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O Marinheiro Fernando Pessoa PROF. HENRIQUE LANDIM www.literaturaunicamp.com.br Fernando Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, na cidade de Lisboa, em Portugal. Quando criança, escrevia em português, francês e inglês. Com a idade de cinco anos, perdeu o pai, morto devido à tuberculose. Aos sete anos, escreveu o poema “À minha querida mamã”. Sua mãe casou novamente, e Pessoa viveu por nove anos, de 1896 a 1905, em Durban, na África do Sul, pois seu padrasto era cônsul. Ali ingressou na Convent School, um colégio de freiras, e conseguiu estudar, em três anos, o conteúdo escolar de cinco. Então, em 1899, passou a frequentar a Durban High School e, em 1901, recebeu o First Class School Higher Certificate, da Universidade do Cabo da Boa Esperança. Foi em 1902 que publicou seu primeiro poema — “Quando a dor me amargurar” — no jornal O Imparcial, em Lisboa, enquanto estava de férias em seu país natal. Quando voltou a Lisboa, definitivamente, quando tinha 17 anos, em 1905, e ingressou na Faculdade de Letras, que abandonou em 1907. Em 1920, fundou a firma Olisipo (editora e negócios mineiros). Seu primeiro livro em português — Mensagem — foi publicado em 1934. Por essa obra, o poeta, que morreu em 30 de novembro de 1935, em Lisboa, ganhou o Prêmio de Poesia Antero de Quental. Um dia antes de morrer, Fernando Pessoa escreveu, a lápis, as seguintes palavras: “I know not what tomorrow will bring”, isto é, “Não sei o que o amanhã trará”. Assim, o poeta deixou em torno de 25 mil páginas de textos, que vêm sendo, lentamente, publicadas desde a sua morte. FERNANDO PESSOA OBRA: O Marinheiro AUTOR: Fernando Pessoa ANO DE PUBLICAÇÃO: escrito em 1913 e publicado em 1915 (Orpheu I) GÊNERO LITERÁRIO: Gênero dramático. A peça possui um subtítulo bastante sugestivo (“drama estático”), pois, ao certo, a obra foi escrita para ser lida e não representada: “um teatro sem acção, com personagens imóveis, não caracterizadas, que apenas falam num cenário solto no espaço e situado num tempo indefinido”. Segundo Seabra (1974: 28), o livro “destina-se muito mais a ser lido do que a ser visto, ou antes a ser visualizado através das palavras”. Até as indicações iniciais de cena mostram isso: a maneira poética e sugestiva como são indicadas, parecem dirigir-se não a um cenógrafo, mas à imaginação de um leitor” (MIRANDA, 2006: 31). Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma mesa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar. Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela. É noite e há como que um resto vago de luar. PRIMEIRA VELADORA — Ainda não deu hora nenhuma. SEGUNDA — Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia. TERCEIRA — Não: o horizonte é negro. PRIMEIRA — Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso... SEGUNDA — Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa? PRIMEIRA — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer coisa?... (uma pausa) (PESSOA, Fernando. O marinheiro. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020, p. 3-4) GÊNERO DRAMÁTICO: R U B R IC A D ISC U R SO D IR ETO RUBRICA Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a ação nem a progressão e consequência da ação – mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de situações [...]. Pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade. (PESSOA, Fernando. Páginas sobre literatura e estética. Org. António Quadros. 2.ª ed. Mira-Sintra – Mem Martins: Europa América, 1994b, p. 78. Negrito meu). TEATRO ESTÁTICO: Em O marinheiro, as personagens não se movem, apenas dialogam. Apesar de apresentar evidentes características dramáticas, seu enredo tem enfatizada a poesia; é constituído por diálogos poéticos. Por esses motivos, o texto tem sido considerado por diversos críticos – como Massaud Moisés, por exemplo - um poema dramático, desprovido do principal elemento do drama: a ação. Sobre a fusão entre teatro e poesia, considera-se que o teatro move-se na direção da poesia como um de seus mais potentes focos de atração. Não estranha, por isso, que o dramaturgo seja chamado, às vezes, poeta dramático, e que um estudioso do teatro lastime haver-se abandonado tal expressão (MOISÉS, Massaud. A Criação Literária: Prosa II. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 141). TEATRO ESTÁTICO (conclusão): MOVIMENTO LITERÁRIO: o texto é uma produção do Modernismo Português, visto o caráter altamente inovador de vários aspecto: a) não há uma ação (acumulação de acontecimentos); b) os personagens sem nomeação própria; c) o espaço é nuançado apenas no início da peça; d) diálogos insólitos e altamente poéticos; e) sugestivas reflexões sobre a pátria lusa (nacionalismo reflexivo). ESPAÇO: o quarto circular de um castelo antigo sem nenhuma outra objetiva indicação espacial como cidade. Tudo isso, sugere estarmos num ambiente mítico e atemporal, o que deixa transparecer certa universalidade. HETERÔNIMOS O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo. Do ponto de vista humano (…) sou um histero-neurasténico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade (…). Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, … como poeta, sinto; que como poeta dramático, sinto despegando-me de mim, que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir. (In Correspondência: 1923-1935. Ed. Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. p. 254.) Excertos da Carta a João Gaspar Simões (11 de Dezembro de 1931) Excerto da Carta a Adolfo Casais Monteiro (20 de Janeiro de 1935) O que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva, a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo: VIAJO. (Por um lapso da tecla das maiúsculas, saiu-me sem que eu quisesse essa palavra em letra grande. Está certo, e assim deixo ficar.) Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em mim como comparável,não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro, segui, em planície, de um para outro lugar (“Viajar, perder países”). Fernando Pessoa FERNANDO PESSOA / HETERÔNIMOS: tendência orgânica e constante para a despersonalização; começou desde muito cedo a criar em seu redor um mundo fictício, cercando-se de amigos e conhecidos que nunca existiram; proliferação de máscaras, disfarces, de duplos, de outros eus, que são simultaneamente o mesmo e o outro Pessoa possui uma capacidade genial de criar autores, cada um com a sua personalidade própria, a sua biografia, a sua estética, o seu estilo e o seu modo de pensar. os EUS criados possuem identidade inconfundível filosofia por vezes antagónica da professada pelo poeta ortónimo. “Se Deus não tem unidade, como a terei eu?” F. Pessoa ALBERTO CAIRO RICARDO REIS ÁLVARO DE CAMPOS ANO DE NASCIMENTO 1889 1887 1890 ANO DA MORTE 1915 - - LOCAL DE NASCIMENTO Lisboa Porto Tavira PROFISSÃO Sem profissão Médico Engenheiro naval LOCAL ONDE VIVE Campo Brasil Lisboa CARATERIZAÇÃO Estatura média, frágil Moreno, baixo e forte Alto (1,75m), magro, entre o branco e o moreno Ao certo, a jovem do caixão talvez seja o tempo, que introduz a morte, já que uma das Veladoras afirma: “Velamos as horas que passam.” O mistério do tempo está sempre presente. “O que é qualquer coisa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa?...” – é uma das muitas perguntas que não esperam resposta. É esse tempo que inspira uma espécie de litania em torno do verbo passar, que, por sua vez, remete para esse passado a que todas, pelo sonho, regressam. Poderíamos admitir que estão velando esses “eus” passados que, provavelmente, as estão sonhando, mas não sabem quem elas são, na actualidade: “O que eu era outrora já não se lembra de quem eu sou…” afirma a Terceira Veladora. O ritual da regressão quererá estabelecer essa ligação entre o eu passado e o eu presente. [...] As Veladoras acabam por não suportar a longa insónia dessa longa noite (insónia do sono de viver, incapacidade de conciliar o sono desse sossego) que sofrem como um pesadelo: “Não sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende?” Por isso apetecem a vinda do dia, “a insconsciência da vida”, que “consola”, e que porá um fim ao “pavor”, ao “horror” da aventura nocturna a que se entregaram (LOPES, Teresa Rita. Pessoa e o “Teatro de Êxtase”. Ensaio publicado no programa da peça de teatro O marinheiro, encenada pelo Teatro Plástico, no Porto (Portugal), 2009, p. 3-4, (versão online). EU