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RESUMO DO LIVRO “FAZER SOFRER: IMAGENS DO HOMEM E DA SOCIEDADE NO DIREITO PENAL” DE ALEJANDRO ALAGIA - COLEÇÃO PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO CAPÍTULO 01: O MITO DA PENA INEVITÁVEL 1.1. O DIREITO PENAL ARGENTINO MODERNO A base do direito penal, que legitima a cultura punitiva, é no sentido de que é necessário o castigo para controlar a convivência humana. Para corroborar tal afirmativa, podemos citar alguns autores importantes: Sebastían Soler, com a publicação de Tratado de Derecho Penal (1940) influenciou a retomada de entendimentos à cultura jurídica penal argentina, tendo como centro de gravidade o conceito de pena e a idéia retributiva dela, entende que o delito cometido é ato inevitável praticado por um ser inferiorizado. Afirma que o delito é a “pura infração de uma norma que induz ao sofrimento”. Uma ideia de necessidade de existência da pena para que a sociedade exista. Ainda, descreve como primitiva a forma que os selvagens cuidam dos problemas internos pois, segundo o autor, faltava civilidade nas sociedades selvagens. As ideias de Soler foram responsáveis por uma nova fase do direito penal na Argentina. Tal linha de raciocínio, de que o centro do direito penal é a norma de conduta e o castigo, ocupou posição hegemônica na cultura punitiva do estado liberal de direito, pensamento este que vigorou até final do século XX, quando Zaffaroni introduz novas ideias, modificando a cultura punitiva do país a partir daí. Zaffaroni entende como foco do direito penal o poder punitivo, sendo assim, o objetivo deveria ser a busca pela redução do tratamento punitivo irracional, isto pois, o perigo da convivência humana não está no sujeito que comete o delito, e sim na reação do estado ao reprimir tal indivíduo que comete, sendo esta a ideia da criminologia crítica, a qual possuiu investigações com enfoque nos processos de criminalização primário e secundários. Soler é responsável por introduzir na cultura penal, James George Frazer - O Ramo de Ouro -, Lucien Lévy-Bruhl - A Mentalidade Primitiva - e Hans Kelsen - Nature and Society, com o fim de expor sobre a natureza irracional da mente primitiva que era fator de impedimento para a convivência cívica da sociedade. Frazer acreditava que a mente do selvagem/homem primitivo não raciocinava as condutas praticadas como diferentes, sendo assim, o delito praticado por ele não se importava com quem era atingido. Traço este diferente do indivíduo civilizado, o qual conhece a regra de imputação causal e normativa, tornando-se um ser racional. Asúa justifica a pena pública com base na ideia do selvagem irracional e que a sociedade vive uma guerra de todos contra todos, consequência da vingança ilimitada, sendo assim, a pena pública é necessária para garantia da civilização e uma formação social. Para Soler e Asúa, o castigo pelo delito praticado é a condição/necessidade para a existência social. Edmundo Hendler publica obra que coloca fim a tradição penalista de separação entre o irracional selvagem e o racional civilizatório. Franz Boas - The mind of primitive man - ficou em refutar a ideia de separação entre indivíduos superiores e inferiores, destacando que essa ideia de raça era uma forma da cultura ocidental justificar a doutrina racista, a qual divide os indivíduos entre selvagem irracional e homem civilizado. Militando contra o racismo psicologizante. Tal inferiorização se renova com Hans Kelsen, o qual - também - relaciona a pena pública e o progresso civilizatório com o fim da irracionalidade vingativa do selvagem. Escreve a obra Society and nature, chegando às seguintes conclusões (p 25): ‘a) o monopólio estatal da violência que o direito organiza é a resposta inevitável que a sociedade encontra para sair do estado de vingança interminável dos selvagens; b. os selvagens são irracionais porque carecem da ideia de causalidade natural (...) c. os selvagens são animistas: as desgraças - uma morte - são um castigo e a fortuna uma recompensa, do que se deduz que, para os selvagens, os fatos naturais são intencionais; d. a regra de troca que conforma a sociedade primitiva é substituída por uma regra (social) fundamental de retribuição: se um homem é assassinado deve ser vingado, sob a ameaça do castigo sobrenatural, ‘este instinto natural de vingança pode ser observado não apenas entre os primitivos como também entre as criança e os animais.’ ‘ Como o homem primitivo/selvagem não é racional, ele não pensa, logo, comete vários crimes e bobagens. A partir das ideias de Asúa e sob a influência de outros doutrinadores, surge o Manual, posteriormente, sendo publicada sua segunda edição, ocorre que, mesmo assim, não há mudança na mentalidade de que sem castigo aos delinquentes, não há equilíbrio social. 1.2. A FILOSOFIA POLÍTICA CLÁSSICA Este subtópico inicia com: “Mais de 03 séculos antes, Thomas Hobbes não necessitou denegrir os selvagens para justificar a soberania punitiva”. Para ele, a sociedade primitiva está caracterizada pela ausência do poder punitivo do governo, assim, há uma constante guerra de todos contra todos para garantir seus interesses. Ainda, defende que por conta das paixões e afetos, acabam indo pelo caminho da vingança, sendo por esta razão necessária a existência de uma lei comum, justificando a soberania punitiva na ameaça de anarquia. A ideia de juízo negativo do homem primitivo não é contemporâneo, os filósofos gregos se diferenciavam/separavam pela maneira que julgavam a sociedade selvagem. Todavia, concluem que é frequente na cultura ocidental a ideia de surgimento do Estado como consequência do Direito e da soberania punitiva terem diferenciado os homens dos animais que comem uns aos outros. Com a teoria social crítica - marxista e não marxista - houve uma renovação no modo de pensar sobre a soberania punitiva. O surgimento da civilização aconteceu em conjunto com a soberania punitiva, a qual transforma a população em devedor submisso. Lévi-Strauss faz uma distinção importante entre as consideradas sociedades quentes, as quais interiorizam os fatores históricos como forma de impulsionar o desenvolvimento, e as sociedade frias, que são conservadoras. É conhecida como dialética da modernidade/dialética civilizatória a relação entre o progresso da sociedade primitiva com a tragédia social pelo encontro da sociedade com a soberania punitiva. A ‘’desgraça’’ da sociedade primitiva provém pelo fato de ser contra o Estado e o excedente - na ideia de impedir a divisão social -, logo, emergência de necessidade de uma autoridade punitiva. Sendo assim, para que a sociedade conserve sua autonomia, igualdade social e liberdade deve se submeter à guerra; “o de ser sociedades para a guerra”. Além de que, é afirmado que para que a sociedade viva, é necessário o padecimento dos selvagens. Nessa linha, a antropologia política derruba as tentativas de associar a pena entre os selvagens na ideia como de guerra contra todos ou de intervenção em conflito interno, determinando que não há fundamentação para pena pública como progresso civilizatório que torna possível a sociedade humana. 1.3. POR QUE A ANTROPOLOGIA POLÍTICA? O autor apresenta no decorrer do presente subtópico uma afirmativa que resume a ideia apresentada (p 37): As sociedades primitivas têm a história como todas as outras, mas, diferentemente do que acontece entre nós, onde a civilização é feita para mudar, os selvagens se negam à história e se esforçam por esterilizar em seu interior tudo aquilo que possa constituir o esboço de um devir histórico. Isto é, apesar de determinadas sociedades serem consideradas como primitivas, selvagens e atrasadas, na verdade, constituem formas de vida social plenamente possível. De acordo com os antropólogos, cada sociedade tem seus valores, sendo assim, há outros tipos de vida, valores e objetivos em cada sociedade, não podendo subvalorizá-laspor serem consideradas miseráveis, conforme ensinamento de Lévi- Strauss. Por fim, as sociedades estudadas por antropólogos - contrária a ideia de violência sem fim que o direito penal narra - podem ser consideradas de baixa desordem,“ por serem sociedades igualitárias, regidas pelas regras de troca e unanimidade”. Concepção contrária ao do etnocentrismo antropológico e jurídico. CAPÍTULO 02: SACRIFÍCIO E PENA 2.1. INSTITUIÇÕES PRECURSORAS Em 1889, Tobias Barreto escreveu sobre a relação entre a pena pública e o sacrifício humano, sendo considerado o pioneiro da ideia do castigo como fenômeno irracional da política, isto é, da racionalização impossível do castigo estatal. Ele explica que primitivamente a pena e o sacrifício humano eram tratados como a mesma coisa; sinônimos, por tal razão, a pesquisa sobre a origem do direito de punir deve ser com base nesse sacrifício. Ainda, diz que a ideia de tratamento de pena e sacrifício como as mesmas coisas encontra-se presente na execução das penas até hoje. Ademais, assim como Post, considera o sacrifício como sentimento, de forma mais específica, o sentimento da agressão vingativa, sendo, por isso, infrutífero os caminhos que tentavam racionalizar a pena. Apesar disso, Barreto entendia como necessário o castigo para a existência da sociedade. Concluiu que, a essência da punição é sacrificar o indivíduo para o bem da comunidade social, sendo o grau da crueldade ligado ao grau de civilização da daquela comunidade. Joseph de Maistre, devoto fervoroso, afirma que “no universo humano não parece dominar senão a violência sacrificial”, sendo ele responsável por demonstrar a relação existente entre pena pública e o tratamento sacrificial, descobrindo que este possui uma essência psicológica, tendo sua origem nas profundezas da natureza humana. É adotado em todo o mundo a ideia de que o delito praticado só pode ser