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SOCIOLOGIA JURÍDICA MARIA NAZARETH DA PENHA VASQUES MOTA GUILHERME GUSTAVO VASQUES MOTA CELSO LINS FALCONE Organizadores SOCIOLOGIA JURÍDICA AUTORES Antonio José Cacheado Loureiro Camila Bertoni Carneiro dos Santos Carla Thomas Carlos Antonio de Carvalho Mota Júnior Celso Lins Falcone Devane Batista Costa Edmara de Abreu Leão Fernando Figueiredo Prestes Gracireza Azedo de Farias Higor Luís de Carvalho Silva Juliana Mayara da Silva Sampaio Lenice Maria de Aguiar Raposo da Câmara Marcelo Antunes Santos Márcio Alexandre Silva Maria Nazareth da Penha Vasques Mota Mário Vinícius Rosário Wu Monique de Souza Arruda Rômulo de Souza Barbosa Tiago Oliveira Lopes Timóteo Ágabo Pacheco de Almeida Vinícius Ribeiro de Souza © Maria Nazareth da Penha Vasques Mota; Guilherme Gustavo Vasques Mota; Celso Lins Falcone, 2018 editor ¶ Isaac Maciel coordenação editorial ¶ Tenório Telles/Neiza Teixeira projeto gráfico e diagramação ¶ André Martins capa ¶ Lícia Gonçalves revisão ¶ Núcleo de editoração Valer normalização ¶ Ycaro Verçosa – CRB – 11/287 M917s Mota, Maria de Nazareth da Penha Vasques. Sociologia Jurídica. / Maria de Nazareth da Penha Vasques Mota; Guilherme Gustavo Vasques Mota; Celso Lins Falcone. – Manaus: Valer, 2018. 310 p. ISBN 978-85-7512-868-8 1. Direito 2. Sociologia Jurídica I. Título II. Mota, Guilherme Gustavo Vasques III. Falcone, Celso Lins CDD 340.115 22. ed. 2018 Editora VALER Av. Rio Mar, 63, Cj. Vieiralves – Nossa Senhora das Graças Cep: 69053 180 – Manaus, AM Tel.: [92] 3184 4568 www.editoravaler.com.br Sumário Apresentação Eid Badr 7 Cotas x outsiders: análise do sistema brasileiro de cotas sob a ótica de Howard S. Becker. Antonio José Cacheado Loureiro Higor Luís de Carvalho Silva 11 Função Social da Ciência Jurídica Camila Bertoni Carneiro dos Santos Celso Lins Falcone 33 A Vulnerabilidade dos Direitos Humanos Diante da Desigualdade como Fato Gerador de Violência Urbana Carla Thomas Lenice Maria Aguiar Raposo Câmara 51 Os Reflexos da Pós-Modernidade da Sociedade de Consumo de Massa no Indivíduo, no Trabalho e nas Relações Sociais Devane Batista Costa Monique de Souza Arruda 77 Agrotóxicos, Alimentos Transgênicos, Informação e a Sociedade de Risco no Contexto Atual Edmara de Abreu Leão Márcio Alexandre Silva 105 Direito Alternativo ou uso alternativo do Direito em Diálogo com o Direito Ambiental Fernando Figueiredo Prestes 125 Principais Teorias Criminológicas e suas Contribuições à Ciência da Criminologia no Que Se Refere ao Entendimento do Fenômeno Delito Gracireza Azedo de Farias 145 Pós-Modernidade, Pluralismo Jurídico e o Desafio da Crise Ambiental Juliana Mayara da Silva Sampaio Rômulo de Souza Barbosa 175 Da Biopolítica à Conformação da Ecopolítica Marcelo Antunes Santos 203 As Barragens de Rejeitos de Mineração e o Direito Ambiental na Sociedade de Risco Mário Vinícius Rosário Wu 221 Críticas ao “Homem Médio” à Luz de Becker Tiago Oliveira Lopes Vinícius Ribeiro de Souza 253 Desenvolvimento Sustentável: Utopia da Sociedade de Risco, Marca da Modernidade Líquida ou Ideia Democrática Válida? Timóteo Ágabo Pacheco de Almeida 271 A visão de Norberto Bobbio na Solução de Antinomias entre a Lei Indígena e a Lei Pátria Carlos Antonio de Carvalho Mota Júnior Maria Nazareth Vasques Mota 297 7 APRESENTAÇÃO A presente obra, produto do esforço de seus organizadores, da dedicação e da profunda reflexão de seus autores, comprova a importância e o acerto da op- ção pela introdução da Sociologia Jurídica como disciplina obrigatória no proje- to pedagógico do curso de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (no ano de 2015), bem como o denodo demonstrado pela Profª. Drª. Maria Nazareth Vasques Mota responsável por ministrá-la. A prof.ª dr.ª Maria Nazareth Vasques Mota, o doutorando Guilherme Gus- tavo Vasques Mota e o mestrando Celso Lins Falcone foram extremamente fe- lizes ao tomarem a inciativa de organizar e buscar editar este livro, fruto das pesquisas realizadas no âmbito da disciplina mencionada. Os temas desenvolvidos nos doze capítulos desta obra revelam, por parte de seus autores, todos alunos do curso de Mestrado citado, um mergulho na pes- quisa de diversas obras fundamentais do Direito e da Sociologia, o que, decerto, propiciou-lhes a escolha e desenvolvimento de temas igualmente relevantes. Com efeito, o estudo sobre as políticas afirmativas e seus reflexos jurídicos e sociológicos, função social da ciência jurídica como elemento de pacificação social, a desigualdade social e seus impactos negativos sobre a efetivação dos direitos fundamentais, o consumo de massa e seus impactos sobre o meio am- biente e direitos fundamentais, o risco à saúde e à biodiversidade decorrente do uso de agrotóxicos e alimentos transgênicos, o chamado direito alternativo em diálogo com o direito ambiental, a análise da contribuição de teorias crimino- lógicas à ciência da Criminologia, o pluralismo jurídico e o desafio da proteção ambiental, Michel Foucault e a biopolítica, o risco ambiental resultante da cons- trução de barragens de mineração, a crítica ao termo &ld quo; homem médio” no direito penal e a teoria de Becker e, por fim, a análise crítica do conceito de “desenvolvimento sustentável” obriga-nos à reflexão e demonstra o rigor e a di- ligência dos autores em relação à pesquisa realizada. Além disso, restam evidentes a coerência e a pertinência temática entre os capítulos da obra e destes com a disciplina em tela e as linhas de pesquisa de nosso mestrado. Neste sentido, este livro tem a qualidade de contribuir para o efetivo debate dos temas propostos, os quais têm grande relevância para a Socio- logia Jurídica e a Ciência do Direito. 8 Ao encerrar estas breves linhas à guisa de apresentação, registro os meus efusivos parabéns aos organizadores, aos autores e ao Programa de Pós-Gra- duação Stricto Sensu em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Ama- zonas, o qual propiciou as condições necessárias para o desenvolvimento deste relevante trabalho científico. Prof. dr. Eid Badr Professor adjunto da Universidade do Estado do Amazonas SOCIOLOGIA JURÍDICA 11 COTAS X OUTSIDERS: ANÁLISE DO SISTEMA BRASILEIRO DE COTAS SOB A ÓTICA DE HOWARD S. BECKER QUOTAS X OUTSIDERS: ANALYSIS OF THE BRAZILIAN QUOTA SYSTEM FROM THE PERSPECTIVE OF HOWARD S. BECKER Antonio José Cacheado Loureiro1 Higor Luís de Carvalho Silva2 SUMÁRIO: Introdução; 1. Sistema de Cotas no Brasil (e no Exterior); 1.1 Histó- rico das Cotas no Exterior; 1.2 Histórico das Cotas no Brasil; 1.3 Conceituação; 1.4 Espécies de Cotas; 1.4.1 Cotas Raciais; 1.4.2 Cotas Sociais; 1.4.3 Cotas para portadores de Necessidades especiais; 2. Análise do outsider de Howard Becker; 2.1 Construção Conceitual do outsider; 2.2 O outsider na Sociedade Brasileira; 3. Os outsiders e o sistema brasileiro de cotas; 3.1 Empreendedorismo Moral do Legislativo Brasileiro; 3.2 Novos Grupos Desviantes no Brasil e a Análise das Pro- postas Legislativas Pertinentes ao Sistema de Cotas; 3.2.1 Cotas para Mulheres em Cargos Políticos; 3.2.2 Cotas para Idosos em Concursos Públicos; 3.3.3 Cotas para Usuários de Substâncias Entorpecentes; Conclusão; Referências. RESUMO: O artigo tem por objeto analisar a questão do sistema de cotas brasileiro em suas diversas categorias, sob a ótica da obra Estudos de Sociolo- gia do Desvio – Outsiders, de Howard Saul Becker. Além disso, o artigo expõe conceitos fundamentais para entender a questão, bem como aprofunda aspectos determinantes acerca do tema, apontando os pontos positivos e negativos, apre- sentando críticas e posicionamentos doutrinários sobre o sistema. Vale ainda ressaltar que o artigo analisa o sistema brasileiro de cotas desde sua origem e em como o modelo adotado adequa-se às ideias de Howard Becker. PALAVRAS-CHAVE: Sistema de Cotas. Sociologia do Desvio. Outsiders. 1 Mestrando em Direito Ambientalda Universidade do Estado do Amazonas. Professor de Direito da Universidade do Estado do Amazonas. Advogado. 2 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Delegado de Polícia Judi- ciária do Estado de Pernambuco. 12 ABSTRACT: This paper has as its object the analysis of the Brazilian quo- tas system, under the optics of Howard Saul Becker’s “Outsiders; studies in the sociology of deviance”. Although, this paper tries to expose fundamental con- cepts to understand the problem, as well as deeply exam on aspects about the theme, pointing positives and negatives views, showing critics and doctrinaires positions that use to circle the problem. It is worth mentioning that this paper seeks to analyze the Brazilian quotas system since its origins and how the Brazi- lian model matches Becker’s ideas. KEYWORDS: Quotas System. Sociology of Deviance. Outsiders. INTRODUÇÃO Hodiernamente, um tema tem, novamente, ganhado destaque no cenário político do Brasil. Tal tema referem-se ao sistema de cotas, que é um conjunto de ações afirmativas promovidas pelo Poder Público com o objetivo equiparar de- terminados grupos sociais ao grupo majoritário de uma determinada sociedade, primando, assim, pela isonomia em sentido material. Este artigo analisa a questão das cotas no Brasil (vagas para ingresso em universidades públicas, em concursos públicos e no mercado de trabalho) em contraste com a ideia de outsider, termo criado pelo sociólogo americano Ho- ward S. Becker. É importante compreender a relação entre os outsiders e o sistema de cotas, uma vez que eles são aqueles que vivem às margens da sociedade, sofrendo as consequências provenientes do seu não enquadramento com os padrões fixados por ela. Dessa forma, faz-se necessário a observância dos conceitos e dos dispo- sitivos legais que serão apresentados. O tema tem grande importância, uma vez que se correlaciona, como supra- citado, ao princípio constitucional da isonomia, como será tratado em momento oportuno. Além disso, mostra-se bastante atual frente às opiniões divergentes que cercam o tema cotas, bem como no que tange à elaboração de leis buscando pinçar novas classes sociais, ou seja, novos outsiders para a tutela do sistema de cota. Assim, busca-se estabelecer um paralelo entre o sistema brasileiro de cotas e o trabalho do sociólogo Howard S. Becker, com ênfase para a obra Estudos de Sociologia do Desvio – Outsiders, de 1973. Nesse sentido o objetivo da análise crí- 13 tica do referido sistema e em como as ideias do sociólogo americano refletem-se sobre ele. O primeiro capítulo trata sobre o sistema de cotas, no Brasil e no exterior, trazendo aspectos históricos, classificações e espécies de cotas, bem como a le- gislação pertinente ao tema exposto. Já o segundo capítulo versará sobre a obra Estudos de Sociologia do Desvio – Outsiders, sobretudo no que diz respeito aos conceitos e espécies de outsiders. Por fim, o terceiro capítulo traz perspectivas futuras acerca do tema, além de determinar o ponto de intercalamento entre os dois objetos de estudo do artigo: cotas e outsiders. 