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A PSICOLOGIA CLÁSSICA: DA ANTIGUIDADE GREGA AO MEDIEVO EUROPEU,1 1 Tradução e edição do professor Sylvio Allan R. Moreira. Alterações no texto são de responsabilidade do tradutor. Parte I. A psicologia na Idade Antiga2 Desde o início da civilização e o estabeleci- mento das primeiras religiões e crenças espiri- tuais, vários sacerdotes, xamãs e líderes espiri- tuais foram responsáveis pelo bem-estar men- tal de seu povo. Dos xamãs aos cabalistas ju- deus, curar a mente era parte importante do caminho espiritual; mesmo que o tratamento fosse formulado em magia e mistério, usando rituais para expulsar demônios. Se definirmos a psicologia como um estudo formal da mente e uma abordagem mais siste- mática para a compreensão e cura das condi- ções mentais, então os gregos da antiguidade certamente foram seus primeiros proponen- tes. Tal como aconteceu com muitos estudos científicos, Aristóteles esteve na vanguarda do desenvolvimento dos fundamentos da psicolo- gia. A psicologia de Aristóteles, como seria de se esperar, estava entrelaçada à sua filosofia da mente, do raciocínio e da ética; mas o mé- todo psicológico começou com sua mente bri- lhante e abordagem empírica. Claro, seria injusto concentrar-se plena- mente na psicologia de Aristóteles, sem estu- dar alguns dos outros grandes pensadores que contribuíram para a história da psicologia; mas seu trabalho certamente é a base de métodos modernos. Qualquer psicólogo moderno de valor entende perfeitamente o pensamento básico aristotélico e reconhece sua contribui- ção para a história da psicologia. 2 Martyn Shuttleworth (19 de junho, 2010). Aristotle's Psychology. Recuperado em 20 de Dezembro, 2017 de Explorable.com: https://explorable.com/aristo- tles-psychology. 1. A psicologia de Platão Dar à Aristóteles o crédito completo por ser o primeiro pensador a desenvolver uma teoria proto-psicológica é ser injusto com al- guns dos outros filósofos da Grécia antiga e além. No entanto, embora haja poucas dúvi- das de que os babilônios e os budistas, entre outros, desenvolveram conceitos envolvendo a mente, o pensamento e o raciocínio, gran- de parte de sua tradição foi transmitida por via oral e, desafortunadamente, perdida. Por esta razão, os gregos da antiguidade fornece- ram um ponto de partida útil, à medida que aprofundamos nossa investigação sobre a história da psicologia. O mestre de Aristóteles, Platão , forneceu algumas informações úteis sobre a estrutura teórica da mente humana, baseada, em gran- de parte, em sua elegante TEORIA DAS FOR- MAS. Platão usou a ideia de uma psiché, uma palavra usada para descrever tanto a mente como a alma, para desenvolver uma estrutu- ra áspera do comportamento humano, do ra- ciocínio e dos impulsos. Platão propôs que a mente humana fosse o lugar de todo o conhecimento e impressa comtodo o conhecimento que o homem pre- cisava. Como resultado, aprender era uma questão de desbloquear e utilizar esse conhe- cimento incorporado, um processo que ele chamou de ANAMNESE. Em sua famosa obra, A REPÚBLICA, Platão desenvolveu essa ideia e propôs, pela primei- ra vez, a ideia de que a mente consistia de três partes entrelaçadas, chamadas de MEN- TE TRIPARTITE. a) logistikon: o intelecto, o assento do racio- cínio e da lógica. 2 https://explorable.com/aristotles-psychology https://explorable.com/aristotles-psychology b) thumos: o centro espiritual da mente e res- ponsável pelas emoções e pelos sen- timentos. c) epithumetikon: governa os desejos e ape- tites (impulsos). Segundo Platão, a mente saudável envolve- ria um equilíbrio entre as três partes, e uma dependência excessiva sobre essas partes le- vava à expressão da personalidade. Por exem- plo, a gula e o egoísmo podem ser explicados pelo domínio do epithumetikon, permitindo que os desejos governem o comportamento. Em A REPÚBLICA, um tratado voltado a teo- rizar a sociedade perfeita, Platão propôs que os governantes de tal sociedade, aqueles que determinavam o rumo e a política, deveriam ser selecionados dentre os homens onde o lo- gistikon dominava. Indivíduos com um forte epithumetikon seriam excelentes comercian- tes e produtores de riquezas, enquanto que o thumos, que pode ser identificado com a von- tade e a coragem, é o domínio do soldado. Mais tarde, Platão renunciou a sua ideia de uma mente tripartite e retornou a propostas anteriores de uma explicação dualista para a mente, equilibrada entre o intelecto e o dese- jo. No entanto, essa divisão de três caminhos ressurgiria na ideia de Aristóteles de uma trin- dade de almas; com base na ideia prevale- cente em muitas sociedades e religiões, que deram uma reverência ao número três, os psi- canalistas do século XX mantiveram a ideia de uma mente humana equilibrada entre três ins- tâncias psíquicas (id, ego e superego). 2. A psicologia de Aristóteles Aristóteles, a partir do trabalho dos filóso- fos anteriores a ele e de seus estudos sobre a mente, sobre o raciocínio e o pensamento, escreveu o primeiro tratado conhecido na história sobre psicologia, Peri Psychēs (greg. Περὶ Ψυχῆς, lat. De Anima, port. Sobre a alma, c. 350 a.C.). Neste trabalho histórico, ele apresentou os primeiros princípios do es- tudo do raciocínio, os quais determinaram a direção da psicologia; muitas das suas pro- postas continuam a influenciar os psicólogos modernos. Nesta obra (consistindo de três volumes), a definição de psychēs (greg. Ψῡχή, lat. Anima), como era comum na época, usava MENTE e ALMA de forma intercambiável, sem a necessidade dos filósofos gregos anti- gos de fazer a distinção entre os dois. Nesse período, com exceção do ateísmo de Theodo- rus, os filósofos gregos consideravam a exis- tência da influência divina como um fato. So- mente Sócrates realmente questionou se o comportamento humano e a necessidade de ser uma "pessoa boa" eram motivados pela busca da felicidade pessoal, em vez de apazi- guar uma vontade divina. Em Peri Psychēs, Aristóteles propôs que a mente fosse a PRIMEIRA ENTELÉQUIA, ou principal razão para a existência e o funciona- mento do corpo. Esta linha de pensamento foi fortemente influenciada pelos estudos de Aristóteles sobre zoologia, que propôs existi- rem três tipos de almas que definem a vida: a alma da planta (vegetativa), a alma animal (sensitiva) e a alma humana (racional). Essa alma humana foi o último elo com a divinda- de, de modo que Aristóteles acreditava que a mente e a razão poderiam existir indepen- dentemente do corpo. 