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Parte I A NATUREZA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO 1 História: Trajetória e Defi nições A disciplina Introdução ao Estudo Histórico tem por finali- dade dar familiaridade ao aluno iniciante de História em relação às especificidades do saber histórico. Que conteúdos estudar nesta disciplina? Isso dependerá de uma escolha do professor, pois é vasta a quantidade de saberes necessários aos estudantes de História. Nossa opção privilegia a metodologia, a noção de tempo e a função da história. Neste tema os assuntos abordados versarão sobre o fazer histórico da Antiguidade aos tempos atuais, enfocando algumas questões específicas como o pensamento do historiador, a cien- tificidade de sua produção, a escolha dos fatos e os diferentes usos do passado pelas sociedades humanas. 1.1 CRIAÇÃO DO MÉTODO Iniciaremos a nossa discussão sobre os estudos históricos com uma afirmação do filósofo Collingwwod. Na obra A ideia de história, ele diz que a história serve para o autoconhecimento humano. Argumentando que por não termos meios de prever o 14 Introdução ao Estudo Histórico futuro, só podemos conhecer o que o homem fez, por isso, ele explica que o valor da história está então em nos ensinar. O que o homem tem feito e, deste modo, o que o homem é. Diante da afirmativa fica eviden- ciada a importância do conheci- mento histórico e a necessidade de dominar os seus métodos. O método histórico: Heródoto O discurso histórico ainda em vigor na sociedade atual teve o seu início na Antiguidade entre os gregos. É consenso entre os estudiosos que o primeiro historiador cuja obra sobreviveu aos nossos dias foi Heródoto1. Mas, quem foi Heródoto e quais as características de sua obra? Heródoto foi um geógrafo e his- toriador grego, nascido no século V a.C. (485–420 a.C.) em Ha- licarnasso (hoje Bodrum, na Turquia). É considerado por muitos como o pai da História, por ser autor de uma obra com o nome de História. O livro narra a invasão da Grécia pelos persas no século V a.C. A originalidade do seu texto consiste em relatar os acontecimentos a partir do uso de testemunhas. Estátua de Heródoto, historiador da antiguidade, século V a. C. considerado o pai da História. Fonte: http://pt.wikipedia.org 1 Para conhecer mais este assunto leia: HERÓDOTO. História: estudo crítico por Vitor de Azevedo. São Paulo: Ediouro, 2001. p 9-42; e BLOCH, M. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 2001. p.15-34. Tema I | História: trajetória e defi nições 15 Heródoto inaugura o gênero da história com testemunhas, ou como dizemos hoje, com fontes. As fontes utilizadas pelo autor para compor a narração da guerra entre gregos e per- sas foram os rapsodos (o nome dado a um artista popular ou cantor que, na antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando), soldados e os sátrapas (governadores das províncias persas). Outra característica importante da sua obra é que ela é fruto das viagens do autor pelo Egito, Fenícia, Babilônia e Pérsia. Isso o transforma em um geógrafo e, para alguns, numa espécie de antropólogo moderno, pois nestas viagens fazia a observação de sociedades e lugares. História é a narrativa minuciosa das invasões médicas. É uma história universal, pois visa contar a história do mundo conhecido à época, com destaque para a guerra entre gregos e asiáticos. Faz também a descrição geográfica, étnica, costumes, religião dos lugares e povos visitados pelo autor. A obra tem muitos méritos, mas não está isenta de críticas. Os estudiosos apontam entre os seus defeitos a credulidade no maravilhoso, ou seja, a crença em milagres ou na participação de seres sobrenaturais nos acontecimentos humanos, o excesso de elementos anedóticos, a ausência de julgamentos, pois o autor se limita a narrar os acontecimentos e deixar o julgamento para os leitores, e inexatidões. Entre as críticas positivas está o fato de o autor não fazer panegírico, isto é, um discurso que exalta as qualidades de uma pessoa. A proposta de Heródoto é fazer o relato simples e veraz. Se compararmos Heródoto com Tucídides, outro histo- riador grego da Antiguidade, século V a.C, perceberemos que aquele é um cronista atento e minucioso, faz incursões pelo extraordinário e maravilhoso. Os equívocos presentes na obra de Heródoto devem-se aos erros de informantes, intérpretes e guias. Uma diferença da obra de Tucídides é a concepção de que a ação humana é resultado do caráter e da situação do indivíduo, 16 Introdução ao Estudo Histórico portanto, ele abandona a explicação das ações humanas a partir do fantástico. Esta é uma de suas críticas ao seu antecessor. Estátua de Tucídides, historiador grego do século V antes de Cristo. Fonte: http://pt.wikipedia.org Antes de Heródoto existiam outras formas de contar a história. Por exemplo, Cadmos antes do século V a.C. reuniu a tradição oral misturada à fantasia mitológica, mas Heródoto marcou o fim deste estilo de transportar a epopeia para a historiografia. Antes dele exis- tiam os logógrafos que recolhiam notícias recheadas de ide- alizações. Heródoto foi o primeiro a fazer a narrativa singela de fatos reais. Entretanto, nem todos seguiram o seu exemplo, um milênio após a invenção do seu método histórico, o bispo e teólogo francês Bossuet (1627-1704), já no século XVII, fala na providência divina interferindo nos acontecimentos históricos. O método histórico no século XX: Marc Bloch Para entendermos a visão de história na atualidade, recor- ramos a análise da obra Apologia da história feita por Jacques Le Goff. Desde Heródoto até o século XX, a história passou por avanços e recuos. Por volta dos anos 1930, Marc Bloch estabele- ceu um método e defendeu a história como uma ciência. O autor tem como ponto de partida uma pergunta sobre a legitimidade da história ou sua serventia, a qual responde dizendo que a história distrai, “tem seus gozos estéticos próprios” e que “Evitemos re- tirar de nossa ciência sua parte de poesia”. Esta é uma das suas legitimidades, mas não é a única. A distração da história e a sua Tema I | História: trajetória e defi nições 17 aproximação com a arte não tira o seu caráter científico, não a transforma em ficção. Ela tem métodos que devem ser conheci- dos por todos os que