1. SISTEMA DE COTAS NO BRASIL (E NO EXTERIOR) 1.1 Histórico das Cotas no Exterior De acordo com Juliana Marton (2010, p. 1) “a história das ações afirmati- vas teve seu início nos EUA, durante a época das lutas pelos direitos civis, em meados da década de 1960, como forma de promover a igualdade social entre os negros e brancos norte-americanos”. Logo, a partir desses eventos, o presidente americano John F. Kennedy hou- ve por bem validar ações que tinham como objetivo auxiliar as pessoas pobres e diminuir a desigualdade entre classes. No entanto, poucos sabem que tais sis- temas, adotados pelos Estados Unidos da América criaram benefícios apenas para a classe média negra, negligenciando todas as demais classes em estado de hipossuficiência da população do país. Segundo Jessé de Souza, o crescimento da classe média negra entre 1970 e 1980 não interferiu na diminuição da porcentagem de famílias negras pobres, que atualmente oscila entre 30% da população negra do país. Esse percentual de crescimento dos Estados Unidos é explicado por meio da pesquisa que o econo- mista americano Thomas Sowell realizou pela Universidade Stanford. O estudo de Sowell conclui ser errôneo atribuir às ações afirmativas a evolução social dos grupos beneficiados, uma vez que estes se desenvolveram no período anterior ao implemento delas. A intenção exordial pretendida com a implementação dessas políticas era reduzir a discriminação social, decorrente da raça (étnica) e dos conflitos arma- 14 dos entre os Estados do norte e sul do país. Mas o que restou claro foi a ineficácia de tais ações para abarcar toda a população negra. Para Adriano Lesme (2010, p. 1), “a liderança do movimento de direitos civis tinha em mente propor reformas econômicas, além da execução de leis an- tidiscriminativas. Mas o declínio da economia na década de 1970 não permitiu que essas ideias fossem colocadas em prática”. Hoje, os sistemas de cotas raciais, que eram adotadas principalmente em escolas nos EUA, foram abolidos. Em junho de 2007, a Suprema Corte dos Esta- dos Unidos decidiu que a raça de uma criança não seria mais requisito prepon- derante para determinar onde ela deveria estudar. Vale ainda aduzir que as cotas são, também, realidade em outros países, sobretudo no que diz respeito aos portadores de necessidades especiais, ou seja, são cotas em razão de condições físicas, não são cotas raciais, uma vez que tais cotas (raciais) são consideradas inconstitucionais em grande parte desses Esta- dos, conforme o apanhado realizado por Juliana Marton: PORTUGAL Art. 28, da lei n.º 38/2004, estabelece a cota de até 2% de trabalhadores com defi- ciência para a iniciativa privada e de, no mínimo, 5% para a administração pública. ESPANHA A lei n.º 66/97 ratificou o Art. 4.º do Decreto Real n.º 1.451/83, o qual assegura o percentual mínimo de 2% para as empresas com mais de 50 trabalhadores fixos. Já a lei n.º 63/97 concede uma gama de incentivos fiscais, com a redução de 50% das cotas patronais da seguridade social. FRANÇA O Código do Trabalho Francês, em seu Art. L323-1, reserva postos de trabalho no importe de 6% dos trabalhadores em empresas com mais de 20 empregados. ITÁLIA A lei n.º 68/99, no seu Art. 3.º, estabelece que os empregadores públicos e privados devem contratar pessoas com deficiência na proporção de 7% de seus trabalhadores, no caso de empresas com mais de 50 empregados; duas pessoas com deficiência, em 15 empresas com 36 a 50 trabalhadores; e uma pessoa com deficiência, se a empresa possuir entre 15 e 35 trabalhadores. ALEMANHA A lei alemã estabelece para as empresas com mais de 16 empregados uma cota de 6%, incentivando uma contribuição empresarial para um fundo de formação profissional de pessoas com deficiência. ÁUSTRIA A Lei Federal reserva 4% das vagas para trabalhadores com deficiência nas em- presas que tenham mais de 25 anos, ou admite a contribuição para um fundo de formação profissional. BÉLGICA Existe sistema de cotas, porém não há um percentual legal para a iniciativa pri- vada. Este é negociado por sindicatos e representantes patronais para cada ramo da economia. HOLANDA O percentual varia de 3% a 7%, sendo este firmado por negociação coletiva, de- pendendo do ramo de atuação e do tamanho da empresa. IRLANDA A cota é de 3%, sendo aplicável somente para o setor público. REINO UNIDO O Disability Discrimination Act (DDA), de 1995, trata da questão do trabalho, vedando a discriminação de pessoas com deficiência em relação ao acesso, à conservação e ao progresso no emprego. Estabelece, também, medidas organi- zacionais e físicas para possibilitar o acesso de pessoas com deficiência. O Poder Judiciário pode fixar cotas, desde que se constate falta de correspondência entre o percentual de empregados com deficiência existente na empresa e no local onde a mesmase situa. 16 ARGENTINA A lei n.º 25.687/98 estabelece um percentual de, no mínimo, 4% para a contrata- ção de servidores públicos. Estendem-se, ademais, alguns incentivos para que as empresas privadas também contratem pessoas com deficiência. COLÔMBIA A lei n.º 361/97 concede benefícios de isenções de tributos nacionais e taxas de importação para as empresas que tenham, no mínimo, 10% de seus trabalhadores com deficiência. EL SALVADOR A Lei de Equiparação de Oportunidades, o Decreto Legislativo n.º 888, em seu Art. 24, estabelece que as empresas com mais de 25 empregados devem contratar uma pessoa com deficiência. HONDURAS A Lei de Promoção de Emprego de Pessoas com Deficiência, o Decreto n.º 17/91, em seu Art. 2.º, fixa cotas obrigatórias para a contratação de pessoas com deficiência por empresas públicas e privadas, na seguinte proporção: uma pessoa com deficiên- cia, nas empresas com 20 a 40 trabalhadores; duas, nas que tenham de 50 a 74 fun- cionários; três, nas empresas com 75 a 99 trabalhadores; e quatro, nas empresas que tenham mais de cem empregados. NICARÁGUA A lei n.º 185 estabelece que as empresas contratem uma pessoa com deficiência a cada 50 trabalhadores empregados. PANAMÁ A lei n.º 42/99 obriga os empregadores que possuam em seus quadros mais de 50 trabalhadores a contratar, no mínimo, 2% de trabalhadores com deficiência. O Decreto Executivo n.º 88/93 estabelece incentivos em favor de empregadores que contratem pessoas com deficiência. O governo também está obrigado a empregar pessoas com deficiência em todas as suas instituições. 17 PERU A Lei Geral da Pessoa com Deficiência, em seu capítulo VI, estabelece a conces- são de benefícios tanto para as pessoas com deficiência quanto para as empresas que as contratem, como a obtenção de créditos preferenciais e financiamentos de organismos financeiros nacionais e internacionais; preferência nos processos de licitação e dedução da renda bruta de uma percentagem das remunerações paga às pessoas com deficiência. URUGUAI A lei n.º 16.095 estabelece, em seu Art. 42, que 4% dos cargos vagos na esfera pública deverão ser preenchidos por pessoas com deficiência e, no Art. 43, exige, para a concessão de bens ou serviços públicos a particulares, que esses contratem pessoas com deficiência, mas não estabelece qualquer percentual. VENEZUELA A Lei Orgânica do Trabalho, de 1997, fixa uma cota de uma pessoa com deficiên- cia a cada 50 empregados. CHINA A cota oscila de 1,5% a 2%, dependendo da regulamentação de cada município. JAPÃO A Lei de Promoção do Emprego para Pessoas com Deficiência, de 1998, fixa o per- centual de 1,8% para as empresas com mais de 56 empregados, havendo um fundo Mantido por contribuições das empresas que não cumprem a cota, fundo este que também custeia as empresas que a preenchem. 