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Fasc%C3%ADculo%203%20-%20Justi%C3%A7a%20economia%20e%20institui%C3%A7%C3%B5es%20pol%C3%ADticas_03

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Gustavo Feitosa
justiça, economia e 
instituições políticas
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UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE - ensino a distância®
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34 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste
obJetIVos
 Compreender melhor o cenário de surgimento dos principais direitos que deram origem ao 
nosso atual modelo de Justiça.
 Refl etir sobre o processo de construção dos direitos humanos e fundamentais que serviram 
de modelo para orientação da atuação da Justiça.
 Compreender os pressupostos de criação no Estado brasileiro após a independência e de 
aplicação da sua Constituição.
 Conhecer as condições de atuação do Judiciário no contexto do século XIX e os obstáculos ao 
desenvolvimento de uma cultura de defesa de direito do cidadão.
 Compreender os desafi os para a afi rmação de um Judiciário independente e apto a proteger e 
assegurar os direitos dos cidadãos.
suMÁrIo
1. Introdução .........................................................................................................................................................................35
2. Transição econômica feudal para o capitalismo ................................................................................................35
3. Revoluções, direitos e justiça .....................................................................................................................................37
 3.1 Compreendendo os direitos nascidos nas revoluções liberais .............................................................................38
 3.2 Pensando os direitos para além da liberdade e da propriedade .........................................................................39
4. Liberdade contratual e a construção judicial dos limites para 
intervenção do Estado na economia ......................................................................................................................40
5. Os tribunais e o Movimento pelos Direitos Civis ..............................................................................................42
 5.1 Os tribunais e o Direito à Saúde nos EUA ......................................................................................................................43
6. História social e política brasileira: contexto e pressupostos para 
o nascimento do nosso Judiciário ............................................................................................................................43
7. A escravidão, justiça e direitos ..................................................................................................................................45
 7.1 Clientelismo e os obstáculos para uma cultura de direitos ....................................................................................45
8. Renovando o papel da Justiça...................................................................................................................................46
Síntese do fascículo .............................................................................................................................. 47
Referências ............................................................................................................................................ 47
Sobre o autor......................................................................................................................................... 47
34 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste CURSO CIDADANIA JUDICIÁRIA 35
1.
INtroDuÇÃo
Ao olharmos para a forma como entende-
mos os nossos direitos hoje, muitas vezes 
somos levados a acreditar que estamos 
diante de algo natural, essencial e que se 
projetará para o futuro sempre na forma 
como conheemos hoje. No entanto, bas-
ta uma breve leitura sobre a história da 
Europa e sobre como se transformaram 
suas instituições jurídicas e políticas, seu 
direito e sua economia, para perceber-
mos o quanto mudou na relação das pes-
soas com os outros seres humanos, com a 
terra, com seus bens e com o Estado. Um 
direito relativamente comum e que mar-
ca nossa relação com os objetivos do dia 
a dia, como a propriedade, apresentava 
signifi cados diferentes nos séculos XIV ou 
XV dos sentidos dados atualmente pela 
maioria de nós. 
A compreensão sobre os nossos di-
reitos hoje, sobre o papel social do Estado 
e sobre as funções da Justiça depende, 
em grande medida, da refl exão sobre os 
caminhos e do contexto de transforma-
ção que nos trouxeram ao cenário atual. 
Para não ir muito longe nesse caminho, 
é possível situar alguns aspectos impor-
tantes dessa história na transição ocorrida 
na Europa, principalmente ao longo dos 
séculos XIV, XV e XVI, em especial, no que 
diz respeito a alguns direitos como a pro-
priedade e a liberdade. 
2.
traNsIÇÃo 
eCoNÔMICa
DA ECONOMIA 
FEUDAL PARA O 
CAPITALISMO
A economia da Europa feudal carac-
terizava-se, em linhas gerais, por for-
mas peculiares de relação entre os 
senhores de vastas áreas de terra e os 
camponeses que as habitavam. Nos-
so primeiro impulso, ao ler ou pensar 
sobre o assunto, é projetar sobre esta 
relação as formas atuais de interação 
entre um fazendeiro e um trabalhador 
rural. Pensamos em trabalho assalaria-
do ou ainda nas velhas parcerias rurais 
predominantes num passado ainda 
recente em muitas regiões brasilei-
ras. Todavia, as relações feudais1 do 
passado europeu apresentam um de-
senho bem diferente do que encontra-
mos hoje, no campo no Brasil2.
Até o século XIV, os camponeses 
na Europa haviam conseguido viver 
períodos relativamente longos de es-
tabilidade nas formas de convivência 
com os senhores de terra. cabia a estes 
trabalhadores rurais cumprir um conjun-
to de obrigações que envolvia plantar, 
administrar pequenas parcelas de terra, 
1 Relações Feudais: A propriedade 
feudal pertencia a uma camada 
privilegiada, composta pelos senhores 
feudais, altos dignitários da Igreja (o 
clero) e longínquos descendentes dos 
chefes tribais germânicos. A principal 
unidade econômica de produção era 
o feudo, que se dividia em três partes 
distintas: a propriedade individual do 
senhor, chamada manso senhorial 
ou domínio, em cujo interior se erigia 
um castelo fortifi cado; o manso 
servil, que correspondia à porção de 
terras arrendadas aos camponeses e 
era dividido em lotes denominados 
tenências; e ainda o manso comunal, 
constituído por terras coletivas pastos 
e bosques, usadas tanto pelo senhor 
quanto pelos servos.
Devido ao caráter expropriador do 
sistema feudal, o servo não se sentia 
estimulado a aumentar a produção 
com inovações tecnológicas, uma vez 
que tudo que produzia de excedente 
era tomado pelo senhor. Por isso, o 
desenvolvimento técnico foi pequeno, 
limitando aumentos de produtividade. 
A principal técnica adaptada foi a de 
rotação trienal de culturas, que evitava 
o esgotamento do solo, mantendo a 
fertilidade da terra.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Feudalismo)
36 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE
prestar alguns serviços ao senhor, en-
tregar parte da produção, entre outras 
atividades. Os deveres, entretanto, vi-
nham acompanhados de alguns direi-
tos. Os camponeses podiam usar terras 
comuns como pastagens para criar ani-
mais, transmitiam para seus herdeiros 
os vínculos com a terra em que traba-
lhavam, não podiam ser expulsos (em 
condições normais) ou usufruíam de 
parte do resultado da produção. 
A riqueza dos senhores dependia da 
presença de muitos servos em suas ter-
ras e não havia interesse em expulsá-los. 
como se percebe, a relação entre os ho-
mens e a terra era diferente. A ideia de 
propriedade não implicava num poder 
absoluto de fazer qualquer coisa com a 
terra e disporlivremente sobre o se pro-
duzia nela. Os limites e obrigações do 
uso vinculavam mutuamente senhor e 
servo e se projetavam sobre toda a eco-
nomia e sociedade feudal.
A realidade, contudo, modifi cou-se 
a partir dos séculos XIV e XV. O avanço 
gradual do comércio nas cidades e a 
demanda crescente pela produção de 
determinados produtos, como a lã, ge-
rariam uma pressão sobre as formas até 
então tradicionais de produção. criar 
ovelhas para extrair a lã, por exemplo, 
levava a modifi cações na forma como os 
servos usavam as terras e as pastagens, 
direcionando trabalho e áreas de cultivo 
à produção de algo que não alimenta as 
famílias, destina-se à venda em trocas 
monetárias e não se compatibiliza com 
os usos coletivos de pastagem.
O caso da produção de lã é apenas 
um exemplo. A produção de gêneros 
exigidos para o comércio e a manufatu-
ra levava a exigência de reestruturação 
do modelo de propriedade da terra da 
Idade média, com grandes repercus-
sões sobre as vidas de milhões de cam-
poneses, bem como da nobreza que 
tinha sua riqueza vinculada ainda aos 
seus direitos sobre vastas extensões de 
terras e às relações com seus servos.