pretendem enveredar por seus caminhos. A visão moderna de história valoriza o fundamento científico positivista, mas critica a estrita observância dos fatos que despreza a interpretação. Critica a história que mutila o homem, visualizando-o apenas no seu aspecto político ou econômico, e se interessa pelo homem integral, fazendo uma história do corpo, da sensibilidade, da mentalidade e não apenas ideias e atos. Não há questionamentos ao fato de que a história come- çou a sua maturidade com o início da crítica dos documentos de arquivos. O auge deste movimento foi o século XIX, quan- do surgiram métodos para a divulgação destes procedimentos. Mas atualmente tal método foi aperfeiçoado, em muitos aspec- tos foi superado. A aproximação com as ciências sociais, espe- cialmente a sociologia, contribuiu para tal superação. Mas, Marc Bloch não abandona o acontecimento e o individual. Daí uma das diferenças entre história e sociologia. Após sofrer várias críticas, a história avançou muito em seus métodos e nas últimas déca- das aconteceu a sua ampliação e aprofundamento. Como fruto destas transformações ela passou a tratar de novos problemas, novas abordagens e novos objetos. Marc Bloch foi fuzilado pelos alemães em 1944 por fazer parte da resistência francesa à II Guerra. Fonte: http://laviedesbetes.files.wordpress.com 18 Introdução ao Estudo Histórico Superando a ideia convencional de que a história é o estu- do do passado humano, Marc Bloch traz a noção de que a histó- ria é busca e que o seu objeto de estudo são os homens no tem- po. Esta noção é inovadora porque fala dos homens no plural, superando a história dos homens ilustres. E também falana com- preensão do presente pelo passado e do passado pelo presente. Em outras palavras, o passado não é recuperado pelo presente, mas o conhecimento que temos dele é fruto de interpretações, questionamentos e silenciamentos. Bloch também atenta para um elemento importante na in- vestigação histórica, o fato de os documentos e testemunhos do passado só falarem quando sabemos interrogá-los. Neste caso, percebemos a importância da imaginação e do questionamento do pesquisador. Nesta questão do método, ele também diz que o historiador deveria relatar os problemas enfrentados durante a sua investigação como as ausências de testemunhos ou as res- postas não encontradas para algumas questões. Desta forma, o leitor conheceria as fontes do historiador e o caminho que ele percorreu até chegar as suas conclusões. Por fim, uma lição valorosa que aprendemos com o mestre Bloch é que o papel da história é compreender e não julgar o passado. Enquanto sujeitos, podemos até nos indignarmos com um fato do passado, mas como estudiosos nossa tarefa consiste em entender e explicar a conjuntura em que os acontecimentos se deram. Tema I | História: trajetória e defi nições 19 Texto Complementar LIVRO I (CLIO) DE HERÓDOTO. Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos ho- mens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravi- lhosas explorações dos Gregos, assim como as dos bárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros. I — Os Persas mais esclarecidos atribuem aos Fenícios a causa dessas inimizades. Dizem eles que esse povo, tendo vindo do litoral da Eritréia para as costas do nosso país, empreendeu longas viagens marítimas, logo depois de haver-se estabeleci- do no país que ainda hoje habita, transportando mercadorias do Egito e da Assíria para várias regiões, inclusive para Argos. Esta cidade era, então, a mais importante de todas as do país conheci- do atualmente pelo nome de Grécia. Acrescentam que alguns fe- nícios, ali desembarcando, puseram-se a vender mercadorias, e que cinco ou seis dias após sua chegada, quase concluída a ven- da, grande número de mulheres dirigiu-se à beira-mar. Entre elas estava a filha do rei. Esta princesa, filha de Inaco, chamava-se Io, nome por que era conhecida pelos Gregos. Quando as mulheres, postadas junto aos barcos, compravam objetos de sua preferên- cia, os fenícios, incitando uns aos outros, atiraram-se sobre elas. A maior parte delas logrou fugir, mas Io foi capturada, juntamen- te com algumas de suas companheiras. Os fenícios conduziram- nas para bordo e fizeram-se à vela em direção ao Egito. II — Eis como, segundo os Persas — nisto pouco de acordo com os Fenícios — Io veio parar no Egito. Essa questão foi o início de todas as outras. Acrescentam os Persas que, 20 Introdução ao Estudo Histórico pouco depois, alguns gregos, cujos nomes não gravaram, vieram a Tiro, na Fenícia, e raptaram Europa, filha do rei. Eram, sem dúvida, Cretenses. Ficaram, assim, quites os dois povos, mas os Gregos tornaram-se depois culpados de uma segunda ofensa. Dirigiram-se num grande navio a Aea, na Cólquida, sobre o Faso, e, ultimados os negócios que ali os levaram, arrebataram Me- déia, filha do rei, e tendo esse príncipe enviado um embaixador à Grécia para exigir a entrega da filha e a reparação da injúria, responderam-lhe que, como os Colquidenses não haviam dado nenhuma satisfação pelo rapto de Io, eles não o dariam absoluta- mente pelo de Medéia. III — Dizem ainda os Persas que na geração seguinte, Páris, filho de Príamo, tendo ouvido falar no caso, quis também raptar e possuir uma mulher grega, persuadido de que se outros não foram punidos, não o seria também. Raptou, então, Helena; mas os Gregos resolveram, antes de qualquer outra iniciativa, enviar embaixadores para exigir a devolução de Helena e pedir satisfações. Os Troianos, além de invocar aos Gregos o rapto de Medéia, ainda os censuraram por exigirem satisfações, uma vez que eles não as tinham dado aos outros e nem entregue a pessoa reclamada. IV — Até então, não houvera de uma parte e de outra mais do que raptos; mas depois do acontecido, os Gregos, julgando-se ofendidos em sua honra, fizeram guerra à Ásia, antes que os asiáticos a declarassem à Europa. Ora, conquanto lícito não seja raptar mulheres, dizem os Persas, é loucura vingar-se de um rapto. Manda o bom senso não fazer caso disso, pois sem o seu próprio consentimento decerto não teriam as mulheres sido raptadas. Asseguram os Persas que, embora asiáticos, ainda não haviam tido conhecimento de casos semelhantes, naquela par- te do mundo. Entretanto, os Gregos, por causa de