1.2 Histórico das Cotas no Brasil No Brasil, o sistema de cotas ganhou destaque no início dos anos 2000, foi primeiramente utilizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que foi a universidade pioneira do país a adotar um sistema de cotas em vestibu- lares para cursos de graduação por meio de uma lei estadual que disponibilizava 50% (cinquenta por cento) de suas vagas no processo seletivo para alunos egres- sos de escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro. 18 Após a experiência da UERJ, foi a vez da Universidade de Brasília (UnB) implementar uma política de ações afirmativas para negros em seu vestibular de 2004, ou seja, cotas raciais, em meio a muita polêmica, discussões e dúvidas le- vantadas pelos próprios vestibulandos. A instituição em comento foi a primeira no Brasil a utilizar o sistema de cotas raciais. Com o passar dos anos, apesar de poucas, outras universidades também foram aderindo às cotas em seus processos seletivos, reservando parcela de suas vagas não apenas para negros, como também para indígenas, pardos e mem- bros de comunidades quilombolas (cotas raciais), bem como para portadores de necessidades especiais (PNE’s) e estudantes de baixa renda advindos de escolas públicas (cotas sociais). Percebe-se, então, que no Brasil, o sistema de cotas não tutela, alcança exclusivamente a questão racial (MARTON, 2016, p. 1). Hodiernamente, esse cenário encontra-se bem diferente, visto que prati- camente todas as instituições de ensino superior públicas destinam vagas para o sistema de cotas em seus processos seletivos. No início, muitas viam no siste- ma uma medida provisória e que não duraria por muito tempo. No entanto, ele acabou tornando-se fixo, já que as universidades observaram que o processo para uma melhora efetiva e significativa por meio de uma reforma no ensino das escolas públicas seria lento e acompanhado de muita inércia. De acordo com Lesmes (2016, p. 1), O funcionamento do sistema de cotas nas instituições pode ser definido de acordo com as suas próprias políticas e regulamentos, tendo hoje variados modelos pelo Brasil. O que se tem geralmente é a reserva de uma parcela das vagas para aqueles candidatos que estudaram no ensino médio da rede pública de ensino. Essa medida fortaleceu-se ainda mais com a aprovação da lei n.º 12.711, de agosto de 2012, conhecida também como Lei de Cotas. Por meio dela, as instituições de ensino superior federais têm até agosto de 2016 para destinarem metade de suas vagas nos processos seletivos para estudantes oriundos de escolas públicas. A dis- tribuição dessas vagas também leva em conta critérios raciais e sociais. Regulamentada pelo Decreto n.º 7.824/2012, essa lei propõe 25% das vagas para estudantes oriundos da rede pública com renda igual ou inferior a 1,5 salário mí- nimo, 25% para candidatos que estudaram integralmente no ensino médio e que possuem renda igual ou superior a 1,5 salário mínimo e, ainda, um percentual 19 para pretos, pardos e indígenas, conforme o último Censo Demográfico do Insti- tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na região. Como citado no início do texto, o sistema ainda divide opiniões no país. Para muitos, as cotas ferem, de certa forma, a autonomia da instituição, partindo do princípio de igualdade. Além disso, faz com que seja desconsiderado qual- quer investimento de melhoria na Educação Básica. No ano de 2014, entrou em vigor a lei n.º 12.990, que reserva uma porcen- tagem das vagas de concurso público para negros e pardos. A intenção é mi- nimizar desigualdades sociais, econômicas e educacionais criadas pela história brasileira que, por sua vez, foi marcada por eventos históricos que contribuíram para um distanciamento entre as classes sociais e, por consequência, as classes raciais também, visto que as classes mais baixas confundem-se com as raças afe- tadas pelo processo histórico de segregação. A lei n.º 12.990/2014 reserva 20% (vinte por cento) do total de vagas em concursos para a administração pública federal direta e indireta, para autar- quias, agências reguladoras, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União. 1.3 Conceituação Cota, também conhecida por ação afirmativa, é uma maneira de reservar vagas para determinados grupos. O sistema de cotas foi elaborado para propiciar acesso a diversos grupos considerados, socialmente, prejudicados pelo processo histórico de formação da sociedade brasileira, tais como negros, índios, deficien- tes, estudantes de escola pública e de baixa renda, em universidades, concursos públicos e mercado de trabalho. O sistema de cotas implementado nas universidades brasileiras é o exem- plo mais emblemático dessa política no Brasil. As medidas de cotas raciais e cotas sociais implantadas pelo Estado brasileiro auxiliam no ingresso de cer- tos grupos na disputa com o resto da população, em observância ao princípio constitucional da isonomia. No entanto, é uma alternativa que provoca bastante debate, uma vez que alguns enxergam as cotas como a redução da exclusão des- ses grupos supracitados, jáoutros grupos a enxergam como uma nova forma de discriminação. 20 Vale ainda ressaltar que o ideal de raça utilizado nas ações afirmativas não é o superado conceito biológico, mas sim o de construção social. A justificati- va para o sistema de cotas é que certos grupos específicos, em razão de algum processo histórico depreciativo, teriam maior dificuldade de mobilidade social e oportunidades educacionais ou que surgem no mercado de trabalho, bem como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade (LESMES, 2016, p. 1). 1.4 Espécies de Cotas 1.4.1 Cotas Raciais As cotas raciais têm por escopo o critério da raça, ou seja, do grupo étnico. Logo, enquadram-se nessa espécie de cota, as ações que visem reservar vagas aos negros, pardos, indígenas, descendentes de quilombolas, bem como outras a serem privilegiadas por lei. No Brasil, como já citado, no ano de 2014, passou a vigorar a lei 12.990, que reserva uma porcentagem das vagas de concurso público para negros e pardos, no âmbito do executivo da União. A lei em comento traz alguns critérios de admissão e operação dessa reserva, conforme dispõe o artigo 1o da referida lei: Art. 1.º – Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empre- gos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta lei. § 1.º – A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (três). § 2.º – Na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subse- quente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos). 21 § 3.º – A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido. Art. 2.º – Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, con- forme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geo- grafia e Estatística - IBGE. Parágrafo Único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. Cumpre ressaltar, que a lei 12.711/12, diploma que trata das cotas em uni- versidades federais, também traz um dispositivo que dispõe sobre a reserva de cotas em razão da raça. Assim, vale colacionar o artigo 3.º da lei em comento: Art. 3.º – Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o Art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indí- genas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Redação dada pela lei n.º 13.409, de 2016). Parágrafo Único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completa- das por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. 1.4.2 Cotas Sociais As ações afirmativas ligadas a esta espécie de cota são direcionadas, em regra, às pessoas de baixa renda. São exemplos os egressos de escolas públicas ou os grupos familiares de baixa renda. Logo, percebe-se que são alvo dessas cotas 22 os hipossuficientes econômicos, ou seja, aqueles que necessitam de uma equipa- ração, de uma tutela econômica por parte do Estado. De acordo com Arabela Olive (2005, p. 5) “as vagas para estudantes de es- cola pública são vistas como a melhor forma de política de cotas, uma vez que os argumentos de quem discorda da medida são de que o problema brasileiro é social e não racial”. Assim, as cotas sociais iriam abranger, indiretamente, todas as raças e beneficiar aqueles que realmente não têm condições de concorrer no vestibular com alunos vindos de escolas particulares. Dentro desse cenário, foi elaborada e passou a vigorar a lei 12.711, a emble- mática Lei de Cotas, que trata sobre a reserva de 25% das vagas em instituições e universidades federais para alunos que tenham cursado integralmente o Ensino Médio na rede pública de ensino. Desse percentual, 50% é destinado a estudantes de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita. Não obstante, vale aduzir trechos do diploma normativo em análise para ilustrar o exposto: Art. 1.º – As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas va- gas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo Único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de fa- mílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário mínimo e meio) per capita. Art. 4.º – As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas. Parágrafo Único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de fa- mílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. 23 1.4.3 Cotas para portadores de Necessidades Especiais A Constituição Federal, no artigo 37, garante ao deficiente físico o direito de concorrer a vagas em concursos públicos: Art. 37, CF/88: VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão; Já pela lei 8213/91, regulamentada pelo Decreto 3298/99, é garantida a porcentagem mínima de 5% e máxima de 20% do total de vagas oferecidas aos candidatos com deficiência. No entanto, se o cargo público exigir do candidato aptidões que a deficiência física o impeça de realizar as atribuições, o processo seletivo não deve oferecer a reserva de vagas. Os candidatos devem observar nos editais as atribuições e tarefas referentes ao cargo, emprego ou função. Caso não haja incompatibilidade, haverá reser- va destinada a pessoa portadora de deficiência física. Além disso, o edital deve conter a previsão de adaptação das provas, do curso de formação e do estágio probatório, conforme a deficiência. Para comprovar a deficiência, o candidato deverá apresentar laudo médico atestando a espécie e o grau, ou nível da deficiência, que pode ou não ser exigida no ato da inscrição. No atestado também deverá constar o código CID – Classi- ficação Internacional de Doenças – e a provável causa da deficiência. As informações supracitadas podem ser fundamentadas de acordo com os seguintes dispositivos albergados pelo Decreto n.