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A psicologia clássica

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A PSICOLOGIA CLÁSSICA: 
DA ANTIGUIDADE GREGA AO MEDIEVO EUROPEU,1
1 Tradução e edição do professor Sylvio Allan R. Moreira. Alterações no texto são de responsabilidade do tradutor.
Parte I. A psicologia na Idade Antiga2
Desde o início da civilização e o estabeleci-
mento das primeiras religiões e crenças espiri-
tuais, vários sacerdotes, xamãs e líderes espiri-
tuais foram responsáveis pelo bem-estar men-
tal de seu povo. Dos xamãs aos cabalistas ju-
deus, curar a mente era parte importante do
caminho espiritual; mesmo que o tratamento
fosse formulado em magia e mistério, usando
rituais para expulsar demônios.
Se definirmos a psicologia como um estudo
formal da mente e uma abordagem mais siste-
mática para a compreensão e cura das condi-
ções mentais, então os gregos da antiguidade
certamente foram seus primeiros proponen-
tes. Tal como aconteceu com muitos estudos
científicos, Aristóteles esteve na vanguarda do
desenvolvimento dos fundamentos da psicolo-
gia. A psicologia de Aristóteles, como seria de
se esperar, estava entrelaçada à sua filosofia
da mente, do raciocínio e da ética; mas o mé-
todo psicológico começou com sua mente bri-
lhante e abordagem empírica.
Claro, seria injusto concentrar-se plena-
mente na psicologia de Aristóteles, sem estu-
dar alguns dos outros grandes pensadores que
contribuíram para a história da psicologia; mas
seu trabalho certamente é a base de métodos
modernos. Qualquer psicólogo moderno de
valor entende perfeitamente o pensamento
básico aristotélico e reconhece sua contribui-
ção para a história da psicologia.
2 Martyn Shuttleworth (19 de junho, 2010). Aristotle's
Psychology. Recuperado em 20 de Dezembro, 2017
de Explorable.com: https://explorable.com/aristo-
tles-psychology.
1. A psicologia de Platão
Dar à Aristóteles o crédito completo por
ser o primeiro pensador a desenvolver uma
teoria proto-psicológica é ser injusto com al-
guns dos outros filósofos da Grécia antiga e
além. No entanto, embora haja poucas dúvi-
das de que os babilônios e os budistas, entre
outros, desenvolveram conceitos envolvendo
a mente, o pensamento e o raciocínio, gran-
de parte de sua tradição foi transmitida por
via oral e, desafortunadamente, perdida. Por
esta razão, os gregos da antiguidade fornece-
ram um ponto de partida útil, à medida que
aprofundamos nossa investigação sobre a
história da psicologia.
O mestre de Aristóteles, Platão , forneceu
algumas informações úteis sobre a estrutura
teórica da mente humana, baseada, em gran-
de parte, em sua elegante TEORIA DAS FOR-
MAS. Platão usou a ideia de uma psiché, uma
palavra usada para descrever tanto a mente
como a alma, para desenvolver uma estrutu-
ra áspera do comportamento humano, do ra-
ciocínio e dos impulsos.
Platão propôs que a mente humana fosse
o lugar de todo o conhecimento e impressa
comtodo o conhecimento que o homem pre-
cisava. Como resultado, aprender era uma
questão de desbloquear e utilizar esse conhe-
cimento incorporado, um processo que ele
chamou de ANAMNESE.
Em sua famosa obra, A REPÚBLICA, Platão
desenvolveu essa ideia e propôs, pela primei-
ra vez, a ideia de que a mente consistia de
três partes entrelaçadas, chamadas de MEN-
TE TRIPARTITE.
a) logistikon: o intelecto, o assento do racio-
cínio e da lógica.
2
https://explorable.com/aristotles-psychology
https://explorable.com/aristotles-psychology
b) thumos: o centro espiritual da mente e res-
ponsável pelas emoções e pelos sen-
timentos.
c) epithumetikon: governa os desejos e ape-
tites (impulsos).
Segundo Platão, a mente saudável envolve-
ria um equilíbrio entre as três partes, e uma
dependência excessiva sobre essas partes le-
vava à expressão da personalidade. Por exem-
plo, a gula e o egoísmo podem ser explicados
pelo domínio do epithumetikon, permitindo
que os desejos governem o comportamento.
Em A REPÚBLICA, um tratado voltado a teo-
rizar a sociedade perfeita, Platão propôs que
os governantes de tal sociedade, aqueles que
determinavam o rumo e a política, deveriam
ser selecionados dentre os homens onde o lo-
gistikon dominava. Indivíduos com um forte
epithumetikon seriam excelentes comercian-
tes e produtores de riquezas, enquanto que o
thumos, que pode ser identificado com a von-
tade e a coragem, é o domínio do soldado.
Mais tarde, Platão renunciou a sua ideia de
uma mente tripartite e retornou a propostas
anteriores de uma explicação dualista para a
mente, equilibrada entre o intelecto e o dese-
jo. No entanto, essa divisão de três caminhos
ressurgiria na ideia de Aristóteles de uma trin-
dade de almas; com base na ideia prevale-
cente em muitas sociedades e religiões, que
deram uma reverência ao número três, os psi-
canalistas do século XX mantiveram a ideia de
uma mente humana equilibrada entre três ins-
tâncias psíquicas (id, ego e superego).
2. A psicologia de Aristóteles
Aristóteles, a partir do trabalho dos filóso-
fos anteriores a ele e de seus estudos sobre a
mente, sobre o raciocínio e o pensamento,
escreveu o primeiro tratado conhecido na
história sobre psicologia, Peri Psychēs (greg.
Περὶ Ψυχῆς, lat. De Anima, port. Sobre a
alma, c. 350 a.C.). Neste trabalho histórico,
ele apresentou os primeiros princípios do es-
tudo do raciocínio, os quais determinaram a
direção da psicologia; muitas das suas pro-
postas continuam a influenciar os psicólogos
modernos.
Nesta obra (consistindo de três volumes),
a definição de psychēs (greg. Ψῡχή, lat.
Anima), como era comum na época, usava
MENTE e ALMA de forma intercambiável,
sem a necessidade dos filósofos gregos anti-
gos de fazer a distinção entre os dois. Nesse
período, com exceção do ateísmo de Theodo-
rus, os filósofos gregos consideravam a exis-
tência da influência divina como um fato. So-
mente Sócrates realmente questionou se o
comportamento humano e a necessidade de
ser uma "pessoa boa" eram motivados pela
busca da felicidade pessoal, em vez de apazi-
guar uma vontade divina.
Em Peri Psychēs, Aristóteles propôs que a
mente fosse a PRIMEIRA ENTELÉQUIA, ou
principal razão para a existência e o funciona-
mento do corpo. Esta linha de pensamento
foi fortemente influenciada pelos estudos de
Aristóteles sobre zoologia, que propôs existi-
rem três tipos de almas que definem a vida: a
alma da planta (vegetativa), a alma animal
(sensitiva) e a alma humana (racional). Essa
alma humana foi o último elo com a divinda-
de, de modo que Aristóteles acreditava que a
mente e a razão poderiam existir indepen-
dentemente do corpo.