3 Aristóteles foi um dos primeiros a examinar as motivações e os impulsos que regem e defi- nem a vida, acreditando que a libido e o dese- jo de se reproduzir são o impulso primordial de todos os entes vivos, influenciados pela alma vegetativa. Aristóteles ligou parcialmente tal impulso reprodutivo ao processo de alcançar a imorta- lidade e cumprir os propósitos de uma mente divina, muitos séculos antes de Darwin formu- lar sua teoria evolucionista por seleção natu- ral. Isto é um bom exemplo dos grandes avan- ços mentais intuitivos que definiram o legado de Aristóteles. Continuando com esta linha de pensamen- to, Aristóteles tentou abordar as relações en- tre impulsos e desejos na mente humana, muitos anos antes de Freud ressuscitar, com sua teoria psicanalítica, alguns dos princípios básicos da psicologia de Aristóteles. Aristóte- les acreditava que, ao lado da libido, estavam o desejo e a razão, duas forças que determi- nam as ações. Segundo a psicologia de Aristóteles, per- mitir o desejo dominar a razão levaria a um desequilíbrio insalubre e à tendência de reali- zar ações ruins. Aqui, o pensamento de Aris- tóteles criou um paradigma que permaneceu incontestável por séculos e que ainda sustenta o trabalho da psicologia e da filosofia moder- nas, onde o desejo é renomeado como emo- ção, e a razão, como racionalidade. Incomumente, Aristóteles também enten- deu a importância do tempo sobreas ações de uma pessoa, onde o desejo está voltado para o presente e a razão está voltada para o futu- ro e para as consequências a longo prazo. Com uma aparente e ligeira divergência da socio- logia, para Aristóteles, este curto prazo e a busca por resultados imediatos é uma das forças motrizes por trás dos colapsos econô- micos, da degradação ambiental e do populis- mo político. Talvez mais pessoas devessem estudar Aristóteles e suas ideias sobre o que motiva o comportamento humano. Ele pode, com bas- tante legitimidade, ser chamado de o “pri- meiro behaviorista” e base dos trabalhos de B. F. Skinner e I. Pavlov, dois dos nomes mais famosos na história da psicologia contempo- rânea. A psicologia de Aristóteles incluiu um estu- do sobre a formação da mente humana, como uma das primeiras digressões no deba- te NATUREZA vs. APRENDIZAGEM, que influ- enciou muitas disciplinas acadêmicas, como psicologia, sociologia, educação, política e ge- ografia humana. Aristóteles, ao contrário de Platão, era um defensor da aprendizagem, afirmando que a mente humana estava vazia no nascimento e que educar o indivíduo, ex- pondo-os às experiências, definiria a forma- ção de sua mente e construiria um repositó- rio de conhecimentos. 3. Psicologia e medicina na Grécia Antiga. Platão e Aristóteles adotaram uma abor- dagem filosófica e abstrata para definir o comportamento humano e a estrutura da mente; mas essa não foi a única contribuição dos filósofos helenísticos. O desenvolvimento da medicina grega na antiguidade introduziu o estudo da fisiologia na história da psicolo- gia, propondo haver condições físicas subja- centes à muitas doenças mentais. O principal representante foi o pai da medicina, HIPÓC- RATES, que propunha que a epilepsia tem 4 uma causa física, em vez de ser uma maldição enviada pelos deuses. Ao contrário de Aristóteles, que via o cora- ção como a sede do pensamento e da razão, Hipócrates entendeu a importância do cére- bro. Este debate continuou, com médicos como Praxágoras ainda sustentando que o co- ração e as artérias ligavam o pensamento, através de um fluido misterioso chamado pneuma. Em um experimento, Herophilus e Erasis- tratus receberam a permissão do governante de Alexandria, no Egito, para realizar vivissec- ções em criminosos e determinaram que o sis- tema nervoso e o cérebro controlam o corpo e, portanto, são o núcleo da razão. No entan- to, eles ainda acreditavam que o coração en- via pneuma para todo o corpo, além de con- trolar processos inconscientes, como o meta- bolismo. Em contraste, os nervos enviam pneuma "psíquico" para todo o corpo. Essas experiências trouxeram muita informação, mas introduziram a ética médica na história da psicologia, um debate que hoje se desdobra. Embora seus estudos tenham sido abominá- veis quando analisados através da lente da história, a história da psicologia do século XX também inclui alguns pontos de referência in- fames e indesejados. Após Hipócrates, foi o médico GALENO quem forneceu o elo entre os gregos antigos e a psicologia islâmica. De origem grega, este brilhante médico e pesquisador ganhou o res- peito de sucessivos imperadores romanos por sua habilidade e capacidade, e continuou a produzir volumes de trabalho cobrindo muitos aspectos da condição humana, da psicologia à cirurgia ocular. Ele propôs a ideia dos QUATRO HUMORES no corpo humano, cada um, res- ponsável por um aspecto diferente da condi- ção humana; e acreditava que um desequilí- brio entre os quatro humores afeta o bem- estar físico e mental. Esta abordagem holística da medicina liga- va inextricavelmente a mente ao corpo, um aspecto somente recentemente retomado pela medicina moderna, que ainda tende a tratar as condições físicas e os sintomas sem muito atentar à saúde mental e vice-versa. Os quatro humores, segundo Galeno, são: a) Sanguíneo: o sangue, relacionado ao ele- mento ar e fígado, dita a coragem, a espe- rança e o amor. b) Colérico: a bile amarela, relacionada ao elemento fogo e à vesícula biliar, pode le- var ao mau humor e à raiva excessiva. c) Melancólico: a bile negra, associada ao elemento terra e baço, leva à insônia e irri- tação. d) Fleumático: fleuma, associado ao ele- mento água e cérebro, responsável pela racionalidade, mas supressor das emo- ções. Galeno acreditava que o equilíbrio desses quatro humores é influenciado pela localiza- ção, dieta, ocupação, geografia e uma série de outros fatores. Embora essa ideia de hu- mores esteja incorreta, influenciou o pensa- mento médico e psicológico durante séculos e foi desenvolvida ainda mais pelo grande es- tudioso islâmico Ibn-Sina (Avicena). Essa ideia de olhar para todo o corpo e a mente, em vez de culpar a feitiçaria e os es- píritos, certamente influenciou a medicina e a história da psicologia, embora algumas das curas usadas para aliviar a acumulação de um humor, como a sangria, fossem prejudiciais. 