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Lobato e o racismo _ Revista Emília

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20/04/2019 Lobato e o racismo | Revista Emília
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Lobato e o racismo
POR ADILSON MIGUEL | 16 DE FEVEREIRO DE 2013 | POLÊMICAS E REFLEXÕES |
Não é raro que debates importantes sejam esvaziados ou se transformem em mera disputa por causa da
maneira insatisfatória como algumas questões são tratadas. É como se houvesse uma tendência à
esquematização, visando reduzir todos os aspectos a categorias simples e assimiláveis. Assim, coisas e
pessoas são facilmente classificadas como positivas ou negativas, boas ou más, geniais ou desprezíveis, sem
qualquer nuance ou gradação: anjos recebem todas as loas, demônios merecem excomunhão.
Esse tipo de atitude tem marcado a polêmica sobre o racismo na obra de Monteiro Lobato — reacesa desde
2010, quando um parecer do Conselho Nacional de Educação apontou traços preconceituosos no livro As
caçadas de Pedrinho. Apesar de muito já ter sido dito — tanto para defender como para condenar o escritor —,
ainda há manifestações apaixonadas que ignoram ou distorcem fatos. Quem o acusa vê apenas o racismo; os
que o apoiam fazem malabarismos para tentar provar que seus livros não contêm passagens racistas. Daí a
necessidade de voltar ao assunto para esclarecer alguns pontos.
 
Lobato e as letras brasileiras
O endeusamento da figura de Lobato oculta a real dimensão de seu papel e de sua importância na história
das artes e da literatura no Brasil. Indiscutivelmente, ele foi uma figura marcante no cenário cultural da
primeira metade do século XX; porém, muitos estudiosos tendem a considerar mais relevante sua atuação
como homem público do que como escritor. Seu trabalho como editor e divulgador de livros é em geral
mais valorizado do que sua obra literária.
Apesar da preocupação constante com a modernização brasileira, Monteiro Lobato possuía concepções
conservadoras, sobretudo na esfera artística. Sua intransigência e pouca sensibilidade no tocante à arte
moderna foram apontadas por diversos críticos. Segundo Alfredo Bosi, a distância que ele manteve em relação
ao modernismo e ao grupo que fez a Semana de Arte Moderna em 1922 se explica em boa parte por sua
postura moralista e seu didatismo polêmico.1Exemplo disso é o famoso e contundente artigo “Paranoia e
mistificação”, escrito em 1917, por ocasião da primeira exposição de pintura moderna de Anita Malfatti, que
abalou de forma irreversível a artista paulistana e sua carreira.2
Mas o conservadorismo de Lobato não se restringiu às suas opiniões e posições em relação à produção cultural
e artística da época. Também em sua obra o escritor não propôs avanços estéticos significativos. “Apesar de
pontilhada de raro em raro por certas ousadias impressionistas, é uma prosa que não rompe, no fundo, nenhum
molde convencional”, diz Alfredo Bosi, que situa sua literatura na tradição pós-romântica e o classifica como
http://revistaemilia.com.br/author/adilson-miguel/
http://revistaemilia.com.br/categorias/polemicas-e-reflexoes/
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“moralista e doutrinador aguerrido”.3 Para o crítico, os textos de Lobato não têm profundidade, pois se articulam
basicamente em função da produção de efeitos como o ridículo e o patético. Sua preocupação é sempre com a
aparência; o que ele procura é destacar defeitos físicos ou aspectos risíveis do caráter, sem ultrapassar a
superfície dos seres e dos fatos. Seus limites estéticos, observa Bosi, “derivam de um tipo de personalidade cuja
direção básica não era a estética”.4
Sérgio Milliet, talvez o seu crítico mais agudo, sintetiza com precisão a importância literária do escritor:
Monteiro Lobato é uma figura definitiva em nossa literatura […]. Mas é uma figura que não
permanecerá intacta através do tempo […]. Passará pelo crivo das revisões impiedosas e ainda
encontrará entusiasmos alucinados. Do barulho sairá para as antologias uma dúzia de contos
modelares. E mais boa parte de sua literatura infantil que só encontra paralelo nas grandes literaturas
infantis internacionais.
5
Com efeito, a contribuição literária mais relevante de Monteiro Lobato parece ter sido mesmo sua obra destinada
ao público infantil. É notável a maneira respeitosa como ele se dirige à criança, falando de igual para igual, sem
recorrer a infantilizações — prática infelizmente ainda frequente nas obras do gênero. Lobato conta as histórias
de forma natural e inventiva, despreocupado com a verossimilhança, mas requisitando a inteligência e a
imaginação do jovem leitor. No embalo de obras como Alice no País das Maravilhas, O mágico de Oz e Peter
Pan, ele também criou um universo fantástico, com personagens bem brasileiros, que se libertam do cotidiano
realista para mergulhar na fantasia, mantendo uma postura crítica com relação ao mundo adulto.
Entretanto, mesmo a obra infantil de Lobato não é isenta de críticas. Talvez por conta de sua eterna vocação
doutrinária e pedagógica, muitas vezes os textos perdem força, seja pelas inserções didáticas, seja pelas
redundâncias de sua linguagem. Há quem rejeite a atitude, considerada inadequada, de seus personagens
infantis. É o caso da poeta Cecília Meireles:
Recebi os livros de Lobato. […] Ele é muito engraçado, escrevendo. Mas aqueles seus personagens são
tudo quanto há de mais malcriado e detestável no território da infância. De modo que eu penso que os seus
livros podem divertir (tenho reparado que divertem mais os adultos que as crianças) mas acho que
deseducam muito. É uma pena. […] Por nenhuma fortuna do mundo eu assinaria um livro como os do
Lobato, embora não deixe de os achar interessantes.6
De todo modo, os senões não abalam o brilho dessa obra fundadora, não havendo qualquer dúvida acerca de
seu papel essencial na literatura infantil e juvenil brasileira.
 
Racismo e eugenia
A questão que mais nos interessa aqui é o racismo de Monteiro Lobato. Por mais que se afirme o contrário, não
há como negar que o escritor acreditava de fato na superioridade racial dos brancos. Cartas escritas por ele,
principalmente a Renato Kehl e Arthur Neiva — publicadas recentemente pelo jornal O Globo e pela
revista Bravo! —, mostram sua adesão aos princípios eugênicos. Aliás, Kehl e Neiva também eram grandes
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entusiastas da eugenia. Surgida na França no século XIX e muito em voga na época, essa teoria foi
sistematizada pelo médico François Galton, que a definia como “o estudo dos agentes sob o controle social que
podem melhorar ou empobrecer qualidades raciais das futuras gerações, física ou mentalmente”.7
São inúmeras as cartas de Lobato que comprovam suas ideias discriminatórias e a afinidade com os princípios
eugênicos. Como vários trechos dessa correspondência estão disponíveis na internet,8 cito apenas três:
 
País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan (sic), é país perdido para altos
destinos. […] Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém
o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo jogo do
galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva.
 
(Carta a Arthur Neiva de 10 de abril de 1928.)
 
Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso
no moral — e no físico, que feiura! Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que
volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas (sic)
humanas — todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiroe trazidos à força para a
escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível — amulatando-o e liquefazendo-o, dando
aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde.
 
(Carta ao escritor Godofredo Rangel, de 1908.)
 
Meu romance não encontra editor. […]. Acham-no ofensivo à dignidade americana. […] Errei vindo cá tão
verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.
 
(Carta ao escritor Godofredo Rangel, sobre o romance O choque das raças ou o presidente negro, que Lobato
pretendia publicar nos Estados Unidos. O livro relata um embate racial com a vitória final da “superioridade branca”.)
 
Os defensores do escritor que conhecem o teor dessas cartas —aparentemente nem todos as leram —
procuram minimizá-lo com o argumento, frágil, de que Lobato seria filho do tempo em que viveu e, por isso, é
natural que tenha compartilhado os pensamentos que circulavam no período. Ora, se aceitarmos essa tese,
precisaremos admitir que ela também é capaz de justificar todos as arbitrariedades cometidas ao longo da
história da humanidade, mesmo as mais extremas, como o nazismo. Além disso, a eugenia não era concepção
majoritária na época: muita gente não aceitava seus preceitos, e circulavam ideias contrárias a ela. O fato é que
todo indivíduo é filho de seu tempo. É com as referências que temos, da época em que vivemos, que formamos
nossas convicções e dirigimos nossas ações, num sentido ou em outro.
Diante dessas evidências, fica mais fácil perceber que as concepções racistas de Lobato acabaram de algum
modo comparecendo em sua obra. Em carta a Renato Kehl, de 1930, o escritor fala sobre a necessidade de
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lançar e vulgarizar as ideias eugênicas. A seu ver, o melhor jeito de fazer isso é por meio dos livros. Diz ele: “A
escrita é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, ‘work’ muito mais
eficientemente”. Parece que, com intenção ou não, isso foi posto em prática.
Diferente do que se costuma afirmar, não é só da boca de Emília que saem expressões como “macaca de
carvão”, “negra beiçuda” ou “negra de estimação”, em alusão à Tia Nastácia. Ditos de cunho racista também são
enunciados por outros personagens e também pelo narrador, que quase sempre se refere à Tia Nastácia
como preta ou negra, muitas vezes agregando adjetivos como pobre ou boa. Por que Nastácia é a única
personagem designada pela cor da pele? Seria ela uma “pobre negra” apenas por ser negra? A expressão “boa
negra” não poderia ser, na verdade, uma maneira muito sutil de dizer “boa apesar de negra”?
A própria condição de inferioridade de Nastácia em relação aos outros personagens, já apontada algumas
vezes,9 pode muito bem ser lida como manifestação racista. Em Reinações de Narizinho, é a neta de Dona
Benta quem profere uma fala bastante reveladora do modo como Lobato vê o negro. Pouco antes do espetáculo
do circo de escavalinho, Tia Nastácia (que estava com vergonha de aparecer diante do público justamente por
causa de sua cor) é introduzida da seguinte forma:
[…] Também apresento a Princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de
nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel
na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura.
 
E o narrador conclui: “Todos bateram palmas, enquanto as duas velhas se escarrapachavam nas suas cadeiras
especiais”.10 Ou seja, nenhum reparo à explicação de Narizinho. E isso ocorre o tempo todo nos livros de
Lobato: as manifestações discriminatórias soam sempre naturais e nunca sofrem qualquer tipo de reprovação. A
criança que as lê pode facilmente acreditar que elas não contêm nenhum problema.
Outro argumento em geral usado para tentar atenuar o racismo seria a ambiguidade da forma como o negro
aparece na obra lobatiana. Alega-se que, em alguns contos, o autor teria denunciado as crueldades praticadas
contra os negros escravizados. Seria essa uma boa prova do suposto não racismo de Lobato? A resposta é
negativa, pois a rigor não há contradição em alguém ser contra a escravidão e suas crueldades e ao mesmo
tempo acreditar na superioridade da raça branca. E mesmo o tratamento considerado carinhoso que a
personagem Tia Nastácia recebe — outra alegação em defesa de Lobato — pode ser entendido como
condescendência de quem vê o outro de cima, como inferior.
 
O racismo brasileiro
Apesar de não ser essa a percepção geral, o racismo no Brasil ainda tem extrema força. Embora pouco mais da
metade dos brasileiros sejam negros, eles representam apenas 20% dos que ganham mais de dez salários
mínimos e o mesmo percentual dos que chegam a fazer pós-graduação no país. A ascensão social da
população negra se mantém em níveis residuais, e a desigualdade ainda é alarmante.
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Mas o racismo brasileiro tem uma peculiaridade: a dissimulação. Não são comuns demonstrações ostensivas ou
segregações explícitas; a convivência de negros e brancos se dá em geral de maneira harmônica, sem conflitos
evidentes. Daí decorre a crença, muito disseminada, de que vivemos em uma “democracia racial”. Todavia, essa
condição supostamente positiva é responsável pelo enraizamento do racismo e pela grande dificuldade em
combatê-lo. Como suas manifestações são muito sutis, via de regra passam despercebidas ou tendem a ser
minimizadas. Afinal, comentários, apelidos, piadas, brincadeiras, ditos populares etc. soam tão naturais e não
parecem trazer maiores consequências — não raro, quem os enuncia nem se dá conta de seu teor
discriminatório.
Por isso, muitos não julgam ofensivo se referir a negros como “macacos”. Decerto essas pessoas não sabem
que os eugenistas, numa tentativa de justificar a escravidão, chegaram a classificar os negros como uma
espécie de humanoides, mais próximos dos primatas do que dos homens. Então, chamar uma pessoa negra de
“macaco”, segundo explica a escritora Ana Maria Gonçalves, “é resgatar o forte legado histórico da eugenia,
com todo o peso de gerações e gerações de negros que vêm sofrendo racismo através dos séculos”.11
A luta contra o racismo só pode ser efetiva se passar pelo combate às suas mínimas ocorrências, responsáveis
por contaminar, ainda que de forma sub-reptícia, a mentalidade de toda a sociedade e perpetuar a situação de
segregação em que vivem os negros no Brasil. Daí a importância de o governo brasileiro assumir o combate ao
racismo como uma política de estado. Nesse sentido, não deveria causar espanto nem parecer caça às bruxas o
fato de técnicos do Ministério da Educação se preocuparem com manifestações racistas em obras que serão
distribuídas nas escolas e devem ser lidas por crianças e jovens.
 
Criança e leitura
Outro desvio recorrente é a desconsideração da especificidade do leitor infantil. Sabemos que o valor de uma
obra literária está diretamente ligado à sua abertura e às possibilidades de leitura que ela oferece. Por carregar
variadas significações, o texto legitimamente leva seus leitores a diferentes conclusões. É no momento da leitura
que se atribui o seu sentido, quando o leitor interage com ele e o interpreta. E nessa relação são determinantes
as referências, as vivências e a capacidade de cada indivíduo.
Com pouca experiência de vida e de leitura, a criança lê uma obra literária de maneira muito diferente de um
adulto. Como ainda está se desenvolvendo e descobrindo como funciona o ato de ler, ela certamente chegará a
interpretações muito particulares e individuais. Por isso as mediações são importantes. Não para dirigir o leitor
iniciante, impondo-lhe significadosou um papel passivo, mas para ajudá-lo a se situar melhor diante de
referências ou contextos que ele ainda ignora.
Não há como saber ao certo o que um texto com passagens racistas pode causar no público infantil. Mas
tampouco é possível considerar satisfatória a alegação de que nenhum menino ou menina se torna racista
porque lê Lobato. Este argumento representa mais um desvirtuamento na discussão, pois se inscreve
perfeitamente no tipo “suave” de racismo brasileiro. Ou seja, a criança não passa a odiar os negros, mas
continua a ver como natural o fato de eles estarem situação de humilhação ou inferioridade. É assim que os
estereótipos racistas seguem se perpetuando, sutilmente, sem alarde.
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Ademais, é fundamental levar em conta a criança negra, meio esquecida nesta conversa. Imaginemos um aluno
negro lendo um livro em que a única personagem de sua cor é o tempo todo ridicularizada e chamada de
“macaca” ou “negra beiçuda”. Como ele lida com isso? Não é possível que as outras crianças, mesmo por
brincadeira, o associem à personagem e achem natural dar-lhe o mesmo tratamento? Numa época em que tanto
se fala de bullying, é no mínimo estranho não imaginar que leituras em que aparecem manifestações racistas
possam incentivar essa prática. Alguns estudos atestam que, além de interferir no rendimento, o racismo tem
grande responsabilidade pela evasão escolar de crianças negras.
 
Sem censura
Criado em 1977, o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) vem se aperfeiçoando ao longo dos
anos, e sua relevância é amplamente reconhecida, sobretudo na área da educação. Já há algum tempo, os
editais desse programa apontam como um dos critérios de seleção das obras “a ausência de preconceitos,
estereótipos ou doutrinações”, e até então não se viam objeções. Na verdade, parece difícil ser contrário a
esse critério, pois se é dever do estado combater seriamente o racismo, é muito natural (e louvável) que o
Ministério da Educação se preocupe em evitar a livre distribuição de livros com teor discriminatório a
crianças e jovens ainda em formação.
Fala-se em censura, mas definitivamente não é disso que se trata — se fosse, mereceria completo repúdio. A
recomendação de contextualização, feita pelo MEC, não significa restrição ou condenação da obra, mas uma
tentativa de interromper a vazão de manifestações racistas — inclusive as sutis — e a perpetuação dos
estereótipos. Lobato não será banido das bibliotecas escolares, e nem deve. Mas é melhor que os seus leitores
infantis tenham alguma indicação de que não é natural o negro ser humilhado, ainda que seja “de leve” ou “só
de brincadeira”. Não é demais repetir: estamos falando de crianças e de educação, não de leitores adultos
capazes de fazer relações e compreender o contexto social e histórico das narrativas.
Também não faz sentido acusar o que tem sido chamado de “ditadura do politicamente correto”, outra distorção
que encontra ampla aceitação no âmbito do “racismo sutil” brasileiro. Fechar os olhos para atitudes
discriminatórias sob o pretexto precário de não se submeter a tal “ditadura” será sempre uma maneira de
realimentar a discriminação. Como observa o filósofo Vladimir Safatle, “por trás da defesa de tal modalidade de
‘livre expressão’ há o desejo mal escondido de continuar repetindo os mesmos velhos preconceitos e a mesma
violência contra os grupos vulneráveis de sempre”.12
Em um artigo bastante sensato, o escritor Alberto Mussa faz um alerta que merece consideração: a literatura
não é sagrada, como muita gente parece acreditar.13 As pessoas, em particular as crianças, são mais
importantes que a literatura! Por isso o racismo precisa ser apontado e a paixão deve ceder espaço à razão
neste debate. Que a polêmica entre nas salas de aulas e os educadores, juntos com os alunos, avancem numa
reflexão crítica que colabore efetivamente para o combate da discriminação racial no Brasil. Sem vetos a Lobato,
mas sobretudo sem alimentar preconceitos.
 
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Referências bibliográficas
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Notas
1 Alfredo Bosi, “Monteiro Lobato”, em História concisa da literatura brasileira, São Paulo: Cultrix, 2001, p. 216.
2 “Paranóia ou mistificação”, O Estado de S. Paulo, 20/12/1917, disponível
em:www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/paranoia.html.
3 Alfredo Bosi, op. cit.
4 Op. cit., p.217.
5 Sergio Milliet, “Um sentimental apaixonado”, Ciência & Trópico, nº 9, maio/2011, disponível
em: periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CIT/article/view/201.
6 Citado por Regina Zilberman em “Monteiro Lobato e suas fases”, Estudos de literatura brasileira
contemporânea (dossiê: literatura infantojuvenil), Brasília, nº 36, julho/dezembro de 2010, p. 146.
7 Citado por André Nigri em “Monteiro Lobato e o racismo”, Bravo!, ed. 165, maio de 2011, disponível
em: bravonline.abril.com.br/materia/monteiro-lobato-e-o-racismo#image=165-capa-racismo-1-g.
8 As cartas citadas no presente artigo aparecem em “Monteiro Lobato e o racismo”, de André Nigri (já mencionado), e
“Com a palavra, Monteiro Lobato (sente antes de ler)”, de Arnaldo Bloch, disponível
em:oglobo.globo.com/blogs/arnaldo/posts/2011/03/03/com-palavra-monteiro-lobato-sente-antes-de-ler-366759.asp.
9 Cf. Marisa Lajolo, “A figura do negro em Monteiro Lobato”, disponível em:lfilipe.tripod.com/lobato.htm, e Edson Lopes
Cardoso, “A propósito de Caçadas de Pedrinho”, disponível em: www.ceert.org.br/noticiario.php?id=688.
10 Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, São Paulo: Globo, 2012, p. 221.
11 Ana Maria Gonçalves, “Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o PNBE”, disponível
em: revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/09/10/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-
biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/.
12 Vladimir Safatle, “Correto demais”, novembro/2012, disponível
em:www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/1188086-correto-demais.shtml.
13 Cf. Alberto Mussa, “Me convençam”, Rascunho, dezembro/2010, disponível em:rascunho.gazetadopovo.com.br/me-
convencam/.
Imagem Emília por Manoel Victor Filho em 1981 [imagem gentilmente cedida pela Biblioteca Monteiro Lobato]
http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CIT/article/view/202/166
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/1188086-correto-demais.shtml
http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/paranoia.html
http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CIT/article/view/201
http://bravonline.abril.com.br/materia/monteiro-lobato-e-o-racismo#image=165-capa-racismo-1-g
http://oglobo.globo.com/blogs/arnaldo/posts/2011/03/03/com-palavra-monteiro-lobato-sente-antes-de-ler-366759.asp
http://lfilipe.tripod.com/lobato.htm
http://www.ceert.org.br/noticiario.php?id=688
http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/09/10/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/1188086-correto-demais.shtml
http://rascunho.gazetadopovo.com.br/me-convencam/
20/04/2019 Lobato e o racismo | Revista Emília
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SOBRE O AUTOR
Adilson Miguel
Formado em filosofia, trabalha na área editorial
há vários anos. Foi editor e gerente editorial na
Editora Scipione (Abril Educação) e de Edições
SM. Organizou, entre outras, as
coletâneas Traçados diversos: uma antologia de
poesia contemporânea, Grafias urbanas:
antologia de contos contemporâneos e Histórias
de carnaval.
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