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RESUMO PARA AP2 AULAS 4 A 7_ED INF 2

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Disciplina: EDUCAÇÃO INFANTIL 2
RESUMO DOS TEXTOS 4 A 7 
TEXTO 4 - Sociologia da Infância: traçando algumas linhas (Anete Abramowicz)
	As crianças e suas infâncias precisam ser tiradas da invisibilidade social na qual elas aparecem apenas nas e como estatísticas, ou como cenário da vida social, e colocá-las no centro da cena das relações sociais, como protagonistas, buscando evidenciar sua agência. É urgente a necessidade de entender a criança e sua infância a partir de paradigmas epistemológicos e metodológicos dos estudos sociais da infância, no intuito de dar textura a essa criança na vida social.
	Desde o século XIX tem-se elaborado um conjunto de saberes sobre a infância, e também dentro de um mesmo campo, por exemplo, da Sociologia da Infância. A infância ora é uma estrutura universal, constante e característica de todas as sociedades, ora é um conceito geracional, uma variável sociológica que se articula à diversidade da vida das crianças considerando a classe social, gênero, raça e pertencimento étnico, ou seja, ora a infância é singular, ora é plural. 
	Para outros, a infância é a única possibilidade de configurar história, pois designa o momento de entrada na linguagem, sem a qual nem chegaríamos na adultice, como diz Kohan (2007) a partir de Agamben (2005). A infância ocorre primeiro e é a possibilidade de se chegar ao adulto e constituir linguagem, por isso, para essa vertente, a infância, ao invés de ser um momento do “sem fala (infans)” como expresso na etimologia, é a única possibilidade de constituir fala, uma vez que se a linguagem não se constitui na infância, será muito difícil de constituí-la na fase adulta (Kohan, 2007). A infância é também um métier da criança, uma estrutura social, uma cultura, uma experiência, uma cronologia, uma etapa de desenvolvimento, de comportamento, de maturação. Cada uma dessas definições perscruta diagramar e compreender o que é a criança e a infância, e cada uma das vertentes procura prescrever e normatizar a criança pela infância; e ao dizemos “infância”, cada definição é diferente e se encontra em disputa. 
	“Criança” emerge a partir do século XVIII de uma maneira singular, mesmo que crianças, esses seres pequenos, sempre tenham habitado o mundo de maneira distinta, e tenham sido pensadas por filósofos e pedagogos ao longo da história ocidental. Criança é uma forma cuja essência é vazia (lotada de forças). Ao longo da história, atribuíram-se a ela características diversas, desde aqueles que a consideraram em perigo até os que a consideraram perigosa.
	Foucault (2001), mostra outras repercussões da invenção da infância durante os séculos XVIII e XIX. As relações entre adultos e crianças reorganizam-se em todas as instituições: familiar, escolar e instâncias de higiene pública (Kohan, 2002). O papel das crianças na família traz novas regras para as relações entre pais e filhos. Não é apenas uma questão de sorrisos e brincadeiras: a família passa a se ocupar como nunca em cuidar da saúde dos filhos. As novas leis morais concentram-se na higiene, na amamentação direta pelas mães, na vestimenta cuidada e pulcra, em exercícios físicos para um bom desenvolvimento do corpo e em toda uma série de cuidados afetivos que estreitam os laços entre pais e filhos. Surge uma nova conjugalidade que se organiza não tanto para unir dois adultos, mas para servir de matriz a esse futuro adulto de que os pais cuidam como nunca. 
A criança falada
	A criança é um presente do qual nós, adultos, não fazemos parte e desconhecemos, pois não somos mais crianças é um presente em infância, um tempo que não somos/temos mais. Mas ela é também o presente do qual todos nós fazemos parte, pois como adultos tivemos infância, fomos crianças e somos capazes de extrair isto, no presente (pois cada um de nós é atravessado por outros tempos). Está claro, portanto, há dois presentes no olhar da criança, um, o presente em criança que não fazemos parte, e o outro presente que todos fazemos parte, pois em todas as sociedades há uma estrutura social denominada infância, na qual habitam diferentes gerações de crianças. Portanto, a criança é um passado, que ao nascer traz uma infância, na qual, de certa forma, nos reconhecemos, ela ao nascer é inscrita na história de um gênero, de uma sexualidade, de uma raça, de uma etnia e de uma classe social. Mas a criança é também devir, um futuro que ainda não está e não é, uma criança que nasce traz em si este futuro, a criança pode vir a ser o tempo intempestivo, o tempo de ruptura, a fratura, a descontinuidade, daquilo que não sabemos, não somos, não está, estamos em via de nos diferir, e que será inventado.