Na esteira dessa transformação, ocor-
reram expulsões em massa de popula-
ções rurais para as cidades, desagregação 
dos vínculos que mantinham o sistema 
feudal e o fortalecimento de atividades 
mercantis. O processo não acontecia sem 
tensões. Revoltas no campo, confl itos de 
terra, guerras entre cidades e atritos envol-
vendo nobre, reis e burgueses. As velhas 
tradições feudais atrapalhavam o desen-
volvimento da emergente economia ca-
pitalista. mas não apenas as relações no 
campo sofriam com as mudanças. 
Nas cidades, as relações de traba-
lho comandadas pelas corporações de 
ofício3 também acarretavam obstáculos 
para a prosperidade das manufaturas. 
mais uma vez, a tendência a tentar pro-
jetar os modelos contemporâneos pode 
difi cultar a compreensão. Quando pen-
samos em trabalho, imaginamos sempre 
a ideia de uma pessoa que livremen-
te busca oportunidades e procura um 
emprego que melhor se adeque à sua 
formação. caso não possua as habilida-
des necessárias, pode procurar cursos, 
aprender e aproveitar as vagas disponí-
veis no comércio ou na indústria. Nada 
mais distante da realidade do século XV.
Atividades artesanais, como a de 
sapateiro ou pedreiro, encontravam-se 
sob o controle de corporações de ofí-
cio reconhecidas e protegidas por leis 
locais. Isso signifi cava que para traba-
lhar como sapateiro, exigia-se um longo 
período de trabalho (normalmente sete 
anos) como aprendiz para conquistar a 
habilitação legal para possuir sua pró-
pria ofi cina. Não se poderia simples-
mente abrir uma pequena loja ou fábri-
ca de sapatos e contratar trabalhadores 
assalariados para atividades específi -
cas. A grande maioria das atividades 
manufatureiras que levavam a produção 
de bens de consumo se encontravam li-
mitadas pelo controle das corporações 
e pela impossibilidade de acesso livre 
à força de trabalho dos servos que se 
encontravam presos à terra.
2 “Cada propriedade feudal tinha 
um senhor. Dizia-se comumente 
do período feudal que não havia 
‘senhor sem terra, nem terra sem 
senhor’. [...] Pastos, prados, bosques 
e ermos eram usados em comum, 
mas a terra arável era dividida em 
duas partes. Uma, de modo geral, 
a terça parte do todo, pertencia ao 
senhor [...]; a outra fi cava em poder 
dos arrendatários”. O trabalho fi cava a 
cargo dos camponeses (servos) que se 
encontravam presos à terra. Os servos 
não tinham a condição de escravos, 
mas não podiam abandonar a terra 
onde viviam. A produção nas terras 
do senhor era integralmente entregue 
a estes e a das terras arrendadas 
acabava apenas em parte nas mãos 
dos servos. Estes camponeses tinham 
uma vida dura e miserável e apesar 
de poder utilizar partes daquilo que 
produziam, deveriam tratar com 
inteira prioridade o trabalho nas terras 
dos seus senhores, além de cumprir 
diversas obrigações para com seu 
senhor. (HUBERMAN, 1986, pp. 3-7)
3 Corporações de ofício eram formas 
de associação comuns na Idade Média, 
utilizadas em algumas atividades 
artesanais (sapateiros, pedreiros, 
padeiros etc.) para controlar e regular 
a produção e comércio de alguns 
produtos e serviços. Estas corporações 
e exigiam que somente os seus 
membros produzissem 
mercadorias como sapatos.
37
Esse modelo de produção artesanal 
e urbana também sofreria severamente 
com o avanço do comércio. A intensi-
fi cação da circulação de comerciantes, 
o tráfego de produtos de dentro e de 
fora da Europa, a opção pela produção 
em cidades com regulamentos mais 
fl exíveis em relação às corporações e à 
servidão, entre múltiplos aspectos, lan-
çariam as bases para as novas formas 
de organização da economia, da socie-
dade, do direito e do Estado. 
muito se poderia discutir sobre um 
fenômeno tão amplo e complexo como 
essa transição vivida pela Europa, po-
rém, para os nossos objetivos, o impor-
tante é ressaltar o quanto esse processo 
afetou a forma como se estruturaram as 
constituições dos estados contemporâ-
neos, a Justiça e como as pessoas en-
xergam seus próprios direitos. 
3.
reVoLuÇÕes,
DIREITOS E JUSTIÇA
As grandes transformações ocorridas 
na Europa nos séculos XV e XVI encon-
traram na Inglaterra um terreno fértil. 
O avanço no cercamento das terras, 
o enfraquecimento da economia feu-
dal e o crescimento da importância da 
manufatura e do comércio repercutiam 
no campo político e social. A ascensão 
econômica e política da burguesia4 se 
expressava na forma de uma crescente 
capacidade de intervir sobre as decisões 
políticas da monarquia inglesa. O avan-
ço político da burguesia gerava tensões 
e se construía num jogo tenso de atritos, 
vitórias e resistências contra a nobreza.
Para Refl etir
O continente americano e o Brasil 
em especial, só foram “descober-
tos” no fi m do século XV, quando a 
Europa estava emergindo da Idade 
média. A época das grandes navega-
ções é vista por alguns historiadores 
de hoje como o primeiro grande pro-
cesso de globalização e, traz em seu 
bojo, a defesa do humanismo e uma 
visão antropocêntrica que torna o 
homem dono e senhor da natureza e 
das coisas. Na sua concepção, os va-
lores sociais e o modelo econômico 
da Idade média teve algum impacto 
no novo continente descoberto?
4 A palavra burguesia nasce da 
designação das pessoas que 
habitavam pequenas cidades 
(burgos) e dedicavam-se, 
principalmente, ao comércio de 
mercadorias. O termo apresenta 
muitos usos e complexos 
desdobramentos conceituais, 
mas fi cou marcado pela ideia de 
fortalecimento de uma prospera 
classe social que crescia em riqueza e 
importância política por intermédio 
do comércio de atividades industriais.
38 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE
No século XVII, a monarquia Inglesa 
esforçava-se para preservar seu poder e 
manter um governo em moldes absolu-
tistas. O Estado Absolutista revela bem as 
contradições e difi culdades das transfor-
mações em curso. Seu modelo de funcio-
namento pressupunha a presença de um 
rei com poderes ilimitados, apto a gover-
nar todas as dimensões da vida econô-
mica, política e social em seus domínios. 
Entretanto, sua atuação dependia da exis-
tência de uma força militar pronta a agir 
em seu nome, de um aparato burocrático 
de servidores reais representando os inte-
resses do Estado, de uma elite de nobres 
fortemente atada aos interesses da mo-
narquia e de recursos fi nanceiros neces-
sários ao sustento de toda essa máquina.
A Inglaterra do século XVII sofria 
com um estado sem recursos fi nancei-
ros, sem exército permanente, repleto 
de divisões e tensões internas, fragili-
zado em constantes guerras externas 
e mergulhado em confl itos religiosos 
associados à reforma protestante. Nes-
te cenário, o poder econômico ascen-
dente da burguesia contrastava com o 
enfraquecimento e o empobrecimento 
relativo da nobreza inglesa. 
O parlamento5 naquela época não 
funcionava como um verdadeiroPo-
der Legislativo. Em situações especiais 
e segundo os desígnios dos próprios 
reis, convocava-se uma reunião do Par-
lamento para legitimar decisões impor-
tantes, como realizar uma guerra ou 
cobrar impostos. Para um monarca com 
pretensões absolutistas, aceitar a pre-
sença ou as eventuais deliberações de 
um parlamento signifi cava uma grande 
derrota e um gesto extremo necessário 
apenas em momentos muito graves. 
Um exemplo desta situação ocorreu 
em 1640, quando o rei carlos I precisou 
recompor e aceitar o Parlamento para 
encontrar uma solução para a falência 
total das fi nanças estatais em meio a 
confl itos externos, riscos de revoltas po-
pulares, recusa generalizada de pagar 
novos impostos e desobediência às leis 
estabelecidas pelo monarca. A reunião 
do Parlamento naquele momento signi-
fi cou apenas mais um ato das crescen-
tes agitações e confl itos em que mergu-
lhava a Inglaterra e que veio seguida de 
uma sangrenta guerra civil. 
