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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 1 1. O PACTO DA GRAÇA NA ANTIGA E NOVA ALIANÇA ............................................ 4 1.1 Síntase da Teologia do Pacto ........................................................................................... 7 1.2 Apresentação de outros sistemas de teologia ................................................................ 11 1.3 Metodologia adotada ..................................................................................................... 14 2. A LEI NA ANTIGA ALIANÇA ........................................................................................ 15 2.1 A lei "antes da lei" .......................................................................................................... 15 2.2 A lei de Moisés ............................................................................................................... 17 2.3 Aspectos civil e cerimonial da lei ................................................................................... 22 2.3.1 Lugar, objetos, pessoas e períodos sagrados ............................................................ 23 2.3.2 Sistema sacrificial ..................................................................................................... 25 2.3.3 Leis de pureza e impureza ........................................................................................ 26 3. A LEI NA NOVA ALIANÇA ............................................................................................ 28 3.1 Cristo e a lei .................................................................................................................... 29 3.2 Paulo e a lei ..................................................................................................................... 33 4. OS USOS DA LEI ............................................................................................................... 41 4.1 Uso civil da lei ................................................................................................................ 42 4.2 Uso pedagógico da lei ..................................................................................................... 43 4.3 Uso normativo da lei ....................................................................................................... 44 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 46 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 48 1 INTRODUÇÃO Entender como a lei de Deus atua na realidade da nova aliança é uma daquelas tarefas difíceis que os teólogos se deparam e que não chegam a um consenso. As diversas posições encontradas partem de pressupostos hermenêuticos distintos e chegam a conclusões teológicas que as vezes são opostas. Esse problema está enraizado na questão de continuidade e descontinuidade da lei na antiga e nova aliança. Em outras palavras, busca-se saber se a lei do Antigo Testamento é válida para a igreja hoje, quais partes dela continuam aplicáveis e quais foram revogadas. O tema da continuidade e descontinuidade é muito importante para o entendimento correto das Escrituras, pois não somente a lei, mas também assuntos como Israel e Igreja; circuncisão e batismo; sábado e domingo; e a própria salvação em si também são influenciados por esse debate. Essa questão a primeira vista pode não parecer relevante, mas tem valor tanto doutrinário como prático para a vida da igreja. “O assunto da continuidade e descontinuidade da Escritura torna-se intensamente prático quando se reconhece que discussões contemporâneas sobre assuntos éticos como pena de morte e aborto apelam fortemente para textos do AT” (FEINBERG, 2013, p. 8). Falando da relevância desse assunto, Virkler (2007, p. 91-92) diz que “a atitude que alguém toma para com o problema de continuidade-descontinuidade influencia tanto o ensino da escola dominical como a pregação”. Na verdade, quando se trata da lei isso é ainda mais evidente. Quantas vezes não se ouviu que o Novo Testamento é o tempo da graça e que o Antigo Testamento era o tempo da lei? (MEISTER, 2003). Nesse sentido, a lei é vista como um tempo ultrapassado ao qual o cristão não precisa se preocupar. Todavia, não parece ser essa a percepção bíblica de Paulo quando afirmou que a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom (Rm 7.12). Também não é essa a visão de Jesus quando afirma que amar a Deus é obedecer aos seus mandamentos, como descreve João: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor” (Jo 10.15a). Sem contar, as declarações de amor a lei nos Salmos do Antigo Testamento (Sl 1.1-2; 19.7-10; 119.97). Por outro lado tem-se o registro enfático do mesmo Paulo de que o cristão está livre da lei. “Agora, porém libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra” (Rm 7.6). 2 Como harmonizar essas passagens? Como entender a relação da lei na antiga e na nova aliança? É justamente isso que este trabalho se propõe a fazer, demonstrando que existe tanto continuidade como certa descontinuidade em relação a antiga e nova aliança. Para justificar isso, o trabalho começa relacionando a lei ao conceito de aliança nas Escrituras, entendendo que a aliança é o berço da lei. Essa é propriamente dita uma conclusão da teologia do pacto que entende que a Bíblia é compreendida em dois pactos maiores, o Pacto das Obras feito com Adão, quebrado pela desobediência do primeiro casal, e o Pacto da graça, feito em Cristo com os seus eleitos, os quais obtém do Senhor a salvação da condenação prevista pela quebra do primeiro pacto. Essa abordagem da teologia do pacto tem o seu foco na continuidade, ou seja, na maneira como Deus se relaciona com a humanidade tanto no Antigo como no Novo Testamento, pois tanto a antiga como a nova aliança são expressões do Pacto da Graça se desenvolvendo para cumprir os propósitos de Deus na história. No fim do capítulo, apresenta- se uma síntese do sistema dispensacionalista, que implica numa ênfase maior na descontinuidade da relação de Deus com a humanidade. A metodologia adotada neste trabalho é que segue a Teologia do Pacto, mas o capítulo quer mostrar que esses sistemas teológicos influenciam a maneira como a lei é entendia no Novo Testamento e pela igreja hoje. Em seguida, faz-se uma relação da lei na antiga aliança, mostrando que já existia uma lei antes da promulgação da lei de Moisés no Monte Sinai. A lei é uma expressão do caráter de Deus e sempre esteve presente para revelar a vontade de Deus aqueles com quem estavam em aliança. Há um esforço para descrever a lei de Moisés, mostrando que existem diferentes aspectos dos mandamentos divinos à nação de Israel, podendo ser identificados como morais, civis e cerimoniais. Essa é uma divisão tradicional da teologia reformada, mas que sofre duras críticas. A discussão sobre isso, poderá ser vista nessa parte do trabalho. As leis ditas cerimoniais são investigadas e identificadas com maior rigor porque o Novo Testamento as interpretam como sombra da realidade que ainda viria, abrindo a discussão para o próximo capítulo. “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém Cristo é o corpo” (Cl 2.16-17). Chega-se em seguida à discussão sobre a lei na nova aliança. Em primeiro lugar nota- se que a promessa de um novo pacto com a casa de Israel e Judá é na verdade aplicada à Igreja e que ela em si não anula a lei, pelo contrário, a confirma, visto que a lei de Deusserá impressa nas mentes e inscrita nos corações (Jr 31.33). 3 Continuando o assunto, esse capítulo propõe que por mais continuidade que possa ter, a nova aliança também apresenta certa descontinuidade da lei. As mudanças são vistas no relacionamento de Jesus com a lei, pois Ele, sua pessoa e obra, é o cumprimento do aspecto cerimonial da lei dada na antiga aliança. Para finalizar o capítulo, faz-se uma análise de Paulo e a lei em Romanos 7, no qual o apóstolo diz que o crente está libertado da lei, mas que a lei é espiritual (Rm 7.14) e que o cristão vive um conflito interno para obedecê-la (7.15-25). Tudo isso, mostra a relevância da lei para o crente que vive debaixo da nova aliança. O último capítulo deste trabalho consiste em apresentar o conceito reformado dos usos da lei, ou seja, as funções da lei moral de Deus tanto para os crentes como para os descrentes. Aqui é apresentado três usos da lei, que podem ser resumidos da seguinte maneira: a lei é instrumento de Deus para restringir o mal. Este é o uso civil ou político; para revelar o pecado, este é o uso pedagógico ou evangélico que leva o pecador a Cristo; e para, pelo poder do Espírito, guiar o crente a fazer a vontade de Deus, este é o uso normativo ou didático, que apenas os regenerados desfrutam. Em tudo isso, vê-se a importância do estudo da lei de Deus hoje, pois a lei contém o evangelho e o evangelho contém a lei. Ambos provém de Deus para benefício do seu povo. Não há nos registros bíblicos um tempo sem lei. Deus sempre estabelece soberanamente as condições para se relacionar com sua criação. Portanto, o crente da nova aliança pode orar como o salmista e dizer: “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei” (Sl 119.18). Pode ter prazer na lei: “Quanto amo a tua lei! É a minha meditação, todo o dia!” (119.97). Pode também encontrar direção para a caminhada cristã: “Lâmpada para os pês é a tua palavra e, luz para os meus caminhos” (119.105). Tratar da continuidade e descontinuidade da lei nas Escrituras é uma tarefa complexa por causa da gama de conexões teológicas que precisam ser feitas. Todavia, é uma empreitada que em algum momento e de maneira informal todo cristão se envolve. Afinal, de maneira específica “estamos interessados em entender como podemos ter uma Bíblia com uma mensagem unificada, mas com dois Testamentos – e, consequentemente, 66 livros” (GOLDSWORTHY, 2013, p. 119). 