	Outra dificuldade posta ao pesquisar crianças a partir de sua própria voz se inscreve também em uma micropolítica, em uma espécie de movimento político, pois a sociedade e a escola estão orientadas para a conformação política da criança e são incapazes de escutá-la; além das dificuldades metodológicas em relação às falas das crianças, em especial as menores.
	 É importante destacar que não há algo na fala das crianças que seja excepcional ou diferente, mas, a criança ao falar faz uma inversão hierárquica discursiva que faz falar aquelas cujas falas não são levadas em conta, não são consideradas. Os sociólogos anglo-saxões dizem, então, com razão, como Jens Qvortrup, que as crianças são, entre as minorias, as menos protegidas, porque elas não são suas próprias porta-vozes.
Sociologia da Infância na Europa
	O movimento da sociologia da infância na Europa criou uma nova paisagem científica a partir da década de 80 e teve um caráter renovador no campo teórico Francês.
	A sociologia da infância tomou a criança em sua infância como o lugar de suas pesquisas, criou-se um campo, no qual os sociólogos e outros pesquisadores que aderiram a esta vertente buscaram compreendê-la. Ao mesmo tempo, a Sociologia da Infância alargou as possibilidades teóricas de pensar a criança para além de paradigmas teóricos hegemônicos, como os da Psicologia, por exemplo, e da própria Sociologia de Durkheim opondo-se à maneira pela qual ele pensa os processos de socialização e a essência anômica da criança que não pode compreender as normas e as regras da sociedade.
	A Sociologia da Infância, uma vez que faz parte desse movimento chamado de reconceitualização da pequena infância, promove críticas muito severas à psicologia do desenvolvimento e do comportamento e, ao mesmo tempo, combate pressupostos que foram tomados durante muito tempo como valendo por si mesmos.
	A Sociologia da Infância opera uma grande mudança em relação à Sociologia da educação que realizou uma analítica sistêmica, no plano macrossociológico de funcionamento da escola, em especial, em relação às desigualdades sociais e para a qual o fracasso escolar no interior da escola se configurava como “um campo saturado”.
 	O que a Sociologia da Infância francesa pretendeu foi desescolarizar a criança, ou seja, pensar a criança para além do métier do aluno. Como a criança encarna o métier da infância para além do aluno, na realidade, é quase um retorno à Sociologia, não mais uma sociologia da escolarização, mas a uma sociologia da socialização.
	Assim, para pensar a criança, estávamos divididos entre duas lógicas principais. Uma clássica que parte do social como totalidade para, de alguma maneira, ir em direção à criança. A outra, mais nova, ou renovada, se interessa pelo sujeito singular, pela pessoa, pelos seus valores, suas expectativas, seus direitos, suas aspirações, seus cálculos, seus interesses; ela se pergunta se a criança pode se construir, e em quais condições.
Sociologia da Infância no Brasil
	Quinteiro (2002) localiza a entrada da criança no campo sociológico no Brasil a partir da obra de Florestan Fernandes (1979) publicada na década de 1940 por meio do texto “As trocinhas do Bom Retiro”. A partir dessa visibilidade dada à obra de Florestan, observamos que a inflexão sociológica posta pelo sociólogo está no interior do debate sobre a cultura. “O foco principal de Florestan foi o de evidenciaros processos de socialização das crianças por meio daquilo que ele denominou de ‘cultura infantil’ no debate com a cultura adulta. O trabalho de Florestan inaugurou uma nova concepção de cultura, bem como possibilitou para os sociólogos um olhar sobre as crianças e sobre a pesquisa com crianças até então negligenciado. Nesse texto Florestan trouxe sua marca e uma especificidade para os estudos sociológicos da infância no Brasil, ou seja, uma representação de criança e de infância atravessada por elementos étnicos, sociais, etários e de gênero. 