uma mulher lacedemônia, equiparam uma frota numerosa, desembarcaram Tema I | História: trajetória e defi nições 21 na Ásia e destruíram o reino de Príamo. Desde essa época, os Persas passaram a encarar os Gregos como inimigos, pois jul- gam que a Ásia lhes pertence tanto quanto as nações bárbaras que ocupam, enquanto consideram a Europa e a Grécia como formando um continente à parte. V — Tal é a maneira pela qual os Persas narram esses acon- tecimentos. À tomada de Tróia atribuem eles a causa do seu ódio aos Gregos. No que concerne a Io, os Fenícios não estão de acor- do com os Persas. Dizem não ter havido rapto; que apenas a con- duziram ao Egito com o seu próprio consentimento. Vendo-se grávida, a princesa, receando a cólera dos pais, entrou em enten- dimento com o comandante do navio fenício, em Argos, com ele partindo, a fim de ocultar sua desonra. Eis aí como Persas e Fení- cios narram os fatos. Quanto a mim, não pretendo absolutamen- te decidir se as coisas se passaram dessa ou de outra maneira; e depois de ter narrado o que conheço sobre o primeiro autor das injúrias feitas aos Gregos, prossigo minha história, na qual trata- rei tanto dos pequenos Estados como dos grandes. Os outrora florescentes, encontram-se hoje, na sua maioria, em completa decadência, e os que florescem hoje, eram outrora bem pouca coisa. Persuadido da instabilidade da ventura humana, estou de- cidido a falar igualmente de uns e de outros. VI — Creso era lídio por nascimento, filho de Aliata e rei das nações banhadas pelo Hális, no seu curso. Este rio, corre do sul, atravessa os países dos Sírios e dos Paflagônios, e desem- boca ao norte, no Ponto Euxino. Pelo que me é dado saber, foi o príncipe o primeiro bárbaro a forçar uma parte da Grécia a lhe pagar tributo e não ter-se aliado com a outra. Submeteu os Iônios, os Eólios e os Dórios estabeledos na Ásia, e fez aliança com os Lacedemônios. Antes do seu reinado, todos os gregos eram livres. A expedição dos Cimerianos contra a Jônia, anterior a 22 Introdução ao Estudo Histórico Creso, não fez mais do que arruinar as cidades, pois não passou de incursão seguida de pilhagem. FONTE: Heródoto (484 a.C. - 425 a.C.). História. Traduzido por Pierre Henri Larcher (1726–1812). Versão para eBook, eBooksBrasil. 2006. Para Refletir • Junte-se aos seus colegas e discutam no fórum do AVA a partir da leitura do tema: • O que você entendeu sobre o método histórico inventado por Heródoto? • O que você entendeu sobre o fazer histórico na atualidade? 1.2 TRABALHO DO HISTORIADOR O objetivo deste conteúdo é falar do trabalho do historiador enquanto um procedimento científico. Destaca- remos de que forma o pesquisador faz uma observação direta ou indireta do passado e mencionaremos a importân- cia das fontes, elementos fundamentais para a credibilidade da história. O olhar do historiador O objeto de estudo do historiador não é mais o passado humano, mas “os homens no tempo2”. Esta definição leva em 2 Saiba mais sobre este assunto lendo: BLOCH, M. Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.69-87. Tema I | História: trajetória e defi nições 23 consideraçãoque o passado não chega puro até o presente, porque os pesquisadores do presente lançam questões sobre o passado. Assim, o acesso do historiador ao seu objeto de estudo se dá a partir do distanciamento. Isto ocorre porque diferente de outros cientistas, o historiador não presencia a maioria dos even- tos que estuda, portanto, para ele é impossível constatar os fatos que estuda. Por este raciocínio, quem se ocupa do presente pro- duziria um conhecimento direto, e, quem se ocupa do passado produziria um conhecimento indireto. Esta é a crítica que muitas vezes é feita à História. Entretanto, a observação direta do presente é um artifício. A capacidade de observarmos o que ocorre a nossa volta é limi- tada. Tomemos o exemplo de um general no teatro da guerra. Ele só pode parcialmente observar diretamente o que ocorre a sua volta, o restante das notícias que chegam as suas mãos de- pende da observação dos seus tenentes e outros comandantes que preparam os seus relatórios. Vemos que, mesmo em relação a fatos da nossa época, dependemos de outros informantes para termos acesso a eles. Esta situação não difere da posição do his- toriador. Este também depende dos testemunhos de quem pre- senciou os eventos passados. Do ponto de vista da observação dos acontecimentos, a situação de quem observa o presente ou o passado remoto é similar, isto é, não consegue observar tudo o que ocorre a sua volta. Fonte: http://batalhamedieval.queroumforum.com 24 Introdução ao Estudo Histórico A observação do passado seria tão indireta? Se analisarmos bem, a resposta é não. O pesquisador que defende a necessidade de presenciar os fatos está imbuído de uma concepção de histó- ria específica. É, portanto, a História Política, predominante no fi- nal do século XIX e início do XX, baseada na descrição dos acon- tecimentos, grandes acontecimentos, que mais carece da obser- vação direta. Da mesma forma, o uso dos testemunhos escritos e não-escritos permite a observação direta do passado, para a concepção de história que busca o entendimento contextual. Ao recorrer aos documentos, objetos ou outros testemunhos, o his- toriador está tendo um acesso direto ao passado. Percebemos que o conhecimento histórico necessita de vestígios, também chamados de fontes, testemunhos ou registros. A observação direta ou indireta do passado implica em presenciar ou não os acontecimentos. A diferença entre a inves- tigação do mais remoto ou do mais recente é apenas de grau. Se no presente alguém não fizer os registros necessários dos acon- tecimentos, ou se a memória de quem presenciar um evento não for confiável, fica impossível após algum tempo recuperar tais informações com precisão. Sabemos que o passado é imutável, mas o seu conheci- mento é progressivo. Nos séculos XIX e XX, graças à arqueologia, muitas civilizações, antes ignoradas, passaram a ser conhecidas. Cidades, línguas, religiões até então desconhecidas foram des- cobertas. Mas a nossa capacidade de conhecer o passado não é ilimitada. Só conhecemos aquilo que o passado nos permite sa- ber. Para certas épocas, o pensamento, as atividades quotidianas entre outras, não são possíveis