5 Para os comentadores modernos, a ideia dos humores parece um pouco primitiva e ba- seada em um conhecimento limitado da psico- logia. No entanto, a importância de Galeno está não na natureza exata de sua teoria, mas pelo fato de que suas ideias terem sido o pri- meiro paradigma a se afastar da ideia de con- dições mentais tendo uma fonte sobrenatural, e por buscar respostas na fisiologia. Não é surpresa que o trabalho de Galeno sobre a psicologia e a mente, bem como, so- bre outras disciplinas, se tornou a espinha dor- sal da redescoberta islâmica dos gregos; suas ideias foram copiadas e acrescentadas pelos estudiosos islâmicos. 4. Conclusão Há poucas dúvidas de que os gregos da an- tiguidade estabeleceram o rumo da psicologia contemporânea, embora também se deva o respeito aos estudiosos chineses, indianos e persas, que fizeram contribuições fora do es- copo desta história da psicologia, mas que in- fluenciaram o pensamento contemporâneo de muitas formas diferentes. A expansão islâmica foi um ponto culmi- nante deste processo e uma integração do pensamento grego antigo aliado à sabedoria dos estudiosos do Oriente Médio e do Leste, pois eles atraíram o conhecimento de todo o mundo conhecido. A “era de ouro” islâmica preservou a psicologia de Aristóteles, expan- diu-a e transferiu-a aos europeus medievais. As raízes da psicologia certamente começaram lá e as crenças dos gregos antigos também in- fluenciaram a sociologia, a geografia e a teoria econômica. ... Parte II. A psicologia islâmica3 A história da psicologia foi moldada pela sa- bedoria antiga grega durante muitos séculos, até que os estudiosos islâmicos levassem os textos gregos para as grandes Casas da Sabe- doria. Lá, eles desenvolveram suas próprias ideias e surgiu uma psicologia islâmica que, mais tarde, influenciaria a Europa. Enquanto a psicologia islâmica manteve o traço helênico de olhar integralmente a mente, a filosofia e o espírito, os estudiosos do Oriente Médio também começaram a desenvolver uma abordagem mais prática da psicologia. A psicologia islâmica baseou- se em procurar formas de tratar e curar, em vez de apenas teorizar. Tal como acontece com a psicologia grega antiga, é importante lembrar que os estudiosos muçulmanos não tinham um termo específico para a psicolo- gia e não se identificavam como psicólogos. Os estudiosos islâmicos não praticaram a disciplina no sentido moderno da palavra e a envolveram com sua abordagem holística e padrão de questões médicas. No entanto, seu trabalho de estudar a mente e propor tratamentos para condições mentais é extremamente importante, e sus- tenta muitas de nossas técnicas contemporâ- neas, mesmo que muitas das teorias tenham sido formuladas em termos filosóficos e teo- lógicos. Enquanto muitos estudiosos islâmi- cos contribuíram para a história da psicolo- gia, e o trabalho dos outros tenha sido esque- cido com o tempo, algumasgrandes mentes merecem seu lugar entre os melhores psicó- logos contemporâneos. 3 Martyn Shuttleworth (16 de Março, 2010). Islamic Psychology. Recuperado em 24 de Dezembro, 2017, de Explorable.com: https://explorable.com/ islamic-psychology. 6 https://explorable.com/islamic-psychology https://explorable.com/islamic-psychology 1. A psicologia de Ibn Sina (ou Avicena) Ibn Sina foi a principal influência na história da psicologia islâmica, levando as ideias dos fi- lósofos gregos da antiguidade e adaptando-as para se encaixar à doutrina islâmica. Avicena começou com a ideia de Aristóteles de que os humanos possuíam três faculdades da alma (vegetativa, sensitiva e racional). As duas pri- meiras ligam os humanos à Terra, e a alma ra- cional os conecta à Deus. Do mesmo modo, a psicologia islâmica de Avicena propôs que os cinco sentidos exter- nos, compartilhados com os animais, são liga- dos à Terra. Ele acreditava que a capacidade de raciocinar deu à humanidade uma conexão única com o divino. Avicena tentou atribuir certas habilidades mentais a partes específicas do cérebro, mas a proibição islâmica à disseca- ção impediu-o de reunir evidências observaci- onais para apoiar suas teorias. Avicena também propôs que os humanos possuem sete SENTIDOS INTERNOS para com- plementar os cinco sentidos externos. Na longa história da psicologia, essa foi uma das primeiras tentativas para tentar entender a maneira como a mente e o raciocínio operam: a) Sentido comum: agrupa a informação cole- tada pelos sentidos externos. b) Imaginação Retentiva: lembra a infor- mação recolhida pelo sentido comum. c) Imaginação animal compositiva: permite que todos os animais aprendam o que de- vem evitar e o que eles devem buscar ativa- mente em seu ambiente natural. d) Imaginação humana compositiva: ajuda os humanos a aprender o que evitar e o que procurar no mundo à sua volta. e) Poder Estimativo: a capacidade de fazer julgamentos inatos sobre o ambiente cir- cundante e determinar o que é perigoso e o que é benéfico. Por exemplo, um medo inato e instintivo de predadores. f) Memória: responsável por lembrar de toda a informação desenvolvida pelos ou- tros sentidos. g) Processamento: a capacidade de usar toda a informação; é o mais alto dos sete sentidos internos. As teorias de Avicena incorporaram mais sentidos internos do que a ideia de Aristóte- les sobre as três almas, mas ele permaneceu fiel às ideias do equilíbrio interno de Aristóte- les. Em termos práticos, a psicologia de Avi- cena levou-o a desenvolver uma variedade de curas para doenças mentais, e a desenvolver terapias rudimentares para curar doenças, utilizando medo e músicas. Esta contribuição para a história da psicologia finalmente der- rubou a crença de que as doenças mentais são sobrenaturais ou causadas por demônios e espíritos malignos. O estudioso islâmico também entendeu a importância do vínculo entre mente e corpo, propondo que uma pessoa pode superar do- enças físicas ao acreditar que pode melhorar. Por outro lado, Avicena acreditava que uma pessoa saudável pode ficar fisicamente doen- te se acreditar estar doente, somando doen- ças PSICOSSOMÁTICAS ao vocabulário da his- tória da psicologia. Esta ligação mental e físi- ca formou a base de sua abordagem aos transtornos mentais e ele documentou meti- culosamente muitas condições, incluindo, de- lírios, distúrbios da memória, alucinações, pa- ralisia pelo medo e uma série de outras con- dições. 7 Certamente, Avicena está na história da psicologia como o erudito que primeiro usou uma abordagem reconhecível para psicólogos clínicos contemporâneos. No entanto, a me- todologia ainda estava atrelada à ideia de uma alma e consciência humana superior. 2. Psicologia e ética de Al Razi Muhammed Zakariyah-e-Razi, conhecido como Razi ou Rhases, no Ocidente, foi um dos grandes sábios islâmicos que contribuíram para muitos campos. Além de seus volumes de trabalho em outras áreas, Razi fez algumas ob- servações interessantes sobre a mente huma- na. Em seu livro, TEBAL-FONOON, ele fez algu- mas postulações sobre condições emocionais humanas e fez sugestões para seu tratamento. Além disso, ele contribuiu para a psicologia com observações astutas sobre a ética médica e o uso da terapia de condicionamento, sécu- los antes dos psicólogos comportamentais do século XX. 3. A psicologia e o misticismo de Al Ghazali A abordagem pragmática dos estudiosos muçulmanos em relação a doenças mentais continuou, e eles foram os principais motores por trás da criação de hospitais e clínicas dedi- cadas à pesquisa e cura. O grande estudioso e místico sufí, Al-Ghazali, escreveu o livro IHYA, que apontou que as crianças são naturalmen- te egocêntricas. Sua psicologia propôs que os desejos das crianças raramente incluem as possíveis consequências para os outros. Al Ghazali também acreditava que o medo é uma condição aprendida, ensinada a crianças ou adquirida através de experiências negativas. Como místico sufí, Al-Ghazali acreditava firmemente que a INTROSPECÇÃO e a AUTO- ANÁLISE são as chaves para a compreensão de problemas mentais e o desbloueio de ra- zões ocultas. Podemos nos questionar como a influência do misticismo oriental afetou esse método particular de auto-avaliação, uma técnica que Al Ghazali usou sobre si mesmo. Ele também trouxe para a psicologia a ideia das NECESSIDADES, propondo que a personalidade humana deseja cumprir deter- minados desejos, com base na fome e na rai- va. A FOME dirige emoções, como os impul- sos sexuais, a sede e a fome; enquanto a IRA provoca fúria, frustração e vingança. Esta di- visão é muito simplista, quando comparada a ideias relativamente modernas, como a HIE- RARQUIA DAS NECESSIDADES, de Maslow, mas forneceu algumas diretrizes para catego- rizar construtos mentais. 4. Outros nomes da psicologia islâmica Ibn-Khaldun (1332 – 1406 d.C.) acrescen- tou ainda ao depositório de conhecimento, propondo que o ambiente de um indivíduo e o meio ambiente local moldam sua personali- dade. Esta visão perspicaz atuou como um precursor de ideias contemporâneas, como o relativismo cultural e o histórico debate NA- TUREZA vs. CULTURA. Ele seguiu os passos de Aristóteles e Avicena ao acreditar que a men- te é uma tábula rasa, e que o comportamen- to humano é moldado apenas pela experiên- cia e pela educação. 8 Najib ad-Din Samarqandi, contemporâneo a Al-Razi, escreveu extensivamente sobre vários transtornos mentais, como depressão, para- nóia, complexo de perseguição, disfunção se- xual e neuroses obsessivas, etc. Sua aborda- gem, baseada na observação, certamente in- fluenciou muitos outros estudiosos islâmicos no campo da psicologia. 5. Conclusão. A perspicácia dos estudiosos islâmicos em relação aos problemas mentais produziu me- lhorias no tratamento dos casos. Os governan- tes islâmicos criaram hospitais especializados em grandes centros do mundo islâmico, no iní- cio do século VIII. Embora essa inovação não significou que cada paciente recebesse trata- mento, e a superstição ainda exercia influên- cia em amplas partes do mundo islâmico, foi uma melhoria nas ideias sobre possessão de- moníaca e maldições por bruxas. Certamente, os estudiosos islâmicos foram fundamentais em equiparar a doença mental com doenças físicas, entendendo que mente e corpo compartilham um vínculo tangível. Isso levou a muitos avanços no estudo da mente, como a criação de hospitais e o reconheci- mento de uma série de doenças mentais. Embora haja poucas dúvidas de que esta psicologia islâmica estava ligada à teologia is- lâmica e à religiosidade da alma, os estudiosos muçulmanos removeram ideias sobre pos- sessão demoníaca ou doenças espirituais do cânone da medicina. Suas observações meti- culosas certamente criaram os alicerces da psicologia e influenciaram pensamentos e teo- rias subsequentes. … Parte III. A psicologiamedieval4 Do ponto de vista da psicologia e da psiquia- tria contemporâneas, é muito fácil olhar para o passado e assumir que estas são ciências avançadas, embora com raízes no Renasci- mento e no Iluminismo. Antes deste período da história europeia, a Idade Média, muitas vezes chamada de Idade das Trevas, é um pe- ríodo em que a percepção comum pressupôs que a posse demoníaca, feitiçaria e supersti- ção definem a doença mental. No entanto, a realidade é muito mais sutil. 1. As raízes da psicologia e da psiquiatria contemporâneas A psicologia contemporânea desenvolveu- se rapidamente, transformando-se de uma disciplina considerada “pseudo-científica” para uma “verdadeira” ciência em pouco mais de um século. Qualquer estudante de psicologia pode citar Freud e Skinner, reco- nhecendo que a psicologia gradualmente se tornou quantitativa e não especulativa. Avançando mais longe, muitos apontam para a Revolução Científica e o Iluminismo no século XVIII como eventos em que o estudo da mente realmente começou, já que a psico- logia começou a divergir da teologia, embora ainda possuísse uma raiz forte na filosofia e na metafísica. Filósofos-psicólogos como Des- cartes (1596-1650) e Kant (1724-1804) estu- daram a mente, a alma e a natureza do pen- samento. 4 Martyn Shuttleworth (). Psychology in the Middle Ages (Part I). Recuperado em 21 de Dezembro, 2017, de Explorable.com: https://explorable.com/ middle-age-psychology. 9 https://explorable.com/middle-age-psychology https://explorable.com/middle-age-psychology Voltando ainda mais através dos tempos, podemos olhar para os estudiosos islâmicos da “era de ouro” islâmica. Sábios como Avi- cenna e Al-Hazen foram os primeiros acadêmi- cos a estudar a mente e a reconhecer a psiqui- atria, propondo que doenças mentais são do- enças, em vez de espíritos ou de proveniência divina / satânica. Também podemos afastar- nos da perspectiva eurocêntrica e analisar a influência da Índia, da China, da Pérsia e de outras culturas, onde o estudo da mente e sua relação com o eu, o universo e a percepção eram importantes. 