3
Aristóteles foi um dos primeiros a examinar
as motivações e os impulsos que regem e defi-
nem a vida, acreditando que a libido e o dese-
jo de se reproduzir são o impulso primordial
de todos os entes vivos, influenciados pela
alma vegetativa. 
Aristóteles ligou parcialmente tal impulso
reprodutivo ao processo de alcançar a imorta-
lidade e cumprir os propósitos de uma mente
divina, muitos séculos antes de Darwin formu-
lar sua teoria evolucionista por seleção natu-
ral. Isto é um bom exemplo dos grandes avan-
ços mentais intuitivos que definiram o legado
de Aristóteles.
Continuando com esta linha de pensamen-
to, Aristóteles tentou abordar as relações en-
tre impulsos e desejos na mente humana,
muitos anos antes de Freud ressuscitar, com
sua teoria psicanalítica, alguns dos princípios
básicos da psicologia de Aristóteles. Aristóte-
les acreditava que, ao lado da libido, estavam
o desejo e a razão, duas forças que determi-
nam as ações.
Segundo a psicologia de Aristóteles, per-
mitir o desejo dominar a razão levaria a um
desequilíbrio insalubre e à tendência de reali-
zar ações ruins. Aqui, o pensamento de Aris-
tóteles criou um paradigma que permaneceu
incontestável por séculos e que ainda sustenta
o trabalho da psicologia e da filosofia moder-
nas, onde o desejo é renomeado como emo-
ção, e a razão, como racionalidade.
Incomumente, Aristóteles também enten-
deu a importância do tempo sobreas ações de
uma pessoa, onde o desejo está voltado para
o presente e a razão está voltada para o futu-
ro e para as consequências a longo prazo. Com
uma aparente e ligeira divergência da socio-
logia, para Aristóteles, este curto prazo e a
busca por resultados imediatos é uma das
forças motrizes por trás dos colapsos econô-
micos, da degradação ambiental e do populis-
mo político.
Talvez mais pessoas devessem estudar
Aristóteles e suas ideias sobre o que motiva o
comportamento humano. Ele pode, com bas-
tante legitimidade, ser chamado de o “pri-
meiro behaviorista” e base dos trabalhos de
B. F. Skinner e I. Pavlov, dois dos nomes mais
famosos na história da psicologia contempo-
rânea.
A psicologia de Aristóteles incluiu um estu-
do sobre a formação da mente humana,
como uma das primeiras digressões no deba-
te NATUREZA vs. APRENDIZAGEM, que influ-
enciou muitas disciplinas acadêmicas, como
psicologia, sociologia, educação, política e ge-
ografia humana. Aristóteles, ao contrário de
Platão, era um defensor da aprendizagem,
afirmando que a mente humana estava vazia
no nascimento e que educar o indivíduo, ex-
pondo-os às experiências, definiria a forma-
ção de sua mente e construiria um repositó-
rio de conhecimentos.
3. Psicologia e medicina na Grécia Antiga.
Platão e Aristóteles adotaram uma abor-
dagem filosófica e abstrata para definir o
comportamento humano e a estrutura da
mente; mas essa não foi a única contribuição
dos filósofos helenísticos. O desenvolvimento
da medicina grega na antiguidade introduziu
o estudo da fisiologia na história da psicolo-
gia, propondo haver condições físicas subja-
centes à muitas doenças mentais. O principal
representante foi o pai da medicina, HIPÓC-
RATES, que propunha que a epilepsia tem
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uma causa física, em vez de ser uma maldição
enviada pelos deuses.
Ao contrário de Aristóteles, que via o cora-
ção como a sede do pensamento e da razão,
Hipócrates entendeu a importância do cére-
bro. Este debate continuou, com médicos
como Praxágoras ainda sustentando que o co-
ração e as artérias ligavam o pensamento,
através de um fluido misterioso chamado
pneuma.
Em um experimento, Herophilus e Erasis-
tratus receberam a permissão do governante
de Alexandria, no Egito, para realizar vivissec-
ções em criminosos e determinaram que o sis-
tema nervoso e o cérebro controlam o corpo
e, portanto, são o núcleo da razão. No entan-
to, eles ainda acreditavam que o coração en-
via pneuma para todo o corpo, além de con-
trolar processos inconscientes, como o meta-
bolismo. Em contraste, os nervos enviam
pneuma "psíquico" para todo o corpo. Essas
experiências trouxeram muita informação,
mas introduziram a ética médica na história da
psicologia, um debate que hoje se desdobra.
Embora seus estudos tenham sido abominá-
veis quando analisados através da lente da
história, a história da psicologia do século XX
também inclui alguns pontos de referência in-
fames e indesejados.
Após Hipócrates, foi o médico GALENO
quem forneceu o elo entre os gregos antigos e
a psicologia islâmica. De origem grega, este
brilhante médico e pesquisador ganhou o res-
peito de sucessivos imperadores romanos por
sua habilidade e capacidade, e continuou a
produzir volumes de trabalho cobrindo muitos
aspectos da condição humana, da psicologia à
cirurgia ocular. Ele propôs a ideia dos QUATRO
HUMORES no corpo humano, cada um, res-
ponsável por um aspecto diferente da condi-
ção humana; e acreditava que um desequilí-
brio entre os quatro humores afeta o bem-
estar físico e mental. 
Esta abordagem holística da medicina liga-
va inextricavelmente a mente ao corpo, um
aspecto somente recentemente retomado
pela medicina moderna, que ainda tende a
tratar as condições físicas e os sintomas sem
muito atentar à saúde mental e vice-versa.
Os quatro humores, segundo Galeno, são:
a) Sanguíneo: o sangue, relacionado ao ele-
mento ar e fígado, dita a coragem, a espe-
rança e o amor.
b) Colérico: a bile amarela, relacionada ao
elemento fogo e à vesícula biliar, pode le-
var ao mau humor e à raiva excessiva.
c) Melancólico: a bile negra, associada ao
elemento terra e baço, leva à insônia e irri-
tação.
d) Fleumático: fleuma, associado ao ele-
mento água e cérebro, responsável pela
racionalidade, mas supressor das emo-
ções.
Galeno acreditava que o equilíbrio desses
quatro humores é influenciado pela localiza-
ção, dieta, ocupação, geografia e uma série
de outros fatores. Embora essa ideia de hu-
mores esteja incorreta, influenciou o pensa-
mento médico e psicológico durante séculos
e foi desenvolvida ainda mais pelo grande es-
tudioso islâmico Ibn-Sina (Avicena).
Essa ideia de olhar para todo o corpo e a
mente, em vez de culpar a feitiçaria e os es-
píritos, certamente influenciou a medicina e a
história da psicologia, embora algumas das
curas usadas para aliviar a acumulação de um
humor, como a sangria, fossem prejudiciais.