	Marcel Mauss (2010) escreveu o texto “Três observações sobre a sociologia da infância”, considerado inaugural da Sociologia da Infância francesa. As questões levantadas por Mauss nesse texto são ainda objeto de análise e debate no interior do campo da Sociologia da Infância. A infância como um meio social para a criança, o problema das gerações, as técnicas do corpo e a educação da infância fazem parte do repertório teórico da Sociologia da Infância, que vem cada vez mais se constituindo como um campo profícuo e fecundo de pesquisas tanto para a Sociologia quanto para a Educação.
	É possível compreender que há, pelo menos, três premissas fundamentais que desencadeiam os estudos sociológicos da infância: a primeira diz respeito à criança como sujeito portador de direitos e, devido a isso, tem agência; a segunda diz respeito à infância como construção social histórica e não universal e a terceira defende que as crianças são atores sociais e, desse modo, atuam na dinâmica social, transformando a história e a cultura, o que implica dizer que as crianças atuam positivamente e ativamente nos processos de socialização e são, acima disso, produtoras de cultura. Por fim, as crianças são unidade de observação, isto é, são categorias sociológicas. 
	No interior da Sociologia da Infância podemos diagramar pelo menos quatro concepções que dialogam intensamente, em particular na Europa: a “Sociologia do Discurso da Criança e da Infância”; a “Sociologia da Infância Estrutural”; a “Sociologia das Crianças” e a “Sociologia da Infância Relacional”.
	No Brasil, a Sociologia da Infância não aparece, necessariamente, nesse enquadre epistemológico, e constitui-se como campo próximo da educação, em especial, a educação infantil; desse modo, muitas das pesquisas brasileiras em Sociologia da Infância se constroem a partir dos aportes da Psicologia, por vezes uma psicologia social. Os temas brasileiros presentes nos estudos sociais da infância desde a década de 1970 são: desigualdade social e marginalidade cultural; gênero, indicadores de desempenho escolar e de desigualdade social; concepção de criança e infância; educação infantil; concepção curricular, história e políticas públicas, jogo e brincadeira e relações étnico-raciais.
	Além disto, temos compreendido a infância enquanto um forte dispositivo que atua capilarmente sobre as crianças, produzindo-as e definindo uma mesma infância, sem que a própria criança tenha condições de interrogar sobre ela. É nesta direção que os antropólogos da infância têm indicado a impossibilidade de pensar uma infância indígena longe do trabalho, ou mesmo se perguntando se infância é um conceito que faria sentido na criança indígena, já que ela se torna indígena de determinada aldeia pela via do trabalho e a infância é consagrada pela ausência de trabalho.
A criança constrói a infância 
	Ela foi na história construída como ingênua, pura, fruto do pecado capital, próxima a animalidade, sem razão e tantas outras conceituações que emergiram como verdade em contextos específicos, para se criar a criança como universal em oposição a uma criança enquanto única, impessoal, singular e múltipla. Não há território e corpo mais disputado do que o da criança para atribuir-lhe uma essência e subjetividade. Talvez o que as crianças tenham de mais potente seja a infância. O que é a infância? Foucault se pergunta se infância não constituiria justamente a liberdade de não ser adulto, de não depender da lei e de poder estabelecer relações polimorfas com as coisas, com as pessoas e com os corpos? É isto que a infância não pode mais: produzir o adulto e não ser produzida por ele. O esforço deste dossiê é ir ao encontro de Paolo Virno (2012), filósofo italiano e semiólogo, quando afirma: “Não é concebível um pensamento crítico que não seja também, em quaisquer de suas facetas, uma meditação sobre a infância”.
	A Sociologia da Infância se esforça em dar voz às crianças para ouvi-las, pois sua fala tem sido totalmente ignorada em nossa sociedade adultocêntrica e hierárquica; que a sociedade ocidental, quando fala de infância, ou é como lembranças da infância dos adultos ou é aquela que se tem como ideal para todas as crianças; que a infância é vista como um período de passagem para aquilo que, de fato, importa: ser adulto; que pesquisadores da Sociologia da Infância tem procurado responder sobre o que a criança pensa, qual é o seu ponto de vista, suas experiências etc. 
