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- -1 SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA JURÍDICA CONTROLE SOCIAL Marcus Vinícius de Freitas Teixeira Leite - -2 Olá! Você está na unidade. Nesta unidade, nos aprofundaremos na discussão acerca do papel e do lugar do Direito em sua relação com a sociedade e a estrutura econômica e social a qual ele regula, e o questionamento acerca da possibilidade da prática jurídica em promover ou em barrar a mudança social. Por fim, discutiremos temas afins à Sociologia da aplicação do Direito, ou a Sociologia dos tribunais; e o papel do Judiciário no desdobramento da cultura jurídica e na relação com os movimentos sociais. Bons estudos! - -3 1. Conflitos, integração e mudança social: o papel das normas jurídicas Se partirmos da premissa de que um dos principais objetivos do estudo sociológico é o de observar e analisar as regras que regem a interação entre pessoas e grupos (REHBINDER, 2000), ou seja, das relações sociais; o estudo das mesmas envolve analisar regras de organização social, dos conflitos e de mudanças sociais (SABADELL, 2002). Nesse sentido, as relações entre a Sociologia e o Direito, que visa estabelecer regras definidas e coerentes para regular o comportamento social, são evidentes. A Sociologia jurídica busca investigar a expressão justamente da forma pela qual se exprime no sistema jurídico os processos de conflito, integração e mudança que se desenvolvem no tecido social (SABADELL, 2002). Assista aí https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2 /bdb106465aae77552ebf49f765047a86 - -4 1.1 Anomia e regras sociais De acordo com Durkhein, o conceito de se refere anomia à falta de normas que vinculem as pessoas à estrutura social, usual em períodos de grande transformação e de questionamento de sistemas sociais decadentes ou em crise. A constatação de uma situação anômica poderia indicar a existência de um período de mudança social e analisar efeitos e causas de tal situação transitória (SABADELL, 2002). Ana Lúcia Sabadell (2002) identificou três usos possíveis para a construção teórica da anomia para a Sociologia do Direito. O primeiro diz respeito à possibilidade de a anomia causar a ineficácia de preceitos jurídicos devido à consideração, por parte dos indivíduos, que a norma descumprida é inadequada ou injusta, situação distinta de violações ocasionais da legislação que não questionam a validade da lei em questão. O Estado pode reagir a esta conduta de várias formas: tolerando a violação e permitindo a ineficácia tácita da norma; modificando a legislação, visando aproximá-la das práticas sociais vigentes e então em conflito com as normas jurídicas; realizando campanhas informativas e propagandistas, com o objetivo de ampliar o apoio social às leis já vigentes; ou, por fim, usando a força e a repressão contra as tendências anômicas (SABADELL, 2002). Outras situações verificadas pela autora dizem respeito à : quando a anomia não deriva daheteronomia ausência de normas, mas do conflito entre os princípios e convicções do sistema jurídico oficial, e as normas às quais parte dos sujeitos subordinados pelo mesmo sistema jurídico aceitam se sujeitar; e o pluralismo cultural, onde a imposição, pelo direito estatal, de normas orientadas por uma visão específica num contexto de multiplicidade de valores e modos de vida existentes na sociedade incentiva comportamentos anômicos e crises de legitimação do direito (SABADELL, 2002). Quanto à teoria de Merton, embora ela tenha potencial explicativo razoável em relação ao cometimento de crimes patrimoniais por parte de indivíduos em situação socioeconômica desfavorável, além de crimes de motivação política e comportamentos autodestrutivos, como o vício em substâncias toxicodependentes, ela é vista por Sabadell (2002) como demasiadamente genérica, incapaz de apresentar uma chave explicativa e conceitual suficiente para determinados tipos de violação à lei, como, por exemplo, os crimes passionais e sexuais. As (inovação, ritualismo, evasão, rebelião) são vistas como disfunções e patologias decondutas anômicas origem eminentemente individual dentro de um sistema social presumido como estável e orientado para o equilíbrio (MARRA, 1991). Em outro sentido, também assume uma concordância geral na sociedade acerca das metas e objetivos sociais a serem valorizados – aqui associados à ideologia dominante nas sociedades capitalistas contemporâneas –, o que nem sempre é o caso e limita o potencial explicativo e a validade da teoria (PAVARINI, 1983). - -5 - -6 1.2 Direito como propulsor e obstáculo da mudança social O campo que mobiliza o conceito de anomia e vê sua relação com a conformidade, ou não, às regras sociais vigentes, que tem como principal referência sociológica Émile Durkheim (2003), vê o Direito como um indicador privilegiado dos padrões de solidariedade social, sendo garantidor da acomodação e resolução harmoniosa dos conflitos em uma comunidade e instrumento de maximização da integração social e realização do bem comum (SANTOS, 1999). O lado oposto desta discussão, derivado especialmente do Marxismo, concebe o Direito como um instrumento de dominação econômica e política que é expressão dos interesses das classes dominantes. Sendo um componente da superestrutura da sociedade capitalista e derivado da conformação das forças produtivas e relações sociais de produção da mesma, o Direito opera como um sistema que transforma os interesses específicos das classes dominantes para positivá-los na lei como se representassem um interesse coletivo e universal destas sociedades (MARX, 2001, 2010, 2013; SANTOS, 1999). Boaventura de Sousa Santos (1999) recorda que, nos debates afins à Sociologia Jurídica – que implica refletir acerca das articulações do campo do direito com as estruturas sociais e as condições em que este opera –, incide uma disputa de perspectivas derivada da polarização apresentada acima: o direito é variável dependente – ou seja, é fenômeno que se limita a acompanhar e incorporar valores sociais e padrões de conduta constituídos e disputados politicamente na sociedade –, ou é instrumento capaz de ser um promotor ativo de mudança social, na vida concreta e na disputa de ideias? Fique de olho Ana Lúcia Sabadell (2002) entende que há três posições distintas acerca desta problemática nos debates acadêmicos. Inicialmente, há a corrente denominada “realista”, que compreende que o Direito é uma manifestação social determinada pelo contexto sociocultural. Desta forma, a sociedade produziria o Direito que convém à mesma. Quando este argumento é levado ao limite, o Direito é visto como a mera reprodução, em nível normativo, da dominação social e da imposição dos interesses dos grupos dominantes, visão compartilhada por algumas correntes marxistas e liberais. - -7 No polo oposto, estão aqueles que atribuem ao Direito papel determinante no contexto social, tendo este a capacidade de atuar perante a realidade e modifica-la de forma autônoma. Nesta ótica, mudanças normativas de qualquer espécie tem condições de impor com sucesso determinados comportamentos aos membros da comunidade: o “dever ser” pode sempre direcionar o “ser”. Esta é a posição idealista. Antes de apresentar a última corrente, é necessário apontar que, de forma associada a esta problemática, incide outra divisão no campo da Sociologia jurídica sobre Direito e mudança social: a disputa entre aqueles que a) consideram que o direito é um freio às grandes mudanças sociais, reagindo às reivindicações populares de forma lenta e restrita (tendo, portanto, um papel essencialmente conservador); e b) a visão de que o Direito tem o condão de desempenhar uma função educadora e progressista, sendo instrumento eficaz e aberto para a realização de mudanças por meio de reformas legislativas (SABADELL, 2002). A autora supracitada apresenta uma terceira posição, intermediária, que conciliaria as duas visões antagônicas apresentadas. Para Sabadell (2002), o Direito é, de fato,configurado por interesses e necessidades sociais e produto em grande medida de um contexto econômico e social. Entretanto, o mesmo teria a capacidade de influir, de forma dinâmica, na realidade social, determinando e sendo determinado pela mesma ao mesmo tempo. Esta posição se associa à de Soriano (1997), que vê o Direito como possuidor de uma autonomia relativa em relação à estrutura sociocultural na qual está inserido. - -8 1.3 Atuação do Direito como fator de mudança social Continuando a explorar esta corrente intermediária, que admite a possibilidade do Direito, considerado estritamente, provocar mudanças sociais – mas não de forma estrutural ou radical sem que esteja inserido e associado a um processo de mobilização e transformação política sistêmica, Soriano (1997) se interessa pela intensidade, o ritmo e as esferas de manifestação das mudanças passíveis de decorrer do sistema jurídico. Quanto ao primeiro aspecto, a intensidade da mudança por meio do Direito depende, segundo o autor e Sabadell (2002), de dois fatores: a natureza do sistema jurídico e a natureza do sistema político em que tais mudanças concretamente incidirão. No primeiro fator, a abertura, flexibilidade e abstração das normas jurídicas favorecem reformas de maior monta, enquanto a existência de fortes procedimentos de controle e rigidez normativa - ao, por exemplo, estabelecer “cláusulas pétreas” em uma Constituição -, minimizam as possibilidades de alterações sistêmicas. Em relação ao sistema político, um maior nível de concentração do poder e de quantidade de atribuições a entes específicos facilita a implementação de mudanças rápidas e de peso via alterações legislativas – o que também ocorre usualmente em situações de revolução social (SABADELL, 2002). Por outro lado, a pulverização do poder, a presença de fortes pesos e contrapesos, bem como a postura dos agentes políticos – seja pelo desinteresse em alterar o status quo, seja pela opção pela conciliação e acomodação de demandas -, também tem como consequência lógica um Direito que opera de modo a promover estabilidade. Nesta problemática, se inserem correntes teóricas no campo do Direito que acreditavam ser possível uma prática e interpretação jurídicas emancipadoras e favoráveis a grupos e classes sociais desfavorecidas, como no caso do “Direito alternativo”. Uma variação desta problemática no debate jurídico brasileiro, também valorizando e ampliando as possibilidades hermenêuticas dos aplicadores do Direito, é o chamado neoconstitucionalismo. As críticas a esta “instrumentalização” do Direito em prol da solidariedade e igualdade social vieram especialmente de tradições jurídicas afins ao positivismo e críticas à ingerência do Judiciário em funções de outros poderes (SARMENTO, 2007; STRECK, 2011) e também de grupos políticos alertas ao perfil cultural, econômico e social majoritário dos aplicadores do Direito em sociedades capitalistas e no Brasil, em específico (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018). No primeiro caso, são alvo de críticas especialmente decisões que se baseiam em interpretações demasiadamente elásticas da legislação aplicável, quando não uma atuação contra legem. No segundo caso, a alegação é de que este tipo de atuação também pode ser utilizada com propósitos conservadores, corporativos ou proselitistas, considerando o fato da maioria do Judiciário e do Ministério Público no Brasil e em outros - -9 países ser ocupado pela elite econômica e cultural da sociedade, e tendente a enxergar o mundo e o labor jurídico diário por esta lente. Em relação às esferas de manifestação de mudanças, estas podem ocorrer de forma estritamente interna, abarcando o Direito nacional, bem como externamente, no caso do Direito internacional e/ou comparado (SABADELL, 2002). Nesse sentido, vale lembrar que mudanças e reformas jurídicas de destaque em determinados países por vezes ganham notoriedade e influência em sistemas jurídicos alienígenas. Por fim, cabe fazer breves considerações acerca dos diferentes ritmos de mudanças impulsionadas pelo Direito. A depender dos aspectos da vida social afetados por uma mudança na legislação, esta pode se dar de forma mais fácil e rápida, como em mudanças econômicas de grande aceitação pelo público alvo; ou sofrer fortes resistências, como, por exemplo, exemplo, normas que vão de encontro a práticas culturais ou religiosas fortemente arraigadas no tecido social. De qualquer forma, resta claro que nesta relação mútua entre Direito e sociedade, a mudança social através do Direito é um problema eminentemente político (SABADELL, 2002). - -10 1.4 Pluralismo Jurídico O termo “ ” diz respeito à perspectiva que defende a existência, em uma mesma comunidadepluralismo jurídico e simultaneamente, de mais de um conjunto articulado de regras, princípios e instituições – ou seja, da pluralidade de ordens jurídicas no interior de um mesmo espaço geopolítico (CASTRO, 2013; SANTOS, 2011). Tal expressão surgiu em meados do século XIX como uma reação à visão monista do Direito, ainda predominante. O monismo está identificado à uma orientação exclusivamente centralizadora e estatal sobre quais normas são válidas em uma determinada sociedade. Em diversas sociedades, se viu um processo de supressão, marginalização ou assimilação de usos e costumes locais que entravam em conflito ou se localizavam fora do âmbito do direito estatal. Tal dinâmica pôde ser vista tanto em guerras e conflitos na Europa ocidental, como na colonização europeia na África e nas Américas. Ela foi e continua sendo alvo de resistência das populações locais, situação em que se estabelece um cenário de pluralidade de normatividades, ou “direitos”, observados pela comunidade. Historicamente, estas normas de conduta marginalizadas eram eventualmente alvo de incorporação ou reconhecimento pelo Direito dos Estados das metrópoles ou em situação de dominância. Na visão de Sally Merry (1988), podem ser distinguidos dois períodos distintos de análise sobre o pluralismo jurídico: . O primeiro se referiria aos estudos aplicados àso clássico e o do novo pluralismo jurídico sociedades coloniais onde se verificava autonomia e interseção entre ordens jurídicas distintas – notadamente, o (s) Direito(s) dos indígenas e o Direito das colônias. A perspectiva relativa ao acesso diferenciado à justiça em comunidades tradicionais se desenvolveu nas últimas décadas e afastou a feição etnocêntrica, abrindo maior espaço para a resolução de conflitos por meio de processos de justiça comunitária adotando valores e símbolos caros a estes grupos específicos. O novo pluralismo diz respeito, na perspectiva da autora e de Santos (2011), ao contexto pós-colonial de sociedades urbanas industrializadas onde incide uma teia de legalidades entrelaçadas, e uma relação entre diferentes ordens normativas vista agora como interativa, e não segmentada. Nesse sentido que Castro (2013) aponta que a partir dos anos 1980 se intensificaram os debates que questionavam a posição de subordinação e dominação dos Direitos locais em detrimento do Direito “oficial”. A partir desta mudança, a academia passou a enfatizar as possibilidades de interações bidimensionais – destas diferentes fontes de normatividade –, ampliando o reconhecimento do pluralismo em contextos também não orientados pelo colonialismo ou pela vida rural. Amplificou-se, assim, o espaço às perspectivas que rejeitam a ideia de que apenas o Direito estatal deve ser considerado “Direito” e, portanto, única fonte legítima e válida de orientação de normas de conduta. Este - -11 processo ocorreu de forma concomitantes dentro dos marcos dos estados-nação e globalmente, com o declínio de construções jurídicas “clássicas” do Direito internacional e a fragmentação do Direito internacional (CASTRO, 2013). Dentre as principais referências contemporâneas no estudo e visibilidade do pluralismo jurídico no Brasil está o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Seu já clássico estudorealizado em uma favela do Rio de Janeiro nos anos 1970 identificou as diversas formas alternativas de definição de normas de conduta e de interpretação e construção da legalidade naquela comunidade. Este trabalho empírico que impulsionou os estudos sobre o pluralismo jurídico contemporâneo nas décadas seguintes. Outro fenômeno social que impulsionou as discussões sobre o pluralismo jurídico foi a emergência dos chamados “Estados plurinacionais” pelos processos constituintes na Bolívia e Equador nos anos 2000, que promoveram em seus textos constitucionais dispositivos reconhecendo a diversidade de ordens normativas internas ao Estado-nação e questionando o próprio modelo deste (AFONSO; MAGALHÃES, 2011). Assista aí https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2 /ee7ba4372d3b24444a29e40142f2a418 - -12 2. Controle social e Direito: cultura e normatização O diz respeito, em sentido amplo, a tudo aquilo que tem a capacidade de influenciar ocontrole social comportamento dos indivíduos de uma sociedade (SABADELL, 2002); tecnicamente, é conceituado como “(...) qualquer influência volitiva dominante, exercida por via individual ou grupal sobre o comportamento de unidades individuais ou grupais, no sentido de manter-se uniformidade quanto a padrões sociais” (SOUTO; SOUTO, 1997, p. 177). O estudo das finalidades, dos elementos e dos meios em que a sociedade pressiona os indivíduos a seguirem os valores sociais dominantes foi de grande interesse da Sociologia ao longo do século XX. Nesse sentido, o campo da Sociologia do direito se interessa especialmente pelo controle social exercido por meio do Direito. Soriano (1997) e Sabadell (2002) destacam algumas diferenciações internas importantes relativas ao controle social. Inicialmente, apontam a possibilidade do exercício deste instrumento tanto para a mera doorientação comportamento social dos indivíduos, como para efetivamente a conduta dos mesmos (atuação,fiscalizar portanto, mais intrusiva). O controle pode variar também no que diz respeito aos seus destinatários: pode ser difuso, ou generalizado; como pode ser intensificado em certos grupos específicos de interesse – no qual é denominado controle localizado. Também variam os agentes que exercem o controle social: este pode ser promovido por meio de setores da sociedade, por meio da “opinião pública”, da família, do ambiente laboral; ou a fiscalização pode ser realizada diretamente pelo Estado e seus órgãos e agentes. Por fim, o escopo de atuação do controle pode ser de atuação direta ou indireta sobre os indivíduos e grupos: um policial que aborda um cidadão exerce controle direto; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Ministério da Educação exercem indiretamente controle sobre conteúdo e estrutura do ensino nas escolas brasileiras. É importante ainda diferenciar algumas das diversas formas em que o fenômeno do controle social pode se manifestar. Primeiramente, este pode apresentar grau de organização maior ou menor, assumindo feições formais e/ou informais. Este se associa ao controle difuso e ao que é realizado pela sociedade, ao passo que o primeiro é realizado primordialmente pelo Estado, visto que usualmente é resultado de um processo de institucionalização do controle de comportamentos desviantes – espaço onde o Direito se encontra (SABADELL, 2002). - -13 Os meios de controle social também podem assumir feição negativa ou positiva. No primeiro caso, almeja-se alterar um comportamento indesejável por meio da reprovação do mesmo e da aplicação de sanções aos indivíduos que o cometeram, enquanto o controle positivo visa incentivar condutas vistas como adequadas pela persuasão e premiação àqueles que adotaram “bons” comportamentos (SABADELL, 2002). Figura 1 - Exemplo de meio de controle social: a polícia Fonte: Antonio Scorza, Shutterstock, 2020 Vemos um policial observando um grupo de pessoas que formam uma fila para embarcar num bonde elétrico urbano. - -14 2.2 Características do controle social por meio do Direito Como indicado na seção anterior, o Direito se caracteriza por ser uma forma de controle social formal, que determina normas de conduta que: i) são interpretadas e aplicadas por agentes do Estado designados com esta função; ii) caracterizam-se por serem explícitas – indicando o que fazer ou não fazer; e iii) cujo descumprimento implica na aplicação de sanções (SABADELL, 2002). As sanções ditadas pelo Direito oficial se diferenciam das sanções “sociais” ou informais por estarem formalizadas num código jurídico, delimitadas concretamente, circunscritas em procedimentos definidos (que também servem como garantias e proteção contra a arbitrariedade) e aplicada por instituições competentes específicas para sua aplicação. Num sistema jurídico, há normas de organização que não estão associadas a sanções, voltadas para a organização da aplicação de outros dispositivos – estas são as normas processuais (SABADELL, 2002). Também há casos de normas que determinam obrigações, mas não impõem de forma concomitante sanções no caso do descumprimento daquela. Podemos citar aqui condutas puníveis penalmente, mas cujos autores encontram-se em situações onde incide excludentes de culpabilidade, tipicidade ou ilicitude. Outros casos são normas que preveem incentivo no caso de seu cumprimento, mas não é de execução compulsória e, portanto, não admite coerção no caso de não observância. Exemplos são as legislações que admitem descontos no imposto de renda no caso do cumprimento de alguns critérios relativos a condutas estimuladas pelo Estado. Por fim, temos o caso de normas de Direito internacional, que geralmente não são vinculadas a sanções que envolvam coação devido à ausência de um poder político transnacional com a prerrogativa de executar sanções à força. Nesse caso, o cumprimento depende da discricionariedade dos Estados-nação, os quais podem ser alvo de pressões políticas e econômicas (SABADELL, 2002). A sanção jurídica é o elemento principal do exercício do controle social através do Direito. Esta pode ser definida, nos termos de Sabadell (2002), como uma consequência positiva ou negativa decorrente do cumprimento ou não de uma norma jurídica. Como já indicado anteriormente, sanções jurídicas podem ter um caráter positivo, associadas às chamadas normas promocionais; ou negativo, que consistem na privação ou restrição de Direitos dos indivíduos que infringem determinada norma, e podem envolver a liberdade de locomoção, de ofício ou implementar sanções pecuniárias. Sanções negativas podem ter caráter preventivo ou reparatório. As primeiras são raras e desaconselháveis no contexto de um Estado Democrático de Direito, mas no dia-a-dia podem ser vistas diversas medidas - -15 fiscalizatórias associadas à prevenção, tendo o objetivo de evitar a violação de normas jurídicas. Exemplos disso são: uma blitz policial, a revista corporal no momento de adentrar um recinto com regras específicas, dentre outras. As sanções reparatórias, por outro lado, são aplicadas contra o responsável por um dano determinado, provocado pela violação de uma norma jurídica. O objetivo das mesmas é o de buscar restaurar, quando possível, o status quo ante, e restabelecer a ordem lesada, bem como o de compensar ou minimizar as perdas daqueles que eventualmente possam ter sido prejudicados pela violação à norma. Este tipo de sanção usualmente se divide, nos sistemas jurídicos das sociedades contemporâneas, em três categorias. Pode assumir a feição de um constrangimento que force cumprimento de uma obrigação, como no caso de uma sentença transitada em julgado que dispõe o dever de pagar uma dívida; também pode exigir o ressarcimento de um dano por meio do pagamento em dinheiro, via multa ou indenização (SABADELL, 2002); por fim, também se exprime no caso das sanções reparatórias penais, que pode assumir diversas funções e justificativas nos sistemas jurídicos modernos: neutralização, retribuição,ressocialização, dentre outros. Considerando a gravidade e a força da intervenção da norma penal sobre os indivíduos, os sistemas legais modernos limitam e circunscrevem esta possibilidade, orientando princípios básicos que devem ser observados em sua aplicação: legalidade, proporcionalidade, imparcialidade, dentre outros princípios. A amplitude e a restritividade destas orientações não apenas varia entre os diversos sistemas jurídicos nacionais, como é alvo de um intenso e duradouro debate no campo do direito penal e da criminologia. - -16 2.3 Ótica funcionalista do controle social por meio do Direito Sabadell (2002) e Soriano (1997) dispõem que, pela perspectiva funcionalista da Sociologia do Direito, o controle social é realizado com base em algumas características chave: O Direito se expressaria por meio de uma linguagem conhecida por todos e de conhecimento da população, tendo alto grau de certeza na fixação de modelos de comportamento devido à clareza e publicidade do mesmo. Perspectiva de que os direitos culturais são exprimidos na defesa de atributos particulares, mas cuja defesa possui um sentido universal. Nestes estariam inseridos, segundo o autor, diversas das chamadas lutas “identitárias” modernas, de minorias étnicas, sociais, religiosas ou sexuais. As normas criam modelos gerais de comportamento, os quais devem ser observados por todos que se incluam nas situações-tipo, usualmente de forma independente de especificidades individuais, embora existam exceções. O respeito e o cumprimento das normas de conduta positivadas pelo direito é reforçado por órgãos de poder, instituições e agentes que velam pela observância do ordenamento jurídico, fazendo uso da persuasão, coação e, quando necessário, da violência contra os indivíduos desviantes. De forma alinhada à concepção weberiana, entende-se que o Direito regula cada vez mais esferas do comportamento humano e da vida social com o passar do tempo, fenômeno denominado “juridicização” ou “juridificação". O Direito funciona como instrumento de controle social que se baseia em regras uniformes, seja no âmbito nacional como no internacional – tal característica se associa à generalidade. O Direito é visto como sistema de controle social que exprime os valores e princípios hegemônicos de uma sociedade e que tem a finalidade de garanti-los, sancionando aqueles que lesionam direitos e bens coletivos e individuais. - -17 2.4 Abordagem crítica do controle social por meio do Direito Esta perspectiva funcionalista fundada nas teorias do consenso, como abordado na unidade II, foi alvo de diversas críticas de perspectivas marxistas, liberais e anarquistas, devido ao fato das mesmas limitarem drasticamente as possibilidades de processos de ruptura, conflito e mudanças sistêmicas, vendo estas usualmente como patologias independentemente do conteúdo e das razões dos mesmos (SABADELL, 2002). Desse modo, o campo do funcionalismo seria demasiadamente estático, incapaz de interpretar processos sociais radicais e acabando por adotar uma postura, no limite, conservadora ou superficial sobre a dinâmica social. Às perspectivas do consenso, se opõem as teorias do conflito social. As várias teorias do conflito coincidem em compreender que a sociedade é composta por grupos de interesses estruturalmente opostos, que permanecem em constante situação de disputa pelo poder e geralmente em situação de desigualdade entre uns e outros (SABADELL, 2002). Neste sentido, os grupos detentores do poder em um determinado momento o reforçam por meio da coação e do condicionamento ideológico. Por esta ótima, crises e mudanças sociais são fenômenos comuns na sociedade, sendo expressões objetivas das disputas de interesses, ou da luta de classes, existentes numa comunidade. Sociólogos do conflito levantam uma série de críticas à perspectiva funcionalista, a começar pelo fato de que, na visão destes, há uma confusão entre as funções declaradas do controle social – especialmente aquele efetuado por meio do sistema penal –, relacionadas à dissuasão, à ressocialização e a proteção de bens jurídicos dignos de proteção, e as funções latentes, as finalidades a que concretamente se presta o controle social. Dentre as críticas empreendidas e/ou resgatadas por teóricos do conflito como Baratta (1999) e Anitua (2007), destaca-se primeiramente alegações de ilegitimidade do poder punitivo do Estado capitalista. O controle social, nesta perspectiva, estaria a serviço dos grupos de poder dominantes nesta sociedade, direcionando o sentido das normas em favor de seus interesses pessoais e, ao mesmo tempo, atuando de modo a fazer tais normas terem a aparência de um interesse geral e consensual da sociedade. Estas críticas se associam a uma desnaturalização do crime e do criminoso e concepções etiológicas e ontológicas destes fenômenos. Desvios e crimes são construções sociais contingentes, que variam com a evolução de fatores culturais e da conjuntura política. Eles não coincidem com noções universais e imutáveis do “bem” ou do “mal”. Por exemplo, o tratamento legal dado ao ato de abortar, ou o de se relacionar sexualmente com pessoas do mesmo gênero variam entre diferentes Estados-nação, podendo ser condutas amparadas pela lei ou delitos. - -18 Também incidem questionamentos acerca da existência ou não da culpabilidade pessoal à transgressão de certas normas. Em um contexto de pluralismo cultural e disputas relativas a valores, bem como à influência do contexto na determinação das condutas dos indivíduos, questiona-se a justiça e a correção do exercício do controle social (SABADELL, 2002). - -19 2.5 Ressocialização Dentre as diversas justificativas e “funções” dadas para a utilização da sanção de privação de liberdade, uma das mais disseminadas ao longo do século XX diz respeito à chamada prevenção especial positiva, ou à ressocialização. Esta é conceituada, segundo Luís Carlos Valois (2012, p. 79) como “(...) a reforma moral ou psicológica – aí dependendo daquilo que o reformador acreditar – do criminoso enquanto submetido às instituições punitivas do Estado”. A prisão seria vista, assim, como um recurso e um meio de correção do indivíduo e de preparação do mesmo para o futuro retorno ao convívio social. Esta perspectiva perpassa diversos dos dispositivos que orientam o direito penal brasileiro, como o Código Penal e a Lei de Execução Penal. Entretanto, nas últimas décadas se tornou lugar comum nos debates acadêmicos e jurídicos relacionados ao tema o fracasso, especialmente no caso brasileiro, do sistema penitenciário em alcançar este suposto fim com êxito. Há, no entanto, uma divisão entre setores que atribuem este fracasso à incompetência e à ineficácia da administração do sistema, enquanto outros reforçam a inviabilidade e a falta de respaldo científico inerente ao ideal ressocializador por meio do cárcere (VALOIS, 2012). Inicialmente, há um diagnóstico consolidado do perfil social, racial e econômico que domina as prisões no país: indivíduos em geral do sexo masculino, jovens, de baixa renda, escolaridade e de cor de pele negra. Esta constatação da seletividade estrutural do filtro do sistema penal demonstra e reflete, de saída, a falta de acesso a direitos e de um cenário de vulnerabilidade anteriores aos processos de criminalização. Somando este fato às características do dia-a-dia dos estabelecimentos prisionais do país – marcado por um histórico de violações de direitos humanos, violência, ausência de alternativas laborais, formativas e de lazer, bem como do enfraquecimento de relações familiares e sociais -, tem-se um resultado trágico, mas esperado: altos níveis de reincidência (IPEA, 2015), imposição de um “rótulo” de criminoso no egresso do sistema (questão que fora abordada na menção à teoria do labelling approach na unidade II) e retorno ao convívio social em condições de ainda maior precariedade e vulnerabilidade. A partir desta constatação, o que fazer? Alessandro Baratta (1990) destacaa existência das posições realista e idealista a respeito à justificação da privação da liberdade face à crise do ideal ressocializador. A primeira propõe o abandono deste ideal com o foco no controle social baseado na neutralização e retribuição ao criminoso, tendo, portanto, viés repressivo. A segunda defende a manutenção da justificativa ressocializadora para evitar que seu abandono contribua para o recrudescimento do sistema. O autor rechaça ambas as posições, defendendo, ao mesmo tempo, o reconhecimento da inviabilidade do ideal ressocializador e a substituição do termo pela ideia de reintegração social. Sua ideia pressupõe maior - -20 comunicação e interação entre prisão e sociedade, bem como o incentivo a um processo de reconhecimento mútuo entre reclusos e sociedade “externa” à prisão (BARATTA, 1990). Figura 2 - Presos em Eunápolis (BA) Fonte: Joa Souza, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer vemos na imagem um grupo de presos numa prisão em Eunápolis (BA). - -21 3. Sociologia dos tribunais e democratização da Justiça Ainda que a Sociologia jurídica tenha sido constituída como ramo especializado) apenas a partir de meados do século XX, Boaventura da Souza Santos (1999) recorda que o Direito é um fenômeno social objeto de séculos de produção intelectual e teórica associadas a disciplinas afins, como a Filosofia e a História do Direito. Este fato, associado à consolidação da Ciência Política como disciplina e ao interesse desta nos tribunais como instância de decisão e poder políticos, e ao desenvolvimento da orientação, dentro da antropologia do direito, à análise dos processos e das instituições jurídicas e ao poder destes de estruturarem os comportamentos dos atores destes sistemas, formaram as condições teóricas e concretas para o desenvolvimento da sociologia dos tribunais (SANTOS, 1999). Assista aí https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2 /e46acfcc7232fad3e74e417f8819b1ea - -22 3.1 Acesso à Justiça A expressão “acesso à justiça” pode assumir uma variedade de definições, mas Mauro Cappelletti (1988), afirma que a mesma pode assumir dois significados: inicialmente, refere-se à possibilidade dos indivíduos de reivindicarem direitos e buscarem a resolução de conflitos no âmbito do Judiciário; ao mesmo tempo, se associa à possibilidade das pessoas terem efetivo acesso a resultados justos para si e para o meio social. Trata, portanto, não somente da garantia concreta do Direito de recorrer aos tribunais, mas do atendimento à justiça social dentro e por meio deste espaço (FULLIN, 2013). Como indicado na seção anterior, o surgimento e a consolidação do acesso à justiça com o conteúdo amplo apontado acima dependeram de modificações e transformações históricas a respeito do entendimento inicial, no sentido de que os cidadãos tinham a liberdade e o direito para litigar em defesa de seus interesses (concepção liberal). A assunção de que o acesso à justiça implica na promoção da igualdade social e, portanto, na disposição de condições econômicas, culturais e institucionais concretas para a judicialização de demandas veio no bojo da adoção de políticas dos Estados de bem-estar social nos países ocidentais – normalmente revestidas de proteção legal (FULLIN, 2013). Esta positivação de direitos sociais e a regulamentação crescente das esferas da vida social por meio do Direito contribuiu para a intensificação do recurso aos tribunais para a obtenção de direitos conquistados, processo definido por autores como Vianna et. al (1997) como “a judicialização das relações sociais”. O processo de judicialização se intensificou e adquiriu contornos mais conflituosos a partir das crises econômicas e do desmonte de políticas de bem-estar social nos países centrais a partir do final dos anos 1970. As expectativas da cidadania em pleitear direitos e políticas públicas sucateadas pelos próprios Estados (FULLIN, 2013), associadas ao crescente protagonismo do Judiciário como espaço para resolução de tais questões provocou o fenômeno denominado por Boaventura de Sousa Santos (1999) como “explosão de litigiosidade”. Entretanto, de forma concomitante a este processo, os próprios serviços judiciários destes países tiveram suas capacidades limitadas pela falta de investimento e recursos. A disparidade entre a estrutura existente do sistema e a grande demanda social de garantia de direitos por meio dos tribunais fomentou a “crise da administração da justiça” (FULLIN, 2013). Estes fenômenos estimularam as reflexões de governos em torno de medidas para mitigá-los, bem como fomentaram a investigação e a pesquisa social – onde se insere a Sociologia jurídica e, mais especificamente, a Sociologia dos tribunais –, para identificar e fazer prognósticos sobre gargalos e impedimentos, de ordem institucional, econômica, social ou cultural, ao acesso à justiça pelos cidadãos. - -23 Como resposta a estes desafios, intensificaram-se movimentos por reformas com o objetivo de enfrentar e mitigar as diversas barreiras e desigualdades de acesso à justiça. Mauro Cappelletti, processualista italiano, teve destaque neste processo e identificou a existência de três conjuntos de reforma empreendidos sequencialmente no Ocidente com o objetivo de ampliar e qualificar o acesso à justiça, os quais ficaram usualmente conhecidos como “as ondas do movimento de acesso à justiça”. A primeira onda de aprimoramento do acesso à justiça teria sido representada pelas políticas de investimento público em assistência judiciária gratuita ao público necessitado, visando minimizar as barreiras de caráter econômico no sistema. Este tema foi introduzido no direito brasileiro a partir da Lei nº 1.060, de 1950. Para Cappelletti (1988), a segunda onda buscou enfrentar a questão da representação dos interesses difusos e coletivos, atribuindo legitimidade ativa para coletividades, grupos representativos e atores governamentais - no Brasil, especialmente o Ministério Público e em seguida a Defensoria Pública -, para ingressar em juízo em defesa dos direitos de uma multiplicidade de sujeitos. Por fim, a terceira onda do movimento estaria associada a um complexo de reformas visando modificar as formas de resolução de conflitos, tendo, como alguns de seus objetivos, a agilização, simplificação e a busca de soluções mais mediadas entre as partes (FULLIN, 2013). Nesta perspectiva, insere-se a ampliação da aplicação dos chamados meios alternativos de resolução de conflitos, como a justiça restaurativa, a mediação, a conciliação e a arbitragem. Ainda que tenham sido observados avanços sensíveis no acesso à justiça às minorias sociais, o tema do acesso à justiça permanece um desafio para o Judiciário e para o campo da Sociologia do direito. A flexibilização e simplificação de procedimentos também podem promover e perpetuar assimetrias e desigualdades, o que exige contínua análise e reflexão sobre novos meios para promover a garantia de direitos e a resolução adequada de conflitos sociais. - -24 Figura 3 - Supremo Tribunal Federal em Brasília (DF) Fonte: Diego Grandi, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer Vemos na imagem o Supremo Tribunal Federal em Brasília (DF). Na frente do Tribunal, há uma estátua que simboliza a Justiça. - -25 3.2 Tribunais e movimentos sociais A organização do Judiciário brasileiro, definida por Boaventura de Sousa Santos (2011), se estrutura de forma análoga à de uma pirâmide, onde a posição hierárquica define o prestígio e a influência dos indivíduos no sistema e na qual um pequeno número de juízes no alto desta hierarquia define quase integralmente a linha dos tribunais como um todo. O autor observa que, assim como em Portugal, a transição pós-ditadura destes países pouco modificou a estrutura organizacional dos tribunais, mantendo um cenário de insulamento burocrático, foco dos magistrados no “sucesso” individual de suas carreiras – medido aqui pela escalada hierárquica, não qualidade ou influência do conteúdo e dacorreção das decisões proferidas. Este cenário de isolamento social do Judiciário implicou, também, na falta de discussão de mecanismos de controle democrático da magistratura (SANTOS, 2011). Esta postura passou a ser cada vez mais alvo de críticas de movimentos sociais – como os movimentos negro, indígena e sem-terra –, em relação às insuficientes, atrasadas ou desiguais respostas jurisdicionais às suas demandas. Dentre os questionamentos realizados por estes movimentos, estão a falta de reflexão teórica e social a respeito de inovações e refinamentos nos debates políticos e jurídicos acerca de políticas e conceitos como as cotas raciais, a função social da propriedade e aos direitos dos povos originários. Isso leva à morosidade ou ao desinteresse em proferir decisões liminares ou definitivas em tempo hábil; ou o tácito ou explícito favorecimento ao lado econômica e socialmente favorecido das demandas pela reprodução, no processo, de assimetrias e desigualdades entre as partes. Lidar com este problema implica numa profunda reflexão acerca da estrutura do sistema de justiça não apenas nos métodos de seleção dos profissionais que operam no mesmo, tampouco exclusivamente na atualização do processo formativo dos magistrados, mas também nos métodos de avaliação de desempenho e de definição da promoção na carreira (SANTOS, 2011). Nesse sentido, o cumprimento do potencial dos tribunais em prover materialmente a garantia dos direitos sociais e de mitigar desigualdades históricas que nossa Carta Constitucional se comprometeu a combater implica numa autorreflexão desta instituição acerca de suas funções e de sua responsabilidade sistêmica – mas realizada por meio de demandas individuais ou setoriais – de enfrentar conflitos estruturais existentes no tecido social. Isto implica também em acolher uma concepção atual e ampla de direitos humanos, concebida aqui para além de sua dimensão estritamente individualista, civil e política, incluindo também direitos sociais e econômicos coletivos e difusos. Na apreciação de conflitos relacionados à demandas étnico-raciais históricas, isto demanda a compreensão do papel estruturante da escravidão e do colonialismo na formação da sociedade brasileira, bem como da - -26 permanência de desigualdades sociais e econômicas entre brancos e negros no Brasil. Isto se associa inclusive à escassa presença da população negra no corpo burocrático do Judiciário, especialmente em cargos de maior prestígio. Por outro lado, no que diz respeito aos conflitos associados à terra e à propriedade nos meios rural e urbano, observa-se aqui uma atuação contínua de pelo menos quatro grupos numerosos de movimentos sociais, articulados de forma relativamente autônoma entre si. Além dos movimentos sem-terra, dos quilombolas e de povos indígenas, indicados por Boaventura de Sousa Santos (2011), emergiu com maior força na última década o movimento dos sem-teto e das ocupações urbanas. As demandas históricas destes grupos exigem dos membros do Judiciário sensibilidade e compreensão sistêmica do arcabouço jurídico erigido pós-Constituição de 1988 para uma avaliação parcimoniosa dos direitos de tais atores nas diversas demandas em que a posição dos tribunais será a palavra final. - -27 3.3 Cultura jurídica e independência judicial Nesse sentido, Santos (2011) relaciona a necessidade de se buscar uma equalização entre a necessária garantia da independência do Judiciário e de seus atores – vista como importante conquista democrática –; e, concomitantemente, o desenvolvimento de mecanismos democráticos de controle externo da atividade judicial. Isto se justifica pelo fato de que, na maioria das democracias modernas, o Judiciário é o único dos três poderes no qual seus agentes não obtêm seus cargos direta ou indiretamente relacionados à soberania popular, sendo membros não-eleitos. Este fato, associado a uma estrutura organizacional obsoleta e, no caso brasileiro, do direcionamento de vultuosos recursos financeiros para a administração da justiça (em porcentagem maior do PIB que todos os países desenvolvidos, bem como de outras nações latinoamericanas) – em especial voltada aos altos salários e “penduricalhos”, ou verbas e auxílios adicionais ao salário – contribui para o insulamento excessivo deste Poder e, em consequência, a exacerbação do corporativismo na instituição. Ao mesmo tempo, diversos estudos demonstraram a predominância, dentro do corpo de funcionários do Judiciário, de pessoas de origem social abastada e cujo ambiente familiar e social é, historicamente, afim ao da elite econômica e cultural brasileira. Esta condição pode produzir diversas implicações, como a falta de empatia com a condição de partes desfavorecidas em processos, bem como, numa perspectiva sistêmica, de um ethos conservador e tendente à manutenção do status quo, visto que os próprios juízes, desembargadores e promotores compõem a elite, com interesses materiais e posturas ideológicas conformes. Exemplos da influência de uma cultura jurídica particular, e geralmente conservadora, na prestação jurisdicional concreta não faltam. Um desdobramento marcante deste fenômeno foi observado a partir da ampliação das hipóteses legais de alternativas à prisão no processo penal pátrio, com a inserção de novas possibilidades de medidas cautelares. Embora se esperasse um possível impacto da mudança legislativa na redução da população carcerária brasileira, pesquisas como a do Instituto Sou da Paz (2011) mostraram a permanência da preferência dos magistrados em designar a privação da liberdade de acusados na maioria dos casos, bem como de hipóteses antigas e restritas de medidas cautelares, como a fiança. Este resultado se relaciona diretamente com as os conceitos e preconceitos acerca da figura do acusado, de seu papel no sistema de justiça criminal e das funções do mesmo. Ao invés de julgador imparcial e desinteressado, muitos magistrados passaram a se considerar verdadeiros agentes de segurança orientados pela “luta contra o crime” (INSTITUTO SOU DA PAZ, 2011). Situação parecida foi observada por Santos (2011) após reforma similar ocorrida em Portugal. Nesse país, os pesquisadores captaram outro aspecto relevante que influía na baixa aplicação da medida de cumprimento de - -28 serviços à comunidade: o escasso diálogo e articulação do Judiciário luso com os programas de assistência social e organizações da sociedade civil. Desse modo, Santos (2011) e outros autores perceberam a relevância de se atentar à cultura jurídica para que mudanças sociais e reformas legislativas tenham os resultados concretos almejados: “(...) sem uma outra cultura jurídica não se faz nenhuma reforma” (SANTOS, 2011, p. 84). Nesse sentido, o sociólogo português conclui: “(...) A nossa meta deve ser a criação de uma cultura jurídica que leve os cidadãos a sentirem-se mais próximos da justiça. Não haverá justiça mais próxima dos cidadãos, se os cidadãos não se sentirem mais próximos da justiça. ” (SANTOS, 2011, p. 84). é isso Aí! Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • Discutir o que é o Direito e quais as suas funções nas sociedades contemporâneas. • Estudar perspectivas que consideram o Direito como mecanismo de garantia da solidariedade social, e a daqueles que o veem como instrumento de dominação e consolidação do poder das classes dominantes. • Compreender outras discussões importantes na sociologia jurídica: a do nível de autonomia do direito face à realidade social, e às divisões acerca do papel predominante do ordenamento jurídico – se freio às mudanças sociais estruturais, ou mecanismo útil para a promoção de reformas. • Aprofundar aspectos relativos ao tema do controle social promovido pelo Direito, suas diferenciações internas, características, e abordamos com maior especificidade o formato deste controle social a partir da ótica funcionalista. • Estudar os questionamentos realizados ao controle social do direito – primeiro pelo questionamento e problematizaçãorealizada pelos estudiosos do pluralismo jurídico, e depois destrinchando críticas empreendidas por sociólogos do conflito em relação aos usos, funções e justificativas do poder punitivo do Estado, mostrando como exemplo o discurso relativo às funções de prevenção geral e especial da pena privativa de liberdade e a crise do ideal ressocializador • Compreender a sociologia da aplicação do direito e alguns de seus subtemas: a discussão acerca do acesso à justiça ao longo do século XX, o perfil e a estrutura do Poder Judiciário brasileiro e de seus integrantes, bem como as críticas e questionamentos de movimentos sociais em relação à (baixa) permeabilidade das instituições de justiça às demandas populares, bem como à origem social privilegiada da maioria dos juízes, promotores e desembargadores do país. 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