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Para os comentadores modernos, a ideia
dos humores parece um pouco primitiva e ba-
seada em um conhecimento limitado da psico-
logia. No entanto, a importância de Galeno
está não na natureza exata de sua teoria, mas
pelo fato de que suas ideias terem sido o pri-
meiro paradigma a se afastar da ideia de con-
dições mentais tendo uma fonte sobrenatural,
e por buscar respostas na fisiologia.
Não é surpresa que o trabalho de Galeno
sobre a psicologia e a mente, bem como, so-
bre outras disciplinas, se tornou a espinha dor-
sal da redescoberta islâmica dos gregos; suas
ideias foram copiadas e acrescentadas pelos
estudiosos islâmicos.
4. Conclusão
Há poucas dúvidas de que os gregos da an-
tiguidade estabeleceram o rumo da psicologia
contemporânea, embora também se deva o
respeito aos estudiosos chineses, indianos e
persas, que fizeram contribuições fora do es-
copo desta história da psicologia, mas que in-
fluenciaram o pensamento contemporâneo de
muitas formas diferentes.
A expansão islâmica foi um ponto culmi-
nante deste processo e uma integração do
pensamento grego antigo aliado à sabedoria
dos estudiosos do Oriente Médio e do Leste,
pois eles atraíram o conhecimento de todo o
mundo conhecido. A “era de ouro” islâmica
preservou a psicologia de Aristóteles, expan-
diu-a e transferiu-a aos europeus medievais.
As raízes da psicologia certamente começaram
lá e as crenças dos gregos antigos também in-
fluenciaram a sociologia, a geografia e a teoria
econômica.
...
Parte II. A psicologia islâmica3
A história da psicologia foi moldada pela sa-
bedoria antiga grega durante muitos séculos,
até que os estudiosos islâmicos levassem os
textos gregos para as grandes Casas da Sabe-
doria. Lá, eles desenvolveram suas próprias
ideias e surgiu uma psicologia islâmica que,
mais tarde, influenciaria a Europa.
Enquanto a psicologia islâmica manteve
o traço helênico de olhar integralmente a
mente, a filosofia e o espírito, os estudiosos
do Oriente Médio também começaram a
desenvolver uma abordagem mais prática
da psicologia. A psicologia islâmica baseou-
se em procurar formas de tratar e curar, em
vez de apenas teorizar. Tal como acontece
com a psicologia grega antiga, é importante
lembrar que os estudiosos muçulmanos não
tinham um termo específico para a psicolo-
gia e não se identificavam como psicólogos.
Os estudiosos islâmicos não praticaram a
disciplina no sentido moderno da palavra e
a envolveram com sua abordagem holística
e padrão de questões médicas.
No entanto, seu trabalho de estudar a
mente e propor tratamentos para condições
mentais é extremamente importante, e sus-
tenta muitas de nossas técnicas contemporâ-
neas, mesmo que muitas das teorias tenham
sido formuladas em termos filosóficos e teo-
lógicos. Enquanto muitos estudiosos islâmi-
cos contribuíram para a história da psicolo-
gia, e o trabalho dos outros tenha sido esque-
cido com o tempo, algumasgrandes mentes
merecem seu lugar entre os melhores psicó-
logos contemporâneos.
3 Martyn Shuttleworth (16 de Março, 2010). Islamic
Psychology. Recuperado em 24 de Dezembro,
2017, de Explorable.com: https://explorable.com/
islamic-psychology.
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https://explorable.com/islamic-psychology
https://explorable.com/islamic-psychology
1. A psicologia de Ibn Sina (ou Avicena)
Ibn Sina foi a principal influência na história
da psicologia islâmica, levando as ideias dos fi-
lósofos gregos da antiguidade e adaptando-as
para se encaixar à doutrina islâmica. Avicena
começou com a ideia de Aristóteles de que os
humanos possuíam três faculdades da alma
(vegetativa, sensitiva e racional). As duas pri-
meiras ligam os humanos à Terra, e a alma ra-
cional os conecta à Deus.
Do mesmo modo, a psicologia islâmica de
Avicena propôs que os cinco sentidos exter-
nos, compartilhados com os animais, são liga-
dos à Terra. Ele acreditava que a capacidade
de raciocinar deu à humanidade uma conexão
única com o divino. Avicena tentou atribuir
certas habilidades mentais a partes específicas
do cérebro, mas a proibição islâmica à disseca-
ção impediu-o de reunir evidências observaci-
onais para apoiar suas teorias.
Avicena também propôs que os humanos
possuem sete SENTIDOS INTERNOS para com-
plementar os cinco sentidos externos.
Na longa história da psicologia, essa foi uma
das primeiras tentativas para tentar entender a
maneira como a mente e o raciocínio operam:
a) Sentido comum: agrupa a informação cole-
tada pelos sentidos externos.
b) Imaginação Retentiva: lembra a infor-
mação recolhida pelo sentido comum.
c) Imaginação animal compositiva: permite
que todos os animais aprendam o que de-
vem evitar e o que eles devem buscar ativa-
mente em seu ambiente natural.
d) Imaginação humana compositiva: ajuda os
humanos a aprender o que evitar e o que
procurar no mundo à sua volta.
e) Poder Estimativo: a capacidade de fazer
julgamentos inatos sobre o ambiente cir-
cundante e determinar o que é perigoso e
o que é benéfico. Por exemplo, um medo
inato e instintivo de predadores.
f) Memória: responsável por lembrar de
toda a informação desenvolvida pelos ou-
tros sentidos.
g) Processamento: a capacidade de usar
toda a informação; é o mais alto dos sete
sentidos internos.
As teorias de Avicena incorporaram mais
sentidos internos do que a ideia de Aristóte-
les sobre as três almas, mas ele permaneceu
fiel às ideias do equilíbrio interno de Aristóte-
les. Em termos práticos, a psicologia de Avi-
cena levou-o a desenvolver uma variedade de
curas para doenças mentais, e a desenvolver
terapias rudimentares para curar doenças,
utilizando medo e músicas. Esta contribuição
para a história da psicologia finalmente der-
rubou a crença de que as doenças mentais
são sobrenaturais ou causadas por demônios
e espíritos malignos.
O estudioso islâmico também entendeu a
importância do vínculo entre mente e corpo,
propondo que uma pessoa pode superar do-
enças físicas ao acreditar que pode melhorar.
Por outro lado, Avicena acreditava que uma
pessoa saudável pode ficar fisicamente doen-
te se acreditar estar doente, somando doen-
ças PSICOSSOMÁTICAS ao vocabulário da his-
tória da psicologia. Esta ligação mental e físi-
ca formou a base de sua abordagem aos
transtornos mentais e ele documentou meti-
culosamente muitas condições, incluindo, de-
lírios, distúrbios da memória, alucinações, pa-
ralisia pelo medo e uma série de outras con-
dições.