º 3.298/1999: Art. 37 – Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscre- ver em concurso público, em igualdadede condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador. § 1.º O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida. Art. 39 – Os editais de concursos públicos deverão conter: 24 I – o número de vagas existentes, bem como o total correspondente à reserva destinada à pessoa portadora de deficiência; II – as atribuições e tarefas essenciais dos cargos; III – previsão de adaptação das provas, do curso de formação e do estágio proba- tório, conforme a deficiência do candidato; e IV – exigência de apresentação, pelo candidato portador de deficiência, no ato da inscrição, de laudo médico atestando a espécie e o grau ou nível da deficiência, com expressa referência ao código correspondente da Classificação Internacional de Doença – CID, bem como a provável causa da deficiência. Art. 41 – A pessoa portadora de deficiência, resguardadas as condições especiais previstas neste Decreto, participará de concurso em igualdade de condições com os demais candidatos no que concerne: I – ao conteúdo das provas; II – à avaliação e aos critérios de aprovação; III – ao horário e ao local de aplicação das provas; e IV – à nota mínima exigida para todos os demais candidatos. A lei reserva um percentual de vagas para deficientes, exceto quando o cargo ou emprego público exija aptidão plena do candidato. 2. ANÁLISE DO OUTSIDER DE HOWARD S. BECKER 2.1 Construção Conceitual do Outsider O termo outsider tem a ver com a transgressão de uma norma social. Tal norma é um modelo, uma regra de comportamento que se refere a um determi- nado grupo social. Uma vez que alguém incorre contra a norma em comento, torna-se um estrangeiro dentro do grupo social ao qual pertence. Outra forma de ser considerado um outsider é, dentro de seu próprio grupo, pensar de forma diferente dos demais membros (BECKER, 2008, p. 27). O termo, em tela, é fruto do trabalho do sociólogo americano Howard S. Becker, que por meio dos seus estudos, tornou-se um expoente no tema “desvio”, desenvolvendo ideias acerca da relação crime e desvio, supondo, sempre, uma relação social e sendo este o foco, ou seja, o crime relaciona-se com as relações e não com o indivíduo analisado de per si. Assim, temos as regras sociais que de- 25 vem ser observadas e, uma vez descumpridas, gera-se o desvio. Vale ressaltar que para Becker (2008, p. 27) “Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele”. De acordo com Cristina Moura (2009, p. 1): Becker nos leva a conhecer usuários de maconha, músicos de casas notur- nas, “quadrados” e empreendedores morais, todos esses “tipos” sendo agentes em processos que produzem carreiras, estilos de vida e visões de mundo que não deixam de ser reais por serem socialmente construídos. O mundo social, ou me- lhor, os mundos sociais concebidos por Becker são compostos por pessoas que, agindo juntas, com diferentes graus de comprometimento, produzem realidades que também as definem. Segundo Becker, regras, desvios e rótulos são sempre construídos em pro- cessos políticos, nos quais alguns grupos conseguem impor seus pontos de vista como mais legítimos que outros. 2.2 O Outsider na Sociedade Brasileira As sociedades têm grupos dominantes e grupos desviantes, assim como tipos diferentes de desvio. Logo, não seria diferente na sociedade brasileira. Existem diversos grupos desviantes no seio da referida sociedade, tais como: usuários de drogas, comunidade LGBT, “artistas de rua”, seguidores de religiões minoritárias, entre outros. Não obstante, ainda existem os outsiders históricos, ou seja, aqueles que no processo de construção do país, nunca conseguiram se adequar à situação ou aos padrões impostos pelos grupos dominantes, podemos citar, como exemplo, os negros e os indígenas. Ambos sofreram com o processo histórico, escravidão, marginalização, não integração, ilustrando as mazelas que compõem a carga his- tórica desses grupos, culminando em um flagrante desequilíbrio social. Todavia, nos últimos cinco anos, os outsiders brasileiros estão em uma crescente, ganhando espaço em diversos campos da sociedade, como a mídia, política e na academia. A mídia brasileira vem dando maior destaque aos outsi- ders, as chamadas minorias, uma vez que é crescente o movimento no Brasil de proteção aos grupos minoritários, e os meios de comunicação têm contribuído para isso, têm auxiliado e noticiado as reivindicações desses grupos. 26 Já no campo político, é possível vislumbrarmos o surgimento de políticos outsiders, ou seja, aqueles que possuem ideias e defendem pontos de vista contra majoritários, frente aos grupos dominantes. Tais ideias refletem como os grupos desviantes estão presentes na sociedade brasileira e que os referidos políticos, parte desses grupos, paulatinamente vêm ocupando posições de destaque nas últimas eleições, como Jean Willys e Jair Bolsonaro, ambos representam grupos minoritários, sendo o segundo o maior exponente da extrema direita no Brasil. A academia é um ambiente favorável aos outsiders, uma vez que suas ideias podem ser difundidas e, muitas vezes, acabam encontrando guarida na comuni- dade acadêmica. No entanto, é possível que alguns grupos desviantes não encon- trem acesso facilitado a este ambiente, já que o acesso ao ensino no Brasil, sobre- tudo ao ensino superior, é bastante restrito, sendo considerado um privilégio, em regra, alcançado por quem possui melhores condições econômicas. 3. OS OUTSIDERS E O SISTEMA DE COTAS BRASILEIRO 3.1 Empreendedorismo Moral do Legislativo Brasileiro O Poder Legislativo do Brasil tem ao longo da última década dado preferência aos projetos de lei que envolvam o tema “cotas” e tais entes quando atuam nesse sentido são chamados de empreendedores morais, conforme expõe Becker (2008, p. 151): As pessoas que apresentam iniciativas no sentido de criar novas classes de outsiders são denominadas empreendedores morais. São esses os “reformadores cruzados”, por exemplo, que acreditam na sacralidade de suas missões, apesar de muitas vezes contarem com a concordância daqueles que pretendem “salvar”. Mas os cruzados recorrem a especialistas, como psiquiatras ou advogados, que têm seus próprios interesses em jogo. Uma cruzada bem-sucedida tem como possíveis consequências não somente a criação de um novo conjunto de regras, mas a criação de novas agências, que institucionalizam o empreendimento e, finalmente, podem agir por meio de uma força policial. Os empreendedores morais no Brasil estão nos mesmos âmbitos sociais em que os outsiders encontram guarida, ou seja, a academia, os meios de comunica- ção e o meio político-partidário, como já supracitado. De acordo com Duarte e Zackseski (2011, p. 1) “são aqueles sujeitos que procuram impor a sua moral aos 27 outros pensando que assim lhes farão bem, sem nunca se questionarem sobre a vontade ou necessidade dos outros de incorporarem o sentido moralizante das suas regras, ou seja, desde uma perspectiva superior dirigida a seres inferiores”. Para Nilo Batista e Raúl Zaffaroni (2010) “os empresários morais tanto podem ser comunicadores sociais, políticos, religiosos, policiais ou organizações que re- clamam da impunidade exigindo sempre medidas mais duras para os criminosos”. Fomentar novos grupos desviantes é um ato de coragem e ousadia, pois no caso está se incentivando o surgimento de opiniões fora do padrão dentro da sociedade. Anualmente, surgem Projetos de Lei com o objetivo de criar novas ações afirmativas visando prestigiar novos grupos desviantes. Assim, o Legislativo age ratificando a existência desses grupos que vão ganhando destaque, por meio de iniciativas que buscam tutelar os desviantes, sempre em razão da observânciado princípio constitucional da isonomia, sobretudo em seu aspecto material. 3.2 Novos Grupos Desviantes no Brasil e a Análise das Propostas Legislativas Pertinentes ao Sistema de Cotas 3.2.1 Cotas para Mulheres em Cargos Políticos A questão que envolve o gênero feminino é sociocultural e decorre de sécu- los de desequilíbrio entre homens e mulheres nos mais diversos setores da socie- dade, sobretudo no mercado de trabalho e no campo político. Logo, o Legislativo brasileiro houve por bem editar normas que garantam a isonomia entre homens e mulheres, desde o âmbito constitucional até às leis infraconstitucionais. Em junho de 2016, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 98/2015) foi proposta com o objetivo de garantir um percentual de vagas para mulheres nas cadeiras da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Assembleias Legislativas, da Câmara Distrital e das Câmaras Municipais. Não obstante, o Congresso Nacional analisa atualmente cinco projetos que preveem número de mínimo de mulheres entre os parlamentares. Nessas propos- tas, a principal justificativa é promover maior participação feminina na política. Na composição atual da Câmara, somente 55 dos 513 deputados são mulheres (10,7%). No Senado, o percentual é um pouco maior. Dos 81 senadores, 12 são mulheres, o que representa 14,8%. Na última eleição, a municipal de 2016, o nú- 28 mero de mulheres eleitas prefeitas diminuiu. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, as mulheres representaram 7,39% dos prefeitos eleitos em 2000; 11,84% em 2012; e 11,57% em 2016. Como visto, as mulheres no campo político-partidário são consideradas outsiders por excelência, uma vez que não se adequam às normas do grupo do- minante da situação, ou seja, os pertencentes ao grupo do gênero masculino, ocupando posições minoritárias nos rankings políticos. 3.2.2 Cotas para Idosos em Concursos Públicos A PEC 69/2009, em trâmite no Senado Federal, de autoria do senador An- tônio Carlos Valadares (PSB-SE), dispõe que ao menos 5% das vagas de Concur- sos Públicos deverão ser destinadas a candidatos com mais de 60 anos, excep- cionados os casos em que a natureza do cargo impedir essa cota. Para defender a iniciativa, o senador ressalta o crescente envelhecimento da população brasilei- ra. De acordo com o parlamentar: os idosos são hoje 14,5 milhões de pessoas, ou seja, 8,6% da população total do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O IBGE considera idosas as pessoas com 60 anos ou mais, mesmo limite de idade utilizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para os países em desenvolvimento. Os idosos também revelam-se outsiders, uma vez que não conseguem se inserir no mercado de trabalho e em alguns outros âmbitos da sociedade con- temporânea, o que, como visto, merece mudar, pois a tendência atual é o enve- lhecimento da população mundial. No entanto, tal cota não vem sendo muito bem recepcionada, o que pode- mos perceber a partir da morosidade de seu trâmite, que está prestes a completar 10 anos. Logo, é perceptível o padrão desviante desse grupo e a necessidade do implemento do empreendedorismo moral do Poder Legislativo. 3.2.3 Cotas para Usuários de Substâncias Entorpecentes Os dependentes químicos são citados na obra de Becker como exemplo de grupo outsider, uma vez que o referido autor analisa os usuários de maconha no seu trabalho. Todavia, o Legislativo brasileiro, hodiernamente, é tendente a criar ações afirmativas para equiparar a situação dos dependentes no mercado de trabalho. 29 Existem, atualmente, dois projetos de Lei que visam cumprir os manda- mentos isonômicos. O primeiro tramita na Câmara dos Deputados, que aprovou a criação de uma cota em licitações públicas para a contratação de dependentes químicos em processo de recuperação. A medida foi aprovada dentro do projeto que altera o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, permitindo a internação involuntária de dependentes com base em pedido de familiares ou trabalhadores da área da saúde. A reserva de vagas é de 3% dos empregos em licitações de obras públicas que gerem mais de 30 postos de trabalho. O plenário, porém, manteve a exi- gência de abstinência do uso para ser beneficiado. Além de se manter longe do vício, o dependente em recuperação terá de atender os requisitos solicitados pela empresa, cumprir as normas do empregador e seguir seu plano individual de atendimento. Já o segundo refere-se a uma proposta legislativa do Estado de Minas Ge- rais, em que os políticos cogitam a hipótese de ser criada uma cota de 10% para usuários de drogas, considerados dependentes químicos nas vagas de concursos públicos. Ambos geram bastante polêmica, visto que receberam duras críticas nega- tivas da sociedade civil e do próprio corpo político do qual surgiru, uma vez que “prestigiam” algo considerado imoral pelo grupo dominante. CONCLUSÃO A questão envolvendo o sistema de cotas brasileiro merece ser melhor ex- plorada, uma vez que se coaduna com os ideais previstos pela Constituição Fe- deral de 1988 de isonomia, ao passo em que também revelam a história social brasileira, criando uma ponte reparadora entre o passado e o presente. As ações afirmativas agregam valores à sociedade civil, uma vez que visam reparar problemas decorrentes da construção social do Estado brasileiro. Tais problemas encontram-se, sobretudo, no âmbito racial, no qual negros e indíge- nas foram situados à margem da sociedade, sofrendo ainda hoje com os reflexos de séculos de desigualdade. O abismo social está sendo, paulatinamente, superado por meio do imple- mento de programas como as cotas, permitindo o acesso ao mercado de traba- 30 lho, ao funcionalismo público e ao ensino superior àqueles que estão inseridos em grupos sociais não dominantes. Logo, é, de fato, positivo para a sociedade brasileira a execução de tais programas. No entanto, o sistema brasileiro de cotas não é isento de críticas, pelo con- trário. Algumas críticas pontuais merecem ser tecidas. A primeira é a duração do programa de cotas no Brasil. Outra é o âmbito em que o sistema é aplicado. Por fim, a terceira crítica é a constante criação e inclusão de novos grupos sociais abrangidos pela tutela do referido sistema, sendo aplicáveis neste ponto os con- ceitos de Howard Becker. Sobre a primeira crítica, vale ressaltar que a duração do sistema de cotas brasileiro é indeterminada, o que gera grande insegurança jurídica, uma vez que as ações afirmativas visam sanar os reflexos gerados por anos de desigualda- de social entre os grupos divergentes e o grupo social dominante. Logo, deve ser marcado um prazo razoável de duração dessas ações para que não ocorra a perpetuação do sistema, o que não se mostraria adequado perante o princípio constitucional da isonomia. Sabe-se que o âmbito de aplicação das ações afirmativas, no Brasil, é bas- tante amplo, envolvendo o mercado de trabalho, ou seja, a iniciativa privada, o ingresso em universidades públicas e os certames para preenchimento de cargos públicos. Críticos ao sistema afirmam que o espaço de incidência das cotas é de- masiadamente amplo, o que conjugado com duração indeterminada do sistema pode prejudicar, justamente, o princípio foco do sistema, ou seja, a isonomia. A terceira crítica é contra o “empreendedorismo social”, termo criado por Howard Becker, que, por sua vez, significa a criação de novos grupos sociais des- viantes. O sistema de cotas brasileiro baseia-se na isonomia e para isso traz ações afirmativas visando equiparar os grupos desviantes ao grupo social dominante. No entanto, o Poder Legislativo brasileiro é um exemplo de empreendedor so- cial, uma vez que constantemente cria, por meio de Leis, novos grupos desvian- tes e os inclui no sistema de cotas. O sistema de cotas deve ser operado por exceção. Dessa forma, a criação de novos grupos desviantes deve ser medida excepcional, e não como tem sido utilizada pelos membros do Poder Legislativo, sem parâmetros, desproporcio-nalmente, ferindo, em alguns casos, o próprio princípio informador do sistema, qual seja, a isonomia. 31 Diante do exposto, percebe-se que o sistema de cotas brasileiro se coaduna com as ideias de Howard Becker, desenvolvidas na obra supracitada. O referido autor constrói sua emblemática figura, o outsider, e este é a síntese daqueles que são albergados pelas cotas no Brasil, ou seja, são aqueles que não se adequam, são os grupos sociais marginais e por questões de isonomia recebem a tutela do Estado brasileiro. Por fim, reitera-se que o sistema de cotas merece elogios, já que, frente às políticas atualmente adotadas, tem mostrado-se eficaz. É um modelo moderno, vanguardista e que busca sanar as desigualdades históricas que marcam o Brasil, tendo por princípio guia, informador, a isonomia, positivada na Constituição Federal de 1988. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Clara. Potencialidades e limites da Política de Cotas no Brasil. Revista de Estudos Feministas: São Paulo, 2011. BECKER, Howard Saul. Estudos de Sociologia do Desvio – Outsiders. São Paulo: Zahar, 2008. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Sítio eletrôni- co internet – planalto.gov.br _______. Lei 12.990/2014. Sítio eletrônico internet – planalto.gov.br _______. Lei 12.711/2012. Sítio eletrônico internet – planalto.gov.br _______. Lei 8.213/1991. Sítio eletrônico internet – planalto.gov.br _______. Decreto 3.298/1999. Sítio eletrônico internet – planalto.gov.br LESMES, Adriano. O que são as reservas de vagas?. Publicado em 1 de abril de 2010. Disponível em: http://vestibular.brasilescola.uol.com.br/cotas/o-que-sao- -as-reservas-vagas.htm 32 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 17 ed. São Pau- lo: Malheiros, 2009. MARTON, Juliana. Lá fora: A história das cotas raciais nos EUA. Publicado em 31 de março de 2010. Disponível em: http://vestibular.brasilescola.uol.com.br/ cotas/la-fora-historia-das-cotas-raciais-nos-eua.htm OLIVEN, Arabela Campos. Ações afirmativas nas universidades brasileiras: uma questão política, um desafio. Porto Alegre: EdiPucrs Série RIES/PRONEX, vol. 1, p. 151-160, 2007. 