de serem recuperadas. Às vezes, o passado é um mundo sem indivíduos, exatamente porque eles não deixaram suas memórias. Portanto, o pesquisador quando necessário for deve honestamente confessar a sua ignorância. Tema I | História: trajetória e defi nições 25 Os testemunhos Os testemunhos do passado que chegam aos historiadores podem ser classificados como voluntários ou involuntários. Livros, cartas, biografias, diários, podem ilustrar esta primeira categoria de documentos. Ou seja, aqueles produzidos para ser- virem de prova, para informar ao leitor. Estes têm a vantagem de oferecer um enquadramento cronológico preciso. Porém, às vezes, não é a informação contida nestas fontes que interessa ao pesquisador, mas exatamente o que elas deixam de falar, as entrelinhas, demandando a curiosidade e a astúcia do investigador. Vaso grego. Exemplo de testemunho do passado usado como fonte pelo historiador. Fonte: http://calcanhar.wordpress.com O segundo caso, os documentos involuntários, como os restos de cozinha descartados, moedas, inscrições, ar- tefatos e determinados tipos de documentos escritos, podem servir como testemunhos de um modo de vida. São involuntá- rios porque sua produção não visou informar à opinião pública ou aos historiadores futuros. Eles poderiam ser tratados como mais confiáveis, por serem produzidos à revelia e não trazer uma mensagem préestabelecida. Não que existam documentos mais verdadeiros que outros, porém, a preferência do pesquisador recai sobre as fontes menos carregadas, mensagens intencionais. Por mais claro que seja o documento, ele só fala quando sa- bemos interrogá-lo. Quem se especializa no estudo da Idade Mé- dia ou da Pré-história sabe precisamente o que perguntar a cada documento da época. A observação passiva não é produtiva. É necessário que se façam perguntas aos documentos para se obter respostas. Sem essa inquirição o historiador não aparece, sua existência seria desnecessária. ao de p Fon 26 Introdução ao Estudo Histórico À disposição do historiador existe uma diversidade de tes- temunhos históricos. Vai muito além do texto escrito, “tudo o que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele”, diz Marc Bloch (2001, p. 79). As fontes não se limitam aos textos escritos oficiais como apregoavam os positivistas. A ausência de estudos sobre determinados temas ou épocas, às vezes, não se deve à falta de testemunhos, mas à falta de investigação, de pesquisa. Não existe uma fonte específica para cada problema histórico. A profundidade dos fatos só pode ser atingida com o maior número possível de testemunhos. Assim, textos, pinturas, fotografias e outros testemunhos, podem e devem ser usados conjuntamente. Qualquer estudo histórico torna-se mais rico, mais confiável se estiver alicerçado em várias fontes. Onde e como encontrar os documentos? Marc Bloch (2001, p. 82) dá uma pista: Reunir os documentos que estima necessários é uma das tarefas mais difíceis do historiador. De fato ele não conseguiria realizá-la sem a ajuda de guias diversos: inventários de arquivos ou de bibliotecas, catálogos de museus, repertórios bibliográficos de toda sorte. Os testemunhos necessários ao historiador comumente não estão acessíveis. A dificuldade de acessá-los é um dos problemas da profissão. A negligência de uns pode causar a perda ou a destruição dos documentos. A paixão pelo sigilo de outros faz com que inúmeros documentos de ordens reli- giosas, de instituições bancárias, de famílias etc. sejam interdi- tos ao grande público. A acessibilidade ou a inacessibilidade aos registros é o que interfere no conhecimento ou esquecimento de uma época, de um contexto, de uma geração inteira, até de um povo. Tema I | História: trajetória e defi nições 27 Texto Complementar A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO HISTÓRICA [Mas tem mais.] A observação do passado, mesmo de um passado muito recuado, será com certeza sempre “indireta” a esse ponto? Vemos muito bem por que razões a impressão desse dis- tanciamento entre o objeto do conhecimento e o pesquisador impôs-se com tanta força a tantos teóricos da história. É que pensavam antes de tudo em uma história de acontecimentos, até mesmo de episódios: quero dizer, aqueles que, certo ou erra- do -não é o momento de examinar -, dão extrema importância a retraçar exatamente os atos, palavras ou atitudes de alguns personagens, agrupados em uma cena de duração relativamente curta, em que se concentram, como na tragédia clássica, todas as forças da crise do momento: jornada revolucionária, combate, entrevista diplomática. Conta-se que, em 2 de setembro de 1792, a cabeça da princesa Lamballe havia desfilado na ponta de um chuço sob as janelas da família real. É verdade isso? É falso? O sr. Pierre Caron,que escreveu sobre os Massacres um livro de admirável probidade, não ousa se pronunciar. Se lhe houvesse sido dado contemplar, ele próprio, de uma das torres do Templo, o terrível cortejo, teria seguramente a que se ater. Pelo menos supondo que, tendo preservado, como podemos acreditar, nessas circunstâncias todo seu sangue-frio de cientista, houvesse, além disso, por uma justa desconfiança de sua memória, tomado cui- dado de anotar imediatamente suas observações. Em tal caso, sem nenhuma dúvida, o historiador se sente, em relação à boa testemunha de um fato presente, em uma posição algo humi- lhante. Fica como que no fim de uma fila na qual os avisos são transmitidos, desde a frente, de fileira em fileira. Não é um lugar 28 Introdução ao Estudo Histórico muito bom para se ser informado com segurança. Assim, um tempo atrás, presenciei, durante uma troca de guarda noturna, passar, ao longo da fila, o grito: “Atenção! Buracos [de obus] à esquerda!” O último homem recebeu-o sob a forma “Para a es- querda”, deu um passo nesse sentido e foi tragado. (...) Ora, assim também muitos outros vestígios do passado nos oferecem um acesso do mesmíssimo nível. É o caso, em sua quase totalidade, da imensa massa de testemunhos não- escritos, e até de um bom número de escritos. Se os mais co- nhecidos teóricos de nossos métodos não tivessem manifesta- do tão espantosa e soberba indiferença em relação às técnicas próprias da arqueologia, se tivessem sido, na ordem documen- tária, obcecados pelo relato, ao