4 1. O PACTO DA GRAÇA NA ANTIGA E ALIANÇA O objetivo desse trabalho é tratar da continuidade e descontinuidade da lei na antiga e nova aliança. Mas antes disso, é preciso definir o que é e como foram essas alianças de Deus com seu povo, bem como estabelecer a relação dessas como expressões do pacto da graça no desenvolvimento da história da redenção. O tema do pacto é claramente visto nas Escrituras. A palavra “berit” aparece 280 vezes no Antigo Testamento1 e geralmente é traduzida como pacto, aliança, acordo, concerto ou tratado, que pode ser estabelecido entre Deus e os homens, entre nações, entre suseranos e vassalos ou ainda entre indivíduos, como no caso de Davi e Jonatas (1 Sm 18.3). No AT, quando o pacto era entre Deus e os homens tinha o significado de um “mútuo compromisso que, paradoxalmente, reconhecia tanto a iniciativa divina no acordo, quanto também insistia na realidade e necessidade da escolha humana” (NDITEAT, 2011, p. 728). Essa mutualidade pactual se expressa somente na realização da aliança, já que Deus de forma soberana e graciosa é quem estabelece a aliança. Portanto, a “berit” é unilateral em sua estipulação e bilateral em sua realização. “Nisso reside a importância de santificação e perseverança pessoal. Deus ordena que seu povo guarde a aliança com ele mediante o amor e a obediência” (FERGUSON; WRIGHT, 2009, p. 752). A forma mais comum de descrever a realização de uma aliança se dá pela expressão “karat berit”, quer dizer literalmente cortar uma aliança2. Essa é a expressão em Gênesis 15.18: “Naquele mesmo dia, fez o SENHOR aliança com Abraão [...]”. A maneira de se fazer uma aliança era por meio de sinais e selos que simbolizavam a permanência do compromisso de Deus com seu povo. Exemplo disso são o arco-íris, a circuncisão e o sábado (ROBERTSON, 2011, p. 16). “Disse Deus: Este é o sinal da minha aliança que faço entre mim e vós e entre todos os seres viventes que estão convosco, para perpétuas gerações: porei nas nuvens o meu arco; será por sinal da aliança entre mim e a terra” (Gn 9.12-13). No Novo Testamento, a palavra usada para aliança, concerto e pacto é diatheke. Ela ocorre 33 vezes, sendo que em mais da metade como citações do AT. Os outros casos em Hebreus; algumas vezes em Paulo e Atos3. Esse termo é também utilizado 270 vezes pela 1 VINE, 2002, p. 75. 2 DITAT, 1998, p. 29. 3 DITNT, 1998, p. 61. 5 Septuaginta (LXX) para traduzir berit. Isso acontece por exemplo com as alianças feitas entre Deus e Noé (Gn 6.18), Abraão (2 Rs 13.23) e Davi (Jr 33.21), mostrando que a aliança não é um acordo entre iguais, mas Deus estabelece sua aliança de forma unilateral4. Importante para o entendimento da palavra é a discussão sobre o seu significado. No grego clássico, diatheke aparece como uma decisão irrevogável, isto é algo que não pode ser cancelado. A condição para que essa decisão seja alcançada é a morte do testador. “Diatheke é um testamento que distribui a propriedade depois da morte de acordo com os desejos do possuidor” (VINE, 2002, p. 76). Isso a distingue de syntheke, que quer dizer contrato em que as duas partes se dedicam a uma atividade comum. Nesse último sentido, diatheke aparece apenas uma vez 5. Grande debate há sobre o significado de diatheke como aliança ou testamento no Novo Testamento. Murray (...) argumenta que o fato dos tradutores da LXX terem usado diatheke para traduzir berit deve mostrar que eles não acreditavam que a aliança fosse um acordo mútuo. Para ele, a aliança tanto no AT como no NT é administrada soberanamente e portanto é “divina em sua origem, estabelecimento, conformação e realização” (MURRAY, 2001, p. 28). Isso no entanto, não é acabar com a mutualidade das alianças. Na aliança de Deus com Abraão, o patriarca de Israel deveria guardar o pacto, como se vê registrado em Gn 17.1: Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o SENHOR e disse-lhe: Eu sou Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito”. Um pouco mais adiante Deus diz a Abraão: “Guardarás a minha aliança, tu e a tua descendência no decurso das suas gerações” (Gn 9.9). Assim é em toda aliança, pois “um pacto que concede sua bênção indiscriminadamente não pode ser guardado ou quebrado” (MURRAY, 2001 p. 33). Portanto, para Murray (2001) diatheke no Novo Testamento tem a mesma ideia que no AT, mas aquele sentido unilateral e não como um acordo bilateral6. Em Mateus 26 na descrição da Ceia é atribuído o conceito de aliança em diatheke. Jesus diz: “Bebei dele todos porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança. Derramado em favor de muitos, para remissão de pecados”(Mt 26.27b-28). Paulo também enfatiza essa ideia quando cita as palavras de Jesus sobre a Ceia: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue” (1 Co 11.25). Citando Vos, Horton (2010, p. 52) diz que a nova diatheke nas palavras de Cristo está ligada a morte em sentido de sacrifício da mesma forma que em Êxodo 24 o sangue inaugurou a berit do Sinai. “Devemos ver a inauguração da ceia em termos de cumprimento 4 DITNT, 2000, p. 60. 5 DITNT, 2000, p. 58. 6 Murray chega a dizer que em Hb 9.16-17 diatheke tem o sentido de testamento, ainda que seja um caso excepcional do termo (2001, p.49). 6 (do berit) em vez de uma ideia completamente nova na história daredenção” (HORTON, 2010, p. 53). Conclui-se a partir da análise bíblica que os autores do Novo Testamento entendiam diatheke como berit da mesma forma que os autores do AT, não era um conceito de testamento, mas de aliança7. A implicação é de que não há necessidade de modificar o conceito de berit no AT. “O conceito de aliança no Antigo Testamento não deve ser reinterpretado em termos de um testamento e disposição de última vontade. A perspectiva do povo do Antigo Testamento quanto à sua relação com Deus era consistentemente de aliança” (ROBERTSON, 2011, p. 20). Assim pode-se definir as alianças de Deus com os homens como um relacionamento de vida ou morte soberanamente e graciosamente administrado8. Essas alianças podem ser vistas nas Escrituras em dois pactos maiores. A antiga aliança é formada por todas as alianças de Deus com os homens desde Adão, depois da queda, até Noé, Abraão, Moisés e Davi. Já a nova aliança é estabelecida após a obra de Jesus Cristo na cruz. Esse novo pacto não é simplesmente uma novidade desconhecida, mas “representa a fusão de todas as antigas promessas pactuais em termos de uma expectação futura” (ROBERTSON, 2011, p. 43). Entre antiga e nova aliança há tanto unidade como diversidade, há continuidade como também certa descontinuidade. Se por um lado, as alianças não se anulam, uma vez que cada aliança sucessiva com os descendentes de Abraão leva os propósitos originais de Deus a um nível superior de realização, por outro a antiga aliança é caracterizada por promessa, sombra e profecia, enquanto a nova tem em si cumprimento, realidade e realização. A vinda de Cristo alterou para sempre a maneira de Deus se relacionar com seu povo, de tal forma que não é possível mais voltar aos antigos moldes (ROBERTSON, 2011, p. 54-55). Depois dessa breve definição, cabe agora estabelecer a relação da antiga e aliança dentro de uma estrutura teológica maior, isto é, a Teologia do Pacto. Isso permitirá maior compreensão de como a história da redenção se desenvolveu no decorrer das Escrituras, já que refletir sobre as alianças é de suma importância para compreender a mensagem bíblica, como bem destacou Horton (2010, p. 88): Fora da estrutura de aliança, é fácil falar sobre a soberania de Deus em termos quase fatalistas, como se a criação fosse simplesmente uma marionete inerte que se move 7 Robertson defende o conceito de aliança em Hb 9.16-17…. 8 Optou-se aqui pelo termo relacionamento em vez de pacto para melhor compreensão do assunto e visto que o próprio autor se utiliza dos dois termos (ROBERTSON, 2011). Acrescentou-se a expressão graciosamente aproveitando a ideia de Murray que define as alianças de Deus nas Escrituras como “uma administração soberana de graça e promessa” (MURRAY, 2001, p. 51). 7 somente quando Deus o decreta especificamente. [...] Deus se relaciona com a humanidade por meio de alianças, nas quais não existem apenas atos soberanos de Deus, mas, também, atos autenticamente livres da parte do ser humano. 