	Há três premissas fundamentais que desencadeiam os estudos sociológicos da infância: a primeira que diz respeito à criança como sujeito portador de direitos e, devido a isso, tem agência; a segunda que diz respeito à infância como construção social histórica e não universal e a terceira que defende que as crianças são atores sociais e, desse modo, atuam na dinâmica social, transformando a história e a cultura, o que implica dizer que as crianças atuam positivamente e ativamente nos processos de socialização e são, acima disso, produtoras de cultura.
TEXTO 5 - PROFESSORAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL: FORMAÇÃO, IDENTIDADE E PROFISSIONALIZAÇÃO (Isabel de Oliveira e Silva) 
	Dentre os aspectos mais relevantes para a implementação de políticas que incorporem os avanços dos conhecimentos científicos produzidos sobre a criança, a infância e a Educação Infantil no Brasil e no mundo, está a questão da formação dos professores(as) para esta etapa da educação básica. Por isto procuraremos refletir a respeito da formação e identidade profissionais na Educação Infantil, consideradas elementos fundamentais para o desenvolvimento de uma educação de qualidade. 
O debate sobre a profissionalização na área da educação infantil
	Os estudos sobre a Educação Infantil, mais especificamente aqueles que tratam dos profissionais que atuam ou que virão a atuar nessa etapa da educação básica, têm ressaltado a especificidade do trabalho com crianças de zero até seis anos de idade em instituições educativas. Enfatiza-se a necessidade de construir um projeto educativo, entendido como um conjunto de ações, situações e experiências com e para as crianças pequenas, que favoreça o seu desenvolvimento global e sua participação na cultura. Assim, a brincadeira, a exploração do mundo à sua volta, a interação com adultos e crianças em um ambiente seguro e aconchegante configuram um complexo espaço/lugar tempo de experiências e relações a serem coordenadas pela área vêm perseguindo uma maior compreensão da natureza das ações de cuidado e educação de crianças pequenas em instituições educacionais, de seus objetivos e das formas de organização e funcionamento que melhor atendam aos interesses e necessidades das crianças e de suas famílias. 
	Tem-se buscado superar a separação que, historicamente, marcou o atendimento à criança pequena no Brasil entre, por um lado, a creche, concebida como espaço de cuidados, e, por outro, a pré-escola, vista como espaço de educação e de preparação para o Ensino Fundamental. Especialmente no trabalho com os bebês e crianças até os 3 anos de idade e nas instituições de atendimento em período integral, identificava-se a predominância da ideia de que a creche e suas profissionais exerciam a função de substitutas da família e da mãe. Em boa parte dos casos, as pessoas responsáveis pelas crianças nas creches e também em pré-escolas não contavam com formação profissional adequada para a função que deveriam exercer: cuidar e educar crianças em espaços coletivos (HADDAD, 1991). 
	Os estudos e pesquisas sobre a criança de0 até os 6 anos de idade e sobre a Educação Infantil têm procurado demonstrar a importância de se considerar esse período da vida como um tempo de vivências e de desenvolvimento contínuo. Assim, as propostas de atendimento para as crianças dessa faixa etária em instituições educacionais devem seguir um eixo que articule cuidado e educação como práticas integradas na atuação dos professores e nas experiências das crianças, onde se enfatizam as interações e as brincadeiras (Brasil, 2009).
	A definição do professor como o profissional adequado para atuar com bebês e crianças pequenas é uma etapa importante no processo de constituição da identidade da Educação Infantil, mas não é suficiente. É preciso dar conteúdo ao que se entende por professor ou professora de bebês e crianças pequenas. As referências a esse respeito estão em construção e estão baseadas na ideia de que esse trabalho é uma atividade educacional. No entanto, o atendimento à faixa etária de 0 a 3 anos e em período integral ainda é associado, dentro e fora dos círculos educacionais, à dimensão de assistência, embora, em geral, se reconheça o caráter educativo das relações entre os adultos e as crianças em qualquer situação ou contexto. 