2. Europa Medieval e o estudo da mente Comumente conhecida como “Idade das Trevas” (séculos VI ao XIII), esse período co- meçou quando o Império Romano do Ociden- te caiu em um declínio terminal, um período que imediatamente (mas erroneamente) asso- ciamos à superstição e ao medo. Este período terminou com o Renascimento, quando estu- dos empíricos sobre a anatomia sentaram as bases para a Revolução Científica; e com o próprio Iluminismo, quando os grandes empi- ristas investigaram a mente. No entanto, a mente humana realmente foi negligenciada durante a Idade Média? Esta era realmente uma era de superstição, caça às bruxas e possessão demoníaca? Na realidade, o nome "Idade das Trevas" é um pouco enga- nador, mesmo para aquele período abrangen- do os séculos V ao X. Embora a guerra, a fome e a doença tenham restringido o esforço cien- tífico na Europa, muitos filósofos e teólogos contribuíram para o corpo do conhecimento humano. Estudiosos como Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino e Roger Bacon fizeram ob- servações astutas sobre o funcionamento da mente humana, fornecendo uma base para o Renascimento. No Oriente, o Império Bizanti- no preservou o conhecimento dos gregos an- tigos, e filósofos como o judeu Symeon Seth (século XI) e Niketas Stethatos (1000 – 1090 d.C.) estudaram a natureza dos sonhos e das emoções, além de estudar distúrbios mentais e o cérebro. Compreender o trabalho desses estudio- sos requer olhar para a história da Europa após a queda de Roma, no século V. Naquele momento, a Europa foi destruída pela insta- bilidade política, sócio-econômica e cultural, que trouxe dificuldades, fome, doenças e guerras. Este período também inaugurou o domínio do cristianismo, por isso não é sur- preendente que os primeiros estudiosos da mente na Europa medieval também fossem teólogos cristãos. 3. O surgimento da Filosofia Cristã5 Durante todo o período que abrangeu o declínio e a queda do Império Romano, até os primeiros vislumbres do Renascimento, a teo- logia e as doutrinas da Igreja Católica domi- naram a maior parte da Europa Ocidental. O crescimento do catolicismo e da ortodoxia oriental levou o paganismo e outras crenças não-cristãs à periferia, delineando o mundo em cristãos vs. não-cristãos. Embora haja algum desacordo sobre a ex- tensão da Idade Média, ela é considerada 5 Martyn Shuttleworth. Psychology in the Middle Ages (Part II). Recuperado em 22 de Dezembro, 2017, de Explorable.com: https://explorable.com/ middle-age-psychology -2 . 10 https://explorable.com/middle-age-psychology-2 https://explorable.com/middle-age-psychology-2 como o período desde a queda do Império Ro- mano e o saque de Roma pelos godos, em 467 d.C., até a conquista da cidade de Constanti- nopla, pelos turcos, em 1453 d.C. Durante este período, a Europa atravessou uma série de transformações sociais, econômicas e políti- cas, à medida que a estabilidade trazida pelos romanos desmoronou. O estudo da mente na Idade Média era um pouco diferente do atual, principalmente, por- que mente e corpo estavam inextricavelmente ligados. A psicologia medieval foi descrita em termos metafísicos, com base na ideia de que havia conexão entre Deus e a mente. O estudo da mente certamente não foi negligenciado durante a Idade Média. De fato, muitos teólo- gos e estudiosos cristãos se concentraram em tais estudos, como parte da busca para enten- der o vínculo entre a humanidade e Deus. Os teólogos cristãos da Europa medieval re- correram às ideias judaicas sobre a natureza de Deus, a saber, que Deus é o criador supre- mo, transcendendo o domínio físico. Os seres humanos são o pináculo da criação, e são con- siderados superiores aos animais, capazes de pensar e possuindo uma alma que liga cada ser humano individual ao divino. Em Alexan- dria, essas ideias se fundiram à filosofia grega clássica e, a partir dessa fusão de culturas e fi- losofias, surgiu a FILOSOFIA CRISTÃ. Este novo paradigma moldaria as atitudes predominan- tes em relação à mente por séculos. 4. Agostinho, o primeiro psicólogo do Oci- dente6 6 Martyn Shuttleworth (9 de outubro de 2011). Psy- chology in the Middle Ages. Recuperado em 21 de dezembro, 2017 de Explorable.com: https://explora- ble.com/middle-age-psychology-st-augustine. Neste sistema de crenças cristão chegou Santo Agostinho, muitas vezes rotulado como o primeiro psicólogo, embora também fosse um excelente filósofo que estudou sistemas políticos e a noção de moralidade. S. Agosti- nho obteve muito do seu conhecimento de sua vida pré-cristã, quando estudou os gran- des filósofos gregos da Antiguidade Clássica, antes de se converter ao cristianismo, aos 33 anos. Ao adotar uma vida monástica, ele se dedicou a estudar filosofia e teologia, e sua obra abrangeu, a transformação do pensa- mento europeu, quando se afastou da in- fluência dos gregos e dos romanos para a nova sociedade cristã. Durante este período da história, a Europa Ocidental estava em tumulto pela queda do Império Romano, pelos ataques bárbaros, pela guerra, fome e doenças. Contra este pano de fundo, e com a destruição de tudo o que sabia, S. Agostinho cessou de tentar en- tender o que estava acontecendo. Em vez dis- so, em busca de estabilidade, ele tentou visu- alizar uma sociedade perfeita e pacífica, refle- tindo a República de Platão. Este período par- ticular da história proporcionou a centelha para seu interesse na psicologia, enquanto tentava reconciliar suas novas crenças cristãs com o mundo ao seu redor, combinando a abstração de Platão ao pragmatismo de Aris- tóteles. Este conflito despertou o interesse de S. Agostinho no estudo da mente humana, por- que ele acreditava que a mente é a interface entre Deus e o homem, algo que ele apontou em seu tratado, CONFISSÕES.Adotando uma linha introspectiva, Santo Agostinho argu- mentou que estudar a mente lhe permitiria compreender Deus. 11 https://explorable.com/middle-age-psychology-st-augustine https://explorable.com/middle-age-psychology-st-augustine De muitas maneiras, S. Agostinho foi o pri- meiro filósofo a propor que os seres humanos possuem um "eu interior" (self), acreditando que uma pessoa saudável possui unidade inte- rior, enquanto que o desequilíbrio interior leva à doença. Treinado em retórica, S. Agosti- nho usou suas CONFISSÕES para relacionar sua própria vida e luta; mas ele usou isso ha- bilmente para pintar um quadro mais amplo, para que um indivíduo pudesse escapar do materialismo e encontrar a espiritualidade e a salvação. Como neo-platonista, S. Agostinho abordou muitas áreas da psicologia, combinando-as com a filosofia e a teologia cristãs. Por exem- plo, ele abordou as motivações dos bebês, bem como, a memória, as origens do sofri- mento e os desejos inconscientes e as motiva- ções dos sonhos. Ele apontou que os bebês são egocêntricos e não socialmente conscien- tes. Ele também argumentou que o medo do castigo é uma barreira para crianças aprende- rem, porque o medo do castigo limita a curio- sidade, que ele acreditava ser a maneira mais fácil de aprender. Ao discutir o sofrimento e as emoções em geral, ele os retratou como parte de sua ideia mais ampla de turbulência interna e da batalha entre Deus e o “eu interior”. S. Agostinho olhou também para a relação mente-corpo, acreditando que a mente é su- perior ao corpo, mas que ambos são essenci- ais para a constituição da pessoa. S. Agostinho olhou para a natureza dos so- nhos, reconhecendo que o pensamento e os impulsos que são reprimidos enquanto acor- dados podem ser extremamente fortes nos so- nhos. Ele argumentou que não há pecado nos sonhos, então eles não devem afetar a cons- ciência de um cristão, mas também apontou que experiências passadas podem surgir nos sonhos. As lembranças podem ser enterradas na mente inconsciente e ressurgirem nos so- nhos, onde não podem ser reprimidas pela razão. 5. A memória, segundo Santo Agostinho. S. Agostinho acreditava que a MEMÓRIA é o aspecto mais importante da mente, porque é a raiz do funcionamento psicológico. Ele ar- gumentou que todas as habilidades e os hábi- tos são derivados da memória, e que até mesmo os animais devem ter a capacidade de rememorar para agirem. Expandindo esta questão, S. Agostinho propôs uma dupla função da memória: o RE- CONHECIMENTO e a REMEMORAÇÃO. Os hu- manos lembram das coisas na memória sen- sorial, mas o amadurecimento dessas lem- branças é obscurecido na memória afetiva. Esta memória dupla foi baseada no princípio de que uma lembrança do evento é diferente do conhecimento do evento original. Por exemplo, uma lembrança não evoca necessa- riamente as mesmas emoções sentidas na época do evento. Portanto, o reconhecimen- to e a rememoração são processos distintos. S. Agostinho desenvolveu essa dualidade interessante, porque identificou que os pro- cessos mnemônicos são extremamente com- plexos, a saber: (i) algumas coisas são facil- mente lembradas, (ii) algumas exigem maior esforço para ser lembradas, (iii) outras são di- fíceis de ser lembradas; (iv) algumas memó- rias são ordenadas e sequenciais, enquanto que (v) outras memórias são desorganizadas e espontâneas. Ele também analisou o paradoxo do ES- QUECIMENTO: se algo é esquecido, mas de- 12 pois lembrado, como saber se o conhecimento presente é o mesmo conhecimento que se possuía outrora, mas que fora esquecido? Para superar esse paradoxo, S. Agostinho acrescentou que deve haver uma memória para as coisas esquecidas, funcionando con- juntamente à memória. Finalmente, S. Agostinho acreditava que os humanos nascem com algum conhecimento inato, embora ele rejeitasse a ideia de conhe- cimentos de “vidas anteriores”, pois isso não combinava com sua visão de mundo teológica. 6. Predestinação e conflito interno Santo Agostinho também analisou a ques- tão da “predestinação”, a saber: se Deus é oni- potente e onisciente, Ele tira a vontade de um indivíduo, sabendo o que este deve fazer? A resposta de S. Agostinho é negativa, pois a vontade se situa no centro do ser humano. Uma pessoa tem o controle de seus pensa- mentos e, portanto, pode escolher entre exer- citar sua vontade e autodisciplinar-se ou se- guir a luxúria e submeter-se aos seus desejos carnais. Isso cria hábitos, baseados em expe- riências passadas; e é necessária a graça de Deus para ajudar o homem a se afastar da compulsão e dos impulsos básicos. S. Agostinho propôs que todas as pessoas travam uma luta interna, uma batalha do “eu interior” contra Deus; ele extrapolou esta ideia, propondo que as lutas e o caos do mun- do ao seu redor também são manifestações desse conflito particular. Ele acreditava que os problemas de personalidade e os mecanismos psicológicos de defesa alimentam esta luta in- terna entre como um indivíduo deseja se com- portar e como este deveria se comportar. S. Agostinho acreditava que o amor está no centro da felicidade, que o desejo leva à desordem e que essa é a fonte do sofrimen- to: por exemplo, o desejo por algo que não se pode ter leva à angústia. Ele acreditava que o importante para reparar essa desordem é o desenvolvimento do “amor incondicional”, que reorganiza a mente. 7. O declínio do individualismo7 Na cultura contemporânea, muitas vezes tendemos a estudar o indivíduo no contexto do indivíduo, analisando os diferentes dese- jos, necessidades e cognições que influenci- am a cada um de nós. Na Idade Média, este não era necessariamente o caso, e as dificul- dades enfrentadas pelos europeus levaram- nos a olhar para os indivíduos como parte de um quadro mais amplo, baseado na batalha do bem contra o mal. A doença mental não foi vista como algo que afetava um indivíduo, mas como condição que desempenhava um papel no conflito da humanidade entre virtu- de e vício. Após S. Agostinho, eventos mais amplos afetaram o estudo da mente humana e da ciência em geral. A ciência e a filosofia geral- mente prosperam em sociedades mais desen- volvidas, porque uma sociedade afluente pode permitir que os filósofos, estudiosos e poetas enriqueçam a cultura. Por outro lado, uma sociedade menos desenvolvida se preo- cupa com aspectos mais pragmáticos e as tri- bulações da primeira Idade Média agiram como um terreno fértil para a superstição e não para a ciência. 7 Martyn Shuttleworth (). Psychology in the Middle Ages (Part IV). Recuperado em 22 de dezembro, 2017, de Explorable.com: https://explorable.com/ middle-age-psychology-collective-psychology. 13 https://explorable.com/middle-age-psychology-collective-psychology https://explorable.com/middle-age-psychology-collective-psychology Após a queda do Império Romano, no fim do século V, as obras dos estudiosos da Anti- guidade Clássica foram esquecidas. Os visigo- dos, os vândalos, os hunos e outros bárbaros destruíram a Europa e uma praga, no século VI, destruiu o domínio romano na Europa. A batalha entre a virtude e o vício definiu a sociedade Ocidental na Idade Média. A reali- dade era vista como uma hierarquia que flui do Criador, através dos anjos e da humanida- de, para a inteligência mais baixa e os objetos inanimados da criação. A doença mental foi vista como uma desordem nesta progressão. Nemesius, bispo de Emesa, na Síria (c. 390 d.C.), escreveu sobre a natureza do homem, promovendo essa visão, que dominava o pen- samento medieval. As pessoas raramente eram vistas como indivíduos independentes; em vez disso, como parte de uma luta coletiva pela salvação ou condenação. O domínio da alegoria e do simbolismo no pensamento europeu se infiltrou na arte, e os estudiosos começaram a falar do homem como um todo, em vez de indivíduos,vendo a humanidade como o campo de batalha entre virtude e vício, bem e mal. Assim, a doença mental não era definida pelo seu efeito sobre uma pessoa individual, mas como condição, aflição ou punição sobre um coletivo. Como as pessoas raramente eram vistas como personalidades individuais, havia poucas discussões sobre doenças mentais, embora fosse enfatizado que os escritos teóricos de Santo Agostinho e outros estudiosos nos dizi- am pouco sobre como as pessoas eram efeti- vamente tratadas, já que a maioria dos paci- entes pertencia às classes mais baixas. Seria extremamente injusto afirmar que a sociedade na Alta Idade Média era completa- mente insensível às necessidades médicas, in- clusive, mentais. Muitos mosteiros forneciam instalações médicas para seus próprios mem- bros, peregrinos e viajantes; a Igreja Oriental Bizantina realmente usou estas instalações para tratar os pobres e aleijados, como parte de seus deveres de caridade. Na verdade, no século VI, o hospital criado pelo monge Theo- dosius, próximo à Jerusalém, pode ter tido uma área específica para os doentes mentais. Por outro lado, pouco se sabe sobre a psi- cologia e psiquiatria neste período, já que praticamente nenhuma informação sobrevi- veu; especialmente, no que se refere às clas- ses mais pobres e às populações rurais. É pro- vável que os doentes mentais fossem manti- dos em casa, cuidados por familiares e pela comunidade e tratados com ervas e outros remédios populares. Mágica e doenças contagiosas eram vistas como raízes dos distúrbios mentais entre a população, de modo que uma combinação de amuletos e outros itens mágicos eram utiliza- dos para expulsar a magia do mal ou os es- píritos. A Igreja Católica condenou avidamen- te tais práticas, mas estas persistiram ainda assim. Como exemplo, a epilepsia foi fre- quentemente tratada com relíquias mágicas, e as pessoas viajavam distâncias enormes a vários lugares místicos. Os sacerdotes desempenharam um impor- tante papel no tratamento dos doentes, e isso provavelmente incluiu condições men- tais. Como afirmado em muitos livros, origi- nalmente escritos nos mosteiros às margens do mundo celta, nomeadamente, Irlanda e País de Gales, os sacerdotes tentavam curar, combatendo o desespero com a esperança, a agressão com a paz. Como parte de um con- fessionário, os sacerdotes podem ter-se tor- 14 nado terapeutas com alguma visão sobre a mente humana, adquirida através da expe- riência. Ao longo da história, a ideia do xamã ou sacerdote como curandeiro espiritual, in- cluindo a mente, é comum. É provável que isso tenha acontecido na Idade Média. 8. O Renascimento Carolíngio na Europa Oci- dental8 A Europa Ocidental do século VIII viu um avivamento do ensino, pois o Imperador Car- los Magno e a dinastia carolíngia proporciona- ram a estabilidade sócio-político-econômica para florescer as instituições educacionais. Embora este império tenha sido bastante cur- to, proporcionou uma base para o crescimen- to intelectual do início do século XII, quando estudiosos como Santo Tomás de Aquino co- meçaram a estudar a metafísica e a mente. É tentador assumir que, depois de S. Agos- tinho até o Renascimento, pouco progresso foi feito e a sociedade se tornou dominada pelos analfabetos. No entanto, dois breves períodos de iluminação ocorreram, nomeadamente, o “Renascimento carolíngio”, no fim do século VIII e início do século IX, e o “primeiro Renasci- mento” do século XII. A dinastia carolíngia, que abrangeu os rei- nados de Carlos Magno e Luís, o Piedoso, viu um aumento no número de escolas, uma vez que os governantes tentaram melhorar a alfa- betização. Neste período, houve um aviva- mento no conhecimento, na arte e na arquite- tura, pois estimados estudiosos apoiaram um desenvolvimento cultural e social. 8 Martyn Shuttleworth (). Psychology in the Middle Ages (Part V). Recuperado em 27 de dezembro, 2017, de Explorable.com: https://explorable.com/ middle-age-psychology-thomas-aquinas. Foram desenvolvidas grandes escolas, per- tencentes a mosteiros e catedrais, sob os auspícios da dinastia carolíngia; e o trabalho dos autores romanos foi novamente ensina- do. Gramática, retórica e lógica (o Trivium) foram ensinadas, assim como, aritmética, ge- ometria, astronomia e música (o Quadri- vium), em grandes escolas, como Chartres, Orleans e Auxerre. Esse período certamente enriqueceu a civilização ocidental. Quando o Império carolíngio declinou, no final do século IX, surgiu o feudalismo. Com as Guerras Cruzadas, iniciou-se o fluxo de ideias islâmicas e bizantinas para a Europa Ocidental. Os Cavaleiros de St. John e os Ca- valeiros Hospitalários também estabeleceram centros para curar peregrinos doentes, inclu- indo os doentes mentais. Este fluxo de ideias começou a moldar o pensamento ocidental, à medida que os estu- diosos começaram a explorar a mente, base- ando-se no trabalho dos filósofos e médicos gregos, romanos e árabes. O principal entre estes estudiosos medievais foi Santo Tomás de Aquino. 9. O Primeiro Renascimento europeu e o surgimento da psicologia tomista. A cultura do ensino foi restabelecida na Europa no século XI, sob os auspícios dos mosteiros. O primeiro renascimento europeu, do século XII, viu a sociedade europeia come- çar a sair de sua mentalidade de desespero, à medida que a sociedade e a economia come- çaram a melhorar. Ao contrário do Renasci- mento carolíngio anterior, que era, em gran- de parte, limitado aos níveis superiores da so- ciedade, esse renascimento era inclusivo, im- 15 https://explorable.com/middle-age-psychology-thomas-aquinas https://explorable.com/middle-age-psychology-thomas-aquinas pulsionando mudanças culturais e sociais que sustentariam o Renascimento posterior. Mentes como William Conches (1090- 1154), com interesse em anatomia, especial- mente no cérebro, e o Bispo João de Salisbury (c. 1120 - 1180), eram fascinadas pela medici- na. Santa Hildegarda de Bingen, abadesa be- neditina, escreveu uma série de livros médi- cos, nos quais ela abordou a noção de insani- dade e doença mental, descrevendo-os atra- vés dos quatro humores, como fizeram os pensadores romanos. Santo Tomás de Aquino (1225-1274), frade dominicano, fluente em tantas áreas do co- nhecimento, incluindo filosofia, teologia e ciência natural, sintetizou a teologia e filosofia cristãs com o conhecimento redescoberto do pensamento helenístico clássico, que chegou à Europa por intermédio de traduções árabes. Em seu De Anima (Sobre a Mente), S. Tomás apontou algumas faculdades da mente: a) Vegetativa: governam o crescimento, a nutrição e a reprodução. b) Sensitiva: governam as ações e percep- ções no/do mundo. O aspecto cognitivo governa os cinco sentidos externos (vi- são, audição, olfato, tato e paladar), os quatro sentidos internos (sentido co- mum, imaginação, memória e estimati- va) e as funções motoras. c) Racional: governam o intelecto e a von- tade. Santo Tomás de Aquino propôs o INTELECTO PASSIVO, i.e., a organização mental das informações recebidas pelos sentidos (externos e internos), e o INTE- LECTO ATIVO, i.e., os processos abstra- tos da mente, para se realizar ações que se adéquam ao bem maior. Como a maioria dos estudiosos clássicos, Santo Tomás de Aquino dividiu a doença men- tal em MELANCOLIA, MANIA e DEPRESSÃO; e ele acreditava que o prazer, a sexualidade e a busca do prazer são aspectos distintos da per- sonalidade humana. Ele também acreditava que o intelecto e a vontade têm que ser puros e sem defeito, como um aspecto divino na hu- manidade, de modo que as doenças mentais são uma desordem somática, fundada em problemas subjacentes ao corpo. 10. A Idade Média tardia9 Na Baixa Idade Média, com o desenvolvi- mento pedagógico, a psicologia do indivíduo começou a substituir a psicologia coletiva de períodos anteriores.Os hospitais dedicados ao tratamento da doença mental tornaram- se mais comuns, e tanto a psicologia quanto a psiquiatria começaram a assumir formas mais reconhecidas para os praticantes contempo- râneos. O Primeiro Renascimento europeu tam- bém viu a popularização do conhecimento para as massas e deixando os centros de ensi- no; embora a maioria dos conhecimentos só fosse disponível para os abastados, já não era o nome de acadêmicos desconhecido pela so- ciedade. Gilbertus Anglicus (1180-1250), em seu Compendium medicinae, acrescentou novos transtornos mentais, como alucinações audi- tivas e visuais e fobias irracionais. Ele tam- bém sugeriu tratamentos para esses distúr- bios, concentrando-se na construção da auto- 9 Martyn Shuttleworth (). Psychology in the Middle Ages (Part VI). Recuperado em 22 de dezembro, 2017, de Explorable.com: https://explorable.com/ middle-age-psychology-mental-hospitals. 16 https://explorable.com/middle-age-psychology-mental-hospitals https://explorable.com/middle-age-psychology-mental-hospitals confiança e no desenvolvimento de uma rela- ção terapêutica. O frade franciscano Bartholomeus Anglicus (1203-1272), em De proprietatibus rerum, des- creveu que a tristeza, as pressões comerciais, o medo, o perigo, o mau pressentimento e es- tudos excessivo poderiam levar à insanidade; possivelmente, uma das primeiras tentativas de reconhecer o estresse como contribuinte para a doença mental. Bernard de Gordon (c. 1260-1318), em Montpellier, subdividiu a melancolia em está- gios: melancolia oculta, melancolia explícita e melancolia completa, levando ao recolhimen- to e ao isolamento e disfunção social. Uma lei inglesa do início do século XII deu alguma proteção e provisão de cuidados aos insanos, sejam estes congênitos ou como re- sultado do início da doença mental; foi dada também alguma credibilidade às crenças clássicas em relação à doença mental; portan- to, não era tudo possessão e exorcismo de de- mônios. A lei, baseada no direito romano, con- siderava os insanos frequentemente incapazes de tomar decisões e também isentos de puni- ção, porque a insanidade era vista como uma punição em si mesma. Alguns hospitais, com a missão de tratar os doentes mentais, surgiram nos séculos XII e XIII, possivelmente, como resultado das visões mais esclarecidas importadas do mundo islâ- mico e bizantino. Metz, França, em 1100, Mi- lão, Itália, 1111, Suécia, Londres, Florença e Alemanha do Norte, também inauguraram ins- tituições, embora provavelmente envolvessem isolamento, especialmente, de presos violen- tos. Na Espanha do século XV, sob a influência dos mouros islâmicos, foi criada uma série de hospitais psiquiátricos, e os cuidados foram providos por ordens religiosas. O hospital St. Bartholomew teve vários internos, e é um dos poucos hospitais que nos permite ver a natureza de algumas das doenças. Os regis- tros relatam alucinações, colapso, epilepsia, insônia e vários outros casos que se tornaram familiares aos psiquiatras contemporâneos. Os pacientes foram supostamente curados pela intervenção milagrosa de São Bartolo- meu, embora poucas informações se tenha sobre a natureza exata dos tratamentos. Alguns homens notáveis também relata- ram condições mentais, embora seja provável que seu tratamento tenha sido melhor do que o das pessoas comuns. Carlos VI (1368- 1422), rei da França, sofreu ataques de insa- nidade. Opicinus de Canistris (1296-1353), padre e cartógrafo italiano, sofreu ataques melancólicos. Do mesmo modo, acredita-se a respeito do poeta inglês Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400), cujo LIVRO DA DUQUESA supos- tamente seria um relato autobiográfico de sua melancolia. O poeta inglês Thomas Hoc- cleve (c. 1368–1426) falou sobre sua melan- colia em seu poema, The Complaint. Parece que artistas e poetas eram tão propensos à depressão quanto agora. O fim da Idade Média estabeleceu as ba- ses para o Renascimento. A mobilidade social mais uma vez tornou-se mais fácil, embora ainda difícil; e o feudalismo, aparente duran- te séculos, começou a erodir frente ao surgi- mento de uma rica classe mercantil. 17