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Certamente, Avicena está na história da
psicologia como o erudito que primeiro usou
uma abordagem reconhecível para psicólogos
clínicos contemporâneos. No entanto, a me-
todologia ainda estava atrelada à ideia de uma
alma e consciência humana superior.
2. Psicologia e ética de Al Razi
Muhammed Zakariyah-e-Razi, conhecido
como Razi ou Rhases, no Ocidente, foi um dos
grandes sábios islâmicos que contribuíram
para muitos campos. Além de seus volumes de
trabalho em outras áreas, Razi fez algumas ob-
servações interessantes sobre a mente huma-
na. 
Em seu livro, TEBAL-FONOON, ele fez algu-
mas postulações sobre condições emocionais
humanas e fez sugestões para seu tratamento.
Além disso, ele contribuiu para a psicologia
com observações astutas sobre a ética médica
e o uso da terapia de condicionamento, sécu-
los antes dos psicólogos comportamentais do
século XX.
3. A psicologia e o misticismo de Al Ghazali
A abordagem pragmática dos estudiosos
muçulmanos em relação a doenças mentais
continuou, e eles foram os principais motores
por trás da criação de hospitais e clínicas dedi-
cadas à pesquisa e cura. O grande estudioso e
místico sufí, Al-Ghazali, escreveu o livro IHYA,
que apontou que as crianças são naturalmen-
te egocêntricas. Sua psicologia propôs que os
desejos das crianças raramente incluem as
possíveis consequências para os outros. Al
Ghazali também acreditava que o medo é uma
condição aprendida, ensinada a crianças ou
adquirida através de experiências negativas.
Como místico sufí, Al-Ghazali acreditava
firmemente que a INTROSPECÇÃO e a AUTO-
ANÁLISE são as chaves para a compreensão
de problemas mentais e o desbloueio de ra-
zões ocultas. Podemos nos questionar como
a influência do misticismo oriental afetou
esse método particular de auto-avaliação,
uma técnica que Al Ghazali usou sobre si
mesmo.
Ele também trouxe para a psicologia a
ideia das NECESSIDADES, propondo que a
personalidade humana deseja cumprir deter-
minados desejos, com base na fome e na rai-
va. A FOME dirige emoções, como os impul-
sos sexuais, a sede e a fome; enquanto a IRA
provoca fúria, frustração e vingança. Esta di-
visão é muito simplista, quando comparada a
ideias relativamente modernas, como a HIE-
RARQUIA DAS NECESSIDADES, de Maslow,
mas forneceu algumas diretrizes para catego-
rizar construtos mentais.
4. Outros nomes da psicologia islâmica
Ibn-Khaldun (1332 – 1406 d.C.) acrescen-
tou ainda ao depositório de conhecimento,
propondo que o ambiente de um indivíduo e
o meio ambiente local moldam sua personali-
dade. Esta visão perspicaz atuou como um
precursor de ideias contemporâneas, como o
relativismo cultural e o histórico debate NA-
TUREZA vs. CULTURA. Ele seguiu os passos de
Aristóteles e Avicena ao acreditar que a men-
te é uma tábula rasa, e que o comportamen-
to humano é moldado apenas pela experiên-
cia e pela educação.
8
Najib ad-Din Samarqandi, contemporâneo a
Al-Razi, escreveu extensivamente sobre vários
transtornos mentais, como depressão, para-
nóia, complexo de perseguição, disfunção se-
xual e neuroses obsessivas, etc. Sua aborda-
gem, baseada na observação, certamente in-
fluenciou muitos outros estudiosos islâmicos
no campo da psicologia.
5. Conclusão.
A perspicácia dos estudiosos islâmicos em
relação aos problemas mentais produziu me-
lhorias no tratamento dos casos. Os governan-
tes islâmicos criaram hospitais especializados
em grandes centros do mundo islâmico, no iní-
cio do século VIII. Embora essa inovação não
significou que cada paciente recebesse trata-
mento, e a superstição ainda exercia influên-
cia em amplas partes do mundo islâmico, foi
uma melhoria nas ideias sobre possessão de-
moníaca e maldições por bruxas.
Certamente, os estudiosos islâmicos foram
fundamentais em equiparar a doença mental
com doenças físicas, entendendo que mente e
corpo compartilham um vínculo tangível. Isso
levou a muitos avanços no estudo da mente,
como a criação de hospitais e o reconheci-
mento de uma série de doenças mentais.
Embora haja poucas dúvidas de que esta
psicologia islâmica estava ligada à teologia is-
lâmica e à religiosidade da alma, os estudiosos
muçulmanos removeram ideias sobre pos-
sessão demoníaca ou doenças espirituais do
cânone da medicina. Suas observações meti-
culosas certamente criaram os alicerces da
psicologia e influenciaram pensamentos e teo-
rias subsequentes.
…
Parte III. A psicologiamedieval4
Do ponto de vista da psicologia e da psiquia-
tria contemporâneas, é muito fácil olhar para
o passado e assumir que estas são ciências
avançadas, embora com raízes no Renasci-
mento e no Iluminismo. Antes deste período
da história europeia, a Idade Média, muitas
vezes chamada de Idade das Trevas, é um pe-
ríodo em que a percepção comum pressupôs
que a posse demoníaca, feitiçaria e supersti-
ção definem a doença mental. No entanto, a
realidade é muito mais sutil.
1. As raízes da psicologia e da psiquiatria
contemporâneas
A psicologia contemporânea desenvolveu-
se rapidamente, transformando-se de uma
disciplina considerada “pseudo-científica”
para uma “verdadeira” ciência em pouco
mais de um século. Qualquer estudante de
psicologia pode citar Freud e Skinner, reco-
nhecendo que a psicologia gradualmente se
tornou quantitativa e não especulativa.
Avançando mais longe, muitos apontam
para a Revolução Científica e o Iluminismo no
século XVIII como eventos em que o estudo
da mente realmente começou, já que a psico-
logia começou a divergir da teologia, embora
ainda possuísse uma raiz forte na filosofia e
na metafísica. Filósofos-psicólogos como Des-
cartes (1596-1650) e Kant (1724-1804) estu-
daram a mente, a alma e a natureza do pen-
samento.
4 Martyn Shuttleworth (). Psychology in the Middle
Ages (Part I). Recuperado em 21 de Dezembro,
2017, de Explorable.com: https://explorable.com/
middle-age-psychology.
9
https://explorable.com/middle-age-psychology
https://explorable.com/middle-age-psychology
Voltando ainda mais através dos tempos,
podemos olhar para os estudiosos islâmicos
da “era de ouro” islâmica. Sábios como Avi-
cenna e Al-Hazen foram os primeiros acadêmi-
cos a estudar a mente e a reconhecer a psiqui-
atria, propondo que doenças mentais são do-
enças, em vez de espíritos ou de proveniência
divina / satânica. Também podemos afastar-
nos da perspectiva eurocêntrica e analisar a
influência da Índia, da China, da Pérsia e de
outras culturas, onde o estudo da mente e sua
relação com o eu, o universo e a percepção
eram importantes.