PRESENTE X EU PASSADO: O objeto desse marinheiro, o que ele busca, é sua vida na nova pátria por ele imaginada. O que o move é a perda da antiga, na qual vivia. Ele sonha para suprir a necessidade de seu objeto. Mesmo quando tenta recordar-se de sua terra natal, o marinheiro não consegue, não é capaz sequer de lembrar o que nela viveu, pois já adotou a nova pátria, por ele sonhada, como sua terra natal. Nela, já imaginou toda a sua vida, desde a infância. No decorrer dos diálogos sobre o sonho com o marinheiro, as três donzelas deslumbram-se com ele. Mas, encerradas as falas a respeito do marinheiro, a segunda veladora (que descreveu todo o sonho) suscita a hipótese de que talvez a única coisa real em toda essa situação fosse o marinheiro, sendo elas, na verdade, apenas parte de um sonho dele. Essa hipótese passa a atormentá-las. Foram as próprias personagens desse drama que, interagindo por meio das palavras, permitiram a presença do marinheiro em suas vidas, foi a segunda veladora quem “o despertou”. O PODER DO SONHO: Consubstanciadas à ideia de uma noite-mater, gestora e, portanto, incubatória do novo, do por vir, as três veladoras defrontam-nos, de igual modo, com a proximidade concreta e simbólica da hora terminal de esvaziamento. Sintetiza-se, assim, a experiência – de resto, íntima para os gregos antigos – de ciclicidade, dada a noção de morte como espécie de renascimento para o novo mundo – se bem que espectral (Hades) –, num movimentar- se cíclico do tempo. Morte da noite para o renascer do dia; noite como incubadora da morte de si mesma para a maternidade do dia, seu algoz e ao mesmo tempo novo gestor, e assim sucessivamente. Portanto, estamos a sondar dialéticas de pacificação x conflito; estatismo x drama; vida x morte; plenitude x páthos do esvaziar-se. A NOITE: Referências correlatas podem ainda ser traçadas para a relação das veladoras com o mar, que no texto pessoano é apresentado em duas dimensões: a concreta (visto da janela do quarto) e a onírica (o sonho com o marinheiro) – e este é já um primeiro traço de dubiedades em coexistência. Concretamente, o mar faz-se presente ao poder ser avistado, ainda que em pequena proporção, entre os dois montes que se insinuam para a janela referida logo na primeira didascália do drama. Já sua dimensão onírica apresenta-se na narrativa da Segunda Veladora, que conta para as irmãs o sonho-título da peça. Há, deste modo, um mar “real” d’O marinheiro, e um mar sonhado do marinheiro. O MAR: Na mitologia criada pelos gregos, Nix, deusa da Noite, uma das divindades primordiais, gera entre outras criaturas as tecelãs do destino: Cloto, Láquesis e Átropos, damas sombrias representadas na literatura, especialmente na poesia clássica, como mulheres de aparência funesta, desempenhando o terrível compromisso de elaborar, tecer e interromper o fio da vida de todos os seres; e nas artes plásticas retratadas como belas donzelas. Estas irmãs detinham um poder incontestável, ditando o destino tanto dos deuses quanto dos mortais, não sendo questionadas nem mesmo por Zeus, pois qualquer interferência de sua parte influenciaria na ordem natural do Universo. Consideradas as ‘Fiandeiras do Destino’, elas tecem o futuro do Homem e dos deuses em um tear especial, a Roda da Fortuna. Ao enrolar os fios da existência dos seres vivos neste instrumento, cada pessoa se encontrará na posição mais almejada, o alto da roda, ou em baixo, na esfera menos desejada, simbolizando os momentos de fortuna ou de má sorte. Nos momentos de necessidade, elas criaram Têmis, deusa responsável pela justiça; Nêmesis, encarregada da ética; e as Eríneas, que detinham o poder de punir os homens; elas cresceram assim como irmãs, educadas pelo Destino. A Moira era compreendida inicialmente como uma unidade, sendo descrita na Ilíada como uma norma localizada acima de tudo e de todos. Na Odisséia ela já representa as fiandeiras, perdendo seu papel singular e conquistando um valor tríplice. As três irmãs, assim, assumem tarefas distintas. Clotho é a que tece, significando em grego ‘fiar’; ela detém o fuso, manipula-o e estimula o fio da vida a iniciar sua trajetória. AS MOIRAS:
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