33 FUNÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA JURÍDICA SOCIAL FUNCTION OF JURIDICAL SCIENCE Camila Bertoni Carneiro dos Santos1 Celso Lins Falcone2 Sumário: Introdução; 1. Desenvolvimento histórico da dogmática jurídica e sua função social; 2. A Dogmática Jurídica contemporânea: seus desafios e críticas; 3. Características da dogmática jurídica; 4. Instrumentos dogmáticos e sua função; 5. A função social da ciência jurídica; Conclusão; Referências. RESUMO: O Direito e a sociedade vivem um processo virtuoso de adap- tação: de um lado o ordenamento jurídico deve se adaptar às condições de meio e, de outro, o povo condiciona seu comportamento aos novos padrões de con- vivência. Nesse sentido, a dogmática procura instaurar uma sociedade política e juridicamente segura aos seus cidadãos, possibilitando que a decisão esteja pre- viamente estipulada não pelo arbítrio, mas pelos limites daquilo que foi imposto pela ordem jurídica. Este artigo visa demonstrar que as incertezas geradas pela complexidade das relações pessoais são trazidas a um grau de menor perturba- ção social se controladas pela via dogmática, que consiste em prever as conse- quências pragmáticas para todos os casos concretos, de modo a trazer a melhor solução possível para minimizar a perturbação social. Para tanto, foi utilizada uma metodologia indutiva, alicerçada, quantos aos meios, em pesquisa biblio- gráfica e, quanto aos fins, no método qualitativo. PALAVRAS-CHAVE: Função Social. Ciência Jurídica. Dogmática Jurídi- ca. Decidibilidade. ABSTRACT: Law and society are living a virtuous process of adaptation: on the one hand the legal system must adapt to the conditions of the environ- ment and, on the other, the people condition their behavior to the new patterns of coexistence. In this sense, dogmatics seeks to establish a political and legally 1 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Professora e Coordenado- ra do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Nilton Lins/AM. 2 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Advogado. Presidente da Comissão de Orientação em Gestão Pública da OAB/AM. 34 secure society for its citizens, making it possible for the decision to be stipulated in advance not by arbitrariness, but by the limits of what was imposed by the legal order. This article aims to demonstrate that the uncertainties generated by the complexity of personal relationships are brought to a degree of lesser social disruption if they are controlled by the dogmatic way, which consists in predic- ting the pragmatic consequences for all concrete cases, in order to bring the best possible solution to Minimize social disruption. For that, an inductive methodo- logy was used, based on how many to the means, in bibliographical research and, for purposes, in the qualitative method. KEYWORDS: Social Role. Legal Science. Legal Dogma. Decidability. INTRODUÇÃO Para se instaurar uma situação comunicativa é preciso que o emissor, em seu discurso, utilize sinais aptos a gerar ao seu receptor o sentido e o alcance do que se pretende. Por isso, antes de adentrar-se à complexidade que o tema requer, mostra-se necessário pautar as ideias centrais que se propõe chamar de “função social da ciência jurídica”. Convém inicialmente refletir sobre o que se entende por função para, a partir daí aprofundar-se ao entendimento de função social. Pode-se dizer que tudo que existe é para alguma finalidade. Significa, por- tanto, que aquilo que obviamente desperta uma consequência específica lhe re- vela uma função. Assim, infere-se, por exemplo, que o coração tem a função de bombear o sangue às demais partes do corpo, beneficiando outros órgãos para que estes desempenhem suas funções. Função social, via de consequência, entende-se como o produto do inte- resse de determinada atividade humana ou de organizações humanas, atingindo patamares da convivência social, tendo em vista que estes ultrapassam os do agente, sobrepondo-os aos interesses do indivíduo. Na atualidade, a função social ganha notoriedade, uma vez que a República Federativa do Brasil se constitui por um Estado Democrático de Direito, pauta- do na busca da Justiça Social. O postulado básico se remonta alicerçado ao princípio da isonomia ma- terial entre os homens em possibilitar melhores condições aos hipossuficientes 35 para compensar circunstâncias sociais desiguais. Aliás, isso se considera prima- do da própria República e possui, portanto, cunho constitucional. Logo, vê-se claro que o pensamento iluminista e sobretudo os movimentos sociais do século XIX foram os responsáveis por possibilitar, no século XX, a passagem do Estado liberal (individualista e patrimonialista) para o Estado So- cial Democrático, matriz geradora das teorias das funções sociais, seja no âmbito público, seja no privado. Dessa forma, é preciso se investigar qual o papel da Dogmática Jurídica no desenvolvimento da sociedade. No entanto, para chegar à correta apreensão da- quilo que se entende por “função social da dogmática jurídica”, principalmente num mundo complexo e dinâmico como o atual, torna-se imprescindível inves- tigar seu conceito ao longo da história, especialmente a partir da construção do pensamento romano que indubitavelmente é o grande responsável pela estrutu- ração do pensamento jurídico nos Estados Ocidentais. 1. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA DOGMÁTICA JURÍDICA E SUA FUNÇÃO SOCIAL Sob o aspecto histórico, é inegável a necessidade de voltar os olhos ao pas- sado romano, apto que esteve a resgatar e dar utilidade pragmática à sabedoria grega, baseado não nos argumentos racionais e coerentes, mas na legitimidade que se deu pelas tradições e manifestações da autoridade de seus antepassados. Tem-se clara a ideia de que no pensamento romano o amadurecimento da consciência dopapel da jurisprudência foi visto como um dos mais importantes para a preservação de sua comunidade. Sua serventia irradiava tanto para fir- mar-se como instrumento de autoridade, como para outorgar hegemonia social, permitindo a integração de seus cidadãos. Nos dizeres de Tércio Sampaio,3 a tríade - “religião/autoridade /tradição” - que permeou o pensamento romano, foi a fórmula que possibilitou o resgate e a aplicação generalizada, utilitarista e universalista da filosofia grega, que culmi- nou no conhecimento universal do Direito. 3 FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Max Limonard, 1998, p.35. 36 Na Idade Média, a ciência do Direito se desenvolveu no mundo ocidental pelo advento da Universidade de Bolonha, Itália, cuja data de fundação se deu em 1088. O estudo aprofundado de obras romanas, notadamente do corpus iuris civilis, pelos glosadores, cultivou o nascimento do Direito como uma expressão de pensamento dogmático. O trabalho desses pensadores era a elaboração de glosas, anotações interlineares e marginais com alto conteúdo filosófico ou gra- matical, que possibilitou uma atividade altamente exegética. No entanto, não se pode esquecer que no processo de comentários e adaptações dos glosadores houve a influência direta de aspectos históricos vi- venciados, já que a Igreja, ao difundir sua ideologia, resgatou a fronesis grega, assumindo-se como poder dominante no lugar do Império Romano. Nesse momento, inicia-se o pensamento racional que irá dominar nos séculos se- guintes. Trata-se do pensamento jurídico dogmático que “se transforma em um instrumento de poder”.4 A técnica desenvolvida pelo jurista da época, baseada na análise de casos e textos, cria o estilo “argumentativo da retórica prudencial” apta a reduzir a teoria jurídica como disciplina universitária, dando preponderância racional ao “bem comum” em detrimento dos “interesses individuais”. Tal pensamento tornou-se a gênese do Estado Moderno e, nessa época, ocorreu, pois, a progressiva tecni- zação da teoria jurídica como instrumento político, porquanto “só o jurista é que domina, àquela altura, as operações analíticas através das quais a complexa realidade política pode ser devidamente dominada”.5 A teoria jurídica da Era Moderna é marcada pelos estudos clássicos que se iniciam no fim do século XV. O ponto de partida do pensamento desse período é o de restaurar a verdade romana construída na busca de soluções técnicas para o controle da natureza, para a sobrevivência harmônica social. A fórmula aqui encontrada foi a da positivação do Direito Natural, até en- tão fortemente arraigado. Mormente após o desenvolvimento da teoria sistêmica baseada na razão proposta por Pufendorf,6 a teoria jurídica tem sua serventia 4 Ibid., p. 40. 5 Ibid., p. 41. 6 SAMUEL VON PUFENDORF (1632 - 1694) “A principal contribuição de Pufendorf foi a ênfase na “socia- bilidade” da humanidade como fundamento do Direito Natural. “Qualquer homem deve, na medida em que possa”, escreveu, “cultivar e manter frente aos outros uma sociabilidade pacífica, consistente com sua característica natural e a finalidade da humanidade em geral.” A sociabilidade, no entanto, está ameaçada pela característica decaída da condição humana. “O que teria sido a vida dos homens se não houvesse a lei para os conciliar?”, pergunta o autor, “uma matilha de lobos, leões e cães lutan- 37 social na medida em que se organiza para almejar seus propósitos. Buscou-se a “funcionalidade jurídica”. A lei passou a ser considerada como um instrumento com caráter formal e genérico na procura da convivência dos cidadãos. Houve o afastamento da tradição romana de até então e instaurou-se um novo modelo revolucionador da técnica jurídica: o empírico-analítico. Sob o ponto de vista pragmático, o Direito Natural passou então a servir de paradigma para que, no plano ideológico, se possibilitasse a reprodução artificial dos processos naturais.7 Isso significa que pela experiência sensorial, é possível conhecer de forma abstrata a essência hu- mana e se fazer proposições para o controle de suas reações. Dessa forma, numa concatenação de pensamentos entre causa/efeito foi possível se chegar a fórmulas jurídicas funcionais e obrigatórias para a convi- vência humana. Este mecanismo de controle se colocou a serviço do Estado, o que gerou sua unidade e seu domínio. A sistematização se tornou muito clara a ponto de eliminar a prudência romana, paulatinamente, enquanto ocorria a reconstrução do Direito. Essa forma particular de pensar encontra sua função social na medida em que criou sistemas normativos com propósitos próprios como, por exemplo, o estabelecimento da paz, bem-estar social, vida atrelada aos ditames da dignida- de, etc. Isso significa que as leis passaram a regular a ordem jurídica por meio de critérios formais e gerais, aptos a balizar e harmonizar as relações sociais. No entanto, nesse momento, descobriu-se um problema já esperado: nem sempre é possível se fazer abstrações diante da enormidade de condutas e que- reres humanos. A sociedade estava se tornando por demais complexa a ponto de que nem sempre haveria possibilidades de prever suas expectativas e gerar seu controle. Começou a ocorrer a perda da sua funcionalidade, o que atacou diretamente os próprios métodos utilizados até então e passou a gerar o questio- namento da Dogmática Jurídica8 ser ou não uma teoria científica. do até o fim.” Por isso Deus, o divino legislador, instituiu as leis para ordenar a vida social do homem. Como escreve Pufendorf: “Assim como a vida dos homens sem a sociedade seria semelhante à vida das feras, da mesma forma, a lei da natureza se baseia, principalmente, no princípio da preservação da vida social dentre os homens”. Disponível em: <http://pt.acton.org/historical /samuel-von-pufen- dorf-1632-1694>. Acesso em 5 ago. 2017. 