2. Europa Medieval e o estudo da mente
Comumente conhecida como “Idade das
Trevas” (séculos VI ao XIII), esse período co-
meçou quando o Império Romano do Ociden-
te caiu em um declínio terminal, um período
que imediatamente (mas erroneamente) asso-
ciamos à superstição e ao medo. Este período
terminou com o Renascimento, quando estu-
dos empíricos sobre a anatomia sentaram as
bases para a Revolução Científica; e com o
próprio Iluminismo, quando os grandes empi-
ristas investigaram a mente.
No entanto, a mente humana realmente foi
negligenciada durante a Idade Média? Esta era
realmente uma era de superstição, caça às
bruxas e possessão demoníaca? Na realidade,
o nome "Idade das Trevas" é um pouco enga-
nador, mesmo para aquele período abrangen-
do os séculos V ao X. Embora a guerra, a fome
e a doença tenham restringido o esforço cien-
tífico na Europa, muitos filósofos e teólogos
contribuíram para o corpo do conhecimento
humano.
Estudiosos como Santo Agostinho, Santo
Tomás de Aquino e Roger Bacon fizeram ob-
servações astutas sobre o funcionamento da
mente humana, fornecendo uma base para o
Renascimento. No Oriente, o Império Bizanti-
no preservou o conhecimento dos gregos an-
tigos, e filósofos como o judeu Symeon Seth
(século XI) e Niketas Stethatos (1000 – 1090
d.C.) estudaram a natureza dos sonhos e das
emoções, além de estudar distúrbios mentais
e o cérebro.
Compreender o trabalho desses estudio-
sos requer olhar para a história da Europa
após a queda de Roma, no século V. Naquele
momento, a Europa foi destruída pela insta-
bilidade política, sócio-econômica e cultural,
que trouxe dificuldades, fome, doenças e
guerras. Este período também inaugurou o
domínio do cristianismo, por isso não é sur-
preendente que os primeiros estudiosos da
mente na Europa medieval também fossem
teólogos cristãos.
3. O surgimento da Filosofia Cristã5
Durante todo o período que abrangeu o
declínio e a queda do Império Romano, até os
primeiros vislumbres do Renascimento, a teo-
logia e as doutrinas da Igreja Católica domi-
naram a maior parte da Europa Ocidental. O
crescimento do catolicismo e da ortodoxia
oriental levou o paganismo e outras crenças
não-cristãs à periferia, delineando o mundo
em cristãos vs. não-cristãos.
Embora haja algum desacordo sobre a ex-
tensão da Idade Média, ela é considerada
5 Martyn Shuttleworth. Psychology in the Middle
Ages (Part II). Recuperado em 22 de Dezembro,
2017, de Explorable.com: https://explorable.com/
middle-age-psychology -2 .
10
https://explorable.com/middle-age-psychology-2
https://explorable.com/middle-age-psychology-2
como o período desde a queda do Império Ro-
mano e o saque de Roma pelos godos, em 467
d.C., até a conquista da cidade de Constanti-
nopla, pelos turcos, em 1453 d.C. Durante este
período, a Europa atravessou uma série de
transformações sociais, econômicas e políti-
cas, à medida que a estabilidade trazida pelos
romanos desmoronou.
O estudo da mente na Idade Média era um
pouco diferente do atual, principalmente, por-
que mente e corpo estavam inextricavelmente
ligados. A psicologia medieval foi descrita em
termos metafísicos, com base na ideia de que
havia conexão entre Deus e a mente. O estudo
da mente certamente não foi negligenciado
durante a Idade Média. De fato, muitos teólo-
gos e estudiosos cristãos se concentraram em
tais estudos, como parte da busca para enten-
der o vínculo entre a humanidade e Deus.
Os teólogos cristãos da Europa medieval re-
correram às ideias judaicas sobre a natureza
de Deus, a saber, que Deus é o criador supre-
mo, transcendendo o domínio físico. Os seres
humanos são o pináculo da criação, e são con-
siderados superiores aos animais, capazes de
pensar e possuindo uma alma que liga cada
ser humano individual ao divino. Em Alexan-
dria, essas ideias se fundiram à filosofia grega
clássica e, a partir dessa fusão de culturas e fi-
losofias, surgiu a FILOSOFIA CRISTÃ. Este novo
paradigma moldaria as atitudes predominan-
tes em relação à mente por séculos.
4. Agostinho, o primeiro psicólogo do Oci-
dente6
6 Martyn Shuttleworth (9 de outubro de 2011). Psy-
chology in the Middle Ages. Recuperado em 21 de
dezembro, 2017 de Explorable.com: https://explora-
ble.com/middle-age-psychology-st-augustine.
Neste sistema de crenças cristão chegou
Santo Agostinho, muitas vezes rotulado como
o primeiro psicólogo, embora também fosse
um excelente filósofo que estudou sistemas
políticos e a noção de moralidade. S. Agosti-
nho obteve muito do seu conhecimento de
sua vida pré-cristã, quando estudou os gran-
des filósofos gregos da Antiguidade Clássica,
antes de se converter ao cristianismo, aos 33
anos. Ao adotar uma vida monástica, ele se
dedicou a estudar filosofia e teologia, e sua
obra abrangeu, a transformação do pensa-
mento europeu, quando se afastou da in-
fluência dos gregos e dos romanos para a
nova sociedade cristã.
Durante este período da história, a Europa
Ocidental estava em tumulto pela queda do
Império Romano, pelos ataques bárbaros,
pela guerra, fome e doenças. Contra este
pano de fundo, e com a destruição de tudo o
que sabia, S. Agostinho cessou de tentar en-
tender o que estava acontecendo. Em vez dis-
so, em busca de estabilidade, ele tentou visu-
alizar uma sociedade perfeita e pacífica, refle-
tindo a República de Platão. Este período par-
ticular da história proporcionou a centelha
para seu interesse na psicologia, enquanto
tentava reconciliar suas novas crenças cristãs
com o mundo ao seu redor, combinando a
abstração de Platão ao pragmatismo de Aris-
tóteles.
Este conflito despertou o interesse de S.
Agostinho no estudo da mente humana, por-
que ele acreditava que a mente é a interface
entre Deus e o homem, algo que ele apontou
em seu tratado, CONFISSÕES.Adotando uma
linha introspectiva, Santo Agostinho argu-
mentou que estudar a mente lhe permitiria
compreender Deus. 
11
https://explorable.com/middle-age-psychology-st-augustine
https://explorable.com/middle-age-psychology-st-augustine
De muitas maneiras, S. Agostinho foi o pri-
meiro filósofo a propor que os seres humanos
possuem um "eu interior" (self), acreditando
que uma pessoa saudável possui unidade inte-
rior, enquanto que o desequilíbrio interior
leva à doença. Treinado em retórica, S. Agosti-
nho usou suas CONFISSÕES para relacionar
sua própria vida e luta; mas ele usou isso ha-
bilmente para pintar um quadro mais amplo,
para que um indivíduo pudesse escapar do
materialismo e encontrar a espiritualidade e a
salvação.