1.1 Síntese da Teologia do Pacto As Escrituras Sagradas mostram que Deus se relaciona com os seres humanos por meio de pactos ou alianças, termos sinônimos. Essa foi a maneira estabelecida soberanamente para que o homem se relacionasse com seu Criador. A implicação disso é que não existe um homem sequer que esteja fora dessa relação pactual, independente de ser crente ou incrédulo, ele experimentará as bênçãos ou as maldições do pacto ou de sua relação com Deus. A Teologia do Pacto, conhecida como teologia federal é uma das formas de estruturar as várias alianças das Escrituras. No entendimento reformado há pelo menos dois pactos maiores de Deus com os seres humanos, o pacto da criação ou de obras e o pacto da graça9. Estes mostram duas realidades distintas no trato de Deus com a humanidade, uma realidade pré-queda e outra pós-queda. O primeiro pacto é conhecido também como pacto das obras e foi feito entre Deus e Adão, que representava toda a humanidade. Como descreve a Confissão de Fé de Westminster: “O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras; nesse pacto foi a vida prometida a Adão e, nele, à sua posteridade, sob condição de perfeita obediência pessoal” (CFW, VII.II). Pode-se ver que o pacto das obras tem apoio desde muito cedo na história da igreja, como afirma Bavinck (V. 2, p.577): “a doutrina daquilo que, mais tarde, foi chamado “aliança de obras” também já ocorre nos pais da igreja”. A ideia do pacto foi desenvolvida na Reforma; Zwínglio e Bucer já a utilizavam para defender a unidade do AT e NT contra os anabatistas de seu tempo. Além de que é uma doutrina encontrada em grande parte das confissões reformadas (BAVINCK, 2012, p. 577). Os chamados puritanos dos séculos XVI e XVII também consideravam o relacionamento entre Deus e Adão como uma aliança. Pra eles, “a aliança das obras é uma conclusão tanto válida quanto inescapável deduzida das Escrituras” (BEEK; JONES, 2016, p. 330). 9 O entendimento reformado geral é que existem três pactos que se sobrepõem e agrupam as outras alianças descritas na Bíblia. O pacto da redenção, pacto da criação ou das obras e pacto da graça. Aliança da criação foi feita com Adão representado a humanidade, a aliança da graça foi feita com os crentes e seus filhos em Cristo e a aliança da redenção foi feita entre as pessoas da trindade (HORTON, 2010, p. 61). No entanto, alguns teólogos reformados questionam a aliança da redenção e discordam da nomenclatura adotada para pacto das obras (ROBERTSON, 2011, p. 51-52). 8 Embora tenha apoio nas Escrituras e na história, o pacto das obras é contestado vez por outra. Uma das razões para isso é que o termo hebraico para aliança, berit10, não apareçe na narrativa de Gênesis 1-3. A resposta a essa questão é que o conceito de aliança se faz real no contexto e pode ser visto pelos elementos contidos no texto, mesmo sem a descrição literal do termo aliança. A narrativa nos três primeiros capítulos de Gênesis demonstra que havia um relacionamento de Deus com a humanidade. Ao que tudo indica, havia um encontro de Deus com o homem no final do dia (Gn 3.8). As palavras de Deus ao primeiro casal já revelam o que se esperava deles: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céus e sobre todo animal que rasteja sobre a terra” (Gn 1.28). Todos os verbos desse versículo estão no imperativo, mostrando que as exigências de Deus eram mais abrangentes do que simplesmente comer ou não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Havia, portanto, exigências de Deus para que o homem cumprisse a fim de continuar em sua presença, a maior delas na ordem de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn2.16-17). “Se todos os ingredientes essenciais ao estabelecimento de um pacto estavam presentes antes de Noé, o relacionamento de Deus com o homem antes dele pode ser designado como aliança” (ROBERTSON, 2011, p. 24). Quais são os elementos de uma aliança? O teólogo puritano Patrick Gillespie (1617- 1675) já desde cedo propõe que há seis elementos que aparecem em todas as alianças bíblicas entre o Criador e o ser humano criado: uma aliança tem duas partes; tem acordos para ambos; terceiro, tem condições para ambos; condições obrigatórias para ambos; tem estipulações que são satisfatórias para ambos; e em sexto, as estipulações têm que ser invioláveis, ou seja, sua quebra representa uma violação da lei de Deus (BEEK; JONES; 2016, p. 331). Berkhof (1990) analisando o pacto das obras propõe cinco elementos principais: partes contratantes, Deus e Adão; promessa, isto é, a vida em comunhão com Deus; terceiro, condição, que era a obediência perfeita; castigo anunciado, que era a morte como punição a uma possível transgressão;e o sacramento da aliança, que pode ser visto na árvore da vida no Éden11. Considerando isso, a ausência do termo “aliança” não é fator determinante para se negar o pacto das obras. Há também em favor desse ponto alguns precedentes escriturísticos 10 A primeira ocorrência desse termo está registrada em Gn 6.18: “Estabelecerei a minha aliança”. 11 Berkhof )2016, p. 217) entende que as palavras de Gm 3.22 devem ser entendidas sacramentalmente, mas admite que há grande variedade de opinions sobre os sacramentos ou selos do pacto das obras. “Uns falam de quarto [sacramentos]: a árvore da vida, a árvore do conhecimento do bem e do mal, o paraíso e o santo repouso seminal (o sabbath)” 9 que justificam a ausência do termo. Essa mesma situação ocorre em 2 Sm 7.1-17 e em 1 Cr 17, quando Deus estabelece aliança com Davi, embora também não apareça o termo berit em nenhum lugar dessas narrativas. No primeiro desses dois textos, Yahweh diz a Davi que dará descanso de todos os inimigos (7.9-12) e estabelecerá o reino de Davi através do seu descendente (v.12) e este descendente edificará uma casa ao nome do Senhor (v.13). “Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre” (2 Sm 7.16). No segundo texto, em 1 Cr 17.1-15, também aparecem as mesmas palavras a respeito do descendente de Davi: “Esse me edificará casa; e eu estabelecerei o seu trono para sempre” (1.Cr 17.12). Em nenhum dos casos aparece o termo berit, contudo é evidente a declaração de uma aliança de Deus com Davi, prometendo que seu reino permanecerá para sempre. O pacto das obras é também acusado de ser um caminho de salvação por obras, contrariando assim a doutrina da salvação somente pela graça. O que se pode dizer é que quando Paulo trata disso em Efésios 2.8: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé”. O apóstolo está tratando da realidade pós-queda, ou seja, o pacto das obras já violado não pode voltar mais a produzir vida, apenas a morte como punição da quebra da aliança. Surpreendentemente, pode-se dizer ainda que embora seja tido como um relacionamento baseado na obediência perfeita, o pacto das obras não dispensa o favor de Deus. “O homem não merece recompensa prometida, mesmo com obediência perfeita. Portanto, sob a aliança, suas obras só têm valor em virtude do acordo. Em si mesmas elas não têm qualquer valor meritório intrínseco” (WOOLSEY, 2012, p. 50). Beek e Jones (2016, p. 354) resumem bem a importância do pacto das obras para a teologia reformada, mostrando várias doutrinas importantes confirmadas e entrelaçadas ao conceito do primeiro pacto nas Escrituras. A doutrina [pactos das obras] ressalta vários e importantes conceitos da teologia reformada: o aspecto relacional da teologia e o uso do conceito de aliança para descrever as relações de Deus com suas criaturas; a ideia de que é possível deduzir doutrinas bíblicas normativas por meio de conclusão válida e inescapável das Escrituras; as implicações da criação do homem à imagem de Deus; a graça e a bondade de Deus ao estabelecer aliança com Adão e ao lhe oferecer “vida”, qualquer que seja o sentido de “vida”; o relacionamento federativo entre Adão e sua descendência; e a necessidade de outro Adão para “endireitar” o que o primeiro Adão “estragou”. 10 Como se sabe, essa primeira aliança foi quebrada por Adão e toda a humanidade se tornou incapaz de se relacionar adequadamente com Deus. Por sua vez, Deus apresentou uma nova forma de relação, não mais pelo pacto da criação, mas pelo pacto da graça. Este segundo pacto descreve “o relacionamento de Deus com o seu povo depois da queda do homem no pecado” (ROBERTSON, 2011, p. 52). Tendo-se o homem tornado, pela sua queda, incapaz de ter vida por meio deste pacto [o pacto da criação feito com Adão], o Senhor dignou-se a fazer um segundo pacto, geralmente chamado pacto da graça; neste pacto da graça ele livremente oferece aos pecadores a vida e a salvação por meio de Jesus Cristo, exigindo deles a fé, para que sejam salvos, e prometendo o seu Santo Espírito a todos os que estão ordenados para a vida, a fim de dispô-los e habilitá-los a crer (CFW. VII.III12). É sobre essa estrutura maior do pacto divino administrado soberanamente por Deus que se encontram as alianças descritas no Antigo e no Novo Testamento. Depois da queda existe apenas uma história de redenção, na qual Deus quer estabelecer um povo para si, como expressa em diversos lugares da Escritura: “Andarei entre vós e serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo” (Lv 26.12). Veja também Êx 6.7; Ez 37.27. Apocalipse 21.3 apresenta a mesma ideia já na realidade de Novo Céu e Nova Terra: “Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles”. Assim, tanto a antiga como a nova aliança são percebidas como parte de um único pacto que se estende desde a queda de Adão até a nova criação, tendo seu ápice na vinda de Cristo. Estas duas administrações são diferentes, embora estejam unidas por um só caminho de salvação, isto é, pela graça (VANGEMEREN, 2013, p. 46). É assim que todas alianças de Deus com o homem, depois da queda, têm uma unidade básica no plano redentor de Deus13. A sucessão de alianças mostra o desenvolvimento e cumprimento do plano redentivo de Deus, sendo que as diferenças entre as alianças consistem em diferentes graus de plenitude e abundância da graça. “Os avanços nas épocas do desdobramento da revelação redentiva são ao mesmo tempo avanços na revelação das riquezas do pacto da graça” (MURRAY, 2001, p. 51). Isso fica claro quando se observa a aliança mosaica e sua relação com as promessas a Abraão. Em Êx 3, já no chamado de Moisés Deus se revela no contexto da aliança: “EU SOU o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus 12 Confissão de Fé de Westminster (1646) 13 Aliança com Adão, Noé, Abraão, Israel, Davi e a nova aliança em Cristo. 