7 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Op. cit., p. 50. 8 Nos dizeres de Miguel Reale, a Ciência Jurídica se manifesta como Dogmática Jurídica, quando aquela tem por objeto de estudo o Direito Positivo. Esclarece-se que a palavra dogma traduz a ideia daquilo 38 Esses questionamentos nortearam os séculos a seguir. A partir do século XIX, a Dogmática passará por profundas revoluções, sobretudo em virtude da necessidade de seu diálogo com as demais ciências, bem como decorrente de seu desdobramento com o positivismo. A ciência jurí- dica passa a receber novas funções, qual seja a atividade de fazer e de construir os objetos que conhece. Nos dizeres de Camon de Passos,9 função é “um atuar a serviço de algo que nos ultrapassa”. Aqui, o plano do ideal perde sua característica metafísica e adquire a feição de valores, estes mutáveis de acordo com a alteração das concepções sociais e necessidades de adaptações funcionais. Inicia-se, nesse particular, a negação sistemática jusnaturalista e seus ar- gumentos passam a ser fundamentados na razão humana. Com Gustav Hugo gera-se um marco daquilo que veio a influenciar Savigny e a Escola Histórica. Hugo criou em seu pensamento a distinção da Ciência do Direito e Dog- mática Jurídica, esclarecendo que esta é apenas uma continuidade histórica daquela, como se a dogmática fosse uma contextualização funcional histórica e momentânea do querer social traduzido em lei. Surge, então, o racionalismo com uma postura mais ampla. No racionalismo não se deve construir a Dogmática apenas em expe- riências e fatos obtidos pelos cinco sentidos, pois estes são insuficientes e não oferecem condições de certeza. Quem faz a captação e ordenação do conhe- cimento dos dados obtidos pelos sentidos humanos é a inteligência. Segundo Miguel Reale, se a inteligência tem função ordenadora do material que os sentidos apreendem, é claro que a inteligência, por sua vez, não pode ser o resultado das sensações, não podendo ser concebido com ‘tabula rasa’, onde os sentidos vão registrando as impressões recebidas.10 que é posto como princípio ou doutrina, ou seja,traduz a afirmação de certo aspecto absoluto como cognoscível (In: Filosofia do Direito. V. 1, São Paulo: Saraiva, 1975, p. 145). 9 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Função social do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n.º 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/3198>. Acesso em 5 ago. 2017. 10 REALE, Miguel. Op. cit., p. 85. 39 Nesse pormenor teorizado, entre os séculos XVI e XVIII, o Direito viven- ciou o crescente aumento de leis escritas, bem como o reconhecimento da exis- tência de fontes hierarquizadas de Direito. Pela cultura racionalista preponderou a importância da legislação escrita sobre a costumeira. Experimentou-se ainda no século XIX a crescente Codificação do Direito. Esses fatos acabaram por conceder ao Direito grande autonomia, uma vez que cumpria sua função, como a de aumentar a segurança jurídica, divulgar e dar maior precisão de seu conhecimento, além de limitar sua aplicação. Notada- mente, verificou-se que para se atingir à complexidade decorrente das relações humanas, o Direito positivado precisa ser genérico de forma a abordar a maior gama de situações. Nada obstante, por mais paradoxal que seja, isso acabou legitimando a con- centração de Poder para o Estado, o que fez surgir o Estado Absolutista e a concen- tração do ato de legislar. As consequências históricas dessas atitudes são notórias. Paulatinamente, também por conta de só se valer o direito posto, os juristas da época começaram a perceber o surgimento de outros problemas, como as lacunas, sendo necessárias propostas para sua solução. Pode-se concluir, segundo Tércio Sampaio, que todos esses fatores, em con- junto, foram os responsáveis pela transformação do raciocínio dogmático em Teo- ria Dogmática, marcado essencialmente por uma nova forma de pensar: a reflexão. Ressalta-se, ainda, que a Revolução Francesa foi um grande marco na de- monstração da complexidade social como reação ao Absolutismo. No intento de conquista das liberdades individuais, a Revolução veio a substituir a “estabi- lidade” das relações sociais para trazer outros instrumentos de rápida e efetiva solução: notadamente a maior positivação abstrata de leis. Isso significa dizer que os preceitos tradicionais que davam a legitimidade ao Direito (como sinônimo de sua estabilidade) se deixaram substituir por mecanis- mos dinâmicos de solução, especialmente quando advindos de situações injustas, ou seja, novas leis traçadas conforme se justificasse o interesse em sua criação. Assim, constata o autor: A dogmática se revelou como um instrumento importante no alargamento da possibilidade de solução de conflitos, sem o rompimento nem com o princípio da 40 vinculação aos dogmas, nem com a exigência da decisão de conflitos – proibição do non liquet.11 Surge aqui também o que Tércio Sampaio denomina como a maleabilidade do Direito. O que significa que a positivação do Direito denotou sua importância na capacidade de dinamizar o corpo social, implicando o desenvolvimento da Dogmática, conforme os interesses humanos. Inaugurou-se, com isso, uma nova forma de pensamento, o de que a lei existe para o homem e não o contrário. Por outro lado, parte-se do ponto de vista de que o Direito é concebido como um sistema e, como tal, para ser coerente, lógico e, portanto, aplicável, é preciso não possuir lacunas ou contradições. Os juristas da época viviam in- quietações, posto que precisariam criar métodos para resoluções das dúvidas, omissões e conflitos existentes no sistema. Nesta ocasião ganha enorme relevância a chamada Escola da Exegese. Sa- biam os exegetas, no século XIX, que não era possível, valendo-se apenas da letra da lei, aplicá-la ao caso concreto e, partindo-se do pressuposto de que a legitima- ção de sua aplicação estava justamente em conceber o direito como um sistema fechado e unitário, seria necessário interpretar o sistema. A Escola da Exegese foi a grande responsável por deixar o legado, até os tempos atuais, das mais diversas formas de interpretação, como a histórica, teleológica, sistemática etc. tudo de maneira a evitar que os aplicadores da lei inovassem a ordem jurídica criando leis, o que poderia infringir o princípio da separação dos Poderes. Sobre esse ponto, Tércio Sampaio: [...] no século XIX, a Dogmática se instaura como uma abstração dupla: a própria sociedade, na medida em que o sistema jurídico se diferencia como tal de outros sistemas – do sistema político, do sistema religioso, do sistema social stricto sensu –, constitui, ao lado das normas, conceitos e regras para a sua manipulação autô- noma. Ora, isto (normas, conceitos e regras) passa a ser o material da Dogmática, que se transforma numa elaboração de um material abstrato, num grau de abs- tração ainda maior, o que lhe dá, de um lado, certa independência e liberdade na manipulação do Direito [...] pois tudo aquilo que é Direito passa a ser determi- 11 FERRAZ JR. Tércio Sampaio, Op. cit., p. 190. 41 nado a partir de suas próprias construções. [...]. De outro lado, porém, paga-se um preço por isso: o risco de um distanciamento progressivo, pois a Dogmática, sendo abstração da abstração, vai preocupar-se de modo cada vez mais preponde- rante com a função de suas próprias classificações, com natureza jurídica de seus próprios conceitos.12 Pelo que até aqui foi delineado, mostra-se claro que a função social da Dogmática do século XIX está ligada justamente ao caráter abstrato dado às leis, pois ela foi capaz de emancipar as necessidades cotidianas, trazendo novas fórmulas a permitirem a liberdade, criando elementos sistêmicos para dar total autonomia ao Direito, desvinculando-o do Direito Sagrado. 2. A DOGMÁTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA: SEUS DESAFIOS E CRÍTICAS O contexto metodológico advindo do século XIX repercutiu intensamente no século XX. Demonstrou-se acima que numa sociedade de baixa complexi- dade, a estabilidade de sua sistematização é a forma de manutenção e exercício de sua própria efetividade. Na contemporaneidade, contudo, isso não se mostra mais possível. Na medida em que a Dogmática exercia abstrações contínuas, surgiu a difi- culdade de trazer sua própria completude, sendo necessário criar critérios para a sua resolução. Isto, como se disse, por um lado foi preponderante para a solução dos primeiros conflitos. Assim, muitos pensadores preocuparam-se com a necessidade de revisão dos conceitos da Dogmática Jurídica. Isto porque, sobretudo diante de um Estado Democrático de Direito, no instante em que a lei é criada pelo legislador ou quando o administrador ou julgador a aplicam, procura-se alcançar o interesse da sociedade. Dessa forma, as atividades legislativas, administrativas e judiciais são exercidas tendo como pedra angular o interesse da coletividade que é próprio do Estado, como real res- ponsável por dizer em que consiste o interesse social. É claro que nesse ensejo o 12 Ibid., p. 76. 