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PROGRAMA Com esta disciplina de carácter propedêutico, pretende-se proporcionar aos alunos instrumentos e competências metodológicas fundamentais para uma melhor análise e compreensão das práticas discursivas e sociais no mundo contemporâneo. Para esse efeito, levar-se-á em linha de conta o seguinte elenco programático: 1. Cultura: paradigmas conceptuais e modos de abordagem. 2. Globalização e diversidade cultural. 3. Multiculturalismo e interculturalidade. 4. Nação e pós-colonialismo. 5. Raça e etnicidade. 6. Comunicação de massas e indústrias culturais. 7. Sociedade e novas tecnologias. MÉTODOS DE ENSINO Para além da exposição teórica levada a cabo pelo docente, lançando mão de variadas estratégias, será valorizado o contributo activo e crítico dos alunos, tanto no que concerne à leitura e discussão de textos teóricos, como aos exercícios de análise orientada, com base num corpus textual e audiovisual previamente seleccionado. RESULTADOS Espera-se que, no final do semestre, os alunos sejam capazes de articular, de modo produtivo, a reflexão sobre os paradigmas teóricos, na sua complexidade e diversidade de manifestações, e os instrumentos metodológicos mais adequados com a prática de análise de diversas formas textuais e discursivas. SISTEMA DE AVALIAÇÃO Propõe-se a existência de dois regimes de avaliação: 1. Avaliação final através de exame escrito, que abrange todos os conteúdos leccionados (podendo implicar uma prova oral, nos termos previstos no Regulamento em vigor na Faculdade). 2. Avaliação contínua, mediante os seguintes critérios: a) a realização de duas provas, abrangendo cada uma delas um sector distinto da matéria leccionada e que terão lugar sensivelmente a meio e no final do período de aulas previsto para o 1.º semestre (45%+45%); b) a participação regular nas actividades lectivas (10%). c) a frequência de 75% das aulas leccionadas. Introdução aos Estudos Culturais 2 O HORIZONTE DE PESQUISA DOS ESTUDOS CULTURAIS 1. Para Stuart Hall (um dos responsáveis pela afirmação desta área de pesquisa): “Os estudos culturais não configuram uma ‘disciplina’ mas uma área onde diferentes disciplinas interactuam, visando o estudo de aspectos culturais da sociedade.” (Hall et al., Culture, Media, Language, 1980: 7). 2. No volume Cultural Studies, organizado por L. Grossberg, C. Nelson e P. Treichler, considera-se que estamos perante: «um campo interdisciplinar, transdisciplinar e, por vezes, contradisciplinar que opera na tensão entre a tendência para adoptar uma concepção de cultura ampla, antropológica, e outra concepção mais estreitamente humanista. Diferentemente da antropologia tradicional, contudo, eles nasceram de análises das modernas sociedades industriais. Eles são, por norma, interpretativos e avaliativos nas suas metodologias, mas, diferentemente do humanismo tradicional, rejeitam a identificação exclusiva da cultura com a alta cultura e argumentam que todas as formas de produção cultural têm de ser estudadas em relação com outras práticas culturais e com estruturas sociais e históricas. Os estudos culturais dedicam-se, assim, ao estudo de toda a panóplia das artes, crenças, instituições e práticas comunicativas de uma sociedade». (New York, Routledge, 1992, p. 4; seguimos a trad. proposta por A. Sousa Ribeiro e M. Irene Ramalho em «Dos Estudos Literários aos Estudos Culturais?» (2001). 3. Sectores mais relevantes da investigação desenvolvida no âmbito dos Estudos Culturais: «As categorias mais utilizadas na actividade actual dos Estudos culturais são a história dos Estudos culturais, o género {gender}, a sexualidade, a nação e a identidade nacional, o colonialismo e o pós-colonialismo, a raça e a etnicidade, a cultura popular e a sua audiência, a ciência e a ecologia, as identidades políticas, a pedagogia, as políticas da estética, as instituições culturais, as políticas da disciplina, o discurso e a textualidade, a história e a cultura global na idade pós-moderna.» (L. Grossberg, C. Nelson e P. Treichler, 1992, p. 1) Introdução aos Estudos Culturais 3 1. Cultura: paradigmas conceptuais e modos de abordagem TEXTO 1 — Stuart Hall, «ESTUDOS CULTURAIS. DOIS PARADIGMAS», in Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais (org. de Liv Sovik), Belo Horizonte, Editora UFMG; Brasília, Representação da Unesco no Brasil, 2003 [pp. 131-136] Os Estudos Culturais, como problemática distinta, emergem [...] nos meados da década de 1950. Certamente não foi a primeira vez que suas questões características foram colocadas na mesa. Muito pelo contrário. Os dois livros que ajudaram a marcar o novo terreno — As utilizações da cultura, de Hoggart, e Cultura e sociedade 1780- 1950, de Williams — são ambos, de maneiras distintas, trabalhos (em parte) de recuperação. O livro de Hoggart teve como referência o "debate cultural" há muito sustentado nas discussões acerca da "sociedade de massa", bem como na tradição do trabalho intelectual identificado com Leavis e a revista Scrutiny. Cultura e sociedade reconstruiu uma longa tradição definida por Williams como aquela que, em resumo, consiste do "registro de um número de importantes e contínuas reações a ... mudanças em nossa vida social, económica e política" e que oferece "um tipo especial de mapa pelo qual a natureza das mudanças pode ser explorada". Os livros pareciam, inicialmente, simples atualizações dessas preocupações anteriores, com referência ao mundo do pós-guerra. Retrospectivamente, suas "rupturas" com as tradições de pensamento em que estavam situados parecem tão ou mais importantes do que sua continuidade com as mesmas. As utilizações da cultura propôs-se — muito no espírito da "crítica prática" — a ler a cultura da classe trabalhadora em busca de valores e significados incorporados em seus padrões e estruturas: como se fossem certos tipos de "textos". Porém, a aplicação desse método a uma cultura viva e a rejeição dos termos do debate cultural (polarizado em torno da distinção de alta/baixa cultura) foi um desvio radical. Cultura e sociedade, num único e mesmo movimento, constituiu uma tradição (a tradição de "cultura-e-sociedade"), definiu a sua "unidade" (não em termos de posições comuns, mas de preocupações características e formas de expressão de suas indagações) e fez uma contribuição distintamente moderna ao assunto ao mesmo tempo em que escrevia seu epitáfio. O livro de Williams que o sucedeu — The Long Revolution — indicou claramente que o modo de reflexão cultura-e-sociedade só poderia ser completado e desenvolvido a partir de outro lugar — um tipo de análise significativamente diferente. Com sua tentativa de "teorizar" a partir de uma tradição cujo estilo de pensamento era decididamente empírico e particularista, mais a densidade experimental de seus conceitos e o esforço generalizante de sua argumentação, The Long Revolution deve sua dificuldade de Introdução aos Estudos Culturais 4 leitura, em parte, ao fato de ter a determinação de mudar [...]