11 de Isaque e o Deus de Jacó” (3.6a). De fato, Yahweh retira Israel do Egito por causa da aliança e da promessa que fez aos patriarcas. Falou mais Deus a Moisés e lhe disse: Eu sou o SENHOR. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus-Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, O SENHOR, não lhes fui conhecido. Também estabeleci a minha aliança com eles, para dar-lhes a terra de Canaã, a terra em que habitaram como peregrinos. Ainda ouvi os gemidos dos filhos de Israel, os quais os egípcios escravizam, e me lembrei da minha aliança (Êx 6.2-5) Portanto, pode-se afirmar que a salvação daqueles que viviam na antiga aliança foi tão somente pela graça como foi para os que vivem na nova aliança. É assim que o apóstolo Paulo argumenta em Romanos 4, usando os exemplos de Abraão e Davi para dizer que ambos foram justificados pela fé e não por obras: “Pois que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça” (Rm 4.3). Afirmando isso, não se quer desconsiderar as diferentes administrações do pacto da graça no Antigo e do Novo Testamento. De fato, existe também descontinuidade na perspectiva da teologia do pacto. O pacto da graça foi administrado no Antigo Testamento por promessas, profecias, sacrifícios, pela circuncisão, pela páscoa e por outros símbolos e ordenanças, todos os quais tipificaram o Cristo que havia de vir e eram naquele tempo suficientes para edificar os eleitos na fé do Messias prometido, por que tiveram, ainda nesse tempo, a plena remissão do pecado e a salvação eterna (Breve Catecismo, Resposta à pergunta 34). No Nova Aliança, depois do advento de Cristo, o pacto da graça é administrado pela “pregaçãoda Palavra e na celebração dos sacramentos do Batismo e da Ceia do Senhor; e, assim, a graça e a salvação são manifestadas em maior plenitude, evidência e eficácia a todas as nações” (Breve Catecismo, Resposta à pergunta 35). Toda essa abordagem na teologia do pacto irá refletir na maneira como se enxerga o relacionamento do cristão com a lei, pois a aliança é o berço da lei. Entender a lei fora desse contexto gracioso de aliança traz grandes prejuízos. 1.2 Apresentação de outros sistemas de teologia Esse conceito de graça por trás das alianças de Deus é bem estruturado na teologia do pacto, que é o sistema teológico que coloca ênfase na continuidade do propósito divino em redimir a sua criação desde a queda no Éden até a segunda vinda de Cristo. No entanto, 12 existem sistemas teológicos que organizam os dados bíblicos de forma diferente. Virkler (2007) apresenta cinco propostas diferentes de entender como Deus se relaciona com o homem. Em sua maioria os sistemas enxergam tanto continuidade como descontinuidade, todavia diferem na ênfase que dão a continuidade ou a descontinuidade, como demonstra a tabela abaixo: Um sistema teológico, ainda que nunca deva se impor sobre o texto sagrado, é importante para organizar os dados bíblicos. Ele é “um componente essencial e um componente válido no arcabouço hermenêutico. Sem um sistema básico de pensamento, um leitor não pode compreender qualquer texto [...]”. (OSBORNE, 2009, p. 350). Nesse sentido, a teologia da aliança contrasta com o dispensacionalismo, modelo que enfatiza mais a descontinuidade (VIRKLER, 2007, p.92, 99). Há também o sistema epigenético14, de unidade orgânica ou que está entre o conceito reformado/dispensacionalista e tenta não enfatizar nenhum dos lados (VIRKLER, 2007, p. 102). Sobre o dispensacionalismo pode-se dizer que há muita confusão, talvez por causa da diversidade entre os próprios dispensacionalistas15. Todavia, o dispensacionalismo está fundamentado em pelo menos três questões principais16. Primeiramente, entende que os termos “judeu” e “descendência de Abraão” têm os sentidos biológico, político, espiritual e 14 Um dos principais proponentes desse modelo é Walter Kaiser Jr. Ele denomina o sistema com o termo epangélico e identifica a promessa como sendo o princípio unificador das Escrituras (KAISER, 2007, p. 23). 15 Pode-se ver isso, na diferença entre o dispensacionalismo de Charles Ryrie e John Feinberg (2013, p. 74). 16 Feinberg coloca seis questões principais: sentidos do termo “judeu”; hermenêutica literal; promessas da aliança a Israel; futuro diferente para o Israel étnico; a igreja como um organismo distinto; e a filosofia da história (2013, p.80). No entanto, apresenta-se aqui apenas três princípios considerados mais relevantes. 13 tipológico17 em ambos os Testamentos, sendo que “nenhum sentido (especialmente o espiritual) é mais importante do que qualquer outro, e que nenhum sentido elimina o efeito do significado e das implicações de outros sentidos” (FEINBERG, 2013, p. 82). O segundo ponto central para o dispensacionalismo é a sua hermenêutica literal. Muitos dispensacionalistas criticam os sistemas reformados afirmando que há uma incoerência no método de interpretação das Escrituras. Segundo Ryrie (2004, p. 124) muitos evangélicos usam o método alegórico “na área da profecia, enquanto preferem utilizar a hermenêutica literal ou normal em outras áreas da interpretação”. Mais comedido, Feinberg (2013, p.84) não acusa a hermenêutica reformada de não- literal ou alegórica. Para ele o problema está nos “diferentes entendimentos do que constitui a hermenêutica literal”. A grande diferença é que o sistema reformado coloca prioridade no NT como normativo para a compreensão do AT (FEINBERG, 2013). O terceiro fundamento do dispensacionalismo que o difere dos outros sistemas é a sua filosofia da história, ou seja, o elemento ou a meta da história que une os eventos bíblicos que ocorrem em épocas e lugares diferentes. Para Feinberg (2013, p. 98), esse é ponto crucial que distingue os sistemas de continuidade e descontinuidade: Quanto mais se enfatiza a história da redenção em contraposição às outras de Deus no mundo, mais o sistema se torna de continuidade, porque todos os lados concordam que soteriologicamente estão acontecendo as mesmas coisas básicas de um Testamento a outro. Por outro lado, quanto mais se enfatiza os aspectos multifacetados do agir de Deus na história, mais o sistema se torna descontínuo, porque Deus nem sempre opera com e através das mesmas pessoas, nem tem o mesmo programa social e político para cada grupo. Para o dispensacionalista, o propósito da história é a implementação gradual do reino de Deus18. “Uma parte importante dessa implementação envolve salvar pessoas, mas os elementos soteriológicos e espirituais não são os únicos aspectos do reino” (FEINBERG, 2013, p. 98). Enquanto que para a maioria dos aliancistas, o ponto central está na história da redenção, ou seja, Deus agindo para chamar um povo para si mesmo19. 17 Sentido politico se refere a nação de Israel. Já o espiritual se aplica a qualquer indivíduo independente de ser judeu de nascimento. No sentido tipológico, entende-se que o termo Israel, “embora sendo Israel, pode também funcionar como um tipo de igreja” (FEINBERG, 2013 p. 81). 18 Ryrie propõe que o objetivo da história é escatológico e tem a ver com a implantação do reino de Deus no milênio, no qual Deus será glofificado (Dispensacionalismo Hoy, p. 11). 19 Há todavia alguns teólogos que trabalham com a perspectiva reformada de reino como centro unificador das Escrituras. Dentre eles pode-se citar Bruce Waltke e Riderbos. 14 Toda essa diferença em termos de continuidade e descontinuidade irá influenciar a maneira como o dispensacionalista trabalha a relação do cristão e a lei, especialmente a lei no Antigo Testamento20. 1.3 Metodologia adotada Os sistemas teológicos apresentados têm aspectos comuns e embora divirjam em várias partes, concordam que a revelação é progressiva, que houve mudança expressiva da antiga para a nova aliança e que Deus age na história para cumprir os seus planos. Apesar disso, a estrutura teológica do pacto se destaca por sua compreensão bíblica e amparo histórico. Vale destacar que a ênfase dada à continuidade na teologia do pacto acontece por causa da história da redenção, mas não exclui a descontinuidade. Assim falando, a teologia da aliança é a base para discutir a relação entre continuidade e descontinuidade da lei na antiga e nova aliança21. 20 Veja uma discussão maior sobre isso no capítulo 3 no tópico Cristo e a Lei. 21 Escolher um sistema teológico para a leitura das Escrituras não é impor uma estrutura pronta sobre a Bíblia, mas é organizer os dados que a própria revelação oferece. De todo modo, esse é um perigo que todo interprete deve encarar (VIRKLER, 2007, p. 90). 15 2. A LEI NA ALIANÇA 2.1 A lei “antes da lei” A lei de Deus é um dos elementos existentes no pacto da criação e no pacto da graça. A lei está presente tanto no Antigo como no Novo Testamento, contrariando o conceito popular de que uma parte das Escrituras corresponde a lei e outra a graça. É preciso, portanto, considerar a relação entre lei e pacto, como afirma Meister (2003, p. 27): “É impossível compreender corretamente o que a lei representa dentro da teologia e na prática da vida cristã sem compreender como Deus se relaciona pactualmente com seu povo [...]”. Já no pacto da criação a lei foi dada a Adão. Entende-se lei como “norma da vida que Deus dá ao seu povo [...]” (CHAMBLIN, 2013, p. 220). Essa definição se encaixa bem ao contextode Gênesis 2.16-17, onde as primeiras palavras de Deus a humanidade são expressas em forma de mandamento. “E o Senhor Deus lhe deu essa ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás”. Aqui fica evidente que a lei estava ligada ao pacto em si, a obediência traria vida (Gn 3.22) e a desobediência resultaria em morte (Gn 2.17). Meister (2003) diz que o pacto é o berço da lei e a lei é o elo relacional a todos aqueles que participam do pacto. A lei não é um evento pós-queda, pelo contrário foi dada desde a criação e não apenas o mandamento positivo de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Ordens como se multiplicar, sujeitar a terra (Gn 1.28), guardar e cuidar do jardim (Gn 2.15) mostram o que Deus exigia que Adão e sua posteridade tivessem “uma obediência pessoal, inteira, exata e perpétua [...]” (CFW XIX.I). A lei como expressão da vontade de Deus existe antes de seu registro no Sinai, nesse sentido já havia lei “antes da lei”. Além de externar a sua vontade, Deus também colocou a lei no coração do homem, como uma lei natural, conforme pode ser visto em Rm 2.15. Nesse texto, o apóstolo Paulo está trabalhando com dois grupos. De um lado os judeus, que tinham a lei revelada nas Escrituras e de outro os gentios, que não tiveram acesso a lei escrita. Todavia, tiveram a lei gravada no seu coração e tinham algum tipo de consciência de certo e errado. Paulo deixa claro que judeus e gentios têm acesso à lei de Deus “que se aplica a eles mediante um método diferente de revelação” (MURRAY, 2003, p. 103). A conclusão nesse trecho é que cada um será julgado de acordo com a revelação que recebeu. 16 A lei natural foi concedida a Adão, que recebeu também a capacidade para cumpri-la (CFW IV. II). A conclusão é que Adão já sabia a diferença entre o certo e o errado antes de pecar. Contudo, depois da queda toda humanidade ficou com sua consciência cauterizada, sendo necessário que Deus lhe desse a lei escrita para revelar o pecado e conduzir a Cristo. Por isso, porquanto era necessário tanto ao nosso embotamento, quanto à nossa contumácia, proveu-nos o Senhor a Lei Escrita, que não só atestasse com certeza maior o que era demasiado obscuro na lei natural, mas também, sacudido o torpor, a mente e a memória nos ferisse com mais intensa vividez (CALVINO, As Institutas, II. 8.1). Na relação da lei com o pacto da graça é importante destacar que tanto na antiga como na nova aliança a lei de Deus continua sendo “uma perfeita regra de justiça” (CFW XIX.II). Entretanto, o que mudou no novo pacto foi a relação que se tem com ela. Por causa da desobediência, a humanidade inteira ficou debaixo da maldição do pacto da criação e incapaz de obedecer a lei, recebendo apenas condenação. No entanto, o “pacto da graça é a manifestação graciosa e misericordiosa de Deus aplicando a maldição do pacto de obras na pessoa de seu Filho, Jesus Cristo [..]” (MEISTER, 2003, p. 31). No pacto da graça a lei não traz maldição ou condenação, ela funciona como meio de graça para a santificação e piedade do crente (KEVEN, 2000, p. 7). No período da antiga aliança que é aquela administração do pacto da graça anterior a obra de Jesus Cristo, várias palavras se referem à lei, sendo que a mais conhecida delas é “torah”, que tem o sentido de instrução, lei, padrão divino de conduta (NITEAT, 2011). Os termos como “mitsva” e “huq” também são usados e trazem o sentido de mandamento, princípios e instrução. De todo modo, “torah” também é usado com vários sentidos, mostrando que a lei de Deus não é apenas um conjunto de normas que devem ser seguidas, mas é a própria instrução divina para o bem do homem. Pode-se dizer que em todas as alianças no período veterotestamentário houve algum tipo de instrução de Deus. Houve assim “lei antes da lei” porque sempre que EU SOU se relaciona com o homem em termos de aliança há soberanamente o estabelecimento da forma como o homem deve se comportar (MURRAY, 2001). Primeiro com Adão e Eva, como já foi analisado, Deus havia dado vários mandamentos no Éden que são conhecidos como mandatos cultural e social da criação. Esses mandatos continuaram depois da queda, pois Deus, na aliança com Noé, repete os mesmos termos do início, mostrando a validade de sua instrução para todos os homens de todas as eras. Deus estabelece aliança com Adão e com Noé, ambos possuindo a Imago Dei 17 (Gn 1.26; 9.6)22. Os paralelos entre as narrativas são encontrados em relação a ser fecundo e multiplicar sobre a terra (Gn.1.28; 9.1), também a sujeitar e dominar a terra (1.28; 9.2). Até mesmo a aliança com Abraão é estabelecida com algumas leis de Deus, revelando a vontade de Yahweh aqueles que se relacionam com Ele. Desde a chamada de Abrão em Gênesis 12 pode ser visto o Senhor mostrando as condições da sua aliança, que no caso era sair de casa do meio de seus parentes e ir para uma terra a qual ele não conhecia. A eleição soberana sobre o patriarca exigia dele o abandono das cultos estranhos que eram praticados em sua terra natal por seus familiares. “A fé demanda um abandono irrestrito do passado. Abraão tem de deixar para bem atrás a consolação de familiares e tradição”. (WALTKE, 2015, p. 252). O capítulo 17 de Gênesis também é ponto fundamental para identificar as ordens que Abraão recebeu do Senhor e concluir que a aliança Abraâmica, assim como as outras alianças, também tinha suas exigências que deveriam ser obedecidas. A ordem de Deus foi para que o patriarca andasse na presença de Deus Todo-Poderoso e fosse perfeito (Gn 17.1). Além do estabelecimento da circuncisão com a ordem: “Guardarás a minha aliança tu e a tua descendência” (Gn 17.9). 2.2 A lei de Moisés Depois da aliança com Abraão, as Escrituras revelam a Aliança no Sinai e o estabelecimento da lei de Moisés. Provavelmente foi a primeira vez que a vontade de Deus foi expressa de maneira escrita, primeiro com as dez palavras ou mandamentos, depois com o restante da lei registrada no Pentateuco23. A lei de Moisés é bem abrangente, podendo se referir a todo Pentateuco como também, em outras ocasiões, aos dez mandamentos. No geral, é composta pelo conjunto de leis e instruções dadas ao povo de Israel durante a peregrinação pelo deserto e antes da entrada na terra prometida. Apesar da definição como “lei de Moisés”, ela é a expressão da vontade de Deus. Foi o próprio Yahweh quem deu a lei ao povo. A lei pertence a Ele, a lei é de Deus. Os mandamentos, estatutos dados primeiramente a Israel expressam o cuidado de 22 A imagem e semelhança não foi perdido com a queda. Ela se desfigurou, é uma imagem limitada por causa do pecado, mas o homem tem seu valor único porque foi criado à imagem e semelhança de Deus, nenhuma outra criatura tem esse privilégio. 23 Há a chamada fórmula Toledoth, que pode dar a entender fontes pré-mosaícas no livro de Gênesis, sendo assim, Moisés teria sido o editor do livro. Veja mais dessa discussão em DILLARD; LONGMAN III, 2006, p. 38-48. 18 Deus e têm o propósito de ensinar o povo da aliança a se relacionar com Deus e consigo mesmo (VANGEREMEREN, 2003, p. 30). Ao estabelecer a lei de Moisés, Yahweh estava dando continuidade ao plano de redenção e não criando dois tipos de promessa diferentes24. Portanto, a lei sempre deve ser analisada nesse ambiente de graça, libertação e redenção. “Está de acordo com isso o fato de que a Lei é representada no Antigo Testamento não como um fardo e um julgo que mais tarde vieram a ser a experiência religiosa dos judeus, mas como uma das maiores bênçãos e distinções que Yahweh havia conferido ao seu povo [Dt 4.7,8; Sl 147.19-20; cf. Mesmo em Paulo, Rm 9.4-5]” (VOS, 2010, p. 161). Por isso, dentre as partes mais importantes do Pentateuco, está o chamado Livroda Aliança (Êx 19-24) que contém os preparativos para a aliança (19.1-25); as leis da aliança (21.1-23.33); e a conclusão ou ratificação da aliança (24.1-18). (WALTKE, 2013)25. No livro da aliança encontram-se os dez mandamentos ou dez palavras, consideradas o resumo da lei moral de Deus. Elas são a constituição básica de Israel em três sentidos. Primeiro, como um lembrete constante da redenção, depois como deve ser o relacionamento com Deus e com o próximo e em terceiro lugar, o Decálogo é a base para todos os outros códigos legais (VANGEMEREN, 2003, p. 31). Os dez mandamentos se diferenciam das outras leis pois além da forma no imperativo, são classificadas como apodícticas, ou seja, “determinações permanentes, proibições ou ordens. Em contraste com isso, leis casuísticas (leis criadas por precedência) fazem aplicações específicas da lei sob circunstâncias restritas” (VANGEMEREN, 2003, p. 31). É também a partir dessa estrutura que a teologia reformada em geral identifica a lei em três aspectos no AT: cerimonial, civil e moral26. Além dessa lei, geralmente chamada lei moral, quis Deus dar ao seu povo Israel, considerado uma igreja sobre sua tutela, leis cerimoniais que contém diversas ordenanças típicas. Essas leis – que em parte se referem ao culto e prefiguram Cristo, suas graças, seus atos, seus sofrimentos e seus benefícios, e em parte representam várias instruções de deveres morais – estão todas abolidas sob o Novo Testamento (CFW XIX.III). 24 Existem os que entendem que há dois tipos de aliança no AT, uma incondicional com Abraão e outra condicional com Israel. Contudo vê-se que a aliança com a nação é a continuação da promessa a Abraão. 25 Alguns autores limitam o “Livro da Aliança” a parte das leis causuísticas (Êx 20.23-23.19). Ver KRUSE, p.910; DILLARD; LONGMAN III. p.68; Contudo a estrutura literária em Êxodo demonstra que “as leis casuísticas são apenas uma parte do todo e estão integralmente relacionadas ao que é registrado antes e depois que Deus Yahweh deu verbalmente a Moisés as leis aplicadas (Êx 20.22; 21.1; 24.3)” (GRONINGEN, p.380). 