Ao longo dos anos seguintes, a In-
glaterra teve quatro reis, enfrentou guer-
ras (externas e internas), passou por um 
breve período republicano e, fi nalmente, 
chegou em 1688 e 1689, ao fi m da cha-
mada Revolução Gloriosa. A designação 
de gloriosa nascera da conclusão dos 
seus atos fi nais com deposição do rei 
Jaime II e ascensão da maria Studart e 
Guilherme III (de Orange) sem a necessi-
dade de derramamento de sangue.
3.1 COMPREENDENDO OS 
DIREITOS NASCIDOS NAS 
REVOLUÇÕES LIBERAIS
Na releitura de todos esses aconteci-
mentos, importa aqui prestar atenção 
na discussão sobre os direitos naturais 
do homem e sobre as funções do Es-
tado desenvolvidas ao longo de todos 
os anos de confl ito e consolidada após 
o seu encerramento. O país assistiu a 
rápidas mudanças na sua economia e a 
um tenso processo de luta em torno da 
nova realidade econômica. 
Do lado da monarquia e da nobreza, 
prevalecia o impulso de tentar preservar 
privilégios, direitos e benefícios econômi-
cos. Isso implicava em tentar, por exem-
plo, estabelecer monopólios sobre o co-
mércio de determinados produtos como 
o sal, cobrar impostos sobre a venda 
externa de mercadorias manufaturadas, 
como os produtos têxteis, ou restringir o 
poder da burguesia urbana e comercial. 
Do lado da nova classe de comerciantes 
prevalecia um esforço para romper as bar-
reiras que ainda limitavam o avanço do 
comércio e da produção de mercadorias 
e drenavam capitais para o Estado. Em 
5 Os reis ingleses entre os séculos VIII e 
XI reuniam, em ocasiões especiais, seus 
principais conselheiros e nobres para 
auxiliar em decisões importantes para o 
reino. O termo “parlamento”, contudo, 
somente foi utilizado pela primeira 
vez em 1236. O parlamento não era 
considerado uma instituição e, sim, um 
evento. Ao longo dos séculos, havia uma 
crescente pressão dos barões sobre o 
rei para aumentar sua participação nas 
decisões mais relevantes. Em 1215, por 
exemplo, os barões obrigaram o rei João 
a assinar a Magna Carta, em que ele se 
comprometia a levar em consideração 
as orientações destes nobres. A ideia 
de realização de reuniões regulares do 
parlamento consolidou-se aos poucos. 
No século XIV, a representação dos 
burgueses e dos cavaleiros (Commons) 
das cidades e condados foi incorporado 
como parte permanente do Parlamento. 
E a partir do século XV, os Comuns 
ganharam papel central no poder do rei 
para legislar sobre Impostos. As grandes 
agitações ao longo da Revolução Inglesa 
ligam-se, em grande medida, às tensões 
entre o Parlamento e monarca. O fi m da 
Revolução é marcado pela consolidação 
de um papel de crescente hegemonia do 
Parlamento. (UK, on-line)
CURSO CIDADANIA JUDICIÁRIA 39
meio a todo este jogo, encontravam-se 
os camponeses e trabalhadores pobres 
ingleses vivendo a violência dos cerca-
mentos e da expulsão do campo, a reali-
dade dura da vida de trabalhos urbanos e 
os efeitos das guerras e das intempéries 
na forma da fome e de epidemias. 
O contexto revelou-se favorável 
ao fl orescimento de ideias que permi-
tissem aspirar um futuro melhor e, ao 
mesmo tempo, entrassem em sintonia 
com os novos horizontes que surgiam 
na economia e na sociedade inglesa. A 
ideia de um direito natural à liberdade, 
propalado com intensidade no fi nal do 
século XVII, atendeu bem a muitas aspi-
rações e se moldou de maneira fl exível 
aos anseios de diversos grupos. 
Para a burguesia, a liberdade sin-
tetizaria o desejo do comércio e do 
trabalho livre, sem barreiras impostas 
pelo Estado, por tradições feudais ou 
pelas corporações de ofício. Os gru-
pos religiosos criam na possibilidade 
de expressar livremente sua fé, sem a 
imposição de cultos ou a repressão aos 
protestantes. No campo da política, a 
liberdade representaria a possibilidade 
de manifestar e expressar seus interes-
ses de forma pública e sem privilégios 
de poder para a velha nobreza. Para 
as pessoas em geral, especialmente os 
mais pobres, poderia signifi car muitas 
coisas, como o direito de não ser preso 
arbitrariamente (perder a liberdade) ou 
de não pagar pesados impostos fi xados 
numa realidade de muita miséria.
Outra discussão importante para o 
período refere-se ao direito à proprie-
dade. A defesa do direito à propriedade 
privada como um direito natural apre-
sentou efeitos revolucionários, pois im-
plicou numa limitação direta na possibili-
dade do rei de avançar sobre os bens da 
burguesia, de instituir ou elevar impostos 
ou de intervir sobre a economia. É verda-
de que já se reconhecia a propriedade 
muito antes das revoluções liberais, mas 
Para Refl etir
Você considera que todas as gran-
des revoluções ou revoltas ocorridas 
nas sociedades representaram a luta 
por mais direitos e por mais justiça? 
No caso brasileiro, é capaz de citar 
uma ou mais revoltas ou revolução 
em que as principais reivindicações 
dessa natureza?
com um sentido diferente, conforme 
observamos no tópico anterior. Na nova 
forma teórica apresentada para o direi-
to à propriedade, desapareceram todas 
as limitações oriundas das velhas tradi-
ções feudais e surgiu naquele momento 
um direito considerado natural, amplo 
e muito relevante, cuja restrição exigia 
uma autorização expressa dos indivídu-
os titulares desse direito por meio do 
Parlamento. A propriedade ganhou um 
contorno quase absoluto.
Agora prestemos muita atenção 
nestes dois direitos amplamente defen-
didos como essenciais pelos vitoriosos 
na Revolução Gloriosa inglesa. Nos dois 
direitos, sobressaía a ideia de que “nós 
temos direitos que são inerentes e na-
turais”. Não são direitos que nasceriam 
pela mão do rei ou do Estado. Eles exis-
tiriam mesmo contra a vontade do Esta-
do. O monarca que pretendesse abolir 
ou ofender tais direitos estaria afrontan-
do algo superior e anterior ao seu pró-
prio poder. Percebe-se nesta construção 
teórica o teor revolucionário e legitima-
dor da revolta contra o absolutismo que 
a defesa do direito natural à liberdade 
ou à propriedade pode apresentar.
O rei que violasse um direito natural 
poderia ser legitimamente derrubado. 
Um grupo que se rebelasse contra um 
governante e destronasse o monarca 
estaria legitimado pela defesa da liber-
dade essencial dos homens. O Estado 
nada mais seria do que uma instituição 
a serviço da proteção de direitos. O rei 
converter-se-ia, assim, num servidor de 
seu povo e veria seus atos constante-
mente sujeitos à avaliação popular. Para 
noberto Bobbio6 (1992), a grande mu-
dança trazida pelas revoluções consistiu 
em transformar súditos em cidadãos. 
Ou seja, de alguém que serve o Estado, 
passamos a nos enxergar em indivíduos 
servidos por ele.
3.2 PENSANDO OS 
DIREITOS PARA ALÉM 
DA LIBERDADE E DA 
PROPRIEDADE
As ideias associadas à Revolução Libe-
ral Inglesa, bem como à Independên-
cia dos EUA (em 1776) e à Revolução 
Francesa (em 1789) modelaram a ma-
neira como nós, até hoje, olhamos o 
Estado. Percebemos esta grande ins-
tituição como uma organização políti-
ca voltada à realização e proteção de 
direitos, num sentido muito amplo. Os 
atosdos governantes, agora eleitos, 
submetem-se ao olhar dos cidadãos e 
sua legitimidade encontra-se sempre 
a prova. Seja pela eleição, seja pela 
avaliação da legalidade ou constitu-
cionalidade (pelo Judiciário), os atos 
de quem governa devem sempre se 
subordinar a uma lógica de proteção e 
concretização de direitos.