. As partes "boas" e "ruins" dessa obra provêm do seu status de "obra de ruptura". O mesmo pode ser dito de A formação da classe operária inglesa, de E. P. Thompson, que pertence decisiva- mente a esse "momento", ainda que tenha surgido, cronologicamente, um pouco mais tarde. Esse também foi um trabalho pensado dentro de certas tradições históricas específicas: a historiografia marxista inglesa e a história económica e "do trabalho".[...] Eram, claro, textos seminais e de formação. Não eram, em caso algum, "livros- textos" para a fundação de uma nova subdisciplina académica: nada poderia ter sido mais estranho ao seu impulso intrínseco. Quer fossem históricos ou contemporâneos em seu foco, eles próprios constituíam respostas às pressões imediatas do tempo e da sociedade em que foram escritos, ou eram focalizados ou organizados por tais respostas. Eles não apenaslevaram a "cultura" a sério, como uma dimensão sem a qual as transformações históricas, passadas e presentes, simplesmente não poderiam ser pensadas de maneira adequada. Eram em si mesmos "culturais", no sentido de Cultura e sociedade. Eles forçaram seus leitores a atentar para a tese de que, "concentradas na palavra 'cultura', existem questões diretamente propostas pelas grandes mudanças históricas que as modificações na indústria, na democracia e nas classes sociais representam de maneira própria e às quais a arte responde também, de forma semelhante". [...] E talvez seja um ponto a notar que essa linha de pensamento coincidia mais ou menos com o que tem sido chamado de "agenda" da Nova Esquerda, à qual esses escritores e seus textos, de uma forma ou de outra, pertenciam. Essa ligação colocou a "política do trabalho intelectual" bem no centro dos Estudos Culturais desde o início — uma preocupação da qual, felizmente, eles nunca foram nem jamais poderão ser liberados. Num sentido profundo, o "acerto de contas" em Cultura e sociedade, a primeira parte de The Long Revolution, certos aspectos particularmente densos e concretos do estudo de Hoggart sobre a cultura da classe trabalhadora e da reconstrução histórica da formação da cultura de classe e das tradições populares do período entre 1790/1830, feita por Thompson — em conjunto — constituíram a ruptura e definiram um novo espaço em que uma nova área de estudo e prática brotou. Em termos de marcações e ênfases intelectuais, esse foi — se é que algo assim pode ser verificado — o momento de "re-fundação" dos Estudos Culturais. A institucionalização deles — primeiro, no centro em Birmingham, e depois, por meio de cursos e publicações provenientes de várias fontes e lugares, com suas perdas e ganhos característicos, pertencem ao período dos anos 60 em diante. A "cultura" era o local de convergência. Mas, que definições desse conceito central emergiram desse conjunto de obras? E, em torno de qual espaço foram Introdução aos Estudos Culturais 5 unificadas as suas preocupações e conceitos, já que decisivamente essa linha de pensamento moldou os Estudos Culturais e representa a tradição autóctone ou "nativa" mais formativa? O fato é que nenhuma definição única e não problemática de cultura se encontra aqui. O conceito continua complexo — um local de interesses convergentes, em vez de uma ideia lógica ou conceitualmente clara. Essa "riqueza" é uma área de contínua tensão e dificuldade no campo. Pode ser necessário, portanto, resumir brevemente as ênfases e dimensões características pelas quais o conceito chegou ao seu atual [1980] estado de (in)determinação. [...] Duas maneiras diferentes de conceituar a cultura podem ser extraídas das várias e sugestivas formulações feitas por Raymond Williams em The Long Revolution. A primeira relaciona cultura à soma das descrições disponíveis pelas quais as sociedades dão sentido e refletem as suas experiências comuns. Essa definição recorre à ênfase primitiva sobre as "ideias", mas submete-a a todo um trabalho de reformulação. A concepção de cultura é, em si mesma, socializada e democratizada. Não consiste mais na soma de o "melhor que foi pensado e dito", considerado como os ápices de uma civilização plenamente realizada — aquele ideal de perfeição para o qual, num sentido antigo, todos aspiravam. Mesmo a "arte" — designada anteriormente como uma posição de privilégio, uma pedra-de-toque dos mais altos valores da civilização — é agora redefinida como apenas uma forma especial de processo social geral: o dar e tomar significados e o lento desenvolvimento dos significados comuns; isto é, uma cultura comum: a "cultura", neste sentido especial, "é ordinária" (tomando emprestado uma das primeiras tentativas de Williams de tornar sua posição básica mais acessível). Se as descrições mais sublimes e refinadas das obras literárias também fazem "parte do processo geral que cria convenções e instituições, pelas quais os significados a que se atribui valor na comunidade são compartilhados e ativados", então não existe nenhum modo pelo qual esse processo pode ser desvinculado, distinguido ou isolado de outras práticas que formam o processo histórico. [...] Assim, de maneira alguma as descrições literárias, entendidas dessa forma, podem ser isoladas e comparadas com as outras coisas. Se a arte é parte da sociedade, não existe unidade sólida fora dela, para a qual nós concedemos prioridade pela forma de nosso questionamento. A arte existe aí como uma atividade, juntamente com a produção, o comércio, a política, a criação de filhos. Para estudar as relações adequadamente, precisamos estudá-las ativamente, vendo todas as atividades como formas particulares e contemporâneas de energia humana. Introdução aos Estudos Culturais 6 Se essa primeira ênfase levanta e re-trabalha a conotação do termo cultura com o domínio das "ideias", a segunda ênfase é mais deliberadamente antropológica e enfatiza o aspecto de "cultura" que se refere às práticas sociais. É a partir dessa segunda ênfase que uma definição de certo modo simplificada — "a cultura é um modo de vida global" — tem sido abstraída de forma um tanto pura. Williams relacionou esse aspecto do conceito ao uso mais documental do termo — isto é, descritivo ou mesmo etnográfico. Mas a definição anterior me parece a mais central, pois nela o "modo de vida" está integrado. O ponto importante nessa discussão se apoia nas relações ativas e indissolúveis entre elementos e práticas sociais normalmente isoladas. É nesse contexto que a "teoria da cultura" é definida como "o estudo das relações entre elementos em um modo de vida global". A cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e "culturas populares [folkways]" das sociedades, como ela tende a se tornar em certos tipos de antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas. Desse modo, a questão do que e como ela é estudada se resolve por si mesma. A cultura é esse padrão de organização, essas formas características de energia humana que podem ser descobertas como reveladoras de si mesmas — "dentro de identidades e correspondências inesperadas", assim como em "descontinuidades de tipos inesperados" — dentro ou subjacente a todas as demais práticas sociais. A análise da cultura é, portanto, "a tentativa de descobrir a natureza da organização que forma o complexo desses relacionamentos". Começa com "a descoberta de padrões característicos". Iremos descobri-los não na