26 A tradição reformada segue Calvino (As Institutas, IV. 20.14-15). 19 A esse mesmo povo, considerado como um corpo político, Deus concedeu diversas leis judiciais que deixaram de vigorar quando o país daquele povo também deixou de existir, e que agora não obrigam a ninguém além do que exige a sua equidade geral (CFW XIX.IV). Uma das críticas que esta classificação recebe é o fato que a Escritura não faz essa separação e que isso é forçar os textos bíblicos (KAISER, 2003). Entretanto, isso não quer dizer necessariamente que a diferenciação não exista. Uma série de termos cunhados pela teologia sistemática também não aparecem nas Escrituras, contudo fazem jus ao ensino bíblico. Exemplo disso é a Trindade (KAISER, 2003, p. 204). A pergunta necessária é se essa categorização da lei é correta ou não? Ela demonstra a realidade dos textos bíblicos? É uma categoria imposta pela teologia sistemática ou tem apoio da teologia bíblica? Essa estrutura que entende a lei em suas dimensões é fundamental no conceito reformado, mas outros grupos de teólogos discordam27, afirmando que a lei não pode ser dividida dessa maneira. De fato, não é fácil separar a lei em categorias, visto que o aspecto moral da lei está entrelaçado às leis civis e cerimoniais (VANGEMEREN, 2003 p. 32). Teólogos reformados como confessam que essa distinção em aspectos “pode ser desorientadora porque tanto o AT como o NT normalmente usam o termo “lei” para falar da lei mosaica como um todo em vez de um aspecto particular [...]” (CHAMBLIN, 2013, p. 221). Um dos erros comuns ao se lidar com a lei é tratá-la como uma unidade indivisível. A implicação disso é que “se alguém concorda que Cristo colocou de lado a lei cerimonial por meio de sua morte e ressureição substitutivas, então consequentemente os cristãos são desculpados de toda a lei, visto que ela é uma unidade indivisível” (KAISER, 2003, p. 203). O que se diz é que “o cristão não está mais obrigado à lei mosaica; Cristo realizou seu cumprimento. Mas o cristão está obrigado à “lei de Deus” [...]. “Lei de Deus” não é, entretanto, a lei mosaica, mas a lei de Cristo”. (MOO, 2013, p. 265). O pressuposto desse argumento de descontinuidade é que não se pode separar os aspectos moral, cerimonial e civil da lei mosaica. Sendo assim, toda lei mosaica foi cumprida em Cristo, que estabelece uma nova lei. Contudo, deve-se rejeitar esse pressuposto porque apesar da lei ser vista como um todo em ambos os Testamentos, é possível identificar os diferentes aspectos e, com base na própria análise de Jesus sobre a lei, destacar a importância do aspecto moral em relação ao que é cerimonial e civil. 27 Ver perspectivas diferentes em FEINBERG, John S. Continuidade e Descontinuidade. São Paulo: Hagnos, 2013. Kaiser (…) estudioso do AT também entende que a lei pode ser vista em aspectos morais, cerimoniais e civis. 20 Jesus fez uma diferenciação quanto a isso em Mt 23.23. No texto Jesus destaca que existem “preceitos mais importantes”. O contexto mostra os escribas e fariseus se empenhando para cumprir a lei dos dízimos, indo até mesmo além do que era exigido na lei de Deus em Lv 27.30-33, mas deixando de cumprir a justiça, a misericórdia e a fidelidade, expressões de amor ao próximo (HENDRIKSEN, 2001, p. 463). O importante na passagem é que Jesus considerou que havia preceitos mais importantes dentro da lei (Mt 23.23). Outra passagem pertinente se encontra em Marcos capítulo 7. Jesus condenou os escribas e fariseus porque negligenciaram o mandamento de Deus e seguindo a tradição dos homens (7.8). No verso 19, Jesus considerou todos os alimentos puros, fazendo uma alteração na lei mosaica em relação aos alimentos, descrita por exemplo, em Levítico 11. Ao analisar o comentário de Jesus à luz do texto do Pentateuco, pode-se ver o aspecto moral junto com o civil se sobressair, já que a “distinção entre animais “puros” e “impuros” lembrava Israel que Deus o havia separado de outras nações para ser sua nação santa” (CHAMBLIN, 2013, p. 236). Somente os membros normais de cada esfera da criação, p.ex., peixes com barbatanas, eram considerados puros. Essa definição, que identificou os membros “perfeitos” do reino animal com pureza, serviu para lembrar que Deus buscava perfeição moral em seu povo. Pássaros comedores de carniça e animais carnívoros eram impuros porque também tipificavam os instintos pecaminosos, destrutivos e assassinos do homem (apud:WENHAM, Leviticus, p. 184). Na nova ordem que Jesus veio estabelecer, não há mais a necessidade de diferenciação pelos alimentos, pois o que contamina o homem é o que está dentro dele (Mc 7.20-21). O povo de Deus continua tendo que viver de maneira santa (aspecto moral), mostrando que a diferença para os que não obedecem ao Senhor está primeiramente em um coração transformado. Tendo em vista que Jesus fez algum tipo de distinção entre os preceitos mais importantes, isto é, o que é moral e o que era restrito à nação de Israel no período da antiga aliança valida a distinção comum na teologia reformada quanto as dimensões civil, cerimonial e moral da lei mosaica. A argumentação a favor de uma lei monolítica que refuta o reconhecimento da classificação dada por Jesus à lei moral, colocando-a acima de todas as outras leis como a lei que tinha maior peso, significado e importância, precisa agora ser descartada. Aliás, a afirmação de que a lei do Senhor, em todas as suas partes, cessou de ser válida agora em virtude do cumprimento perfeito realizado por Cristo da parte cerimonial da lei (do que curiosamente é chamado de lei indivisível) também precisa ser abandonada em vista do ensino de Moisés, Jesus e Paulo (KAISER, 2003,p.214). 21 Evidências textuais mostram portanto que é possível analisar a lei em seus sentidos morais, civis e cerimoniais. É o caso dos Dez Mandamentos que são considerados o resumo da lei moral de Deus (MEISTER, 2003, p. 42). Apresenta-se aqui, mas não de forma exaustiva, pelo menos três razões para isso. A primeira é que o Decálogo assume significativa importância por ser revelado no contexto pactual do Monte Sinai (WALTKE, 2015, p. 465). A segunda se dá porque os Dez Mandamentos contém uma forma de lei apodítica (Êx 20.1- 17), ou seja, as que são absolutamente necessários. Apresentação posterior em 20.18-23.33 é apenas uma aplicação das Dez Palavras a diversas situações da vida (WALTKE, 2015)28. E por último, eles são especiais porque foram dadas diretamente por Deus, Ele mesmo escreveu (Êx 32.16; 34.1), enquanto todos os outros mandamentos foram entregues por mediação de Moisés (WALTKE, 2015, p. 465-466). As Dez Palavras, mesmo tendo sido dadas a Israel, contém princípios teológicos anteriores à revelação no Sinai, bem como princípios aplicados em várias partes do Novo Testamento. Essa percepção faz com que seja possível afirmar que o Decálogo seja o resumo da lei moral de Deus e pode ser aplicado a pessoas de todas as épocas, culturas e lugares diferentes, sem perder de vista o fator progressivo da revelação. Köstenberger e Patterson (2015, p. 163) fornecem um auxílio valioso na tabela abaixo: 3.1. OS DEZ MANDAMENTOS E OS PRINCÍPIOS A ELES SUBJACENTES MANDAMENTOS PRINCÍPIOS ÊXODO DEUTERONÔMIO PRÉ-SINAI NOVO TESTAMENTO Êx 20.2-6 Dt 5.7 Gn 17.1; Êx 3.14 At 14.10-15; 1 Co 8.4 Êx 20.4-6 Dt 8-10 Gn 35.3-4 2 Co 6.16; 1 Jo 5.20-21 Êx 20.7 Dt 5.11 Gn 24.3 Mt 6.5-13 Êx 20.8-11 Dt 5.12-13 Gn 2.2-3 1 Co 16.2 Êx 20.12 Dt 5.16 Gn 46.29; 50.1-5 Mt 19.18; Ef 6.1-3 Êx 20.13 Dt 5.17 Gn 4.6-12, 15; 9.5,6 Mt 19.19; Rm 13.9 Êx 20.14 Dt 5.18 Gn 39.9 Mt 19.18; Rm 13.9 Êx 20.15 Dt 5.19 Gn 27.36; 31.7 Mt 19.18; Rm 13.9; Ef 4.28 Êx 20.16 Dt 5.20 Gn 39.16-18 Mt 19.18; Rm 13.9; Tg 4.11-12 Êx 20.17 Dt 5.21 Gn 26.10 Rm 7.7; 13.9,10 28 Concordando com isso, Kaiser (2003, p. 213) afirma: “Os aspectos restantes das leis de Moisés sejam civis ou cerimoniais, não são nada mais do que ilustrações, aplicações ou implementações voltadas para situações específicas daquela mesma lei moral e permanente”. 22 A aplicação do aspecto moral da lei para todas épocas e pessoas diferentes tem sua raiz na origem da lei como expressão da vontade eterna e imutável de Deus. Calvino (IV. 20.15) explica que o resumo da lei, a regra da justiça que Deus requer, é que Ele seja cultuado por todos os homens e que os homens amem uns aos outros. Corretamente isso reflete a fala de Jesus em Mateus 22.36-40. 2.3 Aspectos civil e cerimonial da lei Para uma análise mais concreta, deve-se entender os aspectos civil e cerimonial da lei primeiro na administração do pacto da graça e depois na Nova Aliança. Como já foi dito, a lei deve ser vista como um todo, considerando que ela é uma unidade, mesmo que seja possível identificar vários aspectos do todo. O sistema legal que Israel recebeu do Senhor é bem variado, abrangendo não apenas o culto e sacrifícios, mas também costumes do dia a dia, regras sociais de convivência e punição a quem não obedecesse. De modo que Israel deveria refletir a santidade do seu Deus, como de fato registrou Moisés: “Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2). Essas leis estão diretamente relacionadas à teocracia implantada por Deus na nação de Israel. Isso pode ser exemplificado no chamado Livro da Aliança em Êxodo 20-23. Após os Dez Mandamentos tem-se leis acerca dos altares (20.22-26), leis sobre o relacionamento de escravos e senhores (21.1-11), leis de convívio geral na sociedade, envolvendo casos de violência, propriedade, vingança, relacionamentos sexuais ilícitos e respeito a autoridade do príncipe (21.1- 22.28). Misturadas a elas, estavam obrigações religiosas (22.29-31). Esses textos e outros são mais do que suficientes para mostrar que a religião no AT estava 23 plenamente ligada a conduta social que Yahweh exigia e não apenas nas obrigações cerimoniais de culto e sacrifício. Além das leis civis ligadas à santidade do povo, Deus instituiu as leis cerimoniais e civis da antiga aliança que regiam como seria o relacionamento entre o povo e Yahweh. Em geral, essas leis se desenvolvem em três linhas principais: lugar, pessoas, objetos e ocasiões sagradas; sistema sacrificial; e leis relacionadas a pureza e impureza29. 