	A literatura da área e os instrumentos normativos (BRASIL, 2009) são claros quanto à necessidade de não haver separação entre cuidado e educação, mesmo que, ainda hoje, permaneçam representações e práticas que tratam de forma segmentada essas ações. Em algumas creches e pré-escolas encontram-se ainda práticas que atribuem à professora ou professor a função de planejamento e desenvolvimento das atividades pedagógicas e a outro profissional – os auxiliares –, na maioria dos casos sem formação como professor, os cuidados físicos, como banho e troca de fraldas, dentre outros.
	Outra forma de tratar separadamente essas dimensões do atendimento às crianças pequenas é a existência, ainda atualmente, de instituições que não construíram propostas pedagógicas adequadas para as crianças pequenas, estruturando as rotinas das crianças a partir das necessidades de cuidados físicos, deixando de oportunizar a elas as múltiplas experiências que podem favorecer seu desenvolvimento, bem-estar e vivência plena do tempo de infância. 
	Além disso, encontramos práticas de Educação Infantil – especialmente com as crianças maiores, entre 4 e 5 anos – que se dedicam a realizar atividades tidas como preparatórias para o Ensino Fundamental, constituindo-se, muitas vezes, de situações pouco ou nada significativas para as crianças. Essas práticas fundamentam-se em uma visão da Educação Infantil e do trabalho do professor ou professora restritos às funções de construção/transmissão de conhecimentos. Além disso, evidenciam uma concepção de criança que pouco a considera em seu momento atual, com suas necessidades e capacidades de participação e expressão.
	No processo de constituição da área da Educação Infantil como um segmento da educação básica, tem-se procurado construir outras referências que indicam a complexidade das ações de cuidado onde quer que elas aconteçam, na medida em que o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo, social e cultural das crianças é percebido como um processo único, marcado por diferentes dimensões que acontecem no interior das relações entre os adultos e as crianças e entre as crianças. Nessa perspectiva, cuidado passa a ser considerado como a ajuda à criança para que ela possa desenvolver-se como ser humano (MARANHÃO, 2000), integrando, portanto, o conjunto de relações das quais as crianças participam, sob a responsabilidade de adultos familiares ou profissionais.
Identidades profissionais e formação dos professores da educação infantil
	No processo de construção do atendimento às crianças desde os primeiros meses de vida até os seis anos de idade como uma prática educacional, constitui-se não apenas a identidade da própria instituição, mas também a identidade da criança que a frequenta e a dos adultos que dela se ocupam nesse espaço (HADDAD, 1991; SILVA, 2004). 
	A formação profissional e a construção das identidades dos professores e professoras da Educação Infantil constituem-se em elementos centrais das políticas e práticas em Educação Infantil. Essa questão envolve tanto a formação e a habilitação profissional quanto as condições de trabalho e a carreira profissional nas redes de ensino que oferecem essa etapa da educação. 
	Na medida em que houve uma ampliação das matrículas e que os debates e os estudos sobre a Educação Infantil foram se aprofundando, a integração entre as funções de cuidar e educar consolidou-se, no plano teórico e legal, como o eixo sobre o qual a prática de professores e professoras deve estruturar-se. No entanto, sabemos que, em geral, a profissão professor estruturou-se com maior ênfase nos aspectos cognitivos e de construção/transmissão de conhecimentos para crianças a partir dos 7 anos de idade. Portanto, tem-se procurado pensar a formação de um novo perfil profissional que incorpore essas novas concepções sobre a qualidade do atendimento à criança pequena (CAMPOS, 1994). Ou seja, uma compreensão alargada das funções da instituição de Educação Infantil que compreenda o tempo da infância como um tempo de participação e de produção de cultura e as crianças como capazes de se expressarem por meio de diferentes linguagens. 
 	As identidades profissionais, no entanto, não se alteram de uma hora para outra. Elas são construídas nas relações sociais, em um processo de identificação, de diferenciação e de reconhecimento recíproco entre os diversos segmentos que atuam na área. Nessa direção, sobretudo quando se trata da identidade coletiva – no caso, a profissional – as relações internas e externas às instituições em que se trabalha exercem importante papel na construção das formas pelas quais as pessoas concebem suas funções, se reconhecem e se valorizam. Por conseguinte, tais percepções se refletem também, em alguma medida, na forma pela qual os profissionais são vistos por outros grupos e indivíduos. 
	Assim, não se pode falar em identidades prontas e acabadas. Os contextos e as relