; e eles coletavam lenha para o marido e depenavam as folhas nzawa [para limpeza sanitária] e cozinhavam as refeições para quando seus maridos retornavam da batalha. Eles faziam para os maridos tudo o que uma esposa faz para seu marido. Eles buscavam água e a apresentavam para o marido de joelhos e eles pegavam a comida e levavam para eles, e o marido então lavaria as mãos e comeria a refeição e contaria para seu rapaz-esposa o que acontecera no campo de batalha. Até agora alguma coisa já foi dita sobre a homossexualidade masculina. E sobre o lesbianismo? Este também deve ser considerado como um produto, assim como a homossexualidade masculina, da poligamia em larga escala. Se a poligamia em larga escala excluía jovens homens do sexo normal, aquela condição de casas poligâmicas também impedia que as esposas, ou algumas delas, recebessem a quantidade de atenção sexual que elas desejavam de seu marido comum, que poderia muito bem ser um homem velho sem o vigor sexual da sua juventude. Apesar de os homens terem hábitos ligeiramente diferentes, pode-se dizer comumente que uma mulher que é uma de três esposas não dormiria com seu marido mais do que dez noites por mês, uma de seis esposas não dormiria com seu marido mais do que cinco noites por mês e assim por diante. Uma de muitas esposas de um príncipe ou de um plebeu importante no passado talvez não compartilhe a cama do marido com ele há mais de um mês ou dois. No caso de uma das dúzias, às vezes centenas, de esposas de um rei, ela poderia ficar totalmente privada de uma vida sexual normal para uma mulher de um lar comum. Relações sexuais adúlteras eram muito difíceis para as esposas de tais famílias poligâmicas tão extensas, pois estas eram mantidas em reclusão e cuidadosamente vigiadas; a morte na descoberta, ou até mesmo na suspeita, seria a pena para ambos, a esposa e seu amante. Era nessas famílias poligâmicas, como dizem os Azande, que o lesbianismo era praticado. Obviamente, não tive a possibilidade de saber disso através da observação, dessa forma somente posso dizer o que me foi contado (exclusivamente por homens, embora as mulheres admitissem que algumas praticavam o lesbianismo). As esposas esculpiriam uma batata-doce ou raiz de mandioca no formato de um órgão masculino, ou usariam uma banana para o 10 Relações sexuais com mulheres eram um tabu para os guerreiros em momentos de batalha. 23E. E. Evans-Pritchard n. 07 | 2012 | p. 15-30 propósito. Duas delas iriam então se trancar em uma cabana e uma delas se deitaria na cama e assumiria o papel feminino, ao mesmo tempo em que a outra, com o órgão artificial amarrado ao redor de sua abdômen, assumiria o papel masculino; então, elas inverteriam os papéis. As mulheres eram certamente desprivilegiadas na antiga sociedade Zande e uma indicação adicional da dominação masculina é que o que era encorajado aos homens era condenado entre as mulheres. Homens Zande, especialmente os príncipes, têm horror ao lesbianismo e o considera como altamente perigoso, sendo mais ou menos equivalente ao adandara, um tipo de 11parto em que as mulheres dão à luz gatos , como se acredita (EVANS- PRITCHARD, 1937, p. 51-56). Seria fatal se um homem visse uma dessas mulheres amamentando seus gatos. Escutei falar que alguns dos mais notáveis reis do passado – Bazingbi, Gbduwe, Wando e outros – morreram por causa das práticas lésbicas entre suas esposas. É inclusive alegado que na casa de Gbduwe uma de suas esposas mais antigas, Nanduru, uma velha senhora grisalha nos meus dias, executou muitas de suas coesposas devido a essa ofensa. Alguns Azande me disseram que o lesbianismo era muito praticado pelas filhas e irmãs da nobreza reinante, em cujas casas elas viviam relações incestuosas. O nobre reinante pode dar uma menina escrava a uma de suas filhas, que a ungiria e pintaria para que a escrava se tornasse atrativa e então se deitaria com ela. Além disso, os Azande falam que uma vez uma mulher comece a ter relações sexuais homossexuais ela provavelmente continua a mantê-las, porque ela então passa a ser senhora de si e pode buscar gratificação quando quer, e não apenas quando um homem resolve lhe gratificar, podendo a gratificação durar o tempo que ela desejar. Pareceria, se as afirmações Zande estão corretas, que a relação lésbica é produzida em primeira instância por um ritual simples. Quando duas mulheres são muito amigas, elas podem solicitar a formalização da amizade 24 11 N.T.: No apêndice III, intitulado “Outros agentes nefastos associados à bruxaria” (p. 293-298), Evans-Pritchard (1978) descreve outros agentes que podem ser considerados bruxos ou detentores das ações de bruxaria, entre eles alguns animais. Andandara, uma espécie de gato selvagem, é a mais temível das criaturas malignas classificadas como bruxas. Até mesmo sua possível aparição é temida pelos Azande, já que apenas olhar para esse gato pode causar a morte. Dessa forma, o gato macho tem relações sexuais com humanas que, a partir disso, ficam grávidas de outros gatos. Após a relação sexual com o gato, a mulher mantém relações com seu marido e fica grávida de crianças e gatos. No dia anterior ao parto, ela vai ao mato, com uma especialista, dá à luz o gato (que fica guardado em sua casa) e, no dia seguinte, a criança, sendo que ninguém fica sabendo do primeiro parto. Os Azande, segundo o autor, se referem ao lesbianismo como andandara, pois ambas são ações femininas que podem causar a morte de qualquer homem que testemunhe. Assim, o lesbianismo é considerado agourento pelo povo Zande e suas consequências são nefastas, não o ato. Evans-Prithcard (1978) relaciona esse mal provocado por andandara (lesbianismo e gato) com os malefícios das funções sexuais femininas. Fonte: EVANS- PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. através de uma cerimônia intitulada bagbaru, tendo conseguido a permissão de seus maridos para fazê-la. Um marido sente dificuldade de negar o consentimento, uma vez que essa formalização, normalmente, não significa o envolvimento de um elemento sexual. Uma das mulheres faz um pequeno presente para a outra, a outra então faz um presente de retorno. Elas então dividem um sabugo de milho e cada uma planta as sementes da sua parte do 12sabugo em seu jardim . Algum tempo depois, as mulheresexecutam várias tarefas mútuas e vão, de tempos em tempos, trocar alguns presentes. Entretanto, mesmo que um esposo consinta com a amizade, ele o faz geralmente com relutância, porque os homens Zande pensam que essa ligação de amizade entre mulheres pode claramente se configurar como um disfarce para intimidades homossexuais. Texto coletado com Kuagbiaru (EVANS-PRITCHARD, 1963b, p. 13-14): Entre os Azande muitas mulheres fazem o mesmo que homens. Muitas delas têm relações sexuais entre elas da mesma forma que um esposo faria. O lesbianismo começou com um milho cujo nome é kaima, um milho cuja espiga é vermelha como o sangue. Elas pegam essa espiga e proferem um feitiço sobre ela, da mesma forma que os homens proferem um feitiço sobre o sangue ao fazerem a 13irmandade de sangue , e quando isso é feito uma delas [dentre as duas mulheres] tem que segurar no topo da espiga e a outra segura na base da espiga que é sua parte e elas então quebram a espiga entre elas. Depois disso, elas não devem chamar uma a outra pelo seus nomes próprios, mas sim chamar uma a outra de bagburu. Aquela que é a esposa deve cozinhar o mingau e um frango e levá-los para aquela que é o esposo. Elas fazem isso entre elas várias vezes. Elas têm relações sexuais entre elas com batatas- doces esculpidas no formato de um pênis circuncidado e também o fazem com mandiocas esculpidas e também com bananas. No topo é como se fosse um órgão masculino. O esposo não gosta que sua mulher fique de conversa com outras mulheres. Ela bate em sua esposa da mesma forma que um esposo bate em uma esposa no caso 12 O ritual corresponde à troca de sangue entre homens. Sugiro que o ritual feminino é uma cópia do uso do sabugo de milho vermelho-sangue (EVANS-PRITCHARD, 1933). 13 N.T.: Segundo Evans-Pritchard (1978), irmãos de sangue são indivíduos não aparentados que estabelecem uma aliança especial por um pacto em que o sangue é o símbolo. Opõe-se em inúmeros aspectos à relação entre irmãos consanguíneos. Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 25E. E. Evans-Pritchard n. 07 | 2012 | p. 15-30 de mau comportamento, como no caso de sair com um homem. Entretanto, quando Gdbuwe era vivo, ele era muito contrário a qualquer coisa que tivesse a ver com lesbianismo. Texto coletado com Kisanga (EVANS-PRITCHARD), um homem com amplo conhecimento dos costumes Zande: As mulheres se encontram e uma diz para a outra, “Oh, minha amiga, você, por que não gosta de mim, amor!”. A outra responde, “Oh, Senhora, minha amante, por que eu deveria te querer mal?”. A primeira fala, “Senhora, venha depois de amanhã que eu tenho uma pequena coisa pra lhe dizer”. Ela replica, “oh, Senhora, o que é isto que você não me fala agora? A menos que você me diga agora não poderei sobreviver a noite esperando para saber!”. Então uma fala para a outra, “Senhora, estou profundamente apaixonada por você. Oh senhora, como deveremos gerenciar esse horrível esposo?” “Hm! Oh, Senhora, será que eles mantêm essa guarda toda sobre uma mulher!”. “Ahe, Senhora, vamos bolar uma artimanha. Você vem depois do meu esposo e nós faremos um pacto de amizade amorosa (bagburu) entre nós e ele pensará que é só uma amizade entre mulheres, e assim Senhora você poderá me dar prazer”. Ela acrescenta, “Amanhã cedo você venha com um pequeno presente para ele”. Na manhã, bem cedinho, ela pega um presente, como uma lança, e vem visitar o esposo em sua casa. Ela fala para o esposo: “Então, você escutará com atenção o que eu venho lhe dizer?”. “Senhora, diga o que a Senhora veio fazer em minha casa”. “Eh, Senhor, é sobre minha amiga, mestre. Eu disse a mim mesma, Senhor, que eu viria perguntar ao príncipe sobre ela. Eu não sou um homem que poderia lhe enganar com uma mulher”. Ele então diz, “Eh, Senhora, pode ser que eu consinta”. “Oh, Senhor, por sua cabeça! Oh, Senhor, por sua cabeça! Permita que eu tenha a mulher, Senhor. Eu vou moer farinha para ela, e se ela estiver doente eu vou apanhar lenha para ela”. 26 14“Primeiro eu preciso consultar os oráculos, Senhora . Penso que devo primeiro consultar os oráculos”. “Eh, Senhor, está recusando a sua mulher? Será que ela é um homem?”. “Tudo bem, Senhora, você deixa a lança e vai para sua casa que eu pensarei no assunto”. Ela esfrega o solo diante dele [agradece a ele] dizendo, “Oh, meu mestre, eu vou sozinha entre as pessoas, Senhor!”. Então ela vai para casa. Ela dorme duas noites e então ela mói farinha e ela retorna com farinha e mingau. Quando ela aparece no caminho sua amante corre ao seu encontro: “Oh, meu amor, Oh, minha amiga, Oh, Senhora você não veio hoje?”. Ela coloca a farinha e o mingau ao lado no terreiro. Ela pega um banquinho e coloca para ela se sentar. O esposo fala amuado: “Você veio, minha amiga?”. “Sim, Senhor”. “Senhora, me deixe em paz estou sentindo frio hoje”. Elas pegam a comida dele e a trazem. Ele está embaraçado. “Menina, derrame água sobre minhas mãos”. Sua esposa pega água e derrama sobre suas mãos. Ele diz, “Senhora, isso é bom, senhora, isso é bom”. Ele tira um monte de mingau. Ele se emburra e continua emburrado, dizendo para suas filhas, “agora então peguem e levem para as crianças”. “Ahe, Senhor! Uma pessoa traz sua comida e um homem não está bem – essa comida não deve ser dada para outrem, não deveria esta comida ser guardada para que ele a coma em outro momento?”. “Hm! Eh, mulher, como uma pessoa pode argumentar com um pai dessa maneira!”. Elas o enganam. “Oh não, Senhor, eu não estou discordando nada, Senhor”. 14 N.T.: Evans-Pritchard (1978) argumenta que a explicação dos infortúnios entre os Azande se dá em torno da noção de bruxaria, que se transforma em uma causa indireta para relatar determinadas dificuldades cotidianas. Dessa forma, a consulta a oráculos é uma ação rotineira na cultura Azande, sendo o oráculo de veneno um dos principais e mais certeiros, responsável pelas acusações de bruxaria. São os oráculos que fornecem elementos para a interpretação dos indivíduos quanto aos possíveis malfeitores (bruxos) de seus infortúnios. Evans- Pritchard (1978) coloca ainda que os oráculos são meios para impor comportamentos (p. 76), bem como que a função de bruxaria envolve juízos morais (p. 88). Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 27E. E. Evans-Pritchard n. 07 | 2012 | p. 15-30 28 “Senhora, eu não estou me sentindo bem hoje, hoje não é um bom dia para mim. Devo retirar-me”. “Ele! Espia só, que esposo desagradável esse meu, Senhora, que personagem antipático!”. A esposa coloca água diante de sua amante da mesma forma que ela faria se fosse seu [homem] marido. Ela tem seu pênis em sua bolsa – ela leva o pênis com ela onde quer que ela vá. Elas esculpem uma batata-doce na forma de um pênis circuncidado. A mulher-esposo faz um furo ao longo da batata-doce e então amarra a batata-doce com corda em seu lombo para que ela fique como um homem. Ela se lava com água e unge a si mesma com óleo. Enquanto isso o esposo está comendo sua refeição na cabana de sua esposa mais velha. Ele diz a ela, “Oh, Senhora, como você já está comigo há tanto tempo e você nunca me fez sofrer. Minha esposa, isto que eu estou vendo, você vê também?”. “Não, Senhor, mas tenho uma ideia sobre isso. Não estou certa das coisas, Senhor! Eh, Senhor, como você é um homem, em um caso como este, porque você não escuta o que ela tem a dizer para satisfazer a sua mente?”. Ele tosse: “tudo bem, essa minha morte de que elas estão falando, vou até o fim”. As duas mulheres se levantam para se deitarem no chão, porque na cama seus movimentos fazem muito barulho. A esposa do homem diz: “Aquele meu esposo desagradável, é capaz de ele tentar armar uma cilada para pegar as pessoas na cabana!”. “Se ele o fizer elevai morrer se ele vir isso. Madame, não se fatigue pensando sobre assuntos de mulher, você verá o que acontece”. “Deixe-nos fazer o que estamos prestes a fazer. Somente pare de falar do meu esposo”. Ela faz com que ela fique quieta ao apertar sua cabeça sobre ela enquanto ela obtém o prazer de seu amor. O esposo chega e se inclina sobre o alpendre e ele escuta os sons delas dentro da cabana, ele escuta o movimento dentro da cabana, como dizem “Oh, meu irmão, Oh, minha querida, Oh, meu esposo, Oh, Senhora”. Ele entra na cabana e quando elas o veem elas se levantam do chão. Ele agarra sua esposa e fala (para a outra mulher): “Oh, minha amiga, você me matou. Pensei que você tivesse vindo em minha casa com boas intenções, mas pelo que vejo é minha morte que você traz”. Então ele chama sua esposa mais velha: “Amante, venha ver o mal que me atingiu – esta mulher, eu a peguei junto com sua companheira...”. “Heyo! Meu esposo! Você me chama para ver uma relação de mulheres – suas esposas podem ser muito maliciosas, Senhor”. “Eh, mulher, nós dividimos uma casa com você em conversa-dupla (sanza). Então vocês estão todas mobilizadas pelo desejo de minha morte!”. “Opa! Sai fora e não fale comigo – é a minha culpa que você tenha caminhado e entrado na cabana?”. Talvez deva incluir na conclusão desta nota que não estou sugerindo de forma alguma que a pederastia e o tribadismo são explicados pelas condições sociais, como essas obtidas com os Azande. Evidentemente, não o são. O que é certamente explicado, dada a plasticidade libidinosa, são as formas institucionais prevalentes na sociedade Zande e as atitudes (masculinas) direcionadas a elas. 29E. E. Evans-Pritchard n. 07 | 2012 | p. 15-30 30 Referências BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. CZEKANOWSKI, Jan. Forschungen im Nil-Kongo Zwischengebiet. Leipzig: Klinkhardt & Biermann, 1924. v. 2. EVANS-PRITCHARD, E. E. Some Zande texts. Kush, 11, 1963a. ______. The Zande royal court. Zaire, v. 5, p. 495-511, 1957a. ______. Vernacuar text: manuscript. Oxford: Institute of Social Anthropology, [s.d.]. (Zande text collection). ______. Witchcraft, oracles and magic among the Azande. Oxford: Clarendon Press, 1937. ______. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. ______. Zande blood-brotherhood. Africa, v. 6, p. 369-401, 1933. ______. Zande border raids. Africa, v. 28, p. 217-232, 1957b. ______. Zande texts: part 1. Oxford: Oxonian Press, 1962. ______. Zande texts: part 3. [s.l.]: [s.n.], 1963b. p. 1-43. ______. Zande warfare. Anthropos, v. 52, p. 239-262, 1957c. JUNKER, Wilhelm. Travels in Africa. London: Chapman and Hall, 1892. 2 1Ser queer Being queer Paul Goodman 2 Sociólogo, poeta e escritor estadunidense Tradução: Chico Moreira Guedes Bacharel em Letras pela UFRJ, professor de inglês, estudioso de idiomas e tradutor fdguedes@gmail.com 32 Resumo Paul Goodman faz um balanço de como a homossexualidade afetou a sua vida pessoal e profissional e as suas relações com o mundo acadêmico, intelectual e literário da sua época. Reflete também sobre as implicações políticas, sociais e afetivas de uma atividade homossexual intensa e promíscua, ou da sua repressão, nos Estados Unidos da metade do século XX. Palavras-chave: Queer. Nigger. Homossexualidade. Liberdade. Preconceito. Repressão. Universidade. Literature. Pacifismo. Abstract Paul Goodman gives an account of how homosexuality affected his personal and professional life and his relationship with the academic, intellectual and literary world of his time. He also reflects on the political, social and emotional implications of an thintensive and promiscuous homosexual life in mid-20 Century USA. Key-words: Queer. Nigger. Homosexuality. Freedom. Prejudice. Repression. University. Literature. Pacifism. 1 Escrito e publicado pela primeira vez em 1969, três anos antes da morte do autor, por encomenda da revista WIN, órgão de imprensa da organização pacifista War Resisters League, para uma edição dedicada ao tema da homossexualidade. A tradução aqui publicada foi fruto de uma solicitação feita a Chico Guedes por Jonathan Lee, produtor e diretor do documentário Paul Goodman Changed My Life, lançado nos EUA em outubro de 2011. 2 Paul Goodman nasceu na Cidade de Nova York em 09 de setembro de 1911 e morreu em 02 de agosto de 1972 em uma propriedade rural no estado de New Hampshire. Sociólogo, poeta, escritor, crítico literário, e intelectual militante, Goodman é principalmente lembrado como o autor de Growing Up Absurd, best-seller sobre educação e delinquência juvenil, publicado em 1960, e como ativista pacifista, líder da nova esquerda norte-americana na década de 1960. Inspirador do movimento de jovens contra a Guerra do Vietnã, Goodman escreveu também sobre planejamento urbano e modelos para vida em comunidade, além de ter sido cofundador da Terapia Gestalt nas décadas de 1940 e 1950. A liberdade e naturalidade com que Goodman, que era casado e pai de três filhos, tratava publicamente – em escritos e nas suas falas públicas – da sua vida homossexual intensa tornou-se um dos mais importantes pontos de partida para a emergência do movimento de liberação gay nos anos 1970. Em maneiras essenciais, minhas necessidades homossexuais me 3tornaram um nigger . No sentido mais óbvio, tenho sido submetido, é claro, à brutalidade arbitrária de cidadãos e da polícia; mas, fora ter sido derrubado uma vez ou outra, me livrei sem grandes problemas nesses casos. Tenho um bom faro para confusão incipiente e costumava ter pés ligeiros. O que me torna um nigger é que não se pressupõe que meu impulso para abordar alguém seja um direito meu. Então fico com a sensação de que essa não é minha rua. Não reclamo de minhas cantadas não serem aceitas; ninguém pode reivindicar ser amado (exceto crianças pequenas). Contudo, eu sou menosprezado pelo fato em si de dar cantadas, por ser eu mesmo. Ninguém gosta de ser rejeitado, mas há uma maneira de rejeitar uma pessoa que lhe concede o direito de existir, que só fica abaixo de sermos aceitos. Eu raramente desfrutei desse tratamento. Allen Ginsberg e eu uma vez chamamos a atenção de Stokely Charmichael para o fato de sermos niggers, mas ele nos desconsiderou sem pestanejar, dizendo que nós poderíamos sempre esconder nossa disposição e passar despercebidos. Ou seja, ele nos concedeu a mesma falta de imaginação que normalmente se concede aos negros; para ele, nós não existíamos verdadeiramente. É interessante que esse diálogo tenha se passado na TV nacional britânica, esse bastião do sigilo. Mais recentemente, desde a formação do Gay Liberation Front, Huey Newton, dos Black Panthers, deu boas-vindas aos homossexuais à revolução, por serem igualmente oprimidos. 4Em geral, na América, ser um nigger queer não é econômica e profissionalmente uma desvantagem tão grande quanto ser um nigger negro, a não ser em algumas áreas como o serviço público, em que há medo e dissimulação consideráveis (em regimes mais puritanos, como a Cuba de hoje, ser queer é um mau negócio profissional e civilmente. Regimes totalitários, sejam comunistas, sejam fascistas, parecem ser intrinsecamente puritanos). Porém, minha experiência pessoal tem sido bem mista. Já fui despedido três vezes por causa do meu comportamento queer ou por reivindicar meu direito a 33Paul Goodman n. 07 | 2012 | p. 32-41 3 N.T.: A decisão de manter nigger do original em inglês decorre da impossibilidade de traduzir fielmente a carga fortemente pejorativa e racista que o termo carrega historicamente na cultura estadunidense. Nego, negão, crioulo ou termos assemelhados, aparentes soluções, não dão conta da força negativa que nigger adquiriu no contexto do racismo nos Estados Unidos. 4 N.T.: A decisão de manter o termo queer reflete a opção que tem sido feita universalmentenos textos dos estudos gays traduzidos em várias línguas nos quais ele aparece no original. O termo queer, tradicionalmente usado com o sentido de estranho, anormal, aquilo ou aquele que não está de acordo com uma presumida normalidade, foi apropriado por vários autores, preocupados com as questões da sexualidade, sobretudo antes de o termo gay se tornar corrente, como foi o caso do autor. ele, foram as únicas vezes em que fui despedido. Fui mandado embora da Universidade de Chicago nos primeiros anos de Robert Hutchins; da Escola Manumit, afiliada ao Brookwood Labor College, de A. J. Muste; e do Black Mountain College. Essas eram instituições altamente liberais e progressistas e duas delas se orgulhavam de se considerarem comunidades – francamente, minha experiência com comunidades radicais é que elas não toleram minha liberdade. Apesar disso, sou totalmente a favor de comunidade, porque é uma coisa humana, só que parece que eu estou fadado a ser excluído delas. Por outro lado, até onde eu sei, meus atos homossexuais e minha reivindicação explícita a eles nunca criaram desvantagem para mim em instituições mais caretas. Ensinei em meia dúzia de universidades estaduais. Sou constantemente convidado, muitas vezes como principal palestrante, para convenções de superintendentes de escolas secundárias, conselhos de diretores, conselheiros pedagógicos, forças-tarefa sobre delinquência juvenil e assim por diante. Falo o que acho que é verdade – com frequência trata-se de temas sexuais –, dou cantadas, se aparece oportunidade, e continuam a me convidar. Até transei algumas vezes, o que é mais do que eu posso dizer de conferências/convenções dos SDS (Students for a Democratic Society) ou da 5Resistência . Talvez as pessoas sejam tão caretas que não acreditam ou se atrevem a notar o meu comportamento; ou, mais provavelmente, esse pessoal profissionalmente mais careta é mais vivido (nossa palavra antiquada para cool) e não dá a mínima para o que você fizer desde que eles não tenham que encarar pais ansiosos e a imprensa sensacionalista. Quando a gente vai envelhecendo, os desejos homossexuais nos deixam mais alertas em relação a adolescentes e jovens, mais do que os desejos heterossexuais, especialmente porque nossa sociedade desaprova fortemente os casos entre homens mais velhos e meninas e mulheres mais velhas e meninos. De qualquer forma, no homem, a parte homossexual da personalidade é uma sobrevivência da adolescência. Porém, nem é preciso dizer que há um limite para essa ponte sobre o abismo entre gerações. Inexoravelmente, eu, como outros homens que frequentam campi universitários, nos damos conta de que as sucessivas levas de calouros parecem cada vez mais imaturas e incomunicáveis, e acabamos parando de tentar assaltar o berçário. A música deles não me anima. Depois de um tempo, meu melhor contato com os jovens passou a ser com os amigos dos meus filhos, como conselheiro na sua política, e não por desejos sexuais meus (a morte do meu filho me afastou totalmente do mundo jovem). 34 5 N.T.: ao alistamento obrigatório. Embora eu tenha sido extremamente pobre até doze anos atrás – criei minha família com a renda igual à de um meeiro –, no geral eu não atribuo isso ao fato de ser queer, mas à minha total inaptidão, truculência e má sorte. Em 1945, até o exército me rejeitou como “Material Não Militar” (eles tinham esse carimbo), não porque eu fosse queer, mas porque durante o exame enchi o saco de todos com meu ativismo pacifista e também porque eu tinha a vista ruim e hemorroidas. Curiosamente, no entanto, escutei de Harold Rosenberg e do finado Willie Poster que meu comportamento sexual me causava danos precisamente no universo literário de Nova York. Por causa dele, eu deixava de ser convidado para festas vantajosas nas quais poderia fazer contatos e conseguir publicação. Só posso acreditar em Harold e Willlie porque eles eram observadores sem preconceitos. O que eu próprio notei é que eu era excluído dos lucrativos círculos literários dominados por marxistas nos anos trinta e por ex-marxistas nos anos quarenta, porque eu era anarquista. Por exemplo, eu nunca era convidado pelo PEN Club ou pelo Committee for Cultural Freedom. Quando o CCF finalmente me procurou no final dos anos cinquenta, eu tive de recusar o convite porque eles já eram patentemente uma ferramenta da C.I.A. (escrevi isso em 1961, mas eles se safaram com mentiras). Para continuar moralmente vivo, um nigger usa vários tipos de malícia, que é a vitalidade dos sem-poder. Ele pode ser aleatoriamente destrutivo, já que sente que não tem nenhum mundo a perder, e talvez consiga impedir os outros de desfrutar o mundo deles, ou ele pode se tornar um grupista fanático, achando que só os seus pares são autênticos e têm alma. Há queers e negros pertencentes a ambas categorias. Queers são “artísticos”, negros têm “alma” (esse é o tipo da teoria, sinto dizer, que se nega a si própria; quanto mais você acredita nela, mais estúpido se torna; é como tentar provar que você tem senso de humor). No meu caso particular, entretanto, ser um nigger parece me inspirar a querer uma humanidade mais elementar, mais selvagem, menos estruturada, mais variegada e em que as pessoas prestem atenção umas às outras. Ou seja, minhas dificuldades deram energia ao meu anarquismo, utopianismo e gandhismo. Há negros nesse grupo também. A minha posição política real é fruto de uma reação consciente ao fato de ser um nigger. Eu ajo baseado em que “a sociedade na qual eu vivo é minha”, esse é o título de um dos meus livros. Considero o Presidente como meu servidor público, a quem eu pago, e o repreendo como um péssimo empregado. Sou mais constitucional do que a Corte Suprema. Diante da grosseira ilegitimidade do 35Paul Goodman n. 07 | 2012 | p. 32-41 Governo – com sua guerra do Vietnam, sua facção industrial-militar e a C.I.A. –, eu me apresento como um patriota antiquado, nem tão submisso nem mais revolucionário do que o necessário para os meus modestos objetivos. Isso é uma posição quixotesca. Às vezes eu me pareço com Cícero. Quando estão no grupismo Gay Society, os homossexuais podem se tornar fantasticamente esnobes e apolíticos ou reacionários. Essa é uma ego-defesa compreensível: “Você precisa ser melhor do que alguém”, mas seu benefício é muito limitado. Quando eu faço palestras na Mattachine Society, meu sermão invariável é que eles devem se alinhar com todos os outros grupos libertários e movimentos de libertação, já que a liberdade é indivisível. O que precisamos não é de orgulho desafiador e autoconsciência, mas de espaço social para viver e respirar. O pessoal do Gay Liberation finalmente entendeu a mensagem da liberdade indivisível, mas eles têm o fanatismo usual do movimento. No entanto, há um lado positivo. Pela minha observação e experiência, a vida queer tem notáveis valores políticos. Pode ser profundamente democratizante, juntando todas as classes e grupos, mais do que a heterossexualidade consegue. Sua promiscuidade pode ser uma coisa linda (mas que seja prudente em relação a doenças venéreas). Eu já cacei ricos, pobres, classe média e pequenos burgueses; pretos, brancos, amarelos e marrons; acadêmicos, esportistas amadores, universitários medíocres filhos-de-papai e vagabundos; homens do campo, pescadores, ferroviários, trabalhadores das indústrias pesada e leve, das comunicações, dos negócios e das finanças; civis, soldados e marinheiros e, uma ou duas vezes, policiais (mas provavelmente por motivos edipianos tenho a tendência a ser sexualmente antissemita, o que é um saco). Há algum tipo de significado político, creio, no fato de existirem tantos seres humanos atraentes; mas o que é mais significativo é que as muitas funções que eu exerço profissional e economicamente não estão exatamente definidas, retêm certa animação e sensualidade. O HEW,em Washington, e a Escola 201, no Harlem, não são uma perda de tempo total, embora eu fale para as paredes em ambos os lugares. Tenho com que me ocupar nos trens, ônibus e durante as esperas cada vez mais longas nos aeroportos. Em resorts de férias, onde as pessoas ficam idiotas porque estão de férias, tenho um motivo para frequentar garçons e camareiros, que estão trabalhando para ganhar a vida. Tenho alguma coisa para fazer em protestos pela paz – música de guitarra não me anima –, embora, sem dúvida, os arquivos da TV e o FBI tenham fotos de mim passando a mão em alguém. 36 As características humanas que afinal têm importância para mim e podem ganhar minha amizade duradoura são bem simples: saúde, honestidade, não ser cruel ou ressentido, disponibilidade e doçura de personalidade ou de feições. Refletindo sobre isso agora, só a estupidez óbvia, a limpeza obsessiva, o preconceito racial, a insanidade e a bebedeira ou o uso habitual de drogas realmente me causam rejeição. Na maioria das sociedades humanas, é claro que a sexualidade sempre foi uma área a mais na qual as pessoas podem ser injustas, ricos comprando pobres, machos abusando das fêmeas, sahibs usando os niggers, adultos explorando os jovens, mas acho que isso é neurótico e não traz a maior satisfação. São Tomás, que foi um grande filósofo moral, embora ruim na metafísica, diz que a principal utilidade do sexo – tomado separadamente da lei natural da procriação – é permitir conhecer outras pessoas intimamente. Essa tem sido minha experiência. Uma crítica comum da promiscuidade sexual tem sido, é claro, a de que em vez de democracia ela envolve uma superficialidade terrível da conduta humana, sendo um arquétipo da idiotice da vida urbana massificada. Tenho minhas dúvidas de que esse seja realmente o caso, embora eu não saiba; como no caso do pessoal que frequenta galerias de arte, não sei a quem a arte diz alguma coisa e quem fica ainda mais confuso – mas ao menos alguns estão procurando alguma coisa. Um homem ou mulher jovem fica se preocupando: “Ele está realmente interessado em mim, ou só no meu corpo? Se eu fizer sexo com ele, ele vai me considerar como um nada”. Eu considero essa distinção sem sentido e desastrosa; na verdade eu sempre me comportei de maneira exatamente oposta e muitas das minhas lealdades pessoais de vida inteira tiveram início com sexo. Porém, isso é a regra ou a exceção? Considerando a frieza e fragmentação usual da vida comunitária atual, meu palpite é de que a promiscuidade sexual enriquece mais vidas do que as torna insensíveis. Não é preciso dizer que se tivéssemos melhor comunidade, teríamos também uma vida sexual melhor. Não posso dizer que minha própria promiscuidade (ou tentativas de) tenha evitado que eu ficasse possessivamente enciumado de alguns dos meus amantes – mais de mulheres do que de homens, mas de ambos. Minha experiência não tem demonstrado o que Freud e Ferenczi parecem prometer: que a homossexualidade diminui essa paixão voraz, cujas causas eu não compreendo. Contudo, o ridículo da inconsistência e da injustiça da minha atitude tem me ajudado a rir de mim mesmo e me impedido de exagerar. 37Paul Goodman n. 07 | 2012 | p. 32-41 Às vezes é a caçada sexual que me leva a um lugar onde conheço alguém – por exemplo, eu costumava rondar bares perto do cais –, às vezes estou em um lugar por outro motivo e caço por acaso – por exemplo, vou para o estúdio de TV e dou uma cantada no câmera –, às vezes as duas coisas vêm juntas – por exemplo, gosto de jogar handebol e tenho interesse sexual em parceiros de handebol. Mas no final é tudo a mesma coisa, porque em todas as situações eu costumo pensar, falar e agir da mesma forma. Fora ajustes corteses comuns de vocabulário – mas não de sintaxe, que altera o caráter –, eu falo das mesmas coisas e não uso máscaras diferentes, ou me vejo de repente com uma personalidade diferente. Talvez haja duas razões opostas pelas quais eu consigo manter minha integridade: por um lado, tenho um intelecto forte o suficiente para perceber como as pessoas são de verdade neste nosso único mundo e para conseguir fazer contato com elas independentemente de diferenças de formação; por outro lado, é provável que eu esteja tão fechado nas minhas pressuposições que nem noto obstáculos óbvios impedindo a comunicação. O jeito como eu realmente abordo não tem feito grande sucesso. Como eu não uso meus dons para manipular a situação, eu raramente consigo o que quero dela. Como não traio meus próprios valores, não me insinuo para agradar. Meu igualitarismo aristocrático afasta as pessoas, a não ser que elas sejam seguras de si mesmas o suficiente para também serem aristocraticamente igualitárias. Ainda assim, o fato de eu não ser falso ou manipulador também tem impedido pessoas de desgostarem ou se ressentirem de mim e normalmente eu tenho a consciência limpa, não há muita mentira ou papo-furado para varrer fora. Ter-me tornado uma celebridade nesses últimos anos, no entanto, me prejudicou sexualmente mais do que ajudou. Por exemplo, universitários jovens e íntegros que poderiam gostar de mim e que costumavam me procurar agora mantêm uma distância respeitosa do homem ilustre. Talvez achem agora que eu só posso estar interessado no corpo deles, e não neles mesmos. Outros, que me procuram somente porque eu sou muito conhecido, parecem entrar em pânico quando fica claro que eu não dou a mínima para isso e me porto como eu mesmo. Claro que uma explicação mais simples para a piora da minha sorte é que eu estou mais velho a cada dia, provavelmente mais feio, e certamente cansado demais para tentar com afinco. Como regra, eu não acredito em pobreza e sofrimento como uma maneira de aprender nada, mas, no meu caso, as dificuldades e a carência da minha inepta vida queer tiveram a utilidade de simplificar minhas noções do 38 que é uma boa sociedade. Como no caso de qualquer viciado que não consegue sua dose facilmente, essas coisas têm me mantido em contato direto com a fome material. Assim, eu não consigo levar o Produto Interno Bruto muito a sério, nem status, nem credenciais, nem soluções tecnológicas grandiosas, nem política ideológica, incluindo movimentos de libertação ideológicos. Para uma pessoa esfomeada, o mundo tem que se apresentar na forma de gêneros alimentícios. Mas não é o que acontece. Eu aprendi a ser modesto nas minhas metas para a sociedade e para mim mesmo: coisas como ar limpo, grama verde, crianças com brilho nos olhos, não ser empurrado pra lá e pra cá, trabalho útil que se adapta às nossas habilidades, comida simples e gostosa e uma fugidinha ocasional satisfatória. Uma feliz propriedade dos atos sexuais e talvez, especialmente, de atos homossexuais é que eles são sujos, como a vida: como Agostinho disse, Inter urinas e feces nascimur, nascemos no meio de mijo e merda. Numa sociedade tão classe-média, ordeira e tecnológica como a nossa, é bom romper o enojamento, que é um fator importante no que é chamado racismo, bem como na crueldade com crianças e no isolamento de doentes e moribundos. A natureza ilegal e o pegue-o-que-der-pra-pegar de grande parte da vida homossexual atual rompe outras atitudes convencionais. Embora eu desejasse ter feito minhas festas com menos apreensão e menos pressa, foi uma vantagem aprender que fins de cais, traseiras de caminhões, becos dos fundos, atrás das escadarias, cabines de praias abandonadas e banheiros de trens são amostras adequadas de todo espaço que há. Para bem e para mal, a vida homossexual retém algo do alarme e excitação da sexualidade infantil. É danoso para as sociedades reprimir qualquer vitalidade espontânea. Às vezes, é necessário, mas só raramente; e certamente não no caso dos atos homossexuais, que, até onde eu ouvi falar, nunca fizeram mal a ninguém. Parte da hostilidade, paranoia e competitividadeautomática da nossa sociedade resulta da inibição de contato físico. Contudo, de uma maneira muito específica, a proibição da homossexualidade causa dano e despersonaliza o sistema educacional. A relação professor-aluno é quase sempre erótica. As únicas outras motivações psicológicas saudáveis são a mãe-protetora, relevante no caso de crianças pequenas, e o profissional que precisa de aprendizes, relevante para as escolas de graduação. Se houver medo e preocupação de que os sentimentos eróticos podem se converter em sexo, abertamente, a relação professor-aluno falha, ou pior, torna-se fria e cruel. Nossa cultura se ressente enormemente da falta de amizades pedagógicas sexuais, homossexuais, heterossexuais e lésbicas, que foram proeminentes em outras culturas. Sem dúvida, uma sexualidade funcional é provavelmente 39Paul Goodman n. 07 | 2012 | p. 32-41 incompatível com nosso sistema educacional massificado. Essa é uma entre muitas razões por que ele deveria ser desmantelado. Lembro-me que quando Growing Up Absurd tinha recebido várias críticas fulgurantes, finalmente um crítico irritado, Alfred Kazin, sugeriu sombriamente que eu havia escrito sobre meus delinquentes porto-riquenhos (e chamei-os de “mancebos”) porque eu tinha atração sexual por eles. Que novidade. Como eu poderia escrever um livro perceptivo se eu não prestasse atenção? E por que eu iria prestar atenção em alguma coisa a não ser que por algum motivo ela me interessasse? A motivação da maior parte da sociologia, seja ela qual for, tende a produzir livros piores. Duvido que alguém diga que minha observação de adolescentes delinquentes ou dos universitários do movimento estudantil foi prejudicada pelas minhas paixões. Mas quero bem a eles, sim – claro, eles poderiam até dizer: “com um amigo desses, quem precisa de inimigos?” Porém, é verdade que um lado ruim das dificuldades e perigos da vida queer na nossa sociedade, como em qualquer situação de escassez e fome, é que nos tornamos obsessivos e fixados em relação a ela. Eu certamente gastei um número excessivo de horas ansiosas da minha vida caçando, que poderia ter gasto passeando com outros propósitos ou com nenhum, cultivando meu espírito. Contudo, acredito que tive a energia, ou a teimosia, de não deixar minha obsessão turvar minha honestidade. Até onde sei, nunca elogiei um mau poema de um rapaz por ele ser atraente, mas é claro que fico especialmente contente se o poema for bom e eu puder dizer isso. Melhor ainda, é claro, se ele for meu amante e me mostrar algo que me deixe orgulhoso e que eu possa empurrar para um editor. Sim, já que eu comecei essas reflexões com uma nota amarga, deixe terminá-las com um poema feliz de que eu gosto, do meu livro Hawkweed. We have a crazy love affair It is wanting each other to be happy. Since nobody else cares for that we try to see to it ourselves Since everybody knows that sex Is part of love, we make love. 40 When that's over , we return to shrewdly plotting the other's advantage. Today you gazed at me, that spell is why I choose to live on. God bless you who remind me simply of the earth and sky and Adam. I think of such things more than most but you remind me simply. Man, you make me proud to be a workman 6of the Six Days, practical . Pesando tudo, não sei se minha escolha, ou compulsão, de uma vida bissexual me tornou especialmente infeliz ou apenas medianamente infeliz. É óbvio que toda maneira de viver tem seus problemas, ter ou não ter pai, ser casado ou solteiro, ser fortemente sexuado ou mais assexuado e assim por diante, mas é difícil julgar a experiência dos outros, fazer uma comparação. Senti persistentemente que o mundo não foi feito para mim, mas tive bons momentos. Trabalhei um bocado, criei filhos lindos e cheguei aos 58 anos de idade. 6 Tradução literal: Nós temos um louco caso de amor / e queremos a felicidade um do outro./ Como ninguém mais se importa com isso / nós tentamos resolver isso sozinhos. / Como todos sabem que o sexo / faz parte do amor, fazemos amor./ Quando isso termina, voltamos / a conspirar a vantagem um do outro. / Hoje você ficou me olhando, aquela magia / é o motivo por que escolho continuar vivendo. / Deus bendiga você que me lembra simplesmente / da terra, céu e de Adão. / Eu penso nessas coisas mais do que a maioria / mas você me lembra simplesmente. Homem, / você me faz orgulhoso de ser um trabalhador / dos Seis Dias, prático. 41Paul Goodman n. 07 | 2012 | p. 32-41 42 3 The homosexuality in front of the law in France: from postwar to “Gay Liberation” Geoffroy Huard de la Marre Doutorando na Universidad de Cádiz/Université de Picardie – Jules Verne geoffroy.huarddelamarre@gmail.com Tradução: Marcos Tindo Professor de Língua Francesa na Fundação de Apoio à Educação e ao Desenvolvimento Tecnológico do Rio Grande do Norte (FUNCERN) Mestrando em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) A homossexualidade perante a lei na França: 1do pós-guerra à “liberação gay” 44 Resumo Este artigo trata-se do estudo das diferentes leis que foram implementadas desde o pós- guerra até metade dos anos 1970, as quais condenavam as relações homossexuais em público, percebendo quais precauções os homossexuais deveriam tomar para evitarem a condenação. Mostra que é falsa a ideia de que a repressão jurídica da homossexualidade na França aparece de novo com o regime de Pétain e atinge o seu apogeu com a subemenda Mirguet em 1960. Com efeito, se o termo contre-nature (antinatural) reaparece nos textos legais dessa época, o qual já não aparecia desde a Revolução Francesa, os atos homossexuais em público sempre foram punidos por diversas leis que utilizavam outras terminologias. Palavras-chave: Homossexualidade. França. Lei. Contre-nature. Pudor. Moralidade. Abstract I want to study in this article – from the post-war until the mid 1970's – the various laws which condemned the homosexuals's reports in public places, then to see what precautions were taken by homosexuals to avoid conviction. I would like to show that the idea that the legal repression of homosexuality in France appears again with the Petain's regime and culminates in the sub-amendment Mirguet in 1960 is false. Indeed, if the term “against nature” reappears in the legislation at that time when it had no longer appeared since the French Revolution, the public homosexual acts were always punished by several laws that used other terminologies. Key-words: Homosexuality. France. Law. Against nature. Decency. Morality. 1 Este artigo constitui uma parte das pesquisas da minha tese de doutorado, a qual preparo atualmente, sobre a história da homossexualidade na França e na Espanha (1945-1975), na Université de Picardie – Jules Verne e na Universidad de Cádiz, sob a orientação conjunta dos senhores professores Didier Eribon e Francisco Vázquez García. Introdução A subemenda Mirguet, de 18 de julho de 1960, que classificava a homossexualidade como “flagelo social”, foi o texto jurídico repressivo mais discutido na história contemporânea dos homossexuais, desde que foi o alvo das críticas do Front Homosexuel d'Action Révolutionnaire (Frente Homossexual de Ação Revolucionária, FHAR, 1971-1974). Não obstante, quase uma dezena de outras leis repressivas afetou diretamente os homossexuais no pós-guerra, mesmo que o termo contre-nature (antinatural) tenha reaparecido explicitamente somente em um texto de lei do regime do Vichy – já que o crime de sodomia desaparecera desde 1791. Além do mais, essas leis repressivas foram acompanhadas por medidas produtivas da ordem sexual dominante: heterossexualidade, casamento de homens com mulheres, procriação, natalidade, virilidade para os homens, privatização da sexualidade (a sexualidade é privada, o espaço público é assexual). O ato antinatural, com um menor, punido com prisão: 1942-1982 “Não há, na França, delito nem
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