passo que na ordem dos fatos, pelo acontecimento, sem dúvida os veríamos menos prontos a nos jogar para uma observação eternamente dependente. Nos túmulos reais de Ur, na Caldéia, encontraram-se contas de colar feitas de amazonita. Como as jazidas mais próximas dessa pedra situam-se no coração da Índia ou nos arredores do lago Baikal, parece se impor a conclusão de que, a partir do terceiro milênio antes de nossa era, as cidades do Baixo Eufrates mantinham re- lações de troca com terras extremamente longínquas. A indução pode parecer boa ou frágil. Qualquer juízo que se faça sobre ela, trata-se inegavelmente de uma indução do tipo mais clássico; fundamenta-se na constatação de um fato e a palavra de outro em nada interfere nisso. Mas os documentos materiais não são, longe disso, os únicos a possuir esse privilégio de poderem ser apreendidos de primeira mão. Do mesmo modo o sílex, talhado outrora pelo artesão da idade da pedra,] um traço de linguagem, uma regra de direito incorporada em um texto, um rito fixado por um livro de cerimônias ou representado sobre uma estela são realidades que nós próprios captamos e que exploramos por um esforço de inteligência estritamente pessoal. [Nenhum outro Tema I | História: trajetória e defi nições 29 cérebro humano precisa ser convocado para isso, como interme- diário. Não é absolutamente verdade, para retomar a comparação de ainda há pouco, que o historiador seja necessariamente reduzido a só saber o que acontece em seu laboratório por meio de relatos de um estranho. Ele só chega depois de concluído o experimen- to, sempre. Mas, se as circunstâncias o permitirem, o experimen- to terá deixado resíduos, os quais não é impossível que perceba com os próprios olhos.] Fonte: BLOCH, M. Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.70-73. Para Refletir • Reflita e debata com seus colegas no fórum do AVA os questionamentos a seguir: • O que você entendeu sobre a ideia de que a observação direta do presente é um artifício? • Como explicar a afirmativa de que o conhecimento histórico é progressivo? • Como você entendeu a comparação entre a situação de um historiador e a de um guarda noturno? 30 Introdução ao Estudo Histórico 1.3 RELAÇÃO ENTRE PASSADO E PRESENTE Qual é o passado que interessa à história? Existe alguma relação entre passado e presente? A primeira pergunta Marc Bloch (2001, p.41) responde afirmando que é aquele em que há predomínio das ações humanas. Seu esclarecimento para a segunda pergunta é que ambos, passado e presente se influenciam. Preservar a memória das ações humanas é uma prática muito antiga, assim como é antiga a palavra história. Desde o século V antes de Cristo ela já era empregada com o sentido que tem hoje - investigação das ações dos homens através de tes- temunhos (fontes, registros etc.). Mas, diferentemente da histo- ria construída pelos antigos, para a história contemporânea não é somente a ação individual que interessa. Sua preocupação é mais ampla, tem a ver com a coletividade. Não procuramos mais destacar apenas os atos dos heróis como se fazia no passado, pelo contrário, as ações, as crenças, o comportamento dos indi- víduos devem ser levados em consideração e estudados. O objeto de estudo do historiador, segundo o pensador francês Marc Bloch é a investigação dos “homens” através do tempo. Não se trata apenas do passado, mas da relação entre passado e presente e vice-versa. Considerar que a história es- tuda “o passado humano” implicaria dizer que, o presente não influencia o passado e este chegaria intacto até nós. Existem al- guns fenômenos naturais que são vistos numa perspectiva histó- rica como as erupções vulcânicas, os avanços e recuos do mar etc. Porém, só são de domínio da história os acontecimentos nos quais existe a prevalência do homem, quando ele é agente ou paciente. Outras ciências estudam os acontecimentos que não são frutos da ação humana como a geologia, a geomorfologia, a astronomia, etc. Tema I | História: trajetória e defi nições 31 Os homens são percebidos pela História através de diver- sificados testemunhos, entre eles, vestígios na paisagem, textos escritos, monumentos, cultura material e imaterial entre outros. Procede-se a análise desses registros de forma precisa e tam- bém com o uso da imaginação, da sugestão. O conhecimento histórico não é atingido apenas por meio da ciência, dos dados exatos, é necessária uma dose de arte, de interpretação. Para ilustrar este caso, basta pensar como se faz a análise de uma fotografia, de uma pintura. O papel do pesquisador é analisar os acontecimentos, ele não deve apenas listar os fatos cronologicamente, mas deve situá-los dentro de um contexto. Por exemplo, se falamos de Martinho Lutero e da reforma protestante no século XVI, temos que situar os fatos ante aos problemas sociais, culturais e eco- nômicos da época, as relações entre a religião e a política, enfim, o contexto. Diz Marc Bloch (2001, p. 58): “devemos considerar o conhecimento do mais antigo como necessário ou supérfluo para a compreensão do mais recente?”. Esta questão é funda- mental para entendermos que relação há entre o passado e o presente. Martinho Lutero. Autor da Reforma Protestante que dividiu o cristianismo. É tarefa do historiador compreender a sua época, as suas ideias e a aceitação delas. Fonte: http://www.ielpa.org 32 Introdução ao Estudo Histórico Alguns estudiosos procuravam “explicar o mais próximo pelo mais distante”, esclarecer o presente pelo mais antigo. Neste caso, a origem seria o começo ou a causa dos acontecimentos? É um proceder problemático, pois onde localizar a origem? Onde buscar a origem do feudalismo: em Roma ou na Germânia? Na maior parte dos eventos históricos a localização desse ponto ini- cial é algo impreciso, inalcançável. Fazer uso desse expediente, geralmente, redunda na justificação ou condenação do passado. Mas o julgamento é inimigo da história. Cabe a esta entender, compreender e não louvar ou condenar o que os homens do passado fizeram. Em suma, não devemos esquecer que os fe- nômenos históricos também são explicados pelo seu momento. Castelo de Bodian, Inglaterra. Simboliza o Feudalismo e ilustra a pergunta sobre onde encontrar a sua origem, em Roma, na Germania. Fonte: http://www.historiadomundo.com.br Outros historiadores agiam de forma contrária, eram adeptos do “presentismo”, istoé, viam os acontecimentos do presente como se fossem desligados do passado, como se em algum momento surgisse uma barreira separando o presente do Tema I | História: trajetória e defi nições 33 passado. Mas, o que é o presente? É um instante que, mal nasce, já morre. Então, a separação entre passado e presente é arbitrária, só existe nas nossas cabeças. Alguns pesquisadores pretendiam distanciar-se da época de estudo. Assim, defendiam que a história estudaria a época antiga e os fatos recentes seriam dominados por sociólogos, economistas, jornalistas, etc. Acha- vam que as mudanças técnicas ocorridas no século XIX distan- ciaram os homens do passado. Porém, é preciso considerar que, mesmo durante as mudanças rápidas, há permanências, uma geração não esquece totalmente o que aprendeu com a sua an- tecessora, pois as gerações mantêm contatos e se influenciam. Tal influência não pode ser medida pela distância entre o mais antigo e o mais recente. De acordo com Marc Bloch (2001, p.65), a solidariedade das épocas tem sentido duplo, isto é, a compreensão do presen- te requer o conhecimento sobre o passado. Através das nossas experiências cotidianas podemos reconstituir o passado, desta- cando as mudanças e as permanências. Também o presente lan- ça novas questões ao passado, novas interrogações. É assim que se une “o estudo dos mortos ao dos vivos”. Em síntese, é inegá- vel que existe um relacionamento entre o presente e o passado. Nosso papel enquanto indivíduos ou historiadores é perceber essa relação, como ela ocorre. 34 Introdução ao Estudo Histórico Texto Complementar A IMPORTÂNCIA DA IMAGINAÇÃO NA HISTÓRIA. Pois o frêmito da vida humana, que exige um duríssimo esforço de imaginação para ser restituído aos velhos textos, é [aqui], diretamente perceptível a nossos sentidos. Li muitas ve- zes, narrei freqüentemente, relatos de guerras e de batalhas. Co- nhecia eu verdadeiramente, no sentido pleno do verbo conhecer, conhecia por dentro, antes de ter eu mesmo experimentado a atroz náusea, o que são, para um exército, o cerco, para um povo, a derrota? Antes de ter eu mesmo, durante o verão e o outono de 1918, respirado a alegria da vitória – na expectativa, e decerto espero, de com ela encher uma segunda vez meus pulmões, mas o perfume, ai de mim, não será mais completamente o mesmo -, sabia eu verdadeiramente o que encerra essa bela palavra? Na verdade, conscientemente ou não, é sempre a nossas experiên- cias cotidianas que, para nuançá-las onde se deve, atribuímos matizes novos, em última análise os elementos, que nos servem para reconstituir o passado: os próprios nomes que usamos a fim de caracterizar os estados de alma desaparecidos, as formas sociais evanescidas, que sentido teriam para nós se não hou- véssemos antes visto homens viverem? Vale mais [cem vezes] substituir essa impregnação instintiva por uma observação vo- luntária e controlada. Um grande matemático não será menos grande, suponho, por haver atravessado de olhos fechados o mundo onde vive. Mas o erudito que não tem o gosto de olhar a seu redor nem os homens, nem as coisas, nem os acontecimen- tos, [ele] merecerá talvez, como dizia Pirenne, o título de um útil antiquário. E agirá sensatamente renunciando ao de historiador. Além de tudo, a educação da sensibilidade histórica nem sempre está sozinha em questão. Ocorre de, em uma linha dada, o conhecimento do presente ser diretamente ainda mais impor- tante para a compreensão do passado. Tema I | História: trajetória e defi nições 35 Com efeito, seria um erro grave acreditar que a ordem adotada pelos historiadores em suas investigações deva neces- sariamente modelar-se por aquela dos acontecimentos. Livres para em seguida restituir à história seu movimento verdadeiro, eles frequentemente têm proveito em começar por lê-la, como dizia Maitland, “as avessas”. Pois a demarche natural de qualquer pesquisa é ir do mais ou do menos mal conhecido ao mais obs- curo. Sem dúvida, falta, e muito, para que a luz dos documentos se faça regularmente mais viva à medida que percorremos o fio das eras. Somos incomparavelmente menos informados sobre o século X de nossa era, por exemplo, do que sobre a época de César ou de Augusto. Na maioria dos casos, os períodos mais próximos não coincidem menos nesse aspecto com as zonas de clareza relativa. Acrescentem que, ao proceder, mecanicamente, de trás para frente, corre-se sempre o risco de perder tempo na busca das origens ou das causas de fenômenos que, à luz da experiência, irão revelar-se, talvez, imaginários. Por ter-se omitido de praticar, ali onde se impunha, um método prudentemente re- gressivo, os mais ilustres dentre nós às vezes se entregaram a estranhos erros. Fonte: BLOCH, M. Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 66-67. 36 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • A respeito do objeto de estudo da História, o que ela busca ao se debruçar nos documentos escritos, vestígios na pai- sagem, instituições. • Escolha um fato histórico de qualquer época e exercite a sua análise considerando o contexto em que ele aconteceu. • Na hora de interpretar os fatos históricos o historiador pode fazer várias opções. Dentre estas, esclareça como você en- tendeu os seguintes procedimentos: explicar o presente pela origem mais remota; analisar o presente sem nenhu- ma relação com o passado. • É possível alguém ser historiador e não gostar de olhar ao seu redor, nem de observar os homens, as coisas e os acontecimentos? (ver texto complementar) 1.4 HISTÓRIA COMO CIÊNCIA O que a História tem de ciência e de arte? A História é a mesma desde seu nascimento na Grécia Antiga, no século V a.C. até os dias de hoje? Como se deu a formação deste campo do conhecimento? Serão estas as temáticas discutidas a seguir. No século XX travou-se uma discussão a propósito da história ser uma ciência ou uma arte. Jacques Le Goff sustenta ser ela uma ciência porque precisa de técnicas, de métodos e de ser ensinada. Concordando com as ideias do século anterior, frisa que a história se faz com documentos, mas o documento já é pré-selecionado antes de ser usado pelo historiador. Logo, existe uma parte de subjetividade na produção desse