perdoado/pago com o sacrifício e sangue do culpado, sendo que ocorre uma seletividade quanto ao uso da violência extrema, chamada de ‘dogma da reversibilidade’, substituindo os verdadeiros culpados da crise da ordem social por outros, normalmente grupos vulneráveis. A substituição antiga oferecia o sangue de uma animal como forma de ‘alma substituída’, com o fim de evitar que a violência punitiva atingisse a vida de toda a comunidade, isto é, o sacrifício operária uma purificação, perdoando os crimes e gerando um ressarcimento espiritual, por exemplo, pode-se citar a legislação de Moisés. De acordo com Maistre, os homens passaram a acreditar na eficácia dos sacrifício humanos, podemos afirmar que as primeiras vítimas humanas do sacrifício foram os criminosos, ou seja, aqueles indivíduos condenados pela lei, situação está agradável à divindade, a qual é o Deus colérico em que as pessoas acreditam e que precisam oferecer o sacrifício como meio de satisfazer sua perigosa violência. O indivíduo criminoso sacrificado representa tanto o mal - por ter cometido o desvio - como bem - pois tem o fim de gozo dos homens e deuses. Conclui, ainda, que por trás da ideia de eficiência do sacrifício, há a degradação do homem e sua perversidade original. Sabe-se que os gauleses pagãos, por motivo de doença ou guerra, sacrificavam homens como forma de aplacar os deuses e de redimir a vida de outro homem. Ocorre que, quando inexistia culpados para serem sacrificados, não hesitavam em matar inocentes, sendo tais sacrifícios convertidos em instituições públicas e legais. Após o surgimento do cristianismo, e continuando a linha de raciocínio acima, René Girard afirma que a religião permite que a violência originária do homem seja desviada para um bode expiatório, evitando-se a violência de todos contra todos. Assim, o sacrifício é uma solução para o soberano castigar os criminosos, resultando da necessidade do soberano em impor castigos à outros homens por força da justiça humana. O tratamento punitivo sacrificial religioso é registrado/mantido até o século XX. A obra de Georges Bataille especula sobre a relação existente entre o potlach indígena com as vítimas no sacrifício azteca, concluindo que a destruição dos excedentes - o sacrifício - era um gasto improdutivo para uma sociedade voltada para a produção. Afirmando que os aztecas objetivavam com a guerra o consumo do inimigo e não para conquista de territórios. Por fim, deve-se entender, de acordo com os ensinamentos de Batille, que o tratamento punitivo está associado à destruição do que é inútil, com o fim de que esse excedente improdutivo faça bem à sociedade. Ocorre que, no caso da sociedade de Estado, o sacrifício não é de algo inútil, mas do que não tem mais serventia para a ordem social. 2.2. O ENCONTRO COM OS SELVAGENS Mudou-se a mentalidade sobre a sociedade selvagem, entendendo que se trata de uma ordem social diferente da sociedade do Estado, nem pior nem melhor. Qual justificativa para se entender que a vingança pública é um progresso em relação à vingança privada e que, os crimes deixados impunes ameaçam a sociedade? Isto é, percebe-se que a impunidade em determinados crimes considerados graves não faz com que exista um risco da dissolução da sociedade. Tal perspectiva etnográfica, permite compreender que não pode ser associado o delito ou sua impunidade como uma ameaça para a ordem social. Na verdade, para as sociedades selvagens, foi o contato com a sociedade punitiva que começou a destruição de sua ordem social. Ademais, deve-se entender que um observador de uma sociedade com usos diferentes da sua costuma entender como estranhos tais usos. No tocante às tentativas de reprimir uma ameaça, a sociedade primitiva adota a antropofagia contra inimigos externos, enquanto a sociedade de Estado, em regra, a antropoemia contra inimigos internos. Ocorre que, ao considerarmos o massacre estatal por meio do tratamento punitivo e da penalidade moderna da prisão, a sociedade moderna acaba por combinar a antropofagia com a antropoemia. 2.3. PAIXÃO DESENFREADA OU INSTITUIÇÃO SOCIAL? Ao analisar as doutrinas das penas e delitos, concluímos a impossibilidade de desvincular a ideia de religião que as cercam. Sendo que o estudo da religião acaba encaminhando para o estudo sobre o sacrifício. Marcel Mauss e Henri Hubert, discípulos de Durkheim, dizem que o mito não é uma fantasia da imaginação primitiva, mas “tão reais, práticos e verossímeis quanto às crenças e práticas punitivas modernas.” Durkheim afirmava que a diferença entre a pena na sociedade selvagem e na moderna é pelo fato de nesta ter a existência de uma reação passional melhor dirigida, sendo que, em ambas as sociedades existe uma ilusão necessária. O sacrifício, de acordo com Robertson Smith, tem como fim a união de um grupo e sua purificação, união esta através da “expiação/exorcismo da culpa e maldade”. Assim, a ideia retribuição penal na sociedade moderna e do sacrifício do pensamento selvagem se assemelham. Maus e Hubert entendem o sacrifício como sendo uma instituição social, o qual qualifica o grupo, como “a sociedade, a pátria, a propriedade, o trabalho, a pessoa humana, e também a vítima sacrificial”. 2.3. BENEFÍCIO E AMBIVALÊNCIA O benefício do sacrifício para o sacrificante está na destruição da vítima, associado a um aspecto criminoso. O sacrifício está relacionado nas ideias entre o crime e o sagrado, tal dualidade se justifica pois ao mesmo tempo que a vítima sacrificada representa o mal, é o bode expiatório para o garantir o bem da sociedade. Importante ter em mente que o fato de o castigo se basear em ilusões e fantasmas, isto é, crenças falsas, não significa que não causará efeitos negativos e sofrimento nos indivíduos e sociedade. CAPÍTULO 03: A FILOSOFIA DA VIOLÊNCIA 3.1. A AGRESSÃO MIMÉTICA Pelos olhos da criminologia, costuma-se entender que o indivíduo sacrificado é tanto a vítima da sociedadequanto criminoso, surgindo o termo ‘co-culpabilidade entre o ato criminoso e a sociedade’. Acontece que tanto o indivíduo sacrificado quanto ao sujeito a pena pública comum estão sempre submissos ao poder punitivo que escolhe sempre o grupo vulnerável da sociedade. Foi criada uma política em que para o bem estar da civilização alguém deve ser sacrificado, este alguém comumente pertencente ao grupo vulnerável e, por vezes, inocentes, tratando-se de uma tentativa de enganar a violência existente na sociedade. O historiador René Girard conclui dos seus estudos que os sacrifícios e sistemas penais resultam de uma tentativa de dominar a agressão injustificada na sociedade, tendo como causa um “desejo mimético”, em que um indivíduo almeja determinado objeto pelo fato do seu rival o almejar. Sendo assim, a sociedade escolhe um alvo, uma vítima para destinar a culpa da violência em que a sociedade vive, violência esta que destrói a ordem social da comunidade, vendo no sacrifício/sistema penal a maneira de sacrificar tal alvo e a - suposta - violência praticada contra a sociedade. Ocorre que tal alvo sempre é um indivíduo que pode ser sacrificado na sociedade em prol do bem estar da comunidade. Logo, o uso da violência contra esse alvo é uma maneira de dar uma resposta fim para sociedade, evitando uma guerra de todos contra todos, isto é, uma violência indeterminável, ou melhor, uma anarquia assassina. Ao contrário dos antropólogos que afirmam que a pena não responde a nada real, Girard entende que as falsas crenças possuem importante papel na sociedade, tendo em vista que o que importa é a comunidade acreditar em tal crença. Todavia, o filósofo continua a entender como justificativa da pena/sacrifício a evitação de uma anarquia assassina. Pode-se entender que os castigos e leis são para restaurar a ordem da sociedade, sendo o indivíduo oferecido por tal fim à sociedade, sendo esta a função real: proteger toda a comunidade da sua violência. No tocante às vítimas sacrificadas, precisam ter as condições de vulnerabilidade quanto ao poder punitivo, normalmente “delinquentes, prisioneiros de guerra, escravos, crianças, adolescentes solteiros, tarados, dejetos da sociedade”, ou seja, indivíduos que pouco pertencem a sociedade, logo, sua morte não possui risco de gerar revolta por ninguém - parentes ou aliados. René Girard vê no sacrifício uma forma de diminuir as violências na sociedade e a vingança de sangue, situação esta que ameaça a ordem na sociedade. Entendendo que a vingança pública por meio de um sistema judicial possuiria o fim de afastar a ameaça à vingança privada. Apesar do pensamento comum aos penalistas de que a pena pública tem como fim evitar uma violência privada interminável, não há comprovação de que o formato de vingança das sociedades primitivas - ou seja, uma vingança privada interminável - é sinônimo de uma sociedade inexistente e/ou ameaçada. Outro fator que exerce forte influência no entendimento de violência e seu tratamento é a religião, a qual comumente apazigua, domestica, regula, ordena e canaliza a violência legitimada da pena pública - por legitimação da religião - com o fim de ser utilizada contra a violência denominada de intolerável. Entendendo Girard que os institutos que podem frear a violência interminável é pelo sacrifício, composição e sistema judicial, também que os sacrificados são escolhidos conforme um estereótipo de perseguição, por meio de seus traços vitimados. De forma complementar, importante citar (p. 62): De todo modo, a natureza seletiva do poder punitivo obscurece qualquer ilusão de progresso, não se priva de matar um grande número de inocentes nem de escolher culpados entre os mais vulneráveis. Nem todo criminoso é castigado nem o castigo pressupõe criminosos, como o genocídio demonstra. O mecanismo de violência recíproca existente em sociedade como dos índios cainguangue (botocudos) do estado de Santa Catarina, imaginam que ao destruir uma vítima que pode propiciar um ciclo de violência eles estarão se livrando do mal, mesmo que na prática tal afirmação não tenha eficácia, há uma “ilusão e engano persistentes na aventura humana, que dissimula, para o homem, a verdade de sua violência”, podendo associar o sacrifício ao medo massivo. O filósofo Roberto Espósito afirma que o sacrifício está ligado a conservação da sociedade, tendo como sua origem o medo, logo, não haveria a soberania punitiva sem o medo. Na mesma linha de raciocínio já exposta por Girard, Espósito afirma que a sociedade sobrevive à violência existente quando é desviada para um inimigo que atraia sua atenção. Como se o poder punitivo direcionasse a culpa da violência para um inimigo sacrificável e, assim, a ordem da sociedade permaneceria pois acreditaria que o culpado foi punido. 3.2. SACRIFICAR Nas sociedades selvagens em que o poder do chefe seja coercitivo, com o fim de obrigar a comunidade a fazer o que ele deseja, não podendo ser utilizado o poder do chefe para fins pessoais e sim em prol da comunidade, sendo que a vingança e os acertos pacíficos são assuntos da comunidade como um todo. Pode-se afirmar que não há uma evolução entre a vingança privada à pública que o homem branco tende a afirmar, com o discurso de que uma sociedade precisa de uma autoridade sacrificial para existir, pois sem ela “os homens se comem uns aos outros”. Acontece que, assim como nas sociedades primitivas, na sociedade moderna a vingança sacrificial tem o fim de garantir a ordem e mal-estar gerado na sociedade, ocorre que os conflitos em que o poder punitivo da sociedade de estado recairá, comumente são tratados por meio da reparação pelos primitivos. Nesta linha, podemos fazer determinadas conexões: a vingança pública não tem sua origem na vingança privada, pois estas não têm relação. A afirmação de que as sociedades primitivas vivem ameaça de uma violência interminável é uma atribuição para a autoridade punitiva estatal pegar para si o monopólio da violência legítima pública, quando, na verdade, os conflitos tratados pela soberania punitiva do Estado, são tratados por meio de acordos pacíficos pelos selvagens, entretanto não deixando de ser um sacrifício, sendo assim, uma vingança. Entre tribos selvagens, como dos guayaqui, o sacrifício - ‘crime’ - cometido era a resposta como parte de um ritual de purificação para deixar em ordem a comunidade, já que o sacrifício liberaria a alma do corpo e, assim, não seria capaz de fazer mal à sociedade, sendo praticado em prol do direito à vida. Pois bem, houve uma substituição entre a reparação para a pena por sacrifício na sociedade de classes somado com a afirmação dos penalistas modernos da necessidade de um poder punitivo sacrificial pelo fato dos humanos serem assassinos potenciais. Pode-se concluir que a sociedade não entra em desordem com o cometimento de um delito nem se restaura com a aplicação de uma pena pública bem como a sociedade primitiva não foi destruída por conta de uma vingança interminável, e sim pela sociedade dos brancos. Não sendo fatores que afetam a existência da sociedade o fato da punição de uma minoria que comete delitos ou a existência de um poder punitivo legítimo, mas sim quando alteram as instituições e relações sociais existentes na sociedade, por meio das normas que as regulam e o regime da autoridade. 3.3. ESQUECER A ORIGEM Na doutrina política moderna - teoria política e jurídica-, percebe-se uma tentativa de esquecer/apagar/forjar/invisibilizar a real origem da violência original/fundadora e da sociedade, por exemplo, com a ideia do contrato social. Tal mito da origem acaba sendo a cada geração mais censurado. Tal ocultação da violência original na sociedade estatal tem por fim esconder a realidade e externar uma imagem pacificadora do poder constituinte do Estado moderno. 3.4. VENDETTA INTERMINÁVEL?Pertinente incluir que, a palavra “Vendetta”, de acordo com dicionário priberam, significa “Espírito de hostilidade entre famílias e clãs inimigos, com .atos de vingança recíproca, geralmente criminosos, como sucede na Córsega e em algumas regiões de Itália.” Ao analisar a descrição de Descola, percebe-se que, ao contrário do que descreve a visão antropológica do direito penal moderno, a vendeta primitiva ocorre como exceção, isto é, quando o acordo entre os envolvidos do crime não logra êxito. Corroborando, contrário do pensamento dos penalistas da necessidade da pena pública para a existência da sociedade, o perigo do desaparecimento da sociedade selvagem está justamente na pressão exercida pela civilização punitiva. Podemos citar os jíbaros, em que há a troca de bens e a vendetta/troca de mortos - ambos autoexplicavéis -, sendo que nesta pode o matador pagar com sua vida ou com a entrega de um fusil como forma de compensação. Quando não há êxito na compensação é que abre espaço para a vendeta/meset/dano/estrago e, consequentemente, uma tentativa de comparação com a ocorrência de guerra de todos contra todos. Contudo, apesar de eventuais diferenças, estas desaparecem quando percebemos que tanto a vendetta como a guerra resultam das trocas ou alianças não sucedidas. Tanto para algumas tribos indígenas, tidas como selvagens, quanto para a pena civilizada, tem o fim de destruir ou fazer sofrer alguém para o bem da sociedade. Assim, se há uma exclusão do massacre estatal daquele considerado o inimigo como forma de tratamento penal extremo, conclui-se que o único avanço civilizatório está na delimitação do conceito de delito como forma de determinar as condições do tratamento punitivo. Os antropólogos da primeira metade do século XX estavam preocupados com a forma que as sociedades resolviam seus conflitos, acreditando que só conseguiriam existir com uma autoridade que impõe castigos, impostos, serviços e trabalhos. Existindo uma opinião unânime de que o governo é aquele que oferece proteção à sociedade da desordem e dos inimigos, com base em normas de violência, a qual é empregada de maneira centralizada. O pensamento acima se mantém de maneira pacífica até a publicação do livro Sistemas políticos africanos, que questiona a possibilidade de existir uma sociedade com conflitos internos quando carente de regras de coerção. Ocorre que, as sociedades que não possuem normas de coerção modernas - como juízes e polícias - utilizam outros meios para a ordem e paz da comunidade. Por exemplo, pode-se citar os nuer e os tallensi de Gana - conhecidos como ‘anarquia ordenada’ - que demonstram o início do fim o mito de que uma sociedade só existe caso tenha a coerção/poder punitivo. Para os autores africanos, “é evidente à simples observação que a ideia de anarquia para os povos sem lei penal é um grandioso mito da filosofia política clássica, tributária de uma antropologia de cronistas e descobridores.” Sendo como nas tribos vigorar o sistema de compensação aos crimes cometidos, maneiras de atuar quando determinado crime é cometido, sendo necessário uma reação na vítima, nos parentes e no acusado ou, ainda, na tribo. Tal reação tem como fim a compensação, por exemplo, no caso dos nuer, em que vigora o princípio da reparação à vítima e negociação como regra para colocar fim ao agravo. Por isso, a nova antropologia chama as sociedades sem lei penal como ‘caos aparente’ ou ‘anarquia ordenada’, sendo plenamente possível. Podendo ter, em determinadas tribos, um mediador profissional para realizar o rito de reconciliação da disputa; os mais velhos, utilizando sua influência, buscam o acordo. Há, ainda, outros povos nilóticos - como os dinka, os anuak e os shilluk - que preferem que, na ocorrência de homicídios, os envolvidos busquem a reparação por meio pacífico da mediação e pagamento de uma compensação. Diante de conflitos busca o chefe como a figura do mediador e não como um juiz. Por meio do Ensaio sobre o dom, Marcel Mauss, contribui para a substituição do pensamento de guerra de todos contra todos, para a fantasia da troca de todos com todos, como se fosse um pacto social e político primitivo, com o fim de unificar o que está isolado em benefício de todos e, assim, acabar com a luta permanente. Para o autor acima, para a troca - ou dom - não necessita de um 3º superior nem retira a autonomia dos indivíduos envolvidos, diferentemente do que ocorre com o surgimento do Estado, o qual transforma os indivíduos em súditos dependentes e vulneráveis, principalmente em relação ao poder punitivo. “A história da civilização é a história do progresso da desproteção humana.” Por fim, consegue-se afirmar - por mais que difícil de acreditar, por alguns - que a fome e o poder punitivo aumentaram significativamente com o processo e desenvolvimento civilizatório, por mais que seja recorrente associar à sociedade primitiva uma imagem de guerra de todos contra todos, de inclinação natural à agressão. Sahlins foi o primeiro a defender tal raciocínio, demonstrando que os indivíduos da sociedade primitiva viviam e usufruíam de um bem estar maior do que um operário inglês na Revolução Industrial. Posteriormente, foi seguido por outros etnólogos. CAPÍTULO 04: A SERVIDÃO PUNITIVA 4.1. SOCIEDADE CONTRA ESTADO A obra de Pierre Clastres traz a ideia de que a sociedade selvagem é ‘um universo intencionalmente anti punitivo’, apenas mais tarde que a antropologia percebeu que tal sociedade poderia ser analisada sob uma perspectiva de política antiestatal. Diferentemente da sociedade - dita como - civilizada, não existe a figura do inimigo interno. O autor acima bem como outros que o antecederam, estavam preocupados em entender se o poder punitivo seria um fato natural ou cultural, isto é, seria a desventura humana algo evitável ou inevitável? Como já exposto em tópicos anteriores, na sociedade selvagem, diferentemente da sociedade civilizada, o objetivo é garantir a igualdade na sociedade por meio de normas de reparação para o interior do grupo, já no caso de conflitos com estranhos, poderia - e provavelmente era o que aconteceria - ter a guerra. Outra contribuição importante de Clastres é a afirmação de que pode existir poder em sociedades ausentes de autoridade punitiva, isto pois, a coerção e a subordinação não são a essência do poder político em todas as sociedades, evidente ao observarmos que enquanto na sociedade estatal há um poder coercitivo e violento, com a presença de uma subordinação hierárquica e relação ordem obediência, nas sociedades indígenas americanos não há uma ordem dada por uma superior que deve ser obedecida, salvo em casos excepcionais como em guerras. A motivação, de acordo com Clastres, de entender o poder político como descrito acima como algo naturalizado e o correto na cultura etnocêntrica está na ideia de evolucionismo, em que estabelece a crença que o surgimento do poder punitivo foi responsável por desalojar a vingança interminável. De forma a corroborar, a sociologia tradicional entende que (p 93): A selvageria é a infância da civilização, assim como a vingança privada é uma etapa da vingança pública. A vingança primitiva, uma travessura cruel de uma idade irracional da história humana. A anarquia primordial foi superada para que o homem ingresse em um modo mais humano de viver. Acontece que a política dos selvagens é aquela contra a emergência punitiva, sendo descrito pelos primeiros viajantes do Brasil que o chefe indígena era aquele que tinha uma quase falta de autoridade, residindo seu poder não na força punitiva, mas sim em outras qualidades, sendo responsável por apaziguar a sociedade e reconciliar os envolvidos no litígio, salvo nos casos de guerra, isto é, situações excepcionais de perigo exterior. Podemos dizer que a política dos selvagens é no sentido de retardar a erupção dapolítica punitiva, ou seja, as sociedades primitivas são contra o Estado. Enquanto a sociedades primitivas, com base na igualdade, trabalha para viver, nas sociedades estatais vive para trabalhar, ocorrendo tal inversão pois o poder punitivo se norteia pela divisão social do trabalho, divisão entre dominantes e dominados. Para uma corrente marxista há a afirmação de que, para o surgimento do Estado na sociedade, fez-se necessário que antes ocorresse uma divisão social em classes, podendo dizer que foi essa ruptura política que colocou as sociedades primitivas em um abismo. Já Clastres diz que não pode ser tal causa da sociedade primitiva ter se tornado sociedade estatal, isto pois, as sociedades primitivas são anti estatais, logo, o surgimento do Estado é algo impossível, existindo outro fato responsável pelo permissão da existência do monopólio estatal, fator este que ainda é um mistério. Apesar disso, Clastres diz que pode se considerar como uma possibilidade da determinação do surgimento do Estado a hipótese demográfica. Já Étienne de La Boétie, afirma que o homem perdeu sua liberdade por um trágico acidente, em que trocou seu desejo por liberdade por desejo de servidão. Por fim, Montaigne diz que o desejo de servidão significa a degradação do homem, pois é como se fosse um feitiço ou encanto em que o povo quer servir ao soberano. “O amor à lei é a versão mais secularizada do pacto com o diabo. Sempre se obtém algo em troca. Talvez, a ilusão de um benefício de segurança.” 4.2. O COMEÇO DO FIM: OS PANIAGUDOS Começa uma inversão da relação entre chefe e povo, que era de não subordinação nem poder e sim pautada em paz e igualdade, quando ocorre a expansão do governo, não sendo a origem dessa obediência incondicional dos súditos resultante de uma guerra de conquista. Contradizendo, com base em evidência etnológica, o pensamento evolucionista de que os chefes são ‘os germes da sociedade punitiva’. De acordo com Luxu Mair (p 99): (...) a mudança se produz quando se está diante de um líder capaz de manter um corpo permanente de sequazes - os paniagudos -, dos quais ele pode se servir para impor sua vontade e os quais, por sua vez, se identifica mais com a autoridade do que com qualquer outro setor da população. Doravante, todo indivíduo estará submetido a alguma autoridade principal ou delegada, e os que a exercem castigarão a desobediência das disposições, julgarão pleitos no território de sua jurisdição, coletarão impostos e obrigarão ao trabalho. Entre os povos carentes de sistema estatal existe uma modalidade - nada comum - de imposição de castigo no caso da existência de delitos e não a aplicação de trocas - com o pagamento de compensações - como forma de limpar tal desvio. Tal prática abre margem para questionar se tal modalidade seria uma noção inicial de direito penal. O texto cita como exemplo o caso do kingol-le kamba, em que a execução de um indivíduo odioso pela sociedade era feito por meio de uma ação coletiva de todos os membros. 4.3. ACORDO E CASTIGO Aqui fala sobre outros povos em que não há uma autoridade como conhecida pela sociedade civilizada. Grupos de caçadores e pastores da Austrália aborígene acreditam ser impossível uma hierarquia, isto pois, “cada indivíduo é o centro do seu próprio universo”. Para os bosquimanos kung, do deserto de Kalahari, o comportamento ruim é julgado pela opinião pública, sendo inadmissível pela sociedade uma tentativa de vingança. Entre os sironos, não há obrigação de seguir o que o chefe faz, todavia, mesmo assim, este deve falar, sendo grande o individualismo desse povo e raros os delitos e castigos. De forma a corroborar tal linha, o padre Le Jeune dizia ‘que toda a autoridade de um chefe reside na ponta de sua língua, porque ele é poderoso na medida em que é eloquente e não será obedecido a menos que agrade aos selvagens’. Sendo os chefes aqueles que possuem a especialidade de interpretar a opinião pública, sendo uma característica de uma chefia sem o poder coercitivo, como nas sociedades modernas. Acontece que, o referido não significa que a força do costume e de uma sociedade igualitária era suficiente para persuadir os indivíduos e evitar a ocorrência de delitos, estes aconteciam e nos selvagens existia uma paixão por violar normas. Todavia, diante de delitos, as regras impostas eram de arbitragem, de troca para pacificar como, por exemplo, os dolos de canções - um meio em que ‘o vencedor é o que ganha o aplauso mais entusiasta e não importa em nenhum tipo de restituição. A reparação é a gratificação pelo prestígio que se obtém’. Apesar de existente o perigo de que tais métodos de retribuição não sejam suficientes para evitar uma disputa em grande escala e grave, nas sociedades primitivas os indivíduos aparentam entender quão prejudicial isso seria para a comunidade, sendo assim, apesar da possibilidade da vingança entre os envolvidos se converter em enfrentamento entre os inimigos, isso raramente termina em batalha sangrenta. Grande influência para essa mentalidade dos indivíduos primitivos está na postura do chefe quem, apesar de ausente de poder punitivo, possui capacidade de falar e persuadir. Algumas habilidades possuem tal capacidade de persuasão tão elevada que, por vezes, conseguem até derramar sinceras lágrimas, ajudando a romper a resistência da parte rebelde. Nas crônicas de aventureiros e descobridores das sociedades primitivas, há inúmeros relatos de crueldade contra aqueles que desagradam ao soberano, acontece que a etnologia da 2ª metade do século XX externou uma espécie de benefício da vontade, demonstrando que os selvagens não praticavam castigos cruéis como os descritos, por exemplo, como enforcar o réu carregado de correntes - cenário que aconteceu na Inglaterra dos Tudor. A nova antropologia, contrária a etiologia dos cronistas e missionários, entende o lugar marginal do castigo nos povos com governos mínimos ou inexistentes, tanto é que questiona sobre o nascimento do direito penal na ideia de tutela da comunidade. Ainda, que a origem do direito penal pode-se dizer que está na generalização de duas instituições primitivas excepcionais do sistema de reparação-estado de vingança, quais sejam, kingolle e sacrifício - nestas toda a sociedade é afetada e, por isso, a lei e/ou soberano respondem com o poder punitivo. O autor traz um parágrafo que resume bastante tudo abordado até o momento e, com o fim de não perder a essência e magnitude, segue citação (p 110): A sociedade de conflito requer instituições que organizem a violência e, paradoxalmente, uma imensa legislação nacional e internacional para castigar o abuso e a matança estatal, ao inventar uma figura desconhecido para o mundo selvagem: o inimigo interno, muito diferente do infrator, inclusive do recalcitrante da sociedade primitiva. Nas sociedades primitivas os meios de vida que definem a relação dos homens entre eles e com a natureza, por isso conhecido como ‘comunismo primitivo’ ou ‘propriedade coletiva’. Não faltando especialistas para o castigo, os quais possui a capacidade de mobilizar a opinião pública em prol do acordo e pacificação mas, também, acaba tendo que encontrar um indivíduo vulnerável e desprezado para sofrer. Isso será aplicado de maneira mais ampla na sociedade civilizada. 4.4. PENA PÚBLICA E DIVISÃO SOCIAL A antropologia surgiu, nas palavras de Michael Smith, como uma reação empírica às ficções da filosofia política, demonstrando, dentre outras coisas, a quebra da ilusão de que uma sociedade só pode existir com um poder punitivo que aplica castigos, tendo em vista que descobriram-se formas de vida em que os conflitos internos são respondidos por meio de regras de troca e reparação, sendo o castigo uma exceção. Ou seja, um verdadeiro contrassenso para a filosofia e direito moderno a existência de “sociedades sem autoridades que não implodemna matança recíproca com a qual a doutrina penal a aterroriza”. Em relação à passagem de uma sociedade igualitária para uma hierárquica pode ter sido por influência da substituição de uma economia com base na reciprocidade para uma com base na redistribuição, capitaneada por um poder de impor e fazer cumprir ordens. Não importando a causa, sabe-se que a nova forma de sociedade estratificada introduz os indivíduos em uma vida social completamente diferente e desconhecida pelos selvagens. Uma sociedade com autoridades punitivas - como policiais e juízes -, isto é, com instituições profissionais com o fim de causar sofrimento quando cometida alguma infração, resultante de um conflito interno estrutural e permanente entre as relações sociais. “Estratificação, Estado, exploração e pena substituem o sistema de troca recíproca, igualdade e reparação”. De modo geral, essa novo formato de sociedade é resultante do fracasso da política selvagem, que objetivava proibir a diferença e a autoridade punitiva do chefe. Todavia, não se pode entender tal passagem de sociedades sob aspecto evolutivo de mudança. 4.5. O FRACASSO DO ANTI-HOBBES SELVAGEM Podemos falar da função do chefe, da guerra e do sacrifício como as instituições que se opõem à constituição do poder primitivo da sociedade selvagem, estando todas interligadas. Ao analisar as crônicas de missionários e etnólogos descrevem que os chefes não podem externar à comunidade seus desejos pessoais por guerras, as quais, em regra, eram excepcionais no caso de inimigo externo, sob pena do chefe ser abandonado pela comunidade. Ocorre que, existiram sociedades selvagens em que a atividade guerreira era exercida constantemente por uma minoria de homens, apesar disso a sociedade continuava indiferente ao ativismo guerreiro. Pode-se dizer que os benefícios da guerra eram melhores, isto pois, “ganhavam” cavalos, prisioneiros, crianças e mulheres, do que a paz, todavia, os homens não poderiam exceder a esfera do prestígio, sob pena de serem distanciados do poder pela própria sociedade. 4.6. A GUERRA Inicia-se falando que enquanto a guerra de todos contra todos é uma ficção, a guerra entre povos e tribos de um mesmo povo não é. Antes da segunda metade do século XX, existia uma tendência da etnografia em considerar que não existia guerra na vida social dos selvagens, contudo, observação diversa a constante das anotações de exploradores e missionários, os quais entendiam que a condição de guerra permanente era a natureza do selvagem. Acontece que a vida dos selvagens é igual a guerra, Clastres também possui a mesma linha de raciocínio, questionando o porquê do silêncio da etnologia recente no tocante às guerras entre os primitivos. Talvez, a ausência se da pelo fato de não mais existirem sociedades primitivas totalmente livres do contato com os brancos. Isto é, não há mais o objeto de estudo para a pesquisa, pois as sociedades já estão em processo de conversão para o deslocamento, destruição e morte. “Essa universalidade da guerra primitiva converteu-se em um pacifismo forçado”. Clastres ainda diz que existem 03 discursos antropológicos sobre a guerra: naturalista (comportamento agressivo pertence à realidade humana), economicista (fundamento na escassez primitiva) e à troca (as trocas econômicas representam guerras potenciais resolvidas pacificamente, enquanto as guerras quando não há êxito nas trocas). Clastres entende que essas explicações fazem com que desapareça a universalidade da guerra primitiva, isto pois, a guerra para ele é a condição de ser do selvagem, representando sua autonomia e liberdade bem como uma das instituições selvagens que impede o surgimento da soberania punitiva. Pensamento contrário ao de Hobbes, que entende que a guerra era um impedimento das trocas e, consequentemente, da existência da sociedade. CAPÍTULO 05: A VULNERABILIDADE SACRIFICIAL 5.1. AVISO DE INCÊNDIO O terceiro processo para a o aumento do alcance da domesticação civilizadora da passagem de uma sociedade primitiva para a de Estado é, principalmente, através da produção de excedentes alimentares, crescimento demográfico e a circunscrição. Sendo que é proporcional o crescimento do excedente alimentar e a densidade da população circunscrita com a capacidade das elites em subordinar e estratificar os trabalhadores especializados. Logo, há um aumento de forma quantitativa e qualitativamente das tensões. A norma penal tratada como regra imperativa advém da passagem da autonomia política dos selvagens para a subordinação humana, tendo as instituições do Estado a seu dispor o monopólio da violência, juízes, exército e polícia tanto para guerras externas como internas. Além disso, em relação aos subordinados, estes perdem a característica de contribuições voluntárias para a de trabalho forçado no campo e pagamento de impostos. De acordo com o texto estudado, tal processo se origina de forma casual em poucos lugares. Com a dinâmica globalizada, há de forma gradual um aumento pela formação de sistema para coação punitiva e manipulação psicológica, na crença de que tais instituições são naturais e necessárias para a existência da sociedade. Houve uma aceitação da servidão pela substituição da segurança e bem estar pela subordinação e trabalho, bem como uma apropriação dos meios de vida e um monopólio da violência. Do mesmo modo que o Estado poder ser utilizado para oprimir como forma de neutralizar e enraizar que o único caminho para a pacificação e bem estar é através do castigo dos infratores vulneráveis também pode ser usado como um recurso de cooperação, para garantir exatamente sua primeira motivação, tendo em vista que os infratores são tratados como uma ameaça à existência humana. Assim, percebe-se que com o surgimento do Estado houve uma significativa perda para o homem, tendo em vista que apenas uma minoria privilegiada passou a desfrutar de liberdades econômicas e políticas, ocorrendo um declínio do mundo para a liberdade à servidão e à escravidão, com uma vida baseada em trabalho forçado, tendo o capitalismo como uma das fontes mais fortes e permanente de conflitos. Ocorre que, entendimento preponderante, a passagem da sociedade igualitária para a primitiva aconteceu apenas em casos particulares, tendo, na maioria dos casos, essa transição entre as chefias distributivas para a formação de Estado acontecido de maneira inconsciente. Da mesma maneira Malcolm Webb pensa, completando que houve o desaparecimento do igualitarismo de forma gradual sem consciência da natureza que tal mudança geraria para a sociedade. Com o fim de permanecer de forma duradoura a dominação e a exploração, foram apresentadas como forma de troca de serviços. A guerra também pode ser tratada como um dos caminhos da queda do homem, pois percebeu-se que melhor do que matar, os inimigos derrotados poderiam ser domesticados, tornando-os escravos ou servos. Ou seja, a guerra também funcionou como uma fonte de trabalho forçado e indivíduos subordinados. Assim, não deve ser menosprezado o papel da guerra na formação do Estado punitivo. Mesmo com o passar de quase 05 mil anos do surgimento da sociedade punitiva, ainda podemos chamar a vida dos trabalhadores pobres como um ‘assassinato social’, nas palavras de Engels, principalmente tendo como base o capitalismo e o desprezo pela ordem social, gerando com o tempo 02 campos: de um lado a burguesia e de outro o proletariado. Além disso, o tratamento punitivo sobre a população é fruto de uma força interna da sociedade, qual seja a divisão entre os que mandam e os que obedecem, necessário - como Foucault diz - “para fazer crer que sem normas de castigo imperarão a anarquia e a vingança de todos contra todos”. Quanto a origem do poder punitivo, Michael Mann em sua obra com base no materialismo histórico, que o desenvolvimento históricomundial das classes sociais permite afirmar que o poder punitivo só representa 0,6% da experiência humana, ou seja, a passagem da sociedade igualitária para a civilização, estratificação e Estado foi rara e aleatória, sendo casos extraordinários. Isto pois, a maioria das sociedades igualitárias desapareceram, desmoronaram ou ‘involuíram’ durante sua resistência, por isso chamadas de ‘sociedades contra Estado’ por Clastres. Acontece que quanto maior o excedente existente nessas sociedades primitivas, maior a necessidade de defesa e liderança punitiva contra os forasteiros e nômades ambiciosos, assim, isso fez que com o tempo tal posicionamento se convertesse em uma elite hereditária, isto é, um grupo que adquiriu autoridade em relação aos outros, tornando-se as guerras eventos organizados e frequentes nas sociedades igualitárias. Mann entende que tal transição, mesmo que de forma - talvez - inconsciente, é fruto de uma sociedade com desigualdade social, quando um grupo apropria-se dos meios de vida, ou seja, uma sociedade que há uma estratificação suficiente e precisa de uma força punitiva para o êxito. Para o mesmo autor, tal acontecimento não se trata de uma evolução para uma sociedade de Estado, pois não houve uma evolução a partir das sociedades igualitárias e sim passando pelas sociedades de status. Robert Carneiro defende a tese da circunscrição ambiental como origem do Estado, rechaça a ideia de que a agricultura e os excedentes foram o começo do poder punitivo e autoridade, conforme entendimento de Gordon Childe, pois existiram sociedades indígenas que mesmo com o excedente não determinaram uma autoridade. Ele também afastava o pensamento de Wittfogel da tese hidráulica, a qual afirmava que a necessidade de uma agricultura intensiva acabou criando um corpo de funcionários para administrar e um monopólio de violência legítima. Acontece que há prova arqueológica que contradiz tal hipótese hidráulica, em que houve o desenvolvimento de uma autoridade antes da adoção de uma irrigação em grande escala. Carneiro analisa a afirmação de Oppenheimer de que a guerra, de forma unilateral, determinou a origem do Estado, reconhecendo aquele que a guerra pode ser considerado como uma das origens da autoridade punitiva, mas não a única, tendo como outras condições para o surgimento o fato de que tais autoridades aparecem em terras agrícolas circunscritas, defendendo sua tese de circunscrição ambiental. A resposta para a pergunta da origem da autoridade punitiva é um debate aberto na antropologia e na sociologia. Interessante abordar que, o sinal mais evidente da sociedade punitiva é a escrita, isto pois, esta era utilizada para fixar em pedras, argilas ou papiros a apropriação de recursos naturais e humanos, como os castigos aos indivíduos vulneráveis. Por fim (p 140/141): Se a antropologia ou a sociologia prestam suficiente atenção à organização da violência é pela simple razão que o Estado e o poder punitivo são, em sua origem, uma única e mesma coisa: monopólio e tratamento cruel que se faz legítimo por força de subordinar populações inteiras. O lema no mito fundacional da Babilônia, segurança e obediência, foi escrito na lança de Marduk, filho do Deus Ea. 5.2. MARX E O CASTIGO A antropologia política critica o marxismo e não o Marx, tendo em vista que este não se destinou em falar sobre as sociedades primitivas. Já o etno marxismo do século XX relacionou à sociedade primitiva conceitos da sociedade de classe, quais sejam, ‘modo de produção, forças produtivas, relações sociais de produção, ideologia’ e ‘Estado.’ Acontece que a ideia de que uma autoridade política surge unicamente em uma sociedade dividida em classes é um erro, pois isso ocorre em sociedade que possuem uma relação de subordinação entre uns e outros da população, em que um grupo detém o poder. Além disso, o erro atribuída a essa corrente é ao associar o mito e a religião primitiva à ideologia. Afirmam que só são necessárias a ideologia em geral e a cultura punitiva em particular para a sociedade em conflito, tendo uma tríplice interdição. Todavia, a sociedade selvagem não reconheceu tal discurso com base na ideologia, sendo que o ajuste e a regra da reciprocidade para os conflitos não tornam necessário. Reitera-se que a maior crítica ao modelo marxista é a ideia da “inviabilidade da economia ‘como determinação em última instância’ da ‘superestrutura político- jurídica’ para todo tipo de sociedade’”, de forma especial as sociedades primitivas. Entende-se como erro pois não se pode afirmar que os modos de produção entre os primitivos são responsáveis por influir na característica igualitária e sem autoridade da sociedade primitiva pois estas não tinham uma só infraestrutura material. Ademais, as sociedades primitivas são ‘máquinas anti produção’, pois possuem como fim a subsistência e não o excedente, tendo a produção selvagem como base o político, não podendo ser considerado tal ‘comunismo primitivo’, por conta da igualdade, uma etapa anterior ao capitalismo, pré capitalista da história, sendo, na verdade, contrária a essa evolução. Sendo assim, a origem do Estado não está na economia nem na desigualdade forçada e sim é uma consequência do surgimento de uma autoridade punitiva - sendo que esse poder de mandar está na própria origem do Estado, sendo possível apenas com uma decisão política de substituir a troca recíproca pelo trabalho alienado. Apesar disso, alguns marxistas, como o Meillassoux, insistem que a origem do tratamento punitivo e do Estado está na sobredeterminação das forças e nas relações de produção. Mas inegável que o decisivo é quando ocorre a ruptura política e não a mudança econômica, tendo na sociedade selvagem a infraestrutura pelo político e a superestrutura pelo econômico. E, o único transtorno estrutural apto a destruir a sociedade primitiva - fazendo surgir em seu interior ou a partir de forças externas - é ‘a autoridade da hierarquia, a relação de poder, a submissão dos homens e o Estado.’ 5.3. A EXPROPRIAÇÃO DO CONFLITO Leis antigas, como o Código de Hammurabi, passam a tratar o ius puniendi de maneira forte e centralizada, com base na expropriação de conflitos particulares, fim da reparação e sanção dos primeiros crime de ‘lesa majestade’. Na alta Idade Média entre os germânicos, é possível encontrar instituições de reparação ainda existentes, as quais homens livres determinam o culpado ao pagamento do Wergeld. A ideia é a de que se há uma reparação pelo culpado, então não haverá guerra; diz que “para o infrator, representa a ‘perda da paz’, ou então compra-se a lança e a desafia.” Acontece que, a guerra na comunidade germânica faz com que os homens livres e guerreiros se transformem em camponeses pobres e, por isso, com o objetivo de conseguirem se alimentar, são obrigados a se subordinar a um poder aristocrático hereditário, o qual possui poderes punitivos. Ou seja, pode-se falar que os germânicos deixam de ser uma sociedade selvagem neste momento. O direito penal, criminologia - assim como é a ideia de Michel Foucault - entendem que a expropriação dos conflitos particulares e a consolidação da autoridade punitiva moderna nos séculos XIII e XIV, isto é, quando há uma mudança no procedimento penal com uma centralização de poder autoritário, é a causa efeito do mundo antigo para o moderno. A expropriação dos conflitos particulares por essa autoridade representa a exclusão da à vítima e da reparação, os quais eram importantes na sociedades primitiva. No entanto, mesmo com o discurso da necessidade de um Estado pela sociedade e o da burocratização na sociedade moderna podem ser responsáveis pela substituição do tratamento de restituição para do poder punitivo, outros fatores são necessários, como a mentalidade do trabalho forçado e a de sofrer pena bem como um grupo de indivíduos vulneráveis.Isto é, os indivíduos se tornam recursos humanos, ou melhor, uma propriedade na mão do soberano. Logo, um crime cometido, como o homicídio, é um agravo contra a autoridade, a qual obrigará a um castigo público, já que detém o monopólio da violência legítima. A visão reducionista do direito penal que possui como fantasia - divina ou secular - de que a pena pública substitui a vingança de todos contra todos da sociedade primitiva, sendo responsável por dar segurança à comunidade, mas, por meio da etnografia, a única afirmativa é que a pena pública significou o início de uma ideia de que as sociedades selvagem e de reparação não funcionavam da maneira correta. Em relação aos germânicos, a única explicação se deu pelo fato da sua vingança não ser causa de anarquia, igual à outros selvagens, foi pela existência de ‘bons costumes’ germânicos que minimizavam a ameaça de um caos. De acordo com Karl August Rogge os germânicos antigos tinham como tratamento punitivo o estado de vingança e o acerto pacífico. Por fim, o texto expõe o resultado lógico de que: se não houve um desaparecimento dos antigos germânicos por conta da ideia de uma vingança ilimitada, conforme entendimento da filosofia política e direito penal, não há como afirmar a necessidade da sociedade de uma Estado e autoridade punitiva nas sociedades primitivas para evitar a morte da sociedade humana. CAPÍTULO 06: FAZER SOFRER 6.1. VINGANÇA OU PODER PUNITIVO NA SOCIEDADE FEUDAL? O presente tópico aborda a discussão sobre a classificação durante a sociedade feudal de uma autoridade com base em vingança ou de um poder punitivo, isto pois, a população romano-germânica vivia um caos, mesmo contando com normas escritas, parecia que o poder punitivo estava suspenso e vigorava o sistema de vingança. Como já demonstrado em tópicos anteriores, a filosofia política e doutrinas de direito penal possuíam a ilusão da pena pública ser a única resposta para colocar fim à sociedade de vingança. Todavia, em alguns casos particulares, foi possível identificar que a queda da autoridade punitiva de forma centralizada significou também a queda da vingança. Ainda que em sociedades, como a feudal, difícil distinguir se tratar do poder punitivo ou do sistema de vingança. A sociedade feudal da Idade média, então, simboliza um dos fortes exemplos de sociedade que tinha como regra a subordinação, quando a autoridade centralizada desapareceu, ocorreu o desaparecimento da violência privada entre as linhagens poderosas, as quais eram autorizadas a fazer guerras privadas. No tocante ao direito da vingança de casta, faz com que tal violência seja mais associada às faculdades punitiva do que com a ideia de vingança na sociedade selvagem dos antigos germânicos quando a reparação não era exitosa. Também é comum a confusão entre vingança e poder público sob o nome de ‘pena privada’ quando falamos do devedor insolvente e dos delitos cometidos por escravos ou filhos, por meio de uma autorização em lei. Diante da situação exposta, não há como afirmar uma vingança privada quando há uma autorização pela lei ou costume de penas corporais ou capitais ao infrator, sob a fantasia do dogma de que a pena pública seria o meio de sair da barbárie dos selvagens, por exemplo, podemos falar do poder punitivo do senhor aos escravos, tinha como fim não a vingança e sim como fim jurídico de o fazer coisa e o direito da propriedade. 6.2. AS PRIMEIRAS LEIS SACRIFICIAIS Os traços de normas punitivistas que externam lesão não a uma vítima qualquer, mas sim à autoridade ou a uma norma de autoridade, sendo aplicadas como forma de estabelecer os valores do grupo dominante. Ou seja, o processo de criminalização primária sempre esteve presente desde as origens de normas punitivas, sendo os 07 códigos/recopilação de leis em escrita - pelo que se sabe até o momento (p 158): São eles: as leis de Ur-Namma e as leis de Lipit, em língua suméria e as leis de Esnunna, as leis de Hammurabi, as leis assírias e as leis neobabilônicas, em língua acádia, e finalmente as leis hititas, nesta língua. A esses documentos devem ser acrescentados dois textos da Bíblia (o Êxodo, 21.2- 22.6 e o Deuteronômio, 21.1-25.11) e o código romano das XII Tábuas (c 450 a.C). Assim como a norma jurídica moderna, as primeiras normas jurídicas, citadas acima, possuem a mesma estrutura, composta de primeiro a descrição do fato e depois a consequência/pena. Sobre o primeiro texto conhecido com tais características temos as leis de Ur-Namma, as quais possuem normas que descrevem atos criminosos, com a ideia de tratamento sacrificial generalizado e de que a justiça era uma resposta ao conflito social que causada caos na sociedade. Já entre o mais completo código existente, temos o de Hammurabi, em que predominava o tratamento generalizado das execuções - “golpear, queimar, afogar, empalar” -, penas aflitivas talionais bem como a primeira ideia de delitos de lesa- majestade. Em relação a legislação greco-romana de início, pode ser entendida como o momento em que aconteceu a consolidação da expropriação do conflito por uma autoridade secularizada, não tendo o conteúdo de uma religião oficial, gerando uma atenuação da política sacrificial em prol de penas pecuniárias e do devedor, distinguindo os delitos em públicos e privados. 6.3. A ESCRAVIDÃO É PENA? O presente tópico externa a discussão sobre a escravidão - em diferentes momentos e espaços temporais - ser considerada como uma pena punitiva ou não. O primeiro erro envolvendo a temática, é no sentido de acreditar que o escravo, por ser tratado como coisa, não seria sujeito de subordinação política. A relação social da escravidão constitui um fenômeno punitivista, como o da economia plantation. Sendo assim (p 167): Servidão, escravidão ou colônia escravista de plantação, campo de concentração e massacres sistemáticos de autoridade, aprisionamentos maciços de população vulnerável são, todas elas, instituições de tratamento punitivo radical, esquecidas ou diretamente negadas pelo direito penal e pela criminologia. Pouco importa que o motivo de indivíduos serem transformados em escravos seja o do benefício econômico, inevitável afirmar que é um tratamento punitivo, assim como são as prisões e fábricas modernas, as quais possuem a mesma origem que a escravidão. Isto é, para determinada situação ser considerado um tratamento punitivo não precisa necessariamente ter origem em uma norma penal, há outros tipos de normas, não exclusivamente punitivas, que possuem o tratamento cruel de autoridade. Sendo assim, tanto a escravidão como o massacre estatal podem ser entendidos como tratamento punitivo, pelo fato de suas normas internas possuírem um tratamento cruel. 6.4. A RAZÃO MODERNA DO TRATAMENTO SACRIFICIAL Em um primeiro momento, importante mencionar a tentativa de Eligio Resta em afirmar a violência institucional como forma de passagem de uma vingança indiscriminada para um sacrifício racionalizado, partindo da ambiguidade do tratamento punitivo, isto é, “o mal para a vítima sacrificada e o bem para a sociedade”, como origem da civilização moderna. A ideia do tratamento punitivo sacrificial é o de substituir o mal estar social gerado na sociedade, “a pena é um mal para a ‘satisfação pública’, a ‘satisfação para o acusador’, a ‘satisfação na lei’”. Podemos dizer, então, que o fim da violência contra a vítima sacrificial é para compensar todas as violências que a comunidade renunciou para viver em sociedade, sendo a violência sacrificial - legítima soberana - um mal útil que salva a sociedade com a eliminação de indivíduos vulneráveis em benefício de todos - pensamento este seguido pela doutrina sobre a pena. Retomando aos conceitos trazidos por Resta, este entende que a passagem da violência indiferenciada para uma violência regulada é a transição da selvageria sacrificialquente da sociedade selvagem para uma civilização sacrificial fria da sociedade com Estado, sendo que nesta não há uma eliminação da vingança e sim uma concentração em uma represália única. Afirmando, ainda, que o sistema judicial punitivo moderno seria uma forma de diminuir a violência natural dos indivíduos, sendo a soberania e o direito uma resposta racional e moderna para controlar tal violência inerente a toda sociedade. Posteriormente, há uma alteração do foco do estudo do tratamento punitivo, o qual passa por uma etapa de racionalização humanista, como forma de dosificação. Como forma de exemplificar o tratamento humanista, que busca o equilíbrio no sacrifício entre excesso, pouco e falta, podemos citar a ideia de castigos corporais com limitações: “o número não pode ser nunca superior a cinquenta e eles devem ser executados sobre as costas nuas com uma chibata feita de galhos de bétula.” Apesar de continuar distante do respeito aos direitos humanos que entendemos atualmente, a busca por uma tradição humanista e sensível como forma de amenizar os tratamentos punitivos cruéis é significativo. Há outro movimento que produz uma mudança ao tratamento sacrificial, com a passagem de uma sociedade primitiva para uma sociedade com Estado, de resistências contra o uso indiscriminado das penas de morte e práticas de suplício e tortura judicial. “O terror da violência indiscriminada que se atribui à sociedade sem autoridade é a fonte de onde brota a cegueira que coloca o liberalismo penal sempre como advogado do castigo público e, ao mesmo tempo, censor do excesso.” Ademais, com a acumulação primitiva capitalista, também ocorreram mudanças no tratamento sacrificial que se estenderam até hoje. Primeiro, os selvagens infratores foram convertidos em recursos humanos de trabalho punitivo, por meio de escravidão em galerias, servidão penal em oficinas, casas de correção, fábricas e colônias penitenciárias. Sendo que, quando as citadas modalidades perderam seu significado econômico, as execuções em massa voltam a ser aplicadas. Cabe salientar que a Revolução Industrial entre 1780 e 1830 foi responsável por uma pauperização, a qual fez com que gerasse conflitos, violência e sofrimento, sendo assim, a autoridade não tinha interesse em um tratamento punitivo liberal e sim de uma legislação penal de extermínio, de que a ideia sacrificial era a única maneira de lidar com os delinquente por meio de execuções, açoites, suplícios, varas e marcas de ferros candentes. Sendo posteriormente generalizado pelo mundo a ideia de recolhimento concentracionário de criminosos e, no século XX, o extermínio em massa de grupos. Cerca de mil anos de existência de autoridade punitiva, foi com Justiniano que houve a introdução da ideia de que a reclusão só deveria acontecer por motivos de segurança e não como forma de castigo aos inimigos do Estado, princípio este que conserva uma constitucionalidade atual, de proibir tratamentos cruéis e degradantes. Diante do exposto sobre o tratamento punitivista e as ideias reformadoras, podemos concluir que ambos sempre existiram e que a única resposta para o fim do círculo sacrificial é partir do reconhecimento de que é uma tarefa impossível. Todavia, a exemplo das sociedades primitivas, pode ser que o único caminho possível seria a “redução das condições de vulnerabilidade que habilitam a generalização de pulsões punitivas”. De forma a complementar o exposto sobre o pensamento de Resta, pode-se refutar a ideia de que o monopólio racional do tratamento punitivo seria uma forma de aliviar a anarquia sacrificial pelo fato de a sociedade burguesa ter apresentado o terreno mais fértil de estado de anarquia como guerra de todo contra todos. Ademais, o Estado moderno demonstrou - como no século XX - salvo raras exceções, que a sociedade de classes se converteu em um verdadeiro matadouro, com massacres e tratamento sacrificial extremo. Por fim, entende-se que a ideia de anarquia para explicar a necessidade de adoção de um tratamento punitivo com violência legítima como forma de progresso é fruto de uma imaginação sociológica, não parecendo ser o melhor caminho que diminuir a carga sacrificial. Assim (p 181): O tratamento sacrificial centralizado em uma figura de autoridade racional não pode reduzir a violência interminável que só existe na cabeça de um soberano e de seus epígonos de toda época e cor. Em todo caso, a única coisa que se vê como real é o medo ou a angústia. O fantasma de anarquia é o sintoma e não a causa. CAPÍTULO 07: A SATISFAÇÃO NA LEI 7.1. “MENOS PENAS PORQUE NÓS JÁ NOS PUNIMOS SOZINHOS” O mito político-jurídico da doutrina penal tem como base a necessidade da lei penal para a existência da sociedade humana, introduzindo - o também mito - de que isso é necessário para uma evolução da sociedade até então de natureza selvagem, em que predomina a vingança e agressão homicida natural. Sendo assim, pode-se afirmar que “à visão antropológica do selvagem se soma uma visão psicológica, isto é, uma doutrina das paixões.”. Só sendo possível a sociedade humana quando existir uma soberania punitiva com um tratamento sacrificial suficiente para apaziguar a natural agressividade selvagem de todos contra todos. A pena pública é vista como um mal necessário de um indivíduo para garantir o bem estar da sociedade. No tocante a agressividade humana, a psicanálise também destinou atenção para analisá-la, focando na onipresença da auto destrutividade humana, mesmo que isso acabe gerando um benefício psíquico, apesar de contraditório. Freud, criador da psicanálise, introduz a ideia de pulsão de morte e de que a base da agressividade humana seria a autoagressão e não o modo de relacionar-se com os demais. O direito penal tende a crer de forma racional que o castigo é uma forma de limitar a agressividade natural humana e que a estatística de tais penas confirmam essa afirmação. Por exemplo, o fato dos homicídios serem insignificantes e pequenos em uma sociedade é pelo fato de existir um tratamento sacrificial ao homicida. Ao contrário, a psicanálise entende que, na verdade, a maioria da população não cometeria o homicídio, tendo ou não um tratamento sacrificial, e aqueles que cometem pouco importa a existência ou não de um tratamento sacrificial. Logo, não deveria ser utilizado a não ameaça pelo tratamento sacrificial de um grupo reduzido, isto é, uma exceção da sociedade, como regra para adotar uma soberania política. Sendo por isso, a psicanálise afirma que a postura do Estado de soberania e tratamento sacrificial não se manifesta por conta da violência da guerra de todos contra todos, mas sim como autodestrutividade. Além disso, conclui que a vida anímica - a dinâmica psíquica - é uma tendência à repetir experiências penosas de natureza autopunitivas - contrário a ideia de prevalência do princípio do prazer na psique humana. Freud, diferente da doutrina jurídica política, cogita que as pulsões humanas - que podem ser a de conservação e as sexuais - não se limitam à heteroagressão, tendo parte das pulsões o retorno para a própria pessoa, assumindo uma forma de serem pulsões autopunitivas. Pode-se citar outro autor, Jacques Lacan, o qual enxerga na psicose paranoica uma satisfação autopunitiva, em que o ato agressivo produz um alívio ao sofrimento delirante. Nessa linha de raciocínio, o tratamento punitivo sacrificial pode ser visto como uma forma de concentrar as emoções vingativas, podendo ser perigoso para o coletivo, tendo em vista a existência de massacres estatais. Corroborando, Freud diz (p 193): Deve-se resistir à tentação de comparar o efeito deteriorante de um código penal interno com o tratamento sacrificial, ainda que na vida anímica individual, assim como na coletiva, a necessidade de castigo parece canalizar moções destrutivas das quais se obtém um ganho ou gozo. 7.2.HOMO SACER De acordo com a obra de Giorgio Agamben, “a ambiguidade do sagrado se situa no lugar a que corresponde”, recaindo no sujeito vulnerável e sacrificial o poder punitivo que é o bode expiatório, estando tanto no sujeito vulnerável que padece como também responsável pela pacificação social da comunidade. O referido autor vê no soberano, o qual possui o poder punitivo, que pode estar dentro ou fora do ordenamento jurídico, no primeiro caso é quando está com um inimigo interno relativo - o criminoso ocasional. Já quando está diante de um inimigo absoluto, é situação emergencial, em que o soberano não se encontra nem dentro nem fora do regime punitivo, sendo ativados mecanismos de exceção para enfrentar a ameaça absoluta contra o ordenamento e a sociedade, podendo ser chamado de um tratamento sem limite e com normas secretas de extermínio. Ao mesmo tempo que esse tratamento punitivo excepcional e extremo não se encontra nos limites do ordenamento jurídico, pode-se chamar de norma pois está presente em uma ordem jurídica do soberano diante de uma emergência punitiva. Para materializar, é o que acontece nos genocídios. Assim, quando na brecha da exceção o soberano autoriza a ordem de eliminar um grupo inteiro de população (por exemplo, criminosos, doentes, judeus ou comunistas) não se fala em ausência de ordem jurídica e de caráter de tratamento punitivo, isto pois, “enquanto existir autoridade pública, nunca haverá nem suspensão nem vazio de direito”. De forma a materializar a situação excepcional em um exemplo mais cotidiano, podemos falar (p 196): O chefe de prisão que ordena secretamente a eliminação física de um prisioneiro comete homicídio e ao mesmo tempo aplica a pena, sem que nenhuma dessas qualificações fique fora do ordenamento jurídico. Se em troca se considera a ordem secreta como suspensão do direito penitenciário, não se deixa ver o tratamento punitivo onde também há crime. Sendo assim, a norma punitiva de extermínio, não importa como ela seja dada, faz parte da ordem jurídica, do mesmo modo da que habilita o criminoso sacrifical comum. Outro ponto interessante falado por Agamben é sobre a ambiguidade do homo sacer ser pelo fato dele ser abominável pelo seu crime, mas ao mesmo tempo sagrado pois é responsável pela pacificação ao ter o castigo aplicado, sendo que caso ele seja sacrificado por alguém, esta pessoa não está cometendo homicídio pois há uma norma jurídica autorizando ou entende-se que comete outra classificação de delito diferente de homicídio. CAPÍTULO 08: O MASSACRE PRIMORDIAL 8.1. HISTÓRIA E ETNOGRAFIA O espetáculo do sacrifício externado pelos cronistas espanhóis, como o do mundo azteco, era semelhante ao da velha Europa, a qual tinha a figura da “escravidão, servidão, pobreza, reis, magistrados, cidades, caminhos, comércio, agricultura e sacrifícios punitivos”. Para aproximar mais ainda esses dois momentos que possuem o sacrifício, estima- se que nos centros cerimoniais aztecas cerca de 15.000 pessoas eram enviadas à morte anualmente, já na Europa entre os séculos XV e XVII, esse número está entre 200.000 e 500.000 pessoas. Pode-se perceber que, diferentemente da ideia de existência de uma guerra de todos contra todo para justificar a necessidade de uma pena pública, as razões e sentimentos estão ligadas à ideia de castigo e sacrifício, tendo que tanto na sociedade selvagem quanto na civilizada o tratamento cruel e sacrificial é o prejuízo a um grupo vulnerável para a sociedade. Chega-se a referida conclusão ao analisar, por exemplo imagens do México colonial, em que os nativos desenhavam em mapas ‘berlinda’ e forca dos espanhóis antes da conquista. Já existiam classes sociais, juízes, pobres e nobres e religiões, tendo a igreja se edificado em um antigo tempo azteca destruído. Diante disso, a ideia de diferenciar o sacrifício da pena pública com o sacrifício nas sociedades selvagens pela doutrina penal com base na racionalidade cai por terra, já que ambas têm por fim sacrificar vidas de grupos vulneráveis para salvar a sociedade. Mesmo assim a visão etnocêntrica tende a dizer que a violência dos selvagens é irracional pois não é uma resposta a um crime e que o sacrifício da sociedade civilizada é evolutivamente superior ao da sociedade selvagem, ignorando a existência dos massacres estatais e da seletividade punitiva. De forma a corroborar o que foi dito, segue passagem do livro (p 206): Poderão haver diferenças nos distintos cenários do sacrifício punitivo, mas não se deve subestimar o que eles têm em comum: a) se generalizam em sociedades com autoridade punitiva, b) a seletividade na obrigação de fazer sofrer está enfocada sobre grupos vulneráveis da população, c) a criação, por parte da autoridade, de um estereótipo de perseguição como ameaça ou perigo absoluto, d) a pena contra a vítima sacrificial pacífica sentimentos de mal estar que têm origem em causas reais, mas que o imaginário social atribui ao estereótipo. (...) O significado prático em todo tratamento sacrificial consiste em uma transferência da responsabilidade para demônios imaginários sob forma humana. Tanto no casos dos aztecas quanto dos europeus, a ideia de sacrifício tinha como objetivo reforçar a unidade e a subordinação perante a autoridade. 8.2. O SACRIFÍCIO CONSTITUIDOR Quando ocorre o sacrifício, tanto o expiatório como de comunhão, o objetivo é sacrificar o indivíduo que, como vítima de tal sacrifício vai ser responsável pela pacificação, ou melhor, desencadeará uma satisfação compensatória “que atenda à necessidade pelo qual o sacrifício é instituído. Há uma discussão sobre a ideia da norma penal de incesto e como cada sociedade o considera/estabele, podendo concluir que o tratamento dado - proibição - varia de acordo com motivos práticos de cada sociedade para possibilitar uma aliança e troca social e não na ideia da doutrina política e jurídica clássica de que era para evitar uma anarquia. Na linha de raciocínio antropológica, a repressão do incesto pelas sociedades acontece mais com o fim de possibilitar através um sistema de normas de trocas, do que de privar por meio de uma regra de proibição sacrificial. Na maior parte do século XX, ocorreu um intenso estudo por parte da antropologia e estudos etnográficos sobre a problemática do parentesco, como como os selvagens organizavam suas relações exogâmicas. Assim, descobriu-se que além da ideia punitiva, existia outra norma de convenção social, a qual regulava a exogamia entre os humanas, possibilitando a existência da vida antes do Estado. Concluindo que não conseguimos delimitar um sacrifício como fundador da origem arcaica da ideia de neurótico, assim como não conseguimos delimitar qual a origem para se instituir a sociedade. 8.3. DESTRUIR PARA REAFIRMAR A SOCIEDADE A tese de Alfred Métraux sobre a religião dos tupinambá e suas relações com outras tribos tupi-guarani, com foco no estudo do sacrifício antropofágico da cultura tupi, fez com que entendêssemos que a ideia de monopólio da violência legítima pelo Estado não pode ser considerado como uma evolução do tratamento sacrificial, isto pois, apenas é uma ideia moderna do tratamento sacrificial primitivo, como o tratamento dos tupis que tinha por fim reafirmar sua autoridade sobre o inimigo. Foucault observa que, assim como a ideia de reafirmação nos sacrifícios dos tupis, segue o mesmo sentido o tratamento punitivo do criminoso comum, sendo que nessa sociedade de conflito/ com Estado, o tratamento sacrificial é dado a grupos inteiros da população, como nos genocídios da experiência nazista, situação inadimissível na sociedade selvagem. De forma a corroborar (p. 220): (...) a afinidade punitiva entre antropofagia sacrificial, tortura e execução patibular, forno crematório ou desaparecimento de inimigos é dada ao produzir modos diferentes com os quais a sociedade,
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