42 povo tem papel fundamental de interferir no rumo ou no resultado dessas deci- sões, pela via direta ou indireta. Tem-se como questão de fundo a decidibilidade. Mas como se falar em decidibilidade se: a) na atualidade está-se diante de uma sociedade de massas?; b) se o campo de aplicação jurídica está diante de infindável inflação legislativa, com o crescente número de abstração de conceitos, dito esses abertos?; c) se, pela pragmática, cada receptor pode fazer um juízo de valor diferente?; d) se ouve-se dizer na ruptura da clássica dicotomia público/pri- vado?; e) se verifica-se um insustentável crescimento demográfico; f) se há cada vez mais necessidade de diálogo da Dogmática Jurídica com as outras ciências? Questiona-se, portanto, a própria essência da Dogmática Jurídica e suas capacidades de mutabilidade para atender a seus próprios reclames. Será ela, como instrumento de solução de conflitos, capaz de atender à complexidade so- cial atual? A Dogmática ainda está apta a atender suas funções? A crítica pode serexemplificada no contexto da área acadêmica, em uma breve exposição de Tércio Sampaio sobre o tema “Visão crítica do ensino jurídico”: A ideia do próprio profissional como ente especializado, que começou a ser reque- rido pela sociedade, cada vez maior. Na verdade, esse tipo de especialização ocorre também com a manifestação do ensino, a partir dos anos setenta. A explosão de- mográfica ocorre dentro das universidades brasileiras e essa especialização acaba ocorrendo no momento em que também a massificação do ensino ocorre pela pressão da demanda estudantil e o desaparecimento daquela velha elite estudan- til. Ora, o ensino massificado, junto com essa tendência à especialização acabou transformando o Direito em objeto – ciência do Direito em disciplina que o estu- da, e o profissional do Direito naquele que o exerce, numa espécie de instrumento de segundo grau para todas as demais disciplinas.13 Por outro lado, no escopo de solucionar esses problemas, pensadores como Hans Kelsen se preocuparam com uma concepção renovada da Dogmática. Pro- curou Kelsen justamente em fazer com que a Ciência do Direito não perdesse seu caráter científico, propondo uma teoria da pureza, segundo a qual o método e o objeto deveriam ter como premissa básica o enfoque normativo. 13 Revista do Advogado, AASP, São Paulo, 1983, p. 39-50. Disponível em: <http://www.terciosampaiofer- razjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/50> . Acesso em 5 ago. 2017. 43 Sob esse horizonte, muitos pensadores creem que a Dogmática se encontra em crise, precisando descobrir se na atualidade há realmente uma Função Social da Dogmática Jurídica. 3. CARACTERÍSTICAS DA DOGMÁTICA JURÍDICA Interessante se mostrar, na atualidade, que a Ciência do Direito assuma como característica principal a possibilidade de se verificar, analisar e operar pe- rante o Direito pela via cognoscível ou empírica ou, ainda, perquirir seus valores por meio da lógica transcendental. O jurista, nesse aspecto, está a serviço da realização do Direito. Isto de- monstra que o operador do direito nada mais é do que um operador dos sinais. Cabe à dogmática dar os instrumentos para orientar a ação do jurista e possibi- litar sua decidibilidade com base em premissas e pressuposto válidos conforme a lógica, a experiência e os fundamentos do Direito. Para tanto, num mundo de normas cada vez mais abstratas, mostra-se ne- cessário estabelecer critérios para que não haja modificações arbitrárias a ponto de gerar a instabilidade social. Justamente nesse contexto é que ganha enorme importância o princípio da legalidade para se conceder segurança jurídica à sociedade. O princípio da legalidade encontra-se na maior parte dos Estados Moder- nos como princípio fundamental associado intimamente às noções de Estado de Direito e Estado Democrático. Com efeito, se numa democracia todo o poder emana do povo, a consequência lógica é que somente o povo, conforme sua von- tade, é capaz de obrigar a si para fazer ou deixar de fazer algo, para sofrer ou não sofrer uma sanção. Nesse sentido, são as palavras de Tércio Sampaio: A legalidade num mundo em que a crença em princípios abstratos (como por exemplo, do Direito Natural) se desgastavam tornou-se a pedra angular que dava ao Direito e ao Estado aquele mínimo de segurança e certeza, numa situação em que a mudança era superior à permanência.14 14 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Ob. cit. , p. 193. 44 Dessa forma, se faz crer que apenas as premissas ou pressupostos só poderão ser modificados caso ocorra a alteração da Dogmática pela autoridade compe- tente e vias hábeis, ou seja, conforme o que está presente no Texto Constitucio- nal ou mesmo nas normas infralegais incidentes. Conclui-se, portanto, que a Dogmática procura instaurar uma sociedade política e juridicamente segura aos seus cidadãos, possibilitando que a decisão esteja previamente estipulada não pelo arbítrio, mas pelos limites daquilo que foi imposto pela ordem jurídica. Outro grande ponto de apoio se encontra no legado deixado pela Escola da Exegese que nada mais é do que permitir ao operador do direito uma interpreta- ção coerente do sistema, respeitando-o. Nessa perspectiva, são oportunas as palavras de João Maurício Adeodato: A dogmática jurídica preocupa-se com possibilitar uma decisão e orientar a ação, estando ligada a conceitos fixados, ou seja, partindo de premissas estabelecidas. Essas premissas ou dogmas estabelecidos (emanados de autoridade competente) são, a priori, inquestionáveis. No entanto, conformadas as hipóteses e o rito esta- tuídos na norma constitucional ou legal incidente, podem ser modificados de tal forma a se ajustarem a uma nova realidade. A dogmática, assim, limita a ação do jurista condicionando sua operação aos preceitos legais estabelecidos na norma jurídica, direcionando a conduta humana a seguir o regulamento posto e por ele se limitar, desaconselhando, sob pena de sanção, ou comportamento contra legem. Mas não se limita a copiar e repetir a norma que lhe é imposta, apenas depende da existência prévia desta norma para interpretar sua própria vinculação15. Nesse mesmo sentido Miguel Reale orienta que pela construção de princí- pios basilares é capaz de diminuir crises evidenciadas na atualidade, reduzindo as angústias, havendo de se enxergar a Dogmática Jurídica como sinônimo de Ciência do Direito, pois aquela corresponde ao momento culminante da aplicação da Ciência do Direito, quando o jurista se eleva ao plano teórico dos princípios e conceitos gerais indispensáveis à interpretação, construção e sistematização dos preceitos e institutos que com- 15 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 32. 45 põem o ordenamento jurídico. [...] quando esta determina as estruturas lógicas da experiência jurídica, no âmbito e em função das exigências normativas constantes do ordenamento em vigor, toma o nome de Dogmática Jurídica.16 Assim, na explanação de Tércio Sampaio, deve-se atentar que a Dogmáti- ca possui funções próprias da tecnologia, pois o cientista, como técnico, e não possível de encontrar-se em contradição, tem de analisar as decisões dando res- postas aptas e idôneas para demonstrar uma “solução solucionadora” capaz de reduzir a complexidade social. Aqui encontra a Dogmática a sua função social, ou seja, a de causar a menor perturbação social possível. Segundo o autor, a função da Dogmática Jurídica “repousa, outrossim, no controle de consistência de decisões tendo em vista outras decisões; em outras palavras, no controle de consistência e decidibilidade, sendo, então, a partir dela que se torna viável definir as condições do juridicamente possível”.17 Por meio desses critérios, portanto, é que se torna admissível a estabilidade social, trazendo a segurança jurídica almejada. A Zetética jurídica, por sua vez, tem como fundamento principal a dúvida, propondo questionamentos, sendo mais um mecanismo para pensar e, assim, chegar à justificativa da decidibilidade. A Zetética procura o processo de funda- mentação promovendo a quebra de dogmas, de caráter informativo, desconsti- tuindo o pensamento, capaz de especulações, por vezes, infinitas. Por outro lado, a Dogmática busca respostas, com caráter informativo e diretivo, procurando soluções às questões. 4. INSTRUMENTOS DOGMÁTICOS E SUA FUNÇÃO De forma sucinta, mostra-se importante demonstrar em que plano se dá a questão da decidibilidade da norma jurídica. Parte-se do pressuposto que na sociedade complexa da atualidade há a mutabilidade da Dogmática muitas vezes por conveniência e, nem sempre, quando se está diante de conflitos. 16 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo, 2005, p. 322-323. 17 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Op. cit., p. 100. 46 No entanto, a articulação da Dogmática Jurídica se dá por diferentes mo- delos teóricos que estão agrupados em três grupos para proporcionar subsídios à decidibilidade. São eles: A. Modelo analítico que
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