conhecimento. Seria uma ciên- Tema I | História: trajetória e defi nições 37 cia especial que precisa e muito da imaginação. Nesse sentido, é também uma arte. Os historiadores do XIX acredi- tavam ser possível a fidelidade aos do- cumentos. Fustel de Coulanges3 dizia que devemos procurar os fatos não na imaginação, nem na lógi- ca, mas nos textos escritos e na falta de textos dever-se-ia pedir as línguas mortas o seu segredo. Ou seja, a fonte predominante era o texto escrito e abria-se uma exceção para o uso de outras fontes somente quando não houvesse documentos escritos. Após as limitações impostas ao fazer histórico, observadas neste século, houve renovações. Entre elas, a possibilidade de fa- zer uso de documentos não escritos. Esta mudança já vinha ocor- rendo desde o século XVIII, mas não tinha tanto sucesso entre os historiadores. Trata-se do papel da Arqueologia que ampliou o conhecimento sobre a História Antiga, a Proto-História e a Pré-His- tória, a partir das escavações e do uso dos artefatos encontrados. A Arqueologia influenciou bastante a História devido ao seu interesse pelos estudos globais, urbanos ou rurais, sobre a paisagem, enfim, pela cultura material. Começou a emergir reflexões sobre os motivos das ausências de documentos, possibilitando o estudo de temas silenciados como feitiçaria, loucura, festas, literatura popular, camponeses, etc. Antes os Manuscrito sergipano do século XIX. Era a fonte ideal para a maioria dos historia- dores da época. Fonte:http://www.tjse.jus.br 3 Fustel de Coulanges – historiador francês do século XIX. Autor de “A história antiga”. 38 Introdução ao Estudo Histórico historiadores davam maior atençãoà história política, destacando os feitos dos “grandes” homens. O fazer histórico se modificou profundamente. Contra a ideia de uma verdade histórica, insurge-se Paul Veyne4 dizendo que fazer história é questionar o conhecimento produzido, ou seja, é reavaliar o que foi escrito pelas gerações anteriores, sabendo identificar as crenças, as visões de mundo, as opções políticas etc., impregnadas nesses textos. O método da crítica documental interna e externa (este as- sunto será detalhado no tema “O século da História), inaugura- do no século XIX, sofreu alterações. A crítica externa que visa- va saber se o documento era verdadeiro ou falso, tomou outro sentido, porque o documento falso passou a ser considerado também como histórico, por informar sobre a época e as razões da sua falsificação. A crítica interna que procurava a autoria, a sinceridade e a exatidão do documento, passou a preocupar-se com o contexto de produção dos documentos. Como nenhum documento é inocente, na crítica do documento o pesquisador desmistifica o documento, ou seja, analisa o momento e a pessoa que produziu. História da história Até tomar a configuração que tem hoje, o fazer histórico passou por várias transformações. Desde o seu nascimento na Grécia Antiga com Heródoto, passando pela época medieval e moderna, muitos foram os avanços e recuos. 4 Paul Veyne - historia- dor da segunda metade do século XX. Funda- menta-se na psicologia, sociologia e na antropo- logia. Tema I | História: trajetória e defi nições 39 Heródoto5, que viveu no século V a.C., é considerado o pai da Histó- ria porque fundamentava seu trabalho nos testemunhos (hoje diríamos fon- tes). Utilizava o testemunho pessoal, registrando o que via e ouvia em suas viagens. Era um método que dava conta do passado recente. Tucídides6, outro historiador da época, falava da necessidade de fazer a crítica dos tes- temunhos (não acreditar cegamente nos relatos dos depoentes). É acusado, inclusive, de alterar os depoimentos para adequar ao que ele considerava correto. O pensador antigo Políbio7 agregou outras contribuições à História com suas investigações das causas, a proposta de uma história geral, sintética e comparativa. Políbio fazia uma história que buscava a verdade. Concebida como “mestra da vida”, servia para os homens não repetirem os erros de seus antepassados. Os primeiros cristãos dos séculos IV ao VI, também deram algumas contribuições à História. Entre elas, o enquadramento cronológico (a divisão em períodos) e a citação fiel dos docu- mentos, com o intuito de não alterar os documentos. Durante a Idade Média, apesar de diminuir o interesse pela produção e o ensino da História, continuou o esforço histórico representado pelo acúmulo e preservação de documentos nas igrejas e mos- teiros, obra dos monges copistas. Graças aos homens medievais temos preservados documentos e obras da Antiguidade. 5 Heródoto – 484 -420 a.C., historiador grego considerado o pai da história. 6 Tucídides – historiador grego nascido em 455 a.C.? Autor de História da guerra do Peloponeso. 7 Políbio – historiador grego já sob o domínio romano. 40 Introdução ao Estudo Histórico A partir do Renascimento a História ganha novas con- cepções e técnicas como a crítica dos documentos com aju- da da filologia, a laicização (abordando temas não religiosos), a eliminação de mitos e lendas. Começa a haver uma relação entre história e erudição. Os “eruditos” eram especialistas em antiguidades. As antiguidades eram os objetos da cultura ma- terial pertencentes ao mundo antigo, considerados importantes para se conhecer a época. Essa prática foi importante porque dos utensílios também se extraíam informações para o conhe- cimento das sociedades passadas. No caso dos períodos sem escrita (proto-história) foi um avanço significativo. História e erudição caminhavam separadas, quando se encontraram hou- ve um avanço no conhecimento do mundo antigo e medieval. As inovações persistiram. Entre os séculos XV e XVI, surge a história profana, sem fábulas e sem aspectos sobrenaturais; estudos eruditos sobre numismática, filologia (línguas mortas), dicionários e a noção de século. No século XVII assistimos ao Monge copista. Era o responsável pelo ensino medieval e pela preservação dos livros. Fonte: http://www.pedagogiaespirita.org Tema I | História: trajetória e defi nições 41 avanço da erudição e certo eclipse da História. Os monges bolandistas8, nessa época, aprimoram a crítica de documentos (diplomas) para identificar sua veracidade ou falsidade. Durante o século XVIII predomina o Racionalismo filosófico com Voltaire, dando origem a uma filosofia da história com explicação racional dos acontecimentos. As ideias da época rejeitam a Providência (Deus como motor da História) e a procu- ra de causas naturais. A História passou a ser estendida a todos os aspectos da sociedade e a todas as civilizações. Aparecem na França as primeiras instituições (arquivos e museus) dedicadas ao passado. Até o século XIX a História acumulou estas contribuições. Neste século ocorreu a atualização e a difusão da crítica docu- mental entre historiadores, antes utilizada apenas por eruditas. Deu-se também ênfase no ensino universitário e nas publica- ções, na criação de arquivos nacionais e de revistas nacionais de história em várias nações europeias. Neste cenário, a Prússia (hoje Alemanha) se destacou com a instalação do ensino de his- tória nas universidades, com a criação de institutos de pesquisa e com a publicação de coleções de documentos. 8 Monges bolandistas – religiosos da França especializados em estudar a vida dos santos. 42 Introdução ao Estudo Histórico Texto Complementar A MENTALIDADE HISTÓRICA: OS HOMENS E O PASSADO Anteriormente citei alguns exemplos do modo como os homens constroem e reconstroem o seu passado. É, em geral, o lugar que o passado ocupa nas sociedades o que aqui me inte- ressa. Adoto, neste ensaio, a expressão ‘cultura histórica’, usada por Bernard Guenée (1980). Sob este termo, Guenée reúne a ba- gagem profissional do historiador, sua biblioteca de obras histó- ricas, o público e a audiência dos historiadores. Acrescento-lhes a relação que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, mantém com o passado. Minha concepção não está muito afastada da- quilo a que os anglo-saxônicos chamam historical mindedness. Conheço os riscos desta reflexão: considerar unidade uma reali- dade complexa e estruturada em classes ou, pelo menos, em ca- tegorias sociais distintas por seus interesses e cultura, ou supor um ‘espírito do tempo’ (Zeitgeist), isto é, um inconsciente coleti- vo, o que são abstrações perigosas. No entanto, os inquéritos e os questionários usados nas sociedades ‘desenvolvidas’ de hoje mostram que é possível abordar os sentimentos da opinião pú- blica de um país a respeito de seu passado, assim como sobre outros fenômenos e problemas (cf. Lecuir, 1981). Como estes inquéritos são impossíveis no que se refere ao passado, esforçar-me-ei por caracterizar – sem dissimular o as- pecto arbitrário e simplificador deste procedimento – a atitude dominante de algumas sociedades históricas perante seu pas- sado e sua história. Considerarei os historiadores os principais interpretes da opinião coletiva, procurando distinguir suas idéias pessoais da mentalidade coletiva. Sei bem que ainda continuo a confundir passado com história na memória coletiva. Devo, pois, dar algumas explicações suplementares que tornam mais preci- sas as minhas idéias sobre a história. Tema I | História: trajetória e defi nições 43 A história da história não se deve preocupar apenas com a produção histórica profissional, mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura histórica, ou melhor, a mentalidade histórica de uma época. Um estudo dos manuais es- colaresde história é um aspecto privilegiado, mas esses manuais praticamente só passam a existir depois do século XIX. O estudo da literatura e da arte pode esclarecer este ponto. O lugar que Carlos Magno ocupa nas canções de gesta, o nascimento do ro- mance no século XII e o fato de ter assumido a forma de roman- ce histórico (argumento antigo, cf. Nouvelle Revue Française, nº 238, Le Roman Historique, 1972), a importância das obras históri- cas no teatro de Shakespeare (Driver, 1960) são testemunhas do gosto de algumas sociedade históricas por seu passado. Integra- do numa recente exposição de um grande pintor do século XV, Jean Fouquet, Nicole Reynaud mostrou (1981) como, a par do interesse pela história antiga, sinal do Renascimento (miniaturas da Antiquités judaiques, da Histoire ancienne, de Tite-Live), Fou- quet manifesta um gosto acentuado pela história moderna (Heu- res de Étienne Chevalier, Tapisserie de Tormisuy, Grandes Chro- niques de France etc.). dever-se-ia acrescentar-lhes o estudo dos nomes próprios, dos guias de peregrinos e turistas, das inscri- ções, da literatura de divulgação, dos monumentos etc. Marc Ferro (1977) mostrou como o cinema acrescentou à história uma nova fonte fundamental: o filme torna claro, aliás, que o cinema é ‘agente e fonte da história’. Isto é verdadeiro para o conjunto da media, o que bastaria para explicar que a relação dos homens com a história conhece, como a media moderna (comunicação de massa, cinema, radio, televisão), um avanço considerável. É este alargamento da noção de história (no sentido de historiogra- fia) que santo Mazzarino defendeu no grande estudo Il pensiero storico clássico (1966). Fonte: LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. p. 47-49. 44 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • O que significa dizer que a História é um conhecimento subjetivo? • Qual foi a contribuição de Heródoto, Tucídides e Políbio para o nascimento do ofício do historiador? • O fazer histórico conheceu várias transformações, quais delas ocorreram durante a época Iluminista (século XVIII)? • No século XIX a História conheceu um aprimoramento significativo, discuta uma das novidades deste período: RESUMO DO TEMA I Até aqui tratamos de algumas questões iniciais da histó- ria. Falamos do método histórico inventado por Heródoto na Antiguidade, que fala na história como investigação e desta- ca a importância dos testemunhos que viram ou ouviram os acontecimentos. Frisamos os procedimentos do historiador com a observação direta e indireta do passado, destacando que os vestígios por ele investigados sempre lhe dão o aces- so direto ao passado. A respeito da relação entre passado e presente, aprendemos que ambos se influenciam e que as questões do presente são indispensáveis para interrogarmos o passado. Metodologicamente não é a investigação das ori- gens que deve motivar o pesquisador. Para entendermos as transformações vivenciadas pela ciência histórica, vimos os avanços e os recuos que a história teve ao longo dos séculos.
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