arte, produção, comércio, política, criação de filhos, tratados como atividades isoladas, mas através do "estudo da organização geral em um caso particular". Analiticamente, é necessário estudar "as relações entre esses padrões". O propósito da análise é entender como as inter-relações de todas essas práticas e padrões são vividas e experimentadas como um todo, em um dado período: essa é sua "estrutura de experiência" [structure of feeling]. [...] Introdução aos Estudos Culturais 7 TEXTO 2 — Raymond Williams, Moving from High Culture to Ordinary Culture Originally published in N. McKenzie (ed.), Convictions, 1958 Culture is ordinary: that is the first fact. Every human society has its own shape, its own purposes, its own meanings. Every human society expresses these, in institutions, and in arts and learning. The making of a society is the finding of common meanings and directions, and its growth is an active debate and amendment under the pressures of experience, contact, and discovery, writing themselves into the land. […] A culture has two aspects: the known meanings and directions, which its members are trained to; the new observations and meanings, which are offered and tested. These are the ordinary processes of human societiesand human minds, and we see through them the nature of a culture: that it is always both traditional and creative; that it is both the most ordinary common meanings and the finest individual meanings. We use the word culture in these two senses: to mean a whole way of life - the common meanings; to mean the arts and learning - the special processes of discovery and creative effort. Some writers reserve the word for one or other of these senses; I insist on both, and on the significance of their conjunction. The questions I ask about our culture are questions about deep personal meanings. Culture is ordinary, in every society and in every mind. Introdução aos Estudos Culturais 8 Textos retirados de HARTLEY, John, Comunicação, estudos culturais e media: conceitos-chave. Trad. Fernanda Oliveira e revisão científica de Isabel Ferin, Lisboa, Quimera, 2004. HEGEMONIA Um conceito desenvolvido por Gramsci, nos anos de 1930, e recuperado nos estudos culturais, em que se refere principalmente à capacidade de as classes dominantes exercerem a liderança social e cultural em determinados períodos históricos e, por este meio — em vez da coerção directa das classes subordinadas —, manterem o poder sobre a direcção económica, política e cultural da nação. O aspecto crucial da noção de hegemonia não é o facto de operar forçando as pessoas, contra a sua vontade, a conceder o poder àqueles que já são poderosos, mas sim o de funcionar obtendo o consentimento para formas de perceber o mundo que fazem, de facto, sentido. Também acontece que estas últimas servem os interesses da aliança hegemónica de classes, ou bloco do poder. Daí que a nossa participação activa no entendimento de nós próprios, das nossas relações sociais e do mundo em geral resulte numa cumplicidade com a nossa própria subordinação. A ideia de obter consentimento estende o conceito de hegemonia para lá da análise de classe como tal. Em análise cultural, o conceito é usado para mostrar como os significados, representações e actividades quotidianos são organizados e dados a perceber de forma a tornar os interesses de um «bloco» dominante num interesse geral, aparentemente natural e inquestionável. Assim, os estudos que se concentram no aspecto hegemónico da cultura centrar-se-ão naquelas formas e instituições que são normalmente consideradas imparciais ou neutras; «representativas» de toda a gente, sem aparente referência a classe, raça ou género. Essas instituições abrangem simultaneamente a esfera pública e privada - incluindo o Estado, a lei, o sistema educativo, os media e a família. Elas são prolíferas produtoras de sentido, conhecimento e significados. Para além da função aparente, a sua importância cultural reside no papel que desempenham enquanto organizadoras e produtoras da consciência individual e social. Embora sejam relativamente autónomas, povoadas por pessoas com características diferentes e com diferentes aptidões profissionais e ideologias, a verdade é que estas agências culturais formam colectivamente o lugar em que a hegemonia pode ser estabelecida e exercida. Segue-se que a hegemonia opera no reino da consciência e das representações; o seu sucesso é mais provável quando a totalidade da experiência social, cultural e individual é capaz de ser dada a perceber em termos que são definidos, estabelecidos e postos a circular pelo bloco do poder. Em suma, a hegemonia naturaliza aquilo que historicamente é uma ideologia de classe, e transforma-a em senso comum. A conclusão é que o poder pode não ser exercido como força, mas como «autoridade», e que os aspectos «culturais» da vida são despolitizados. Introdução aos Estudos Culturais 9 SUBCULTURA Grupo de indivíduos que partilha interesses, ideologias e práticas particulares. Como o prefixo sub indica, esses grupos são entendidos como formando a sua identidade em oposição a uma cultura dominante ou «mãe». Os primeiros estudos subculturais notaram que esta oposição era levada a cabo através de vários meios, mas o mais visível era o estilo. O trabalho recente na área sugere que esta relação já não é tão explícita, defendendo que as definições tradicionais das subculturas assentam em circunstâncias históricas particulares. O estudo realizado por Hebdige (1979) sobre os teddy boys, mods, roqueiros e punks é entendido como um dos textos fundadores dos estudos subculturais. Ele afirma que as subculturas tornam a sua identidade visível pela incorporação de um estilo específico e pelas opções de lazer. Os punks, por exemplo, usavam alfinetes-de- ama, maquilhagem e roupas extravagantes, e apoiavam um género de música particular como meio de representar a sua identidade. Para Hebdige, o uso do estilo e do lazer dos grupos subculturais era uma forma de política simbólica, «tornando os seus valores visíveis numa sociedade saturada de códigos e símbolos da cultura dominante» (Shuker, 1994). Os objectivos das subculturas são a formação da identidade e um desafio visível à hegemonia da sociedade. Central para a tese de Hebdige é a noção de resistência, especificamente em relação à cultura mãe ou cultura de massas. Mas, como ele declarou, um dos maiores desafios a esta resistência é a «recuperação ideológica», pela qual uma subcultura começa a perder o sentido da diferença, à medida que o seu estilo vai sendo incorporado na cultura comercial (Hebdige, 1979: 97). Uma das formas como isto é alcançado é através da exposição mediática. Embora histórias reprovadoras na imprensa possam operar no sentido de criar e legitimar as subculturas, os relatos aprovadores «são o beijo da morte subcultural» (Thornton, 1995). O impacte inicial dos punk foi relatado nos media em termos similares a um pânico moral, mas em pouco tempo a moda punk espalhou-se e a aparência dos próprios punks nos postais de Londres assinalou o começo do processo de recuperação, como descrito por Hebdige. Teóricos mais recentes das subculturas, como Thornton (1995) defendem que as comunidades estão a ser formadas, não tanto a partir da resistência, mas de gostos e interesses partilhados. Thornton usa o termo «culturas de gosto» para descrever o agrupamento de indivíduos que ouvem dance music e vão a raves e discotecas. Ela insiste em que, embora as culturas de gosto, como as subculturas, estejam ligadas através de certas comunidades, elas baseiam-se menos nos modelos de resistência avançados por Hebdige. Aqui, mais do que o estilo, a música, as drogas e o lazer (discotecas/festas) são centrais para a construção do significado, com a oposição dirigida mais à música comercial do que genericamente à cultura mãe. A mudança das subculturas para as culturas de gosto reconhece que as comunidades marginais nem sempre estão necessariamente interessadas na resistência. Enquanto o próprio Hebdige (1988) declarou a morte da importância subcultural juntamente com a do movimento punk, os estudos da relação entre a identidade e as opções de lazer continuam. O que é aparente em trabalhos mais recentes é que o estilo e o lazer ainda são empregues como símbolos nas práticas dos jovens e transformam-se em marcas de distinção entre várias culturas de gosto. A resistência é inútil. Introdução aos Estudos Culturais 10 TEXTO 1 — Armand Mattelart e Érik Neveu, Introdução aos Cultural Studies, Porto, Porto Editora, 2006, pp. 37-39. Expansão e coerência das problemáticas A mancha de óleo do cultural O interesse demonstrado pelas práticas culturais, definidas sem qualquer preocupação com o respectivo prestígio social, conduz os investigadores do Centro a considerarem a diversidade dos produtos culturais consumidos pelas classes populares. Birmingham será uma das primeiras equipas a mobilizar as Ciências Sociais para bens tão profanos como a publicidade e a música rock […]. Mas, […] são, gradualmente, os media audiovisuais e os seus programas de informação ede entretenimento que se tornarão no objecto de estudo das pesquisas. […] Em Encoding/Decoding [1973], Hall desenvolve um quadro teórico que coloca a tónica no facto de o funcionamento de um media não poder limitar-se a uma transmissão mecâ- nica (emissão/recepção), supondo antes uma organização do material discursivo (discursos, imagens, relatos) onde os dados técnicos, os constrangimentos de produção e os modelos cognitivos têm grande peso. Este quadro analítico pode parecer banal actualmente, mas, na época, implicava tomar em consideração todas as situações de distanciamento, os códigos culturais, as regras mediáticas que regem a produção da mensagem, por um lado, e as referências culturais dos receptores, por outro lado. […] A noção de descodificação convida a que se encare seriamente o facto de os receptores possuírem estatutos sociais e culturas e que, por se ver ou ouvir um mesmo programa, isso não implica que o sentido ou a recordação daí retirados sejam semelhantes. Género e "raça": novas alteridades O movimento tipo mancha de óleo conhecerá finalmente dois desen- volvimentos, cujas consequências a longo prazo serão essenciais. O primeiro conduz às questões de género, à variável masculino/feminino. Esta grelha de leitura estrutura a colectânea Women Take Issue [Womens Studies Group, 1978]. A valorização do género deve-se ao trabalho empírico, que manifesta diferenças de consumo e de apreciação entre homens e mulheres, em matéria de televisão ou de bens culturais. É, também, resultado da sensibilidade feminista das investigadoras (Charlotte Brunsdon e Dorothy Hobson). Como abster-nos de revelar o quanto as personagens e os comportamentos analisados pela literatura acerca das subculturas são sempre masculinos ou de nos interrogarmos sobre uma forma de conivência machista em determinadas descrições da cultura operária? […] Valorizada nos primeiros trabalhos de Hebdige, a outra alteridade, simbolizada pelas comunidades imigrantes e a questão do racismo, ocupará um lugar de destaque na colectânea The Empire Strikes Back [CCCS, 1982]. Também aqui são o terreno e a presença de importantes comunidades de imigrantes e as reacções de atracção e de rejeição racista por elas suscitadas que obrigam a que seja prestada atenção a estas variáveis. Esta sensibilidade deve-se igualmente à presença de imigrantes ou de filhos de imigrantes entre os investigadores do Centro, a começar por Hall ou Paul Gilroy. Acrescentaremos que a situação britânica se opõe à francesa num ponto essencial: os criadores oriundos da imigração gozam, em Inglaterra, de uma presença e de um reconhecimento mais marcante no mundo cultural, especialmente na literatura (Kincaïd, Kureishi, Rushdie). Introdução aos Estudos Culturais 11 TEXTO 2 — Stuart Hall, «Codificação/Decodificação», in Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais (org. de Liv Sovik), Belo Horizonte, Editora UFMG; Brasília, Representação da Unesco no Brasil, 2003. a) Diagrama [p. 391] PROGRAMA COMO DISCURSO “SIGNIFICATIVO” codificação decodificação estruturas de sentido 1 estruturas de sentido 2 referenciais de conhecimento referenciais de conhecimento relações de produção relações de produção infra-estrutura técnica infra-estrutura técnica b) Toda sociedade ou cultura tende, com diversos graus de clausura, a impor suas classificações do mundo social, cultural e político. Essas classificações constituem uma ordem cultural dominante, apesar de esta não ser nem unívoca nem incontestável. A questão da “estrutura dos discursos em dominância” é um ponto crucial. As diferentes áreas da vida social parecem ser dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais. […] Os domínios dos “sentidos preferenciais” têm, embutida, toda a ordem social enquanto conjunto de significados, práticas e crenças: o conhecimento cotidiano das estruturas sociais, do “modo como as coisas funcionam para todos os propósitos práticos nesta cultura”; a ordem hierárquica do poder e dos interesses e a estrutura das legitimações, restrições e sanções. Por isso, para esclarecer um “mal- entendido” em relação ao nível conotativo, devemos nos referir (através de códigos) às ordenações da vida social, do poder político e económico e da ideologia. Além disso, como esses mapas são “estruturados em dominância” mas não são fechados, o processo comunicativo não consiste na atribuição não-problemática de cada item visual à sua posição dentro de um conjunto de códigos pré-arranjados, mas sim em regras performativas; ou seja, regras de competência e uso, de lógica aplicada — que buscam ativamente reforçar ou preferir um domínio semântico a outro e incluir e excluir itens dos conjuntos de sentido apropriados. [p. 397] Introdução aos Estudos Culturais 12 TEXTO 3 — Armand Mattelart e Érik Neveu, Introdução aos Cultural Studies, Porto, Porto Editora, 2006, p. 62. Compreende-se […] que a "viragem etnográfica" possa também ser concebida como continuidade, como identificação dos meios mais eficazes para analisar no terreno os enigmas ligados aos processos de decomposição/recomposição identitária, para compreender consumos culturais, opções identitárias e ideológicas, "prazeres" mediáticos que não podem deixar de ser considerados escandalosos por intelectuais marcados pelo marxismo. Baseando-se nestes diagnósticos relativos às novas condições da formação das identidades sociais, desde então, Hall não cessou de afir- mar a centralidade conquistada pela cultura na gestão das sociedades e, consequentemente, na forma de encarar a acção política. Em matéria de investigações académicas, em 1991, Hall explicava o "reposicionamento" dos Cultural Studies, insistindo em determinados factores principais que obrigavam a "transpor as fronteiras". Entre eles: 1) a "globalização" de origem económica, esse "processo parcial de desagregação das fronteiras que formaram tanto as culturas nacionais como as identidades individuais, especialmente na Europa"; 2) a ruptura das "paisagens sociais" nas "sociedades industriais avançadas" que faz com que o "eu" (self) passe a ser parte integrante "de um processo de construção das identidades sociais no qual o indivíduo se define, situando-se em relação a diversas coordenadas, sem ser redutível a uma ou a outra coordenada (quer seja a classe, a nação, a raça, a etnia ou o género)"; 3) a força das migrações que "silenciosamente transformam o nosso mundo"; 4) o processo de homogeneização e de diferenciação que mina, a partir de baixo e de cima, a força organizadora das representações do Estado-Nação, da cultura nacional e da política nacional [Hall, 1991]. Acrescentaremos à sua lista a ruptura que constitui, para os investigadores que se mantêm politicamente empenhados, a quase obrigação de investir as suas energias em movimentos sociais e já não em organizações do partido. Estes investimentos, que sempre foram os de Hall, passam também a ser os de Thompson, agente indispensável ao movimento pacifista e para o desarmamento nuclear (CND), confrontando-se, por vezes, com a incompreensão dos seus colegas. Menos conhecido, o empenhamento de Morley reflecte, igualmente, esta nova focalização nos movimentos sociais, uma vez que foi um dos principais responsáveis das edições Comedia, intimamente ligadas aos movimentos alternativos (feministas, antinucleares, anti-racistas e cooperativos). Introdução aos Estudos Culturais 13 BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA DA UNIDADE 1 (ESTUDOS CULTURAIS - HORIZONTE DE PESQUISA; CONDIÇÕES DE EMERGÊNCIA E DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO) BARKER, Chris, Cultural studies: theory and practice, London, Sage Publications, 2000. EDGAR, Andrew e Peter Sedgwick, Cultural theory: the key concepts, London, Routledge, 2002. EAGLETON,Terry, A ideia de cultura, Lisboa, Temas e Debates – Actividades Editoriais, 2003. FERIN, Isabel, Comunicação e culturas do quotidiano, Lisboa, Quimera, 2002. GROSSBERG, Lawrence, Cary Nelson e Paula A. Treichler, Cultural studies, New York, Routledge, 1992. HALL, Stuart, Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais (org. de Liv Sovik), Belo Horizonte, Editora UFMG; Brasília, Representação da Unesco no Brasil, 2003. HARTLEY, John, Comunicação, estudos culturais e media: conceitos-chave. Trad. Fernanda Oliveira e rev. cient. de Isabel Ferin, Lisboa, Quimera, 2004. MATTELART, Armand e Érik Neveu, Introdução aos ‘Cultural Studies’, Porto, Porto Editora, 2006. RIBEIRO, A. Sousa/Ramalho, M. Irene, «Dos Estudos Literários aos Estudos Culturais?», in Helena BUESCU et al. (Orgs.), Floresta Encantada. Novos Caminhos da Literatura Comparada, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2001, pp. 61- 82. SANCHES, Manuela Ribeiro, «Nas margens: os estudos culturais e o assalto às fronteiras académicas e disciplinares», in Etnográfica. Vol. III (1) 1999, Lisboa, pp. 193-210. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e, «Genealogias, lógicas e horizontes dos Estudos Culturais», in As humanidades, os estudos culturais, o ensino da literatura e a política da língua portuguesa, Coimbra, Almedina, 2010. STOREY, John, Cultural studies and the study of popular culture: theories and methods, Athens, University of Georgia Press, 2002. WILLIAMS, Raymond, Keywords. A vocabulary of culture and society, New York, Oxford UP, 1983. Introdução aos Estudos Culturais 14 GLOBALIZAÇÃO (John Hartley, Comunicação, estudos culturais e media: conceitos-chave. Trad. Fernanda Oliveira e rev. cient. de Isabel Ferin, Lisboa, Quimera, 2004, pp. 125-127) Os componentes da globalização não são novos. Há séculos que o movimento através das fronteiras tem sido vigorosamente prosseguido. A troca cultural e a interdependência ocorreram ao longo da história através da colonização, do comércio e da exploração. A aceleração da indústria por via da inovação tecnológica descreve tanto a era industrial como a era da informação. E a noção de uma cidadania de lealdades múltiplas, sujeita a mais do que um poder soberano, há muito que acontecia em alguns países, sobretudo nas antigas colónias. A palavra «globalização» é mais usada para descrever uma recente intensificação de redes, alianças e interligações em economia, cultura e política, e a forma particular que estes processos assumem na sua totalidade e não na sua singularidade. O fenómeno económico da globalização assistiu, a partir dos anos de 1980, à expansão do comércio e do capital para lá das fronteiras, a um ritmo sem precedentes. Isso implica mudanças nos sistemas e estruturas do comércio. Os exemplos incluem: � sistemas de comunicação através dos quais é conduzido o comércio; � práticas de trabalho e as aptidões necessárias para dirigir o capital de modo eficaz; � novos regimes legais e institucionais requeridos para controlar, ordenar e manipular os mercados. No processo, a globalização viu o comércio e o capital internacionais serem desenraizados das economias nacionais. O comércio electrónico permite a comercialização de bens no espaço electrónico internacional, estimulando a criação de novos serviços e fluxos de capital mais rápidos, capazes de transcender as estratégias de controlo e intervenção directas do governo. Com a nova tecnologia, os mercados de câmbio podem transaccionar transferências de milhares de milhões de dólares pelo mundo fora numa fracção de segundo. Não só a extensão da economia até áreas fora do governo do Estado-nação está a causar preocupação quanto à capacidade dos Estados-nação para actuarem, como o ritmo e a magnitude a que o capital é mobilizado deixou os bancos sem capacidade para influenciar as taxas de câmbio da forma como é esperado que o façam (Sassen, 1999). O mapa da globalização é um mapa onde economias nacionais separadas estão a tornar- -se parte de uma nova economia descentralizada. Agora, os Estados-nação não têm estratégias económicas nacionais, mas antes «estratégias que operam num sistema económico global» (Castells, 1999: 48). Em resultado disso, surgiram receios de que os países perdessem a sua autonomia - que a globalização trouxesse consigo a dissolução dos Estados-nação -, reforçados pela formação de blocos comerciais, pela moeda única para a Europa e pelo desenvolvimento da lei internacional. No entanto, o poder do Estado-nação é essencial em muitos aspectos para os processos de globalização. Os Estados são cúmplices na globalização, já que é o seu consentimento que faz avançar a economia global de forma a melhorar a sua própria posição económica. Além disso, os países dominantes desempenharam um importante papel na preparação de estruturas legais e políticas essenciais para as operações das empresas multinacionais. A globalização não é simplesmente uma ocorrência económica. A sua dimensão cultural inclui o entretenimento global, a fast food, a moda e o turismo. A globalização cultural é muitas vezes entendida como uma forma de americanização . No entanto, essa abordagem nega a diversidade de formas como os produtos são recebidos e transformados através do uso cultural. Esses usos e estratégias estão longe de ser uniformes. A cultura «global» pode existir lado a lado com comunidades, identidades e gostos locais e tradicionais, encorajando uma multiplicidade de culturas e proporcionando condições para o aparecimento de novas culturas. Entretanto, ninguém se pode dar ao luxo de não entrar no jogo. A China, por exemplo, que tem uma cultura política nacionalista fortemente centralizada e um grande receio do caos interno e da interferência externa, saudou apesar de tudo a sua aceitação tardia na OMC, em Dezembro de 2001, como um marco fundamental para o desenvolvimento nacional. A própria dimensão, o dinamismo e a especificidade da China terão inevitavelmente efeitos de retorno sobre a economia globalizada - influenciando na mesma medida em que é influenciada. O mesmo se aplica à Índia. Introdução aos Estudos Culturais 15 STUART HALL A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo (1.1. A centralidade da cultura: a dimensão global), cap. 5 da obra Media and Cultural Regulation, organizado por Kenneth Thompson e editado na Grã-Bretanha 1997. Trad. e revisão de Ricardo Uebel, Maria Isabel Bujes e Marisa Vorraber Costa. { www.educacaoonline.pro.br } Os recursos que antes iam para a indústria pesada da era industrial do séc. XIX — carvão, ferro e aço — agora, na virada do terceiro milênio, estão sendo investidos nos sistemas neurais do futuro — as tecnologias de comunicação digital e os softwares da Idade Cibernética. Em termos de padrões absolutos de julgamento e preferência estéticos, os produtos culturais desta revolução não podem ser comparados em termos de valor às conquistas de outros momentos históricos — as civilizações egípcias e da antiga China, por exemplo, ou a arte do Renascimento italiano. Entretanto, em comparação com a estreita visão social das elites, cujas vidas foram positivamente transformadas por esses exemplos históricos, a importância das revoluções culturais do final deste século XX reside em sua escala e escopo globais, em sua amplitude de impacto, em seu caráter democrático e popular. A síntese do tempo e do espaço que estas novas tecnologias possibilitaram — a compressão tempo- espaço, como denomina Harvey (1989) —, introduz mudanças na consciência popular, visto que vivemos em mundos crescentemente múltiplos e — o que é mais desconcertante — “virtuais”. A mídia encurta a velocidade com que as imagens viajam, as distâncias para reunir bens, a taxa de realização de lucros (reduzindo o “tempo de turn-over do capital”), e até mesmo os intervalos entre os tempos de abertura das diferentes Bolsas de Valores ao redor do mundo — espaços de minutos em que milhõesde dólares podem ser ganhos ou perdidos. Estes são os novos “sistemas nervosos” que enredam numa teia sociedades com histórias distintas, diferentes modos de vida, em estágios diversos de desenvolvimento e situadas em diferentes fusos horários. É, especialmente, aqui, que as revoluções da cultura a nível global causam impacto sobre os modos de viver, sobre o sentido que as pessoas dão à vida, sobre suas aspirações para o futuro — sobre a “cultura” num sentido mais local. Estas mudanças culturais globais estão criando uma rápida mudança social — mas também, quase na mesma medida, sérios deslocamentos culturais. Como observa Paul du Gay, “a nova mídia eletrônica não apenas possibilita a expansão das relações sociais pelo tempo e espaço, como também aprofunda a interconexão global, anulando a distância entre as pessoas e os lugares, lançando-as em um contato intenso e imediato entre si, em um “presente” perpétuo, onde o que ocorre em um lugar pode estar ocorrendo em qualquer parte (...) Isto não significa que as pessoas não tenham mais uma vida local — que não mais estejam situadas contextualmente no tempo e espaço. Significa apenas que a vida local é inerentemente deslocada — que o local não tem mais uma identidade “objetiva” fora de sua relação com o global.” (du Gay, 1994). Um efeito desta compressão espaço-tempo é a tendência à homogeneização cultural — a tendência (…) de que o mundo se torne um lugar único, tanto do ponto de vista espacial e temporal quanto cultural: a síndrome que um teórico denominou de McDonaldização do globo. É, de fato, difícil negar que o crescimento das gigantes transnacionais das comunicações, tais como a CNN, a Time Warner e a News International tende a favorecer a transmissão para o mundo de um conjunto de produtos culturais estandartizados, utilizando tecnologias ocidentais padronizadas, apagando as particularidades e diferenças locais e produzindo, em Introdução aos Estudos Culturais 16 seu lugar, uma ‘cultura mundial’ homogeneizada, ocidentalizada. Entretanto, todos sabemos que as conseqüências desta revolução cultural global não são nem tão uniformes nem tão fáceis de ser previstas da forma como sugerem os ‘homogeneizadores’ mais extremados. É também uma característica destes processos que eles sejam mundialmente distribuídos de uma forma muito irregular — sujeitos ao que Doreen Massey (1995) denominou de uma decisiva “geometria do poder” — e que suas conseqüências sejam profundamente contraditórias. Há, certamente, muitas conseqüências negativas — até agora sem solução — em termos das exportações culturais do ocidente tecnologicamente superdesenvolvido, enfraquecendo e minando as capacidades de nações mais antigas e de sociedades emergentes na definição de seus próprios modos de vida e do ritmo e direção de seu desenvolvimento (…). Há também diversas tendências contrapostas impedindo que o mundo se torne um espaço culturalmente uniforme e homogêneo. A cultura global necessita da “diferença” para prosperar — mesmo que apenas para convertê-la em outro produto cultural para o mercado mundial (como, por exemplo, a cozinha étnica). É, portanto, mais provável que produza “simultaneamente” novas identificações “globais” e novas identificações locais do que uma cultura global uniforme e homogênea. O resultado do mix cultural, ou sincretismo, atravessando velhas fronteiras, pode não ser a obliteração do velho pelo novo, mas a criação de algumas alternativas híbridas, sintetizando elementos de ambas, mas não redutíveis a nenhuma delas — como ocorre crescentemente nas sociedades multiculturais, culturalmente diversificadas, criadas pelas grandes migrações decorrentes de guerras, miséria e das dificuldades econômica do final do séc. XX. […] O próprio ritmo e a irregularidade da mudança cultural global produzem com freqüência suas próprias resistências, que podem, certamente, ser positivas, mas, muitas vezes, são reações defensivas negativas, contrárias à cultura global e representam fortes tendências a “fechamento”. Por exemplo, o crescimento do fundamentalismo cristão nos EUA, do fundamentalismo islâmico em regiões do Oriente Médio, do fundamentalismo hindu na Índia, o ressurgimento dos nacionalismos étnicos na Europa Central e Oriental, a atitude anti-imigrante e a postura euro-cética de muitas sociedades do ocidente europeu, e o nacionalismo cultural na forma de reafirmações da herança e da tradição (…), embora tão diferentes entre si, podem ser considerados como reações culturais conservadoras, fazendo parte do retrocesso causado pela disseminação da diversidade efetuada pelas forças da globalização cultural. Todos estes fatores, então, qualificam e complexificam qualquer resposta simplista, puramente celebratória em relação à globalização como forma dominante de mudança cultural num futuro previsível (…). Estes fatores não podem, no entanto, negar por completo a escala de transformações nas relações globais constituída pela revolução cultural e da informação. Queiramos ou não, aprovemos ou não, as novas forças e relações postas em movimento por este processo estão tornando menos nítidos muitos dos padrões e das tradições do passado. Por bem ou por mal, a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos — e mais imprevisíveis — da mudança histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender, então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma forma física e compulsiva, e que as próprias políticas assumam progressivamente a feição de uma “política cultural”. Introdução aos Estudos Culturais 17 Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade desorientada, Lisboa, Edições 70, 2010, pp. 154-157. Americanização, crioulização, individualização Embora exista uma força de intervenção universal das produções americanas, assistimos também ao desenvolvimento de bens culturais que, provindo de diferentes partes do mundo, se apropriam dos formatos mediáticos americanos, adaptando-os e conseguindo criar assim formas híbridas. As culturas particulares cruzam permanen- temente a cultura-mundo e cruzam-se entre si, alimentando-se cada uma das demais. Vemo-lo já no cinema dos próprios Estados Unidos, em que realizadores chineses, europeus e australianos impregnam com a sua sensibilidade específica filmes produzidos e concebidos no sistema hollywoodiano: é a própria América que se mundializa. Vemo-lo nas formas híbridas que é a manga japonesa, os folhetins egípcios e as telenovelas brasileiras e mexicanas, fruto do encontro do modelo dos Estados Unidos com as realidades culturais locais. Vemo-lo também na prática dos jovens artistas plásticos africanos, que, em vez de se limitarem a "fazer africano", como lhes é pedido, obtêm inspiração num diálogo da sua africanidade com outros modelos, nomeadamente europeus. Vemo-lo ainda no desenvolvimento da world music, em que se misturam ritmos vindos um pouco de toda a parte: da Jamaica e da Europa de Leste, do Magrebe e da África negra. Bossa nova, reggae, salsa, rai, gipsy jazz: a música "sem fronteiras" baseia-se na fusão de ritmos modernos e ritmos tradicionais, de instrumentos eléctricos e instrumentos antigos, na hibridação do jazz e do samba, do rai argelino e do blues, do flamenco e do rock, das músicas locais e das músicas funk, pop ou rhythm & blues. A cultura-mundo é aquela em que coabitam produtos formatados e produções "crioulizadas", que se enriquecem com todas as correntes e estilos do mundo próximo e longínquo. A cozinha revela a mesma tendência no que alguns chamam world cuisine. Se, por um lado, se defende a gastronomia tradicional dos países contra o neocolo- nialismo americano, por outro, assiste-se ao desenvolvimento das novas cozinhas francesas, espanholas, bascas, catalãs, japonesas, alemãs ou californianas, que se enriquecem com produtos, técnicas e decorações estrangeiras (por exemplo,a apresentação dos pratos é marcada actualmente por uma estética japonizante). A mestiçagem dos modelos alimentares pode ser de vanguarda, mas pode ser também do agrado do grande público, como, por exemplo, a cozinha vietnamita, que soube adaptar-se aos gostos e usos ocidentais. A esse respeito, o que se destaca não é tanto uma americanização uniforme, mas sim o aumento da variedade alimentar, a multiplicação das interacções, a hibridação dos particularismos. Introdução aos Estudos Culturais 18 Até o McDonnald’s, que surge como figura paradigmática do imperialismo cultural americano, se caracteriza menos pela imposição dum modelo padronizado do que pela sua flexibilidade, a sua capacidade de integrar diferenças culturais, de propor produtos adaptados a situações locais diversas: Big Mac sem queijo, em Israel, sem carne de vaca, na Índia, MacSpaghetti, nas Filipinas, e McLaks de salmão, na Noruega. Se na América os empregados dos estabelecimentos da cadeia devem apresentar sempre um sorriso, o mesmo não se passa na Coreia, onde esse comportamento suscita desconfiança nos consumidores. A ideia dum mundo a absorver passivamente os produtos da América não corresponde à realidade: aquilo a que se assiste é a um processo de redefinição e de reciclagem deles em função dos contextos culturais. Para além disso, o público mundial não esgota a totalidade dos consumidores do planeta. Por toda a parte vêm à superfície os particularismos, reivindicando a sua identidade, por todo o lado se afirma a indispensabilidade das "raízes" e a valorização da herança cultural e religiosa. Quanto mais se consome cultura americanizada, mais as reivindicações identitárias e a procura de diferenças culturais se tornam importantes. O grande consumo dos produtos culturais made in USA não conduz sistematicamente a uma cultura universal e homogénea, pois, em larga medida, são reinterpretados de diversas formas pelos diferentes povos do planeta. Embora o mundo consuma produtos americanos, estes não são recebidos por todos da mesma maneira: uma série de televisão não é vista com os mesmos olhos na América, na Argélia ou na Rússia. O consumidor não é um sujeito que absorve passivamente programas: em toda a parte os signos e as imagens, mesmo calibrados, são filtrados, reapropriados e arrastados para novas redes de imaginação e sentido. As imagens difundidas pela CNN durante a guerra do Golfo ou após o 11 de Setembro não foram entendidas da mesma maneira no Norte e no Sul, onde a informação americana é maciçamente rejeitada e sentida como uma forma de imperialismo cultural. Com a globalização, assiste-se à erosão das fronteiras e das barreiras geográficas, à compressão do espaço-tempo, mas não à anulação das distâncias culturais. Aliás, quanto mais os indivíduos têm acesso à cultura-mundo, mais sentem necessidade de defender as suas identidades culturais e linguísticas: face à CNN ergue-se agora a voz da Al-Jazira como fonte de informação. Não é o Uno Mundial que se prepara por influência da hiperpotência americana, é a vontade de assegurar o pluralismo cultural a fim de contrariar o sentimento de perda de si e revitalizar as identidades colectivas. Introdução aos Estudos Culturais 19 Ana Isabel Cabo, Os novos movimentos sociais e os media. Os movimentos antiglobalização nas páginas do Público. Lisboa, Livros Horizonte, 2008. 3. OS MOVIMENTOS ANTIGLOBALIZAÇÃO (MAG) - 3.1. O contexto dos MAG No contexto dos novos movimentos sociais, analisemos agora o campo es- pecífico em que trabalham os Movimentos Antiglobalização (MAG), cuja importância e estratégia são cada vez mais relevantes no desenrolar da actividade política e social no novo espaço público. Usamos a designação de antiglobalização - é a mais corrente -, embora ela não expresse da forma mais correcta a postura e a filosofia destes novos movimentos. O objectivo não é rejeitar liminarmente a globalização - até porque os activistas reconhecem-lhe alguns aspectos positivos -, mas propor alternativas à forma como aquela está a ser implementada. Estaríamos essencialmente perante Movimentos Alterglobalização; postura que poderá colocar novos desafios. Como refere Vital Moreira (2003), lutar por uma globalização diferente é mais exigente do que ser simplesmente contra a globalização existente, uma vez que a alternativa carece de programas de acção política e está necessariamente vinculada a mudanças de governo nos países que são vítimas da globalização neoliberal. Feita esta importante ressalva, analisemos agora as características destas novas formas de acção colectiva e que, em certos casos, não se afastam das características dos novos movimentos sociais que foram referenciadas nos pontos anteriores. Antimo Farro (2004) aponta, como principais marcas distintivas dos MAG, a afirmação da subjectividade dos seus actores, a fluidez dos canais organizativos, a oposição à dominação económica e social, a resistência à homogeneização cultural e as ligações que estabelecem entre as iniciativas locais e as transnacionais com o objectivo de propor modelos alternativos de desenvolvimento. A procura de novas formas de democracia é, segundo o autor, outra das características fundamentais destes movimentos. Analisemos, então, de forma mais pormenorizada, estas características. Na nossa perspectiva, […] é fundamental que a multiplicidade de elementos (Melucci, 1998) sincrónicos e diacrónicos dos MAG seja captada. Como frisa Boaventura Santos, é importante captar as inúmeras energias que abrangem desde uma postura mais tradicional - e que passa pela tentativa de controlar o sistema político - até uma postura que tenha em conta a participação quotidiana na sociedade cívica. É esta multiplicidade de objectivos, de formas de luta, mas também de actores que caracteriza verdadeiramente os MAG e que tem levado à divisão destes movimentos em diversos campos. Em primeiro lugar, aqueles que intervêm em iniciativas globais de um ponto de vista económico, social, cultural e político e que, no fundo, podem ser subdivididos num ramo mais cultural e num ramo mais político. Em segundo lugar, encontramos grupos, associações ou mesmo particulares que trazem para os novos movimentos abordagens mais tradicionais, como é o caso dos ambientalistas ou das feministas. Finalmente, um terceiro campo que mais não é do que um desenvolvimento do sindicalismo e de movimentos de agricultores. Apesar de se situarem em campos distintos, todos estes actores desenvolvem uma acção comum para a qual é essencial a constituição de uma rede comunicacional. Esta é uma outra característica importante e não significa a perda da especificidade e identidade; os MAG definem-se pelo que são e pelo que fazem como Introdução aos Estudos Culturais 20 actores constitutivos de uma acção colectiva delineada com o objectivo de criticar as formas dominantes de organização social, económica e cultural e de orientar a vida social (Farro, 2004: 636). No fundo, o que está aqui em causa é a importância dada à questão da identidade, definida em função das relações no seio do movimento e do movimento com os outros actores do espaço público, questão que já foi abordada anteriormente no capítulo dedicado à acção colectiva. A identidade surge, assim, intimamente ligada à questão da comunidade e solidariedade. Apesar dos fenómenos da globalização estarem a levar à erosão da ideia tradicional de "local", ainda que as lutas e protestos locais se dirijam a forças que se inscrevem numa lógica global, o que é facto é que as bases de determinação da acção e de protesto colectivo permanecem geralmente enraizadas em contextos claramente espacializados (Estanque, 1999). A rede comunicacional, a existência de canais de comunicação e de circulação da informação vão possibilitar a fluidez das relações entre os diferentes actores dos MAG. São estes canais que irão, de resto, permitir construir as infra-estruturasorganizacionais no seio do movimento e fazê-las funcionar em rede. Mas não se trata de uma rede qualquer, já que irá permitir ligar iniciativas locais e transnacionais, afirmando assim a subjectividade e a solidariedade do movimento na prossecução de alternativas à dominação económica e social e à tentativa de homogeneização cultural. Para que estas redes funcionem entre os diversos actores, mas também entre estes e o público a quem querem divulgar a sua mensagem, é fundamental o recurso à Internet, uma espécie de universo de informação paralelo e independente dos mass media tradicionais, cada vez mais utilizado pelos MAG. Flexíveis, fáceis de partilhar e abandonar e ainda susceptíveis de se reorganizarem de forma fluida na sequência da entrada ou saída de organizações, as redes da Internet reduzem os custos da comunicação, transcendem as barreiras geográficas e temporais, atingindo localizações tão remotas que ultrapassam largamente as fronteiras dos media tradicionais. Já vimos também que a Internet possibilita a circulação da informação sem os filtros editoriais dos media, enfraquecendo assim a capacidade de selecção da imprensa tradicional (Bennett, 2004). Neste sentido podemos dizer que a Internet está a contribuir para uma nova forma de fazer notícias. Os MAG têm sabido aproveitar plenamente as capacidades deste novo medium. A Internet permite uma difusão ampla dos seus discursos, alarga o âmbito dos seus protestos, coordenando-os, actualiza informações sobre actividades planeadas, permite a co-existência de organizações com perspectivas políticas diferentes, substituindo em muitos casos a falta de uma liderança organizativa forte e centralizada. A criação, após os confrontos de Seattle, da rede de informação Indy Media-Centro de Media Independentes é um exemplo claro da eficácia proporcionada pela Internet. Hoje, são inúmeros os sites ao serviço dos MAG. Mas se é verdade que ajuda à manutenção de um activismo global, também é verdade que estas redes comunicacionais, ao oferecerem alternativas aos media tradicionais e aos académicos, podem enfraquecer a coerência temática das ideias que difundem, dificultando assim a formulação de uma ideia comum e proporcionando, por outro lado, o aparecimento de novas formulações ideológicas (Bennet, 2004). A difusão proporcionada pelas redes da Internet vai despoletar o aparecimento e a divulgação em grande escala de perspectivas diferentes, susceptíveis, assim, de quebrar a unidade ideológica dos MAG.
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