Como neo-platonista, S. Agostinho abordou
muitas áreas da psicologia, combinando-as
com a filosofia e a teologia cristãs. Por exem-
plo, ele abordou as motivações dos bebês,
bem como, a memória, as origens do sofri-
mento e os desejos inconscientes e as motiva-
ções dos sonhos. Ele apontou que os bebês
são egocêntricos e não socialmente conscien-
tes. Ele também argumentou que o medo do
castigo é uma barreira para crianças aprende-
rem, porque o medo do castigo limita a curio-
sidade, que ele acreditava ser a maneira mais
fácil de aprender. Ao discutir o sofrimento e as
emoções em geral, ele os retratou como parte
de sua ideia mais ampla de turbulência interna
e da batalha entre Deus e o “eu interior”. S.
Agostinho olhou também para a relação
mente-corpo, acreditando que a mente é su-
perior ao corpo, mas que ambos são essenci-
ais para a constituição da pessoa.
S. Agostinho olhou para a natureza dos so-
nhos, reconhecendo que o pensamento e os
impulsos que são reprimidos enquanto acor-
dados podem ser extremamente fortes nos so-
nhos. Ele argumentou que não há pecado nos
sonhos, então eles não devem afetar a cons-
ciência de um cristão, mas também apontou
que experiências passadas podem surgir nos
sonhos. As lembranças podem ser enterradas
na mente inconsciente e ressurgirem nos so-
nhos, onde não podem ser reprimidas pela
razão.
5. A memória, segundo Santo Agostinho.
S. Agostinho acreditava que a MEMÓRIA é
o aspecto mais importante da mente, porque
é a raiz do funcionamento psicológico. Ele ar-
gumentou que todas as habilidades e os hábi-
tos são derivados da memória, e que até
mesmo os animais devem ter a capacidade
de rememorar para agirem.
Expandindo esta questão, S. Agostinho
propôs uma dupla função da memória: o RE-
CONHECIMENTO e a REMEMORAÇÃO. Os hu-
manos lembram das coisas na memória sen-
sorial, mas o amadurecimento dessas lem-
branças é obscurecido na memória afetiva.
Esta memória dupla foi baseada no princípio
de que uma lembrança do evento é diferente
do conhecimento do evento original. Por
exemplo, uma lembrança não evoca necessa-
riamente as mesmas emoções sentidas na
época do evento. Portanto, o reconhecimen-
to e a rememoração são processos distintos.
S. Agostinho desenvolveu essa dualidade
interessante, porque identificou que os pro-
cessos mnemônicos são extremamente com-
plexos, a saber: (i) algumas coisas são facil-
mente lembradas, (ii) algumas exigem maior
esforço para ser lembradas, (iii) outras são di-
fíceis de ser lembradas; (iv) algumas memó-
rias são ordenadas e sequenciais, enquanto
que (v) outras memórias são desorganizadas
e espontâneas.
Ele também analisou o paradoxo do ES-
QUECIMENTO: se algo é esquecido, mas de-
12
pois lembrado, como saber se o conhecimento
presente é o mesmo conhecimento que se
possuía outrora, mas que fora esquecido?
Para superar esse paradoxo, S. Agostinho
acrescentou que deve haver uma memória
para as coisas esquecidas, funcionando con-
juntamente à memória.
Finalmente, S. Agostinho acreditava que os
humanos nascem com algum conhecimento
inato, embora ele rejeitasse a ideia de conhe-
cimentos de “vidas anteriores”, pois isso não
combinava com sua visão de mundo teológica.
6. Predestinação e conflito interno
Santo Agostinho também analisou a ques-
tão da “predestinação”, a saber: se Deus é oni-
potente e onisciente, Ele tira a vontade de um
indivíduo, sabendo o que este deve fazer? A
resposta de S. Agostinho é negativa, pois a
vontade se situa no centro do ser humano.
Uma pessoa tem o controle de seus pensa-
mentos e, portanto, pode escolher entre exer-
citar sua vontade e autodisciplinar-se ou se-
guir a luxúria e submeter-se aos seus desejos
carnais. Isso cria hábitos, baseados em expe-
riências passadas; e é necessária a graça de
Deus para ajudar o homem a se afastar da
compulsão e dos impulsos básicos.
S. Agostinho propôs que todas as pessoas
travam uma luta interna, uma batalha do “eu
interior” contra Deus; ele extrapolou esta
ideia, propondo que as lutas e o caos do mun-
do ao seu redor também são manifestações
desse conflito particular. Ele acreditava que os
problemas de personalidade e os mecanismos
psicológicos de defesa alimentam esta luta in-
terna entre como um indivíduo deseja se com-
portar e como este deveria se comportar.
S. Agostinho acreditava que o amor está
no centro da felicidade, que o desejo leva à
desordem e que essa é a fonte do sofrimen-
to: por exemplo, o desejo por algo que não se
pode ter leva à angústia. Ele acreditava que o
importante para reparar essa desordem é o
desenvolvimento do “amor incondicional”,
que reorganiza a mente.
7. O declínio do individualismo7
Na cultura contemporânea, muitas vezes
tendemos a estudar o indivíduo no contexto
do indivíduo, analisando os diferentes dese-
jos, necessidades e cognições que influenci-
am a cada um de nós. Na Idade Média, este
não era necessariamente o caso, e as dificul-
dades enfrentadas pelos europeus levaram-
nos a olhar para os indivíduos como parte de
um quadro mais amplo, baseado na batalha
do bem contra o mal. A doença mental não
foi vista como algo que afetava um indivíduo,
mas como condição que desempenhava um
papel no conflito da humanidade entre virtu-
de e vício.
Após S. Agostinho, eventos mais amplos
afetaram o estudo da mente humana e da
ciência em geral. A ciência e a filosofia geral-
mente prosperam em sociedades mais desen-
volvidas, porque uma sociedade afluente
pode permitir que os filósofos, estudiosos e
poetas enriqueçam a cultura. Por outro lado,
uma sociedade menos desenvolvida se preo-
cupa com aspectos mais pragmáticos e as tri-
bulações da primeira Idade Média agiram
como um terreno fértil para a superstição e
não para a ciência.
7 Martyn Shuttleworth (). Psychology in the Middle
Ages (Part IV). Recuperado em 22 de dezembro,
2017, de Explorable.com: https://explorable.com/
middle-age-psychology-collective-psychology.
13
https://explorable.com/middle-age-psychology-collective-psychology
https://explorable.com/middle-age-psychology-collective-psychology
Após a queda do Império Romano, no fim
do século V, as obras dos estudiosos da Anti-
guidade Clássica foram esquecidas. Os visigo-
dos, os vândalos, os hunos e outros bárbaros
destruíram a Europa e uma praga, no século
VI, destruiu o domínio romano na Europa.