2.3.1 Lugar, objetos, pessoas e períodos sagrados O lugar onde Deus está é considerado santo. Moisés teve essa experiência quando o EU SOU se revelou a ele no monte Sinai. “Deus continuou: Não te chegues para cá; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa” (Êx 3.5). Após o êxodo no Egito Moisés subia ao cume do monte para encontrar-se com Deus, mas com a chegada da lei, Deus anunciou que Ele mesmo desceria para habitar permanentemente com o povo que escolhera (Êx 25.8). O próprio nome em si demonstra essa ideia. A palavra hebraica é mishkan significa tenda, lugar de habitação30. “O tabernáculo, então, representava não meramente de maneira simbólica a habitação de Deus em Israel; mas, na verdade, ele a continha” (VOS, 2010, p. 190). O livro de Êxodo 25-40 apresenta as normas e tudo quanto Deus exigiu para o tabernáculo. Mais tarde, o templo também foi construído seguindo a instrução divina. Davi entregou a Salomão “as plantas de tudo o que o Espírito havia posto em seu coração acerca dos pátios do templo do Senhor e de todas as salas ao redor, acerca dos depósitos dos tesouros do templo de Deus e dos depósitos das dádivas sagradas” (1 Cr 28.12). Além do lugar sagrado, havia as pessoas sagradas. Esse grupo era composto por levitas e principalmente sacerdotes, que tinham o papel de mediadores entre Deus e o povo. Os sacerdotes tinham duas funções principais, eram tanto os mestres que ensinavam a lei de Deus ao povo da aliança (Lv 10.10-11), como a equipe sagrada responsável pela liturgia, pelos sacrifícios e pelo tabernáculo em si. Eles precisavam estar sempre consagrados a Deus, seguindo exigências específicas (Êx 30.17-21; Lv 21). O tabernáculo tornou-se um lugar sagrado, uma extensão do céu na terra e seus oficiantes eram seus servos especiais, os representados do Senhor que tornavam 29 Com algumas adaptações, esta estrutura é proposta por Vos em Teologia Bíblica (2010). Ver ainda MERRILL (2009) e WALTKE (2015) que trabalham com ideias parecidas. 30 VOS, 2010, p. 184. 24 possível o contato fundamental e vivo entre o Deus santo e seu povo que ia oferecer adoração e louvor a ele em seu lugar sagrado (MERRILL, 2009, p. 355). Dentro do tabernáculo todos os objetos eram consagrados a Deus com óleo aromático. Cada utensílio tinha um valor simbólico “exemplificando grandes realidades teológicas cuja total relevância não podia ser entendida na época [...]” (MERRIL, 2009, p. 345). Dentre as principais peças estão: a arca da aliança que ficava no santo dos santos. Separado por um véu, no lugar santo havia a mesa dos pães, o candelabro e o altar de incenso. No pátio externo do tabernáculo, havia o altar de oferta queimada e a bacia de bronze usada na purificação dos sacerdotes. A lei também previa tempos e períodos sagrados pois apesar que Deus sempre estava presente com Israel, primeiro no tabernáculo e depois no templo, em ocasiões especiais Yahweh se encontrava com seu povo de maneira distinta (WALTKE, 2015, p. 519). Nota-se isso nas festas especiais (Êx 34.23; Dt 31.11) e em outras ocasiões específicas que que Deus descia em forma de nuvem para se encontrar com o povo (Nm 11.17, 25; 12.5). Na antigaaliança, as principais ocasiões sagradas podem ser identificadas em festas, dias e anos. O material relacionado às festas no Pentateuco é vasto e variado e algumas festas podem estar interligadas ou ter o mesmo nome, como parece ser o caso da Páscoa e a Festa dos Pães Asmos (Dt 16.1, 16). Seguindo a lista de Deuteronômio, sem ser exaustivo, pode-se identificar três festas principais: Páscoa (Dt 16.1-8), Festa das Semanas (16.9-12) e Festa dos Tabernáculos (16.13- 15). O objetivo dessas festas era ajudar a “comunidade da aliança a se lembrar dos grandes acontecimentos do passado e, além disso, de uma forma difícil de descrever, reproduzem esses acontecimentos ou fazem com que mais uma vez se tornem reais para as gerações posteriores (WALTKE, 2015, p. 520). Sobre dias, além do sábado que será tratado separadamente31, merece destaque o Dia da Expiação. Esse era um dia de sábado especial que ocorria uma vez por ano para expiação dos pecados dos sacerdotes e do povo, a cerimônia também servirá de purificação do santuário, da tenda da congregação e do altar (Lv 16.33). Era um dia de santa convocação (Nm 29.7) marcado por aflição da alma com punição de morte para quem não participasse (Lv 23.29). Para encerrar essa análise sobre os períodos sagrados tem-se ainda o ano sabático, celebrado uma vez a cada sete anos. Nesse ano o povo deveria dar descanso a terra e em vez 31 Veja Capítulo IV. 25 de plantar, deveria confiar que Yahweh o supriria, abençoando para que a colheita do sexto ano dê fruto por três anos (Lv 25.21-22). Havia também o ano do jubileu, que acontecia a cada cinquenta anos. Nesse ano especial da mesma forma como o Senhor perdoa o pecado do povo no Dia da Expiação, o povo, principalmente os ricos, deveria perdoar aqueles que eram escravos para pagar as suas dívidas (Lv 25.10). O ano do Jubileu mostra que a terra pertence a Deus “e o povo é apenas forasteiro e arrendatário que vive temporariamente na terra e a cultiva em nome dele” (MERRILL, 2009, p. 364). 2.3.2 Sistema sacrificial A segunda linha geral das leis cerimoniais podem ser vistas nos sacrifícios e ofertas. As ofertas podem ser agrupadas em voluntárias e obrigatórias. No primeiro grupo estão holocaustos, manjares ou ofertas vegetais e ofertas pacíficas. Sacrifícios pelo pecado e de culpa eram obrigatórios. (SANTOS, p. 64). O que distingue o sacrifício de qualquer outro ato sagrado é que a substancia é colocada em parte ou toda ela sobre o altar. Sem o altar não há sacrifício, pois este é a habitação de Deus. Isto é, Yahweh consome o sacrifício. “A Lei expressa, em linguagem antropomórfica, o princípio de assimilação do sacrifício por Yahweh, quando ela fala disso como “alimento para Yahweh” ou como concedendo “uma [oferta] queimada de aroma agradável a Yahweh” (VOS, 2010, p. 195). Portanto, o sacrifício é considerado uma dádiva para Yahweh e por isso deve ser puro, no entanto, nem tudo que é puro é permitido no sacrifício. Dentre os animais, apenas bois, ovelhas, bodes e pombas eram permitidos e dentre os vegetais, apenas milho, vinho e óleo eram aceitos. “O princípio expresso nesse seleção é duplo. O sacrifício deve ser trazido daquilo que constitui o sustento da vida do ofertante, e daquilo que forma o produto de sua vida [...], eles caracterizam sacrifício como dádiva da vida a Deus” (VOS, 2010, p. 196). Um cuidado e preciso quando se diz que o sacrifício é uma dádiva da vida a Deus. Não se tem em mente os sacrifícios pagãos em que presentes são oferecidos às divindades como uma transferência de valor, um presente cuja divindade não tem, mas no sentido de que o ofertante entrega “de volta para Deus aquilo que Deus primeiramente dera para ele como um meio de graça” (VOS, 2010, p. 196). Deus exige sacrifício de coisas essenciais para a vida de uma sociedade agrícola, contudo são coisas que Ele mesmo concede ao povo. 26 Ao longo do Pentateuco, principalmente em Levítico tem-se as principais instruções quanto ao que Deus espera do povo em relação as ofertas. Waltke (2015, p. 521) traz a informação de que no hebraico existem 11 palavras diferentes para o que é comumente traduzido como “oferta”, “sacrifício” e “holocausto”. Os sete primeiros capítulos de levítico mostram os cinco principais tipos de sacrifícios do culto no Tabernáculo. São eles: holocaustos, manjares, sacrifícios pacíficos, sacrifícios pelo pecado, sacrifícios pela culpa (SANTOS, p. 64). Com alguma diferença, pode-se classificar: ofertas pelo pecado; pelas transgressão; ofertas queimada; ofertas pacifica, que podem ser ofertas de louvor e gratidão, ofertas por voto e ofertas voluntárias; por fim, ofertas de vegetais, com a ideia de consagração.32 Esse complexo manual de sacrifícios tinha o propósito de ser o meio pelo qual o povo poderia continuar a ter comunhão com Deus. Por isso, o sentido principal dos “sacrifícios, ofertas e, na verdade, toda atividade religiosa não tinham valor redentor nem restaurador se fossem apenas pro forma. Esses atos para ter eficácia deviam brotar de um espírito verdadeiramente arrependido e da pura devoção” (MERRILL, 2009, p. 379). 2.3.3 Leis de pureza e impureza O princípio por trás de todas as leis relacionadas a pureza e impureza é que Israel era uma sociedade teocrática. Sendo governada por Deus, a nação deveria expressar os padrões do reino de Deus na terra, ainda que de modo simbólico nas leis referentes a animais e atos que eram considerados impuros. Pode-se encontrar a descrição dessas leis em Levítico 11-15 e em algumas partes de Deuteronômio, especialmente no segundo discurso de Moisés no capítulo 14. É importante entender que a “palavra hebraica tahor (tradicionalmente traduzida por “limpo”) indica pureza ritual. Puro/”limpo” não se refere a higiene, mas indica o oposto do que é misturado ou mestiço” WALTKE, 2015, p. 526). Desse modo, é incorreto inferir que estas leis tinham um propósito de higiene (VOS, 2010, p. 213). A regulação com o que é puro e impuro tem a ver com a santidade exigida da 32 Oferta pelo pecado e oferta de culpa são basicamente consideradas a mesma oferta. Oferta de manjares é o mesmo que ofertas vegetais. A única diferença mesmo está em relação as ofertas pela transgressão, que envolve o pagamento não apenas do pecado, mas o pagamento pela obediência não dada a Deus. Esta oferta tem especial importância com o sacrifício de Cristo (VOS, 2010). 27 comunidade teocrática e da distância com que o povo se relaciona com Deus. Assim, como se expressa Waltke na tabela abaixo:33 Menos santo Mais santo Santíssimo Território Jerusalém Lugar Santíssimo Gentios Israel Sacerdote Todos os animais Animais puros Melhores animais 33 WALTKE, 2015, p. 527. 28 3. A LEI NA NOVA ALIANÇA Entende-se a Nova Aliança como aquela administração do pacto da graça depois da vinda de Cristo, instituída pelo próprio Senhor. No final de seu ministério Jesus reuniu os discípulos e celebrou a ceia, mandando que os discípulos bebessem o cálice, pois este é “o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.28). Com sua vida e obra Jesus interliga a história da redenção no Antigo e no Novo Testamento, antiga e nova aliança, judeus e gentios. “Cristo, portanto, é o ponto decisivo dos tempos, a cruz é o ponto focal da história do mundo. Primeiro, tudo foi conduzido na direção da cruz; subsequentemente, tudo foi inferido da cruz” (BAVINCK, 2012, p. 229). O advento do Messias fez com que a relação de Deus com seu povo fosse alterada para um estágio superior em relação a antiga administração. O pacto da graça progrediupara uma administração mais elevada, mais graciosa e mais exaltada. Isso não quer dizer que o tempo no Antigo Testamento foi ruim e não serviu aos propósitos de Deus. “Nada no Antigo Testamento foi perdido no Novo, mas tudo é cumprido, amadurecido, alcança seu pleno desenvolvimento e, agora, fora da casca temporária, produz o miolo eterno” (BAVINCK, 2012, p. 230). A lei nesse novo estágio deve ser vista a partir da constatação de que a encarnação de Cristo alteraria para sempre a relação de Deus com seu povo. Mas o que isso quer dizer? Há uma nova lei na nova aliança? A lei foi abolida por Cristo ou Ele apenas a alterou em forma? Como os apóstolos aplicaram a lei à igreja? A primeira questão pode ser respondida no texto de Jeremias 31.31-34. Já as outras duas, serão tratadas mais adiante com uma análise na relação de Cristo e de Paulo com a lei. No texto de Jeremias 31.31-34 a nova aliança é firmada com a casa de Israel e Judá34 em que Yahweh diz abertamente: “Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no 34 Entende-se aqui uma visão de Israel e Judá não apenas como descendentes carnais, embora não os exclua, mas como uma “representação tipológica do povo eleito de Deus” (ROBERTSON, 2011, p.230). Waltke também afirma que apesar do profeta Jeremias ter em mente os descendentes físicos de Abraão, “os apóstolos reinterpretaram Israel como igreja, a qual, mediante o batismo em Cristo, a verdadeira semente de Abraão, inclui judeus e gentios (Ef 2.11-22; Gl 3.29; 6.15; 1Pe 2.9, 10 [Cf. com Êx 19.6; Dt 7.6])” (WALTKE, 2015, p. 494). A abordagem dispensacionalista é diferente, entende Israel e Judá como os descendentes físicos da promessa a Abraão, ainda que não neguem que Jesus inaugurou a nova aliança também para os gentios. Ver também: Merrill (2009, p. 512-513). 29 coração lhas inscreverei”. O paralelismo hebraico é claro nesse trecho e pode ser visto do seguinte modo: 1A - Na mente, lhes imprimirei as minhas leis 1B - também no coração lhas [as minhas leis] inscreverei O que pode-se entender por “minhas leis”? Primeiramente, que a nova aliança não será sem lei. Deus continuará a instruir seu povo por meio da lei. Esse já é um ponto não observado por adeptos ao antinomismo. O novo pacto não é indiferente à lei. “Seu contraste com o velho não é porque o velho tinha lei e o novo não. A superioridade do novo não consiste na ab-rogação da lei, mas que ela vem a ter uma relação mais íntima conosco e um cumprimento mais efetivo em nós” (MURRAY, 2001 p. 47-48). Essa relação mais íntima se dá porque enquanto na antiga aliança a lei foi escrita em tábuas de pedra (Êx 32.16; 34.1), na nova, será escrita no coração do povo (Jr 31.33). Essa diferenciação entre uma realidade externa e interna deve ser cautelosa, pois outrora também era esperada uma mudança no coração do povo da aliança, inclusive a lei deveria estar guardada internamente (Dt 6.6; 10.12, 16; 11.18; 30.6, 14). “Entretanto, somente na nova aliança torna-se assegurada a inscrição da lei, pelo próprio Deus, no coração” (ROBERTSON, 2011, p. 233). Até agora percebe-se uma mudança no aspecto interior, mas não em essência, pois o conteúdo é o mesmo de antes. O que é inscrito no coração na nova aliança é a mesma lei de Deus, são os mandamentos morais que encontram-se representados nos Dez Mandamentos. Tanto é assim, que Jeremias parece fazer relação com a ocasião da entrega da lei no Sinai. Portanto, pode-se resumir que o novo concerto como descrita em Jeremias 31.31-34 “implicará não em nova lei, mas em nova e mais pessoal administração da antiga lei (mosaica)” (CHAMBLIN, 2013, p. 226). 3.1 Cristo e a lei Algumas atitudes e declarações de Jesus parecem ser contraditórias na sua relação com a lei. Se por um lado, afirmou que não veio para revogar a lei ou os profetas (Mt 5.17), por outro parece ter abolido a lei de alimentos puros e impuros (Mc 7.19). Como Jesus se relacionou com a lei? 30 Não há unanimidade a respeito disso, visto que algumas tradições acreditam que Jesus cumpriu a lei, abolindo-a para os crentes. Já outra tradição afirma que o cumprimento da lei por Cristo significou a libertação da maldição da lei, mas não a anulação da mesma tendo em vista a vida de justiça que o crente deve ter (HOLWERDA, 2006). Certamente uma análise nos textos bíblicos mostra que a chegada da nova aliança com o ministério de Cristo alterou consideravelmente a relação da lei com o crente. Chamblin (2013, p.221) argumenta que a vinda de Cristo alterou a lei em sua forma ou modelo, mas não em essência. Existe certa descontinuidade ocasionada pela vinda de Cristo, contudo isso ocorre em uma estrutura de continuidade. A análise de Jeremias 31.31-34 apoia esse fato, pois a lei continua sendo a mesma lei de Deus, agora em uma nova aliança. Primeiramente, Jesus enfatizou que o Antigo Testamento era Palavra de Deus, considerando a lei como regra de vida à qual ele mesmo se sujeitou. Nota-se que Jesus foi circuncidado ao oitavo dia como previa a lei (Gn 17.11-12; Lv 12.3). Em seguida, depois de Maria cumprir os trinta e três dias de purificação (Lv 12.4), levou Jesus para ser consagrado no templo em Jerusalém. O evangelho de Lucas é o único a registrar esse fato, fazendo questão de ressaltar que tudo ali ocorreu “conforme o que está escrito na lei do Senhor” (Lc 2.23-24). Outra evidência de que Jesus se sujeitou à lei são as participações nas festas da Páscoa. Por mais de uma vez, é relatado Jesus indo para Jerusalém participar desse evento religioso de Israel. Lucas relata o episódio em que Jesus fica no templo conversando com os doutores da lei justamente no período da Páscoa. Lucas é enfático: “Ora, anualmente iam seus pais a Jerusalém, para a Festa da Páscoa” (Lc 2.41). Durante seu ministério, Jesus participou de várias festas religiosas. Dentre elas, a Páscoa, mais de uma vez (Jo 2.13-22; 13.1), uma festa dos judeus (Jo 5.1) e a Festa dos Tabernáculos (Jo 7.2, 8, 10) (KOSTENBERGER; PATTERSON, 2015, p. 106). Jesus não veio para revogar a lei, veio para a cumprir. O que isso quer dizer? O texto chave é Mateus 5.17: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”. A palavra original traduzida para revogar é “καταλῦσαι”. Ela significa demolir, eliminar, abolir35, sendo utilizada cinco vezes no evangelho de Mateus, duas em 5.17 e três vezes relacionado a destruição de prédios (24.2; 26.61; 27.40)36. 35 SIEBENTHAL, Heinrich Von; HAUBECK, Wilfrid, 2009, p. 64. 36 Concordância Fiel do Novo Testamento, p. 427. 31 Portanto, Jesus afirmou que não veio abolir, mas cumprir. Essa palavra é “πληρῶσαι”, que só em Mateus é utilizada cerca de dezesseis vezes37 e geralmente se refere a “dar cumprimento”, no sentido de realizar algo planejado ou anunciado. Por exemplo, o termo aparece em Mt 1.22 na ideia de cumprimento às palavras das Escrituras de que a virgem daria luz e o menino seria chamado pelo nome de Emanuel (Mt 1.23; Is 7.14). Esse também é o uso em textos como Mt 2.15,17,23; 4.14, 8.17; 12.17; 21.4. A ênfase é “isto aconteceu para que se cumprisse”. Jesus não revoga a lei, mas cumpre no sentido de ser a realidade de todo AT, tanto da lei como dos profetas. A melhor interpretação desses versículos difíceis é que Jesus cumpre a Lei e os Profetas pelo fato que estes apontam para Ele (CARSON, 2010, p. 179). Conclui-se que em Mateus 5.17, Jesus confirma que o AT era permanente e válido. Todavia, o novo pacto indica uma nova definição no papel e importância da lei. A lei serviu como condução às promessas, mas a nova aliança mudou a forma de relacionamento de Deus com o seu povo. Nessa fase, a relação com Deus é mediada pelo próprio Messias, pelo próprio Deus encarnado. Esse é o sentido que os evangelhos
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