6 Norberto Bobbio (1909 ‒ 2004) é 
um os grandes fi losofos do direito no 
século XX e importante historiador 
do pensamente politico. Produziu 
inumeros textos sobre temas como 
a democracia, o autoritarismo, os 
direitos , o Estado, sempre com grande 
repercussão e infl uência internacinonal.
40 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE
novo direito. mas por contraditório que 
possa parecer, estas duas resposta ape-
nas sintetizam a ideia de que precisamos 
compreender os sentidos e os conteúdos 
dos nossos direitos, a partir dos proces-
sos que levaram à sua construção e dos 
desafi os que enfrentamos atualmente.
Até o século XIX, quando se fala-
vam de direitos como a liberdade ou a 
propriedade, a discussão centrava-se 
nos seus aspectos econômicos e nos 
seus efeitos para o mercado. Privilegia-
va-se a concepção de livre mercado e 
dos elementos importantes para o de-
senvolvimento da economia, sem maior 
destaque ou preocupação com a misé-
ria, a fome ou as desigualdades sociais 
extremas. Ao longo dos anos seguintes, 
em particular, no curso do século XX, 
muitos confl itos sociais, movimentos 
populares e greves ocorreram como 
expressão da revolta de uma popula-
ção de operários ou camponeses mi-
seráveis insatisfeitos com sua situação 
e com a maneira como o Estado lidava 
com suas difi culdades e sofrimento.
A tendência dos governos consistia 
em apenas reprimir e punir toda forma de 
expressão política das populações mais 
pobres e criminalizar qualquer conduta 
que desviasse as pessoas do trabalho 
duro cotidiano. Recusar-se a trabalhar nas 
indústrias ou no campo no século XIX era 
considerado crime. Pouco importava em 
que condições esse trabalho se dava. Até 
mesmo crianças poderiam trabalhar 10 
ou mais horas por dia em ambientes in-
salubres e perigosos, como em minas de 
carvão. Não havia garantias ou restrições 
de qualquer natureza. Nenhuma limita-
ção à jornada de trabalho ou ao valor do 
salário era aceita, pois seriam considera-
das ofensas ao direito essencial á liberda-
de. Presumia-se que a relação entre uma 
indústria e um trabalhador seria a perfeita 
expressão da liberdade contratual. 
4.
LIberDaDe
CONTRATUAL E 
A CONSTRUÇÃO 
JUDICIAL DOS 
LIMITES PARA 
INTERVENÇÃO 
DO ESTADO NA 
ECONOMIA
Um exemplo interessante de como se 
via lidavam com estes direitos ocorreu 
nos EUA. Em 1895, o Estado de Nova 
Iorque aprovou uma lei (Bakeshop Act) 
para regular o funcionamento das pa-
SAIBA MAIS
A Declaração de Independência dos EUA, de 1776 trazia em seu texto “[...] que to-
dos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo criador de certos direitos 
inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.”
Será que podemos falar da felicidade como um direito? haveria como imaginar 
uma forma do Estado prover aos indivíduos felicidade? Na realidade, a Declaração 
fala de um direito “a busca por felicidade”. A proteção dirige-se à possibilidade 
de cada um escolher de maneira livre o seu próprio destino. 
Não por acaso, continua importan-
te estudar as grandes transformações 
trazidas por uma Revolução do século 
XVII como a inglesa. Por meio deste es-
tudo, conseguimos perceber aspectos 
das origens do modelo de Estado e de 
direito utilizados hoje. contudo não se 
pode esquecer que no contexto daque-
les eventos históricos, direitos como 
liberdade e a propriedade tinham sen-
tidos e utilidades muito especiais. Sua 
necessidade e conteúdo se inseriam no 
fl uxo das grandes transformações eco-
nômicas vivenciadas na Inglaterra e no 
restante da Europa, desde o século XIV. 
Esta observação visa chamar atenção 
para a necessidade de pensar sobre os 
sentidos que damos aos direitos hoje. O 
que signifi ca de fato liberdade? Em 1689, 
ao fi nal da chamada Revolução Gloriosa, 
os líderes do movimento acreditavam 
que a liberdade representava o direito 
de trabalhar livremente para conquistar 
riqueza, comprar e vender mercadorias e 
circular com seu patrimônio, expressar a 
fé religiosa sem restrições do Estado, não 
ser preso ou perder a vida e os bens sem 
um processo, ou ainda não ser submetido 
a leis sem ter participado (direta ou indire-
tamente) da sua elaboração. muitos des-
dobramentos a mais poderiam ser dados 
aos sentidos da liberdade, mas todos eles 
estavam presos aos problemas da época.
Quando se pensa e se discute liber-
dade, ganham destaque outros aspec-
tos relacionados aos desafi os do tempo 
contemporâneo e das condições especí-
fi cas em que vivemos. muito se fala hoje 
sobre a liberdade na internet, por exem-
plo. Sobre o direito de navegar sem que 
os governos possam impedir as pessoas 
de visitar livremente qualquer site, de ex-
pressar suas opiniões, de se integrar e de 
interagir em redes sociais. Será, então, 
que estamos falando de outro direito, ou 
apenas da velha liberdade tão defendida 
em séculos passados? É possível respon-
der de modo afi rmativo às duas pergun-
tas. Sim, é a velha liberdade. Sim, é um 
CURSO CIDADANIA JUDICIÁRIA 41
darias que estabelecia um limite de 60 
horas de trabalho semanais e 10 horas 
diárias para os padeiros. Naquela época, 
praticamente não existia limitação legal 
à quantidade de horas de trabalho rea-
lizadas diariamente por cada emprega-
do. Qualquer tentativa de regulamentar 
a jornada de trabalho era considerada 
uma violação à liberdade contratual, de-
fi nida pelos tribunais como um direito 
constitucional dos norte-americanos.
De modo curioso, não havia na 
constituição dos Estados Unidos da 
América qualquer previsão clara indi-
cando a liberdade de contratar como 
um direito fundamental dos cidadãos. 
Este desdobramento da liberdade 
originou-se de uma discussão judicial 
sobre o chamado direito ao “devido 
processo legal” (ou due process of law), 
previsto na 14ª emenda constitucional. 
A emenda estabelece que o Estado não 
pode privar uma pessoa da sua vida, li-
berdade ou propriedade sem o devido 
processo legal. Ou seja, o Estado não 
poderia estabelecer limitações legais 
na liberdade das pessoas de usar livre-
mente sua propriedade e determinar 
sua vontade na realização de um contra-
to. Somente em casos extremos, como 
aqueles relacionados à saúde pública, à 
moralidade e à segurança, aceitar-se-ia 
alguma forma de restrição às possibili-
dades contratuais, em prol do chamado 
poder de polícia do Estado. E em últi-
mo caso, apenas ao Judiciário caberia 
defi nir sobre a constitucionalidade de 
tal intervenção estatal.
Em 1899, o proprietário de uma pa-
daria, Sr. Joseph Lochner, recebeu uma 
multa por permitir que um padeiro tra-
balhasse mais de sessenta horas por 
semana. Algum tempo depois, recebeu 
nova multa e, insatisfeito, resolveu re-
correr da punição. Após vários recursos 
e disputas, o caso chegou à suprema 
corte dos eua7, mais alto tribunal do 
país. Num julgamento famoso, conhe-
cido como Lochner versus New York, a 
corte decidiu que aquela limitação da 
jornada de trabalho violaria a constitui-
ção do país. A decisão marcou as déca-
das seguintes, na medida em que serviu 
como modelo para invalidar várias leis 
estaduais que pretendiam melhorar as 
condições de vida dos trabalhadores, 
com redução do número de horas diá-
rias de trabalho ou fi xação de um valor 
mínimo para o salário. 