A batalha entre a virtude e o vício definiu a
sociedade Ocidental na Idade Média. A reali-
dade era vista como uma hierarquia que flui
do Criador, através dos anjos e da humanida-
de, para a inteligência mais baixa e os objetos
inanimados da criação. A doença mental foi
vista como uma desordem nesta progressão.
Nemesius, bispo de Emesa, na Síria (c. 390
d.C.), escreveu sobre a natureza do homem,
promovendo essa visão, que dominava o pen-
samento medieval. As pessoas raramente
eram vistas como indivíduos independentes;
em vez disso, como parte de uma luta coletiva
pela salvação ou condenação.
O domínio da alegoria e do simbolismo no
pensamento europeu se infiltrou na arte, e os
estudiosos começaram a falar do homem
como um todo, em vez de indivíduos,vendo a
humanidade como o campo de batalha entre
virtude e vício, bem e mal. Assim, a doença
mental não era definida pelo seu efeito sobre
uma pessoa individual, mas como condição,
aflição ou punição sobre um coletivo.
Como as pessoas raramente eram vistas
como personalidades individuais, havia poucas
discussões sobre doenças mentais, embora
fosse enfatizado que os escritos teóricos de
Santo Agostinho e outros estudiosos nos dizi-
am pouco sobre como as pessoas eram efeti-
vamente tratadas, já que a maioria dos paci-
entes pertencia às classes mais baixas.
Seria extremamente injusto afirmar que a
sociedade na Alta Idade Média era completa-
mente insensível às necessidades médicas, in-
clusive, mentais. Muitos mosteiros forneciam
instalações médicas para seus próprios mem-
bros, peregrinos e viajantes; a Igreja Oriental
Bizantina realmente usou estas instalações
para tratar os pobres e aleijados, como parte
de seus deveres de caridade. Na verdade, no
século VI, o hospital criado pelo monge Theo-
dosius, próximo à Jerusalém, pode ter tido
uma área específica para os doentes mentais.
Por outro lado, pouco se sabe sobre a psi-
cologia e psiquiatria neste período, já que
praticamente nenhuma informação sobrevi-
veu; especialmente, no que se refere às clas-
ses mais pobres e às populações rurais. É pro-
vável que os doentes mentais fossem manti-
dos em casa, cuidados por familiares e pela
comunidade e tratados com ervas e outros
remédios populares.
Mágica e doenças contagiosas eram vistas
como raízes dos distúrbios mentais entre a
população, de modo que uma combinação de
amuletos e outros itens mágicos eram utiliza-
dos para expulsar a magia do mal ou os es-
píritos. A Igreja Católica condenou avidamen-
te tais práticas, mas estas persistiram ainda
assim. Como exemplo, a epilepsia foi fre-
quentemente tratada com relíquias mágicas,
e as pessoas viajavam distâncias enormes a
vários lugares místicos.
Os sacerdotes desempenharam um impor-
tante papel no tratamento dos doentes, e
isso provavelmente incluiu condições men-
tais. Como afirmado em muitos livros, origi-
nalmente escritos nos mosteiros às margens
do mundo celta, nomeadamente, Irlanda e
País de Gales, os sacerdotes tentavam curar,
combatendo o desespero com a esperança, a
agressão com a paz. Como parte de um con-
fessionário, os sacerdotes podem ter-se tor-
14
nado terapeutas com alguma visão sobre a
mente humana, adquirida através da expe-
riência. Ao longo da história, a ideia do xamã
ou sacerdote como curandeiro espiritual, in-
cluindo a mente, é comum. É provável que
isso tenha acontecido na Idade Média.
8. O Renascimento Carolíngio na Europa Oci-
dental8
A Europa Ocidental do século VIII viu um
avivamento do ensino, pois o Imperador Car-
los Magno e a dinastia carolíngia proporciona-
ram a estabilidade sócio-político-econômica
para florescer as instituições educacionais.
Embora este império tenha sido bastante cur-
to, proporcionou uma base para o crescimen-
to intelectual do início do século XII, quando
estudiosos como Santo Tomás de Aquino co-
meçaram a estudar a metafísica e a mente.
É tentador assumir que, depois de S. Agos-
tinho até o Renascimento, pouco progresso foi
feito e a sociedade se tornou dominada pelos
analfabetos. No entanto, dois breves períodos
de iluminação ocorreram, nomeadamente, o
“Renascimento carolíngio”, no fim do século
VIII e início do século IX, e o “primeiro Renasci-
mento” do século XII.
A dinastia carolíngia, que abrangeu os rei-
nados de Carlos Magno e Luís, o Piedoso, viu
um aumento no número de escolas, uma vez
que os governantes tentaram melhorar a alfa-
betização. Neste período, houve um aviva-
mento no conhecimento, na arte e na arquite-
tura, pois estimados estudiosos apoiaram um
desenvolvimento cultural e social.
8 Martyn Shuttleworth (). Psychology in the Middle
Ages (Part V). Recuperado em 27 de dezembro,
2017, de Explorable.com: https://explorable.com/
middle-age-psychology-thomas-aquinas.
Foram desenvolvidas grandes escolas, per-
tencentes a mosteiros e catedrais, sob os
auspícios da dinastia carolíngia; e o trabalho
dos autores romanos foi novamente ensina-
do. Gramática, retórica e lógica (o Trivium)
foram ensinadas, assim como, aritmética, ge-
ometria, astronomia e música (o Quadri-
vium), em grandes escolas, como Chartres,
Orleans e Auxerre. Esse período certamente
enriqueceu a civilização ocidental.
Quando o Império carolíngio declinou, no
final do século IX, surgiu o feudalismo. Com
as Guerras Cruzadas, iniciou-se o fluxo de
ideias islâmicas e bizantinas para a Europa
Ocidental. Os Cavaleiros de St. John e os Ca-
valeiros Hospitalários também estabeleceram
centros para curar peregrinos doentes, inclu-
indo os doentes mentais.
Este fluxo de ideias começou a moldar o
pensamento ocidental, à medida que os estu-
diosos começaram a explorar a mente, base-
ando-se no trabalho dos filósofos e médicos
gregos, romanos e árabes. O principal entre
estes estudiosos medievais foi Santo Tomás
de Aquino.
9. O Primeiro Renascimento europeu e o
surgimento da psicologia tomista.
A cultura do ensino foi restabelecida na
Europa no século XI, sob os auspícios dos
mosteiros. O primeiro renascimento europeu,
do século XII, viu a sociedade europeia come-
çar a sair de sua mentalidade de desespero, à
medida que a sociedade e a economia come-
çaram a melhorar. Ao contrário do Renasci-
mento carolíngio anterior, que era, em gran-
de parte, limitado aos níveis superiores da so-
ciedade, esse renascimento era inclusivo, im-
15
https://explorable.com/middle-age-psychology-thomas-aquinas
https://explorable.com/middle-age-psychology-thomas-aquinas
pulsionando mudanças culturais e sociais que
sustentariam o Renascimento posterior.
Mentes como William Conches (1090-
1154), com interesse em anatomia, especial-
mente no cérebro, e o Bispo João de Salisbury
(c. 1120 - 1180), eram fascinadas pela medici-
na. Santa Hildegarda de Bingen, abadesa be-
neditina, escreveu uma série de livros médi-
cos, nos quais ela abordou a noção de insani-
dade e doença mental, descrevendo-os atra-
vés dos quatro humores, como fizeram os
pensadores romanos.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274), frade
dominicano, fluente em tantas áreas do co-
nhecimento, incluindo filosofia, teologia e
ciência natural, sintetizou a teologia e filosofia
cristãs com o conhecimento redescoberto do
pensamento helenístico clássico, que chegou à
Europa por intermédio de traduções árabes.
Em seu De Anima (Sobre a Mente), S. Tomás
apontou algumas faculdades da mente:
a) Vegetativa: governam o crescimento, a
nutrição e a reprodução.
b) Sensitiva: governam as ações e percep-
ções no/do mundo. O aspecto cognitivo
governa os cinco sentidos externos (vi-
são, audição, olfato, tato e paladar), os
quatro sentidos internos (sentido co-
mum, imaginação, memória e estimati-
va) e as funções motoras.
c) Racional: governam o intelecto e a von-
tade. Santo Tomás de Aquino propôs o
INTELECTO PASSIVO, i.e., a organização
mental das informações recebidas pelos
sentidos (externos e internos), e o INTE-
LECTO ATIVO, i.e., os processos abstra-
tos da mente, para se realizar ações que
se adéquam ao bem maior.
Como a maioria dos estudiosos clássicos,
Santo Tomás de Aquino dividiu a doença men-
tal em MELANCOLIA, MANIA e DEPRESSÃO; e
ele acreditava que o prazer, a sexualidade e a
busca do prazer são aspectos distintos da per-
sonalidade humana. Ele também acreditava
que o intelecto e a vontade têm que ser puros
e sem defeito, como um aspecto divino na hu-
manidade, de modo que as doenças mentais
são uma desordem somática, fundada em
problemas subjacentes ao corpo.
10. A Idade Média tardia9
Na Baixa Idade Média, com o desenvolvi-
mento pedagógico, a psicologia do indivíduo
começou a substituir a psicologia coletiva de
períodos anteriores.Os hospitais dedicados
ao tratamento da doença mental tornaram-
se mais comuns, e tanto a psicologia quanto a
psiquiatria começaram a assumir formas mais
reconhecidas para os praticantes contempo-
râneos.
O Primeiro Renascimento europeu tam-
bém viu a popularização do conhecimento
para as massas e deixando os centros de ensi-
no; embora a maioria dos conhecimentos só
fosse disponível para os abastados, já não era
o nome de acadêmicos desconhecido pela so-
ciedade. 
Gilbertus Anglicus (1180-1250), em seu
Compendium medicinae, acrescentou novos
transtornos mentais, como alucinações audi-
tivas e visuais e fobias irracionais. Ele tam-
bém sugeriu tratamentos para esses distúr-
bios, concentrando-se na construção da auto-
9 Martyn Shuttleworth (). Psychology in the Middle
Ages (Part VI). Recuperado em 22 de dezembro,
2017, de Explorable.com: https://explorable.com/
middle-age-psychology-mental-hospitals.
16
https://explorable.com/middle-age-psychology-mental-hospitals
https://explorable.com/middle-age-psychology-mental-hospitals
confiança e no desenvolvimento de uma rela-
ção terapêutica.
O frade franciscano Bartholomeus Anglicus
(1203-1272), em De proprietatibus rerum, des-
creveu que a tristeza, as pressões comerciais,
o medo, o perigo, o mau pressentimento e es-
tudos excessivo poderiam levar à insanidade;
possivelmente, uma das primeiras tentativas
de reconhecer o estresse como contribuinte
para a doença mental. 
Bernard de Gordon (c. 1260-1318), em
Montpellier, subdividiu a melancolia em está-
gios: melancolia oculta, melancolia explícita e
melancolia completa, levando ao recolhimen-
to e ao isolamento e disfunção social.
Uma lei inglesa do início do século XII deu
alguma proteção e provisão de cuidados aos
insanos, sejam estes congênitos ou como re-
sultado do início da doença mental; foi dada
também alguma credibilidade às crenças
clássicas em relação à doença mental; portan-
to, não era tudo possessão e exorcismo de de-
mônios. A lei, baseada no direito romano, con-
siderava os insanos frequentemente incapazes
de tomar decisões e também isentos de puni-
ção, porque a insanidade era vista como uma
punição em si mesma.
Alguns hospitais, com a missão de tratar os
doentes mentais, surgiram nos séculos XII e
XIII, possivelmente, como resultado das visões
mais esclarecidas importadas do mundo islâ-
mico e bizantino. Metz, França, em 1100, Mi-
lão, Itália, 1111, Suécia, Londres, Florença e
Alemanha do Norte, também inauguraram ins-
tituições, embora provavelmente envolvessem
isolamento, especialmente, de presos violen-
tos.
Na Espanha do século XV, sob a influência
dos mouros islâmicos, foi criada uma série de
hospitais psiquiátricos, e os cuidados foram
providos por ordens religiosas. O hospital St.
Bartholomew teve vários internos, e é um
dos poucos hospitais que nos permite ver a
natureza de algumas das doenças. Os regis-
tros relatam alucinações, colapso, epilepsia,
insônia e vários outros casos que se tornaram
familiares aos psiquiatras contemporâneos.
Os pacientes foram supostamente curados
pela intervenção milagrosa de São Bartolo-
meu, embora poucas informações se tenha
sobre a natureza exata dos tratamentos.
Alguns homens notáveis também relata-
ram condições mentais, embora seja provável
que seu tratamento tenha sido melhor do
que o das pessoas comuns. Carlos VI (1368-
1422), rei da França, sofreu ataques de insa-
nidade. Opicinus de Canistris (1296-1353),
padre e cartógrafo italiano, sofreu ataques
melancólicos. Do mesmo modo, acredita-se a
respeito do poeta inglês Geoffrey Chaucer (c.
1343-1400), cujo LIVRO DA DUQUESA supos-
tamente seria um relato autobiográfico de
sua melancolia. O poeta inglês Thomas Hoc-
cleve (c. 1368–1426) falou sobre sua melan-
colia em seu poema, The Complaint. Parece
que artistas e poetas eram tão propensos à
depressão quanto agora.
O fim da Idade Média estabeleceu as ba-
ses para o Renascimento. A mobilidade social
mais uma vez tornou-se mais fácil, embora
ainda difícil; e o feudalismo, aparente duran-
te séculos, começou a erodir frente ao surgi-
mento de uma rica classe mercantil.
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