Dois aspectos deste caso merecem 
nossa atenção. O primeiro diz respeito 
à construção dos direitos fundamentais. 
coube aos tribunais nos EUA defi nir de 
maneira gradual os contornos do que 
seria a chamada liberdade, em especial 
nos seus efeitos sobre autonomia con-
tratual. O segundo aspecto relaciona-se 
à rejeição ampla a qualquer forma de 
intervenção estatal na economia para 
proteger empregados e assegurarme-
lhores condições de vida ou trabalho. 
considerava-se que se um operário de-
sejava e suportava trabalhar mais de 60 
horas por semana, não caberia ao legis-
lador dizer o contrário. O mesmo valia 
para o salário. Se alguém aceitava tra-
balhar por uma remuneração muito pe-
quena, isso estaria no campo da liber-
dade individual de cada ser humano. 
Para um leitor dos dias de hoje, a si-
tuação dos operários do início do século 
XX parece um absurdo quase incompre-
ensível. como imaginar que a simples 
ideia da existência de um salário mínimo 
ou a proibição do trabalho infantil pode-
ria ser amplamente rejeitada pelo Judici-
ário? Assim, voltamos a um dos pontos 
centrais deste texto, a construção dos 
direitos e de seus sentidos liga-se aos 
processos históricos e o Judiciário pos-
sui papel central neste processo. 
7 A Suprema Corte (Supreme Court) 
é o tribunal mais importante dos 
Estados Unidos da América. 
Compete a ela dar a palavra fi nal 
em matéria de constitucionalidade.
O leitor pode se perguntar: mas 
como os EUA passaram a aceitar a exis-
tência de um salário mínimo ou de outras 
restrições à liberdade contratual, como 
a limitação da jornada de trabalho se os 
tribunais tratavam tais iniciativas como in-
constitucionais? A resposta nos remete a 
outro julgamento interessante envolven-
do a Suprema corte dos EUA e decidido 
em 1937. No caso conhecido como West 
coast hotel co. versus Parrish, uma ca-
mareira do estado de Washington (EUA) 
processou um hotel para receber a di-
ferença entre a remuneração paga e o 
valor correspondente ao salário mínimo 
estabelecido com base na legislação es-
tadual. O litígio acabou por chegar à Su-
prema corte, sob a alegação de que a lei 
estadual feriria a constituição do país. O 
argumento repetia o fundamento de de-
cisões anteriores da corte, chamadas de 
precedentes, segundo o qual somente 
em situações especiais seria legítima, ra-
zoável e justa a existência de uma inter-
venção estatal na liberdade contratual.
No julgamento do caso, a Suprema 
corte considerou constitucional a exis-
tência de uma lei que estabelecesse um 
valor mínimo para a remuneração paga 
para uma mulher. Ou seja, a limitação à 
liberdade contratual seria permitida em 
razão do reconhecimento pelo tribunal 
da necessidade de uma proteção espe-
cial à mulher e pelas repercussões à co-
munidade que os salários baixos ou uma 
jornada de trabalho degradante poderia 
levar. Observe-se que se trata de um pas-
so adicional para o reconhecimento da 
possibilidade do Estado estabelecer por 
lei um salário mínimo, dando novos con-
tornos à chamada liberdade contratual.
Esse caso ganhou ainda mais re-
levância por representar um marco na 
mudança da jurisprudência da Supre-
ma corte ocorrida durante o período 
de recuperação da economia dos EUA, 
após a grande crise econômica iniciada 
em 1929. Ao longo dos anos de 1930, 
o então presidente dos Estados Unidos, 
Franklin d. Roosevelt8, elaborou um 
conjunto de medidas e projetos conhe-
cido como New Deal (ou novo acordo). 
Seu objetivo consistia em incentivar 
a atividade econômica, reduzir os efei-
tos do desemprego para os trabalhado-
res mais pobres e aumentar os contro-
8 Franklin Delano Roosevelt foi o 
32º presidente dos Estados Unidos e 
governou o país de 1933-1945.
civis” nos EUA ou ainda, recentemente 
na discussão em torno do direito à saúde 
associado à aprovação da Lei de Proteção 
ao Paciente e da Saúde Acessível (Patient 
Protection and Affordable care Act), po-
pularmente conhecido como Obamacare. 
O movimento pelos Direitos civis 
nos EUA possuía como principal objetivo 
combater a segregação imposta aos ne-
gros pela legislação de diversos estados 
norte-americanos, em especial no sul do 
país. O marco inicial do movimento foi 
a recusa, em 1955, da costureira negra 
Rosa Parks em se levantar de um assento 
reservado exclusivamente para brancos, 
dentro de um ônibus de transporte cole-
tivo na cidade de montgomery, no Ala-
bama. Rosa Parks acabou presa e conde-
nada por desrespeitar a lei que dividia os 
lugares nos ônibus entre negros e bran-
cos. A situação inspirou um boicote da 
população negra aos ônibus e levou ao 
fi m da lei segregacionista no transporte 
público da cidade.
Os efeitos deste movimento se es-
palharam. com protestos, revoltas, ma-
nifestações, boicotes e ações judiciais 
foram derrubadas e abolidas todas as 
formas de segregação e separação entre 
negros e brancos nos EUA. Uma parte 
importante desse processo ocorreu nos 
tribunais federais por meio de ações que 
visavam assegurar a jovens negros o di-
reito de estudar em escolas e universida-
des destinadas apenas aos brancos. 
O mais famoso destes casos ocor-
reu na Universidade do mississipi, es-
tado situado no sul do EUA. Em 1962, 
o ex-militar negro James meredith 
conseguiu numa corte federal o direi-
to de ingressar na universidade. O en-
tão governador do estado descumpriu 
a ordem e impediu a sua efetivação, 
acarretando uma intervenção de tro-
pas federais para fazer valer o direito 
de meredith. A ação militar para cum-
prir a decisão da Justiça resultou em 
violentos confrontos, com dois mortos 
e muitos feridos. 
les sobre diversos setores da economia, 
como forma de evitar a repetição dos 
eventos que antecederam a grande cri-
se. Iniciativas como a criação de uma 
previdência social, de um órgão de re-
gulação e fi scalização do mercado de 
capitais e o estabelecimento de um sa-
lário mínimo foram partes importantes 
das suas políticas. 
Os projetos, todavia, entravam 
em choque direto com as interpreta-
ções dos tribunais acerca dos limites 
da intervenção do Estado na econo-
mia. muitas das medidas criadas no 
governo de Franklin D. Roosevelt fo-
ram barradas por decisões judiciais 
que as consideravam inconstitucional. 
Em meio a tensões políticas, ao apoio 
popular do presidente e as demandas 
de um país em crise, ocorreram aos 
poucos mudanças na jurisprudência da 
Suprema corte. O tema era tão sensí-
vel que o presidente chegou a propor 
a modifi cação do número de juízes do 
tribunal para tentar interferir na orien-
tação das suas decisões.
5.
os trIbuNaIs
E O MOVIMENTO 
PELOS DIREITOS 
CIVIS
Observa-se que a gradual mudan-
ça social e econômica nos EUA 
veio acompanhada de alterações 
também nos direitos reconheci-
dos aos cidadãos e na posição 
das cortes sobre tais direitos. 
Esse processo não se interrompe 
e apresenta momentos de muito 
destaque, como durante o cha-
mado “movimento pelos Direitos 
42 
CURSO CIDADANIA JUDICIÁRIA 43
Parece difícil acreditar que ainda 
nos anos de 1960, muitas normas nos 
EUA, em todos os níveis de governo, 
tratavam os cidadãos negros de ma-
neira prejudicial e racista, impedindo-
-os, inclusive de votar. O mesmo país 
em que a liberdade individual e a de-
fesa da igualdade de oportunidades 
condicionava vigorosamente o desen-
volvimento econômico, acatava leis 
que tentavam conservar a segregação 
racial dos tempos da escravidão.
5.1 OS TRIBUNAIS E 
O DIREITO À SAÚDE 
NOS EUA
Um dos últimos acontecimentos desse 
importante processo de construção de 
novos limites para os direitos fundamen-
tais ocorreu após a aprovação em 2010, 
durante o governo de Barack Obama, 
de uma lei para ampliar o acesso à saúde 
para pessoas com menor renda. Os EUA 
possuem um sistema de saúde com os 
melhores recursos de conhecimento e 
tecnologia, contudo apenas quem pode 
pagar um plano de saúde privado goza 
de acesso a tais benefícios. 
Uma das ideias centrais por traz 
deste sistema é a concepção individu-
alista de que cabe a cada pessoa pagar 
pelos custos de manutenção da sua 
própria saúde. Somente em casos espe-
ciais, como em emergências ou quando 
as pessoas se encontram em situações 
de maior vulnerabilidade, como os ido-
sos, justifi car-se-ia uma atuação estatal 
para fi nanciar tratamento, internações 
etc. Ou seja, para parte importante da 
população dos EUA a saúde não é e não 
deve ser considerada um direito sujeito 
a proteção e garantia governamental.O tema encontra-se cercado de po-
lêmica. Após muitos projetos, diversas 
tentativas de presidentes anteriores, 
conseguiu-se aprovar uma nova lei des-
tinada a ampliar a cobertura dos planos 
de saúde à população com menor ren-
da. Entre muitas mudanças, a nova lei 
permitiu ao governo federal alocar re-
cursos para fi nanciar o acesso aos pla-
nos de saúde às pessoas consideradas 
pobres ou em condições de necessi-
dade especial. Não cabe aqui explicar 
detalhadamente o plano, mas discutir 
como esta questão levou, mais uma vez, 
ao Judiciário a defi nição dos contornos 
de um direito considerados por muitos, 
como essencial a todo ser humano.
Um acalorado debate jurídico ani-
mou todos os EUA em torno da consti-
tucionalidade do chamado Obamacare. 
O caso acabou nos tribunais e exigiu uma 
manifestação da Suprema corte. Em ju-
nho de 2012, os juízes da corte decidiram 
em votação apertada (5 a 4) pela manu-
tenção da lei. O resultado foi comemo-
rado como uma vitória histórica para os 
defensores do reconhecimento do direito 
à saúde. Todavia, a maior parte das dis-
cussões jurídicas passou ao largo deste 
tema, restringindo-se a aspectos como 
a obrigatoriedade de contratação de um 
plano de saúde para todo americano, sob 
pena de multa e o limite de intervenção 
do governo federal no campo da saúde 
privada. Não obstante, iniciou-se uma 
nova fase no país em que se legitima uma 
crescente participação governamental no 
fi nanciamento do acesso à saúde às pes-
soas de menor renda.
6.
HIstÓrIa soCIaL 
E POLÍTICA 
BRASILEIRA: 
CONTEXTO E 
PRESSUPOSTOS PARA 
O NASCIMENTO DO 
NOSSO JUDICIÁRIO
O Brasil tornou-se um país independen-
te em 1822 e, já em 1824, elaborou sua 
própria constituição. De maneira diferen-
te da maioria dos países que passavam 
pelo processo de independência, o Bra-
sil teve uma constituição outorgada, ou 
seja, imposta pelo próprio rei, D. Pedro I. 
Não bastasse o fato atípico de adotarmos 
a monarquia como forma de governo e 
acolhermos como soberano um membro 
da família real de nossa antiga metrópole 
colonial, registramos uma situação estra-
nha do monarca exigir o estabelecimento 
de uma constituição que, em tese, limita-
va e regulava os poderes reais. 
Nas revoluções ocorridas até então, 
a ideia de constituição surgia como pon-
to de partida de um novo Estado em que 
o exercício do poder ocorreria de forma 
contida e planejada. O texto constitucio-
nal serviria para esclarecer e fortalecer 
os limites do poder de quem governa e, 
assim, proteger os cidadãos de eventuais 
abusos. como parte da estratégia para 
evitar tais abusos, optava-se por um siste-
ma de separação das funções do Estado 
44 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE
Para Refl etir
Os Estados Unidos da América é 
considerado por muitos estudiosos, 
um país que vive um regime politi-
co democrático moderno e amplo. 
como você explicaria o motivo de 
um país democrático e próspero 
manter tanta resistência às leis que 
geram intervenção na relações eco-
nômicas e de trabalho ou favorecem 
o fi nanciamento público da saúde?
seguindo a chamada Teoria da Separa-
ção de Poderes de montesquieu9. Por 
meio da separação, haveria a distribuição 
racional de atribuições entre as diversas 
instituições estatais, como forma de evi-
tar que qualquer delas gozasse de poder 
excessivo e pudesse, dessa forma, se ex-
pandir e acabar por oprimir a população.
Em resumo, parece natural que se 
faça uma revolução ou declare a inde-
pendência para lutar contra a opressão e 
se libertar do domínio abusivo do coloni-
zador. No caso brasileiro, fi zemos uma in-
dependência em que o herdeiro do trono 
português assumiu o poder no novo país 
e impôs uma constituição, ou seja, “exi-
giu” a limitação do seu próprio poder.
mas será que essa limitação de 
fato aconteceu? O que se pretendia re-
almente com a criação de uma consti-
tuição para este novo país chamado de 
“Império do Brazil” (1824)?
Para responder a essa pergunta, nos 
remetemos ao relato da revolução liberal 
inglesa e todas as consequências que se 
seguiram. Ao término das revoluções, es-
9 Montesquieu (1689-1755) foi um 
político e escritor francês muito 
conhecido por sua Teoria da 
Separação de Poderes. Inspirado nas 
ideias do liberalismo político e do 
iluminismo, desenvolveu sua teoria 
acerca da necessidade de separar 
as funções do Estado e distribuí-las 
como forma de evitar o 
abuso do poder.
10 Uma das diferenças mais marcantes 
consiste na existência de quatro 
poderes, e não de três: Moderador, 
Executivo, Judicial e Legislativo.
várias previsões, assegurava os direitos 
fundamentais do cidadão. E quais eram 
estes direitos? Os direitos dos cidadãos 
teriam por base a liberdade, a seguran-
ça individual e a propriedade. Dentre 
eles se encontrava que: não poderia 
existir prisão sem ordem de autorida-
de legítima, salvo se em fl agrante; a lei 
seria igual para todos; fi cariam abolidos 
os açoites, a tortura, a marca de ferro 
quente e todas as penas cruéis; as ca-
deias deveriam ser limpas e arejadas e 
os presos separados conforme a nature-
za dos seus crimes; a educação primária 
seria gratuita e assegurada a todos os 
cidadãos; nenhum cidadão seria obri-
gado a fazer ou deixar de fazer alguma 
coisa salvo em virtude de lei.
Ao observarmos esta lista de di-
reitos, percebe-se que eles não se 
diferenciam de muitos daqueles direi-
tos previstos na constituição Federal 
de 1988. Podemos então perguntar 
como é possível conviver por tantos 
anos com a escravidão, com práticas 
violentas e arbitrárias do Estado, com 
cadeias imundas e lotadas ou com a 
total ausência ou insufi ciência de es-
colas primárias? Isso não seria contra-
ditório ou desmoralizante para quem 
elaborava ou mesmo defendia a im-
portância da constituição? Uma forma 
de responder isso se baseia na ideia de 
que a constituição representaria um 
projeto para transformar e aprimorar 
a nascente nação brasileira. Não ha-
veria contradição, pois o que de fato 
desejávamos era seguir o exemplo das 
grandes potências estrangeiras e ten-
tar imitar o que parecia ser o “ideal de 
civilização e progresso”.
Outro caminho, contudo, mostra-se 
mais duro e não inteiramente incompa-
tível com a ideia anterior: a constituição 
protege apenas aqueles considerados 
cidadãos. E que eram os cidadãos? Se 
excluíssemos os negros e escravos do 
status de cidadão, estes não poderiam 
invocar a proteção constitucional. O 
pecialmente da Independência dos EUA 
e da Revolução Francesa, prevaleceu a 
ideia de que seria necessário lançar os pi-
lares para a criação de um novo Estado, 
fundado em bases racionais e científi cas 
e orientado para a proteção e realização 
dos direitos naturais dos homens. Os re-
volucionários acreditavam que a legitimi-
dade de sua luta derivava diretamente da 
necessidade de restabelecer o respeito 
aos direitos essenciais de cada homem. 
Ao se derrubar um rei tirano, mos-
trava-se essencial estabelecer um novo 
modelo de organização das instituições 
do estado, ou seja, “constituir” uma nova 
sociedade politicamente organizada. A 
constituição seria o pressuposto para o 
progresso nacional e para a emancipação 
humana. Sem constituição, não haveria 
país civilizado e livre. Desta maneira, um 
dos pontos centrais para impulsionar este 
desejo de muitos, e do próprio rei, consis-
tia na necessidade de oferecer as bases 
para o que seria um país “civilizado” e que 
almejava o progresso. Essas aspirações 
vinculavam-se, em linhas gerais, às teorias 
liberais muito infl uentes naquela época.
como resultado desta infl uência, 
seguimos com algumas diferenças10, 
os modelos já elaborados por outros 
países, como a França, e elaboramos 
uma constituição que organizava os 
poderes estatais, distribuía funções, 
regulava o exercício do poder e, entre 
CURSO CIDADANIA JUDICIÁRIA 45
mesmo valeria para as mulheres, para os 
estrangeiros e para os homens livres po-
bres. mesmo sem uma exclusão expres-
sa no texto constitucional, verifi cava-se 
quea sociedade brasileira do século XIX 
se estruturava sem utilizar a concepção 
de cidadania como elemento fundante. 
Quando muito, poderíamos falar de uma 
cidadania limitada a pequenos grupos.
7.
a esCraVIDÃo,
JUSTIÇA E DIREITOS
A escravidão é dos elementos mais im-
portantes para compreender a história 
das instituições brasileiras e os proces-
sos de afi rmação e construção dos direi-
tos no Brasil. Não há problema social, 
fragilidade institucional e vício na ação 
estatal que não apresente ligações pró-
ximas ou distantes com os efeitos da 
escravidão na realidade do país.
O uso do braço escravo represen-
tava o núcleo da vida econômica e a 
base de todas as atividades produtivas 
no país. Em geral, associa-se o trabalho 
escravo com a grande lavoura cana-
vieira ou cafeeira, ou ainda ao ciclo do 
ouro, todavia sua utilização dominava 
as atividades domésticas, a construção, 
a limpeza urbana, o transporte de car-
gas e todas as formas de labor braçal 
existentes na nossa sociedade. A con-
vivência e a dependência da escravidão 
permeavam a rotina dos brasileiros e 
deixava pouco espaço para os homens 
livres pobres. 
Essa presença tão intensa em ativi-
dades tão diversas implicava na necessi-
dade brutal de vigiar e controlar de ma-
neira constante, uma enorme população 
negra que circulava pelos campos ou 
pela cidade em razão do seu trabalho. 
Ao contrário do que se pode imaginar, 
os negros não estavam sempre acorren-
tados ou amarrados. Suas amarras mais 
importantes eram pouco visíveis, porém 
poderosas. construímos, assim, uma so-
ciedade de vigilância e controle sobre os 
escravos (e sobre os pobres em geral), 
em que a punição diária reproduzia e re-
forçava os papéis sociais esperados para 
estas populações. A desigualdade e a 
violência criaram marcas permanentes 
na maneira como as pessoas e o Estado 
agem sobre as populações pobres, em 
particular sobre os negros.
Vivíamos (ou talvez ainda vivamos) 
com a necessidade constante de negar 
os sentidos de igualdade, liberdade e 
proteção aos direitos idealmente pro-
jetados nas doutrinas jurídicas e nos 
textos constitucionais. Nessa oscilação 
entre o desejo de se transformar em 
país próspero e preservar as estruturas 
de manutenção da sociedade escravo-
crata, optamos, com frequência, pela 
segunda opção. E o Estado brasileiro 
se organizava também segundo estas 
necessidades e opções. Justiça e Polí-
cia, Legislativo ou Executivo, agiam no 
século XIX, segundo as condicionantes 
da conservação da escravidão.
mesmo com a abolição da escravi-
dão, a preocupação com o controle so-
bre negros e pobres continuou. No pro-
cesso de transição para a introdução 
do trabalho livre, o país passou mais 
de trinta anos criando novas leis, refor-
mando o Judiciário e a Polícia e cami-
nhando rumo à abolição em pequenos 
passos. A preocupação mais presente 
advinha do temor da perda do controle 
sobre os negros, que poderiam se re-
voltar, tomar as cidades ou se recusar 
completamente a trabalhar. 
A partir de 1850, regulamentaram-
-se de maneira mais cuidadosa os novos 
contratos de prestação de serviço dos 
homens livres, tentou-se por meio da 
legislação evitar o acesso à terra como 
forma de forçar as pessoas a trabalhar 
nas fazendas e assegurou-se a preser-
vação de formas violentas e arbitrárias 
de controle sobre negros e homens li-
vres pobres, conservando uma quase 
imunidade das polícias em relação aos 
controles judiciais.
7.1 CLIENTELISMO E OS 
OBSTÁCULOS PARA UMA 
CULTURA DE DIREITOS
A chegada da República e, as décadas 
que se seguiram, não foram sufi cientes 
para afastar o temor das revoltas e da 
perda de controle sobre os trabalhado-
res pobres. As formas de repressão antes 
desenhadas para atuar sobre escravos 
negros expandiram-se para formas mais 
genéricas de combate ao ócio. crimi-
nalizava-se e punia-se a mendicância, a 
chamada vadiagem e muitas espécies 
de agrupamentos populares para o lazer 
ou para manifestação cultural. A capoei-
ra, hoje vista com grande manifestação 
de nossa cultura, era designada por mui-
tas décadas como uma atividade crimi-
nosa, reprimida com vigor e constância 
pela polícia e pela justiça.
A divisão social e econômica entre 
escravos negros e proprietários deixava 
pouco espaço para os homens livres po-
bres (brancos ou negros) exercerem ati-
vidades remuneradas ou obterem algu-
ma forma de rendimento. A repressão 
e a violência exigidas pela manutenção 
da segregação racial da escravidão pro-
duziam refl exos também sobre os po-
bres que não fossem escravos. 
A sobrevivência nesta sociedade de-
pendia da capacidade de se inserir sob a 
proteção de grupos ou pessoas mais ricas 
e poderosas, de se submeter a formas de 
trabalho subordinado que não interferis-
sem na maneira como se organizava a 
produção da grande lavoura exportadora 
e de colaborar com um sistema de trocas 
clientelistas que regia o funcionamento 
de todas as esferas de governo.
46 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE
Os principais cargos do Estado bra-
sileiro nascido com independência eram 
ocupados por um grupo relativamente 
pequeno de pessoas, na sua maioria, 
oriundos das faculdades de Direito e 
nascidos na elite econômica e política, 
que atuava desde o período colonial. A 
prosperidade econômica e o predomí-
nio político sobre a atuação estatal an-
davam juntos. Proprietários de terra ou 
comerciantes almejavam alimentar boas 
relações com os funcionários do Estado 
e o faziam por meio de casamentos, ami-
zade, trocas de favores ou simples cor-
rupção. Na maioria das vezes, este siste-
ma de troca e favorecimento, conhecido 
como clientelismo, não gerava qualquer 
tipo de indignação pública. 
Não havia uma expectativa geral de 
um Estado que agisse de maneira igua-
litária sobre as pessoas e viabilizasse 
uma aplicação rígida da lei. O desejo e 
a aspiração dos indivíduos consistia em 
gozar de privilégios, de receber trata-
mento diferenciado, contar com bene-
fícios, favores e rendimentos especiais. 
Assim, o caminho para alcançar algum 
tipo de serviço público era se inserir 
nesta rede de proteções e favores. José 
murilo de carvalho (2002) exemplifi ca 
bem esta situação com uma frase ainda 
usada em tom de brincadeira até hoje: 
“aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.
Ao contrário do que se poderia 
imaginar, dentro de um projeto de 
Estado em moldes liberais, a lei não 
é vista como um instrumento de pro-
teção dos indivíduos contra abusos. O 
tratamento dentro da lei demonstra o 
oposto: a perseguição pelos inimigos, 
a ausência de amizades poderosas e o 
desprestígio. Neste ambiente, as lutas 
das pessoas por uma vida melhor aca-
ba não se realizando por intermédio de 
uma busca por direitos ou pela conver-
são em lei de demandas e interesses. 
A via mais rápida para obtenção da sa-
tisfação de interesses e necessidades 
imediatas era a inserção na rede de 
proteção criada por trocas de favores 
e amizades. Um bom emprego, uma 
vaga na escola, uma autorização para 
construir ou produzir dependiam sem-
pre de amizade e favorecimento e não 
do cumprimento da legislação.
Podemos então perguntar: como 
essa estrutura se mantinha se existiam 
eleições periódicas? A mesma dinâmica 
contaminava o processo eleitoral. No sé-
culo XIX, as eleições eram baseadas em 
critérios de renda. Somente pessoas ca-
pazes de comprovar uma determinada 
renda poderiam participar da votação. 
Os critérios não eram muito elevados e 
propiciavam uma participação relativa-
mente alta. Todavia, se considerarmos 
que escravos, mulheres, crianças e pes-
soas com renda muito baixa não partici-
pavam, restava um percentual de menos 
de 10% da população (este número varia 
ao longo das décadas do século XIX).
O alistamento eleitoral, o percurso 
até os locais de votação e a indicação do 
voto ocorria de maneira sempre tensa, 
violenta e sujeita a todo tipo de fraude. 
O voto era aberto e todos sabiam em 
quem cada um votava. Nesse contexto, 
o ato de votar signifi cava o momento 
de provar e reafirmar as lealdades com 
os grupos e pessoas no poder. mesmo 
conhecendo das fraudes, desconfi ando 
dos resultados e sujeitando-se a vio-
lências e represálias, o eleitor precisava 
passar por isso para legitimar seus padri-
nhos políticos. As eleições, assim, pou-
co expressavam uma manifestação clara 
dos interesses de grupos organizados 
ansiosos em ver seus projetos represen-
tados pelo legislador. Votar representava 
uma retribuição de favores e o desejo de 
gozar também de privilégios e proteção. 
Quebrar este ciclo não era tarefa fá-
cil, não importava em que posição social 
se encontrasse. Ricos e pobres assumi-
ram um risco pessoal enorme ao tentar 
romper com o clientelismo, pois todas as 
estruturas do Estado funcionavam segun-
do a lógica da troca e do favorecimento.
8.
reNoVaNDo
O PAPEL DA JUSTIÇA
Estamos falando aqui do século XIX, 
mas ao ouvir estes relatos sentimos uma 
sensação estranha de que muito desta 
forma de agir continua ainda muito pre-
sente em nossas vidas. De maneira muito 
simplifi cada, podemos dizer que um dos 
grandes pressupostos da criação de uma 
nova ordem jurídica e política, baseada 
numa constituição, consiste no desejo 
de limitar os abusos realizados pelo Esta-
do e projetar um modelo de intervenção 
estatal sobre a vida das pessoas baseado 
na lei. Em outras palavras, signifi ca espe-
rar que os direitos reconhecidos na lei ou 
na constituição sejam aplicados de ma-
neira igualitária sobre os cidadãos.
Não obstante, um dos maiores de-
safi os da sociedade e do Estado bra-
sileiro, no século XX e XXI, consiste 
exatamente em superar esse legado e 
redefi nir os marcos que guiam a atua-
ção na proteção e efetivação dos direi-
tos do cidadão. 
Para o Judiciário, esta tarefa mos-
trava-se extremamente difícil, pois não 
se pode pensar sua atuação de manei-
ra distinta do conjunto do sistema polí-
tico, da escravidão e da estrutura eco-
nômica. A Justiça brasileira, do século 
XIX e boa parte do século XX desem-
penhava função essencial na manuten-
CURSO CIDADANIA JUDICIÁRIA 47
sÍNtese Do 
FasCÍCuLo
As grandes revoluções liberais, como a 
Revolução Gloriosa Inglesa, Indepen-
dência dos EUA e Revolução France-
sa, transformaram as relações entre os 
indivíduos e o Estado e redefi niram os 
principais elementos da sua constru-
ção após o século XVII. As revoluções 
aconteceram num cenário de conso-
lidação da economia capitalista e de 
valorização dos direitos associados à li-
berdade individual. Partiu-se de um Es-
tado centrado na proteção dos direitos 
à liberdade, à propriedade e à segu-
rança para, gradualmente, incorporar 
novos direitos, como saúde e educa-
ção, às leis e constituição e ao campo 
de proteção estatal. 
No Brasil, o projeto de construção 
de um país independente baseou-se, 
no plano jurídico, em modelos euro-
peus de reconhecimento do direito à 
liberdade e nas possibilidades de alcan-
çar o progresso por meio de uma nova 
ordem constitucional. Este projeto teó-
rico conviveu com as peculiaridades de 
uma economia e sociedade baseadas 
no trabalho escravo, na segregação e 
vigilância dos mais pobres e na orienta-
ção da ação do Estado por um sistema 
de trocas clientelistas. Neste cenário, as 
aspirações de construção de uma jus-
tiça apta a desenvolver uma cultura de 
direito aplicados igualitariamente aos 
cidadãos não pôde prosperar. 
Somente com a gradual afi rmação 
histórica das condições de independên-
cia e autonomia administrativa do Judi-
ciário passou-se a caminhar mais rapida-
mente para uma renovação da atuação 
do Judiciário e redefi nição do seu papel 
na jovem democracia brasileira.
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Acesso em: 17 de março de 2014.
Curso Cidadania Judiciária 47
ção e reprodução do modelo de fun-
cionamento do Estado pensado num 
cenário de escravidão. Isto signifi cava 
concentrar-se na repressão e controle 
social de pequenos delitos de traba-
lhadores pobres e escravos, dedicar-se 
à proteção da propriedade privada e 
manter uma atuação prudente e cau-
telosa, quando os litígios envolvessem 
membros das elites do país. 
A atuação dentro dos rigores da 
lei para um juiz no século XIX represen-
tava um enorme risco à sua carreira e 
até mesmo à integridade física. Porém, 
sempre recaiu sobre os bacharéis em 
Direito, em especial sobre os magistra-
dos, uma grande expectativa quanto ao 
papel da justiça na reforma e transfor-
mação da sociedade brasileira. 
Por mais que se possa recusar e 
criticar esta perspectiva, em muitos 
momentos depositava-se na Justiça a 
esperança de transformar as práticas 
políticas do país e se instituir uma es-
pécie de “cultura de direitos” desen-
volvida de cima para baixo por inter-
médio das intervenções do Judiciário. 
Em parte, pode ser atribuída a este 
desejo, a opção por entregar ao Judi-
ciário a gestão do processo eleitoral e 
criar a Justiça Eleitoral.
O Judiciário e os magistrados 
sempre tiveram um papel de destaque 
na história nacional, todavia, percor-
remos um longo caminho até se con-
solidar uma justiça que contasse com 
todos os elementos de independência 
e autonomia necessárias a redefi nir o 
seu papel. E é sobre esta justiça que 
se depositam hoje tantas expectativas, 
como a obtenção de vagas nas escolas 
e de leitos em hospitais ou respeito ao 
bom uso dos recursos públicos. As as-
pirações de uma atuação renovadora 
continuam, mas agora há um novo ce-
nário com grande potencial para uma 
atuação capaz de transformar a ideia 
do respeito à lei e de aplicação dos di-
reitos em seu sentido positivo.
CURSO CIDADANIA JUDICIÁRIA 47
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Este fascículo é parte integrante do curso cidadania judiciária da Fundação Demócrito Rocha (FDR) / Universidade Aberta do Nordeste (Uane) isBn 978-85-7529-612-7 
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sobre o autor
Gustavo Feitosa é graduado em Direito 
com mestrado em Sociologia, pela Uni-
versidade Federaldo ceará, e doutora-
do em ciências Sociais pela Universida-
de Estadual de campinas. Atualmente, 
é professor titular do Programa de Pós-
-Graduação em Direito constitucional 
e do centro de ciências Jurídicas da 
Universidade de Fortaleza. É profes-
sor adjunto de Direito Processual civil 
na UFc. É coordenador de pesquisa do 
centro de ciências Jurídicas da Universi-
dade de Fortaleza e editor do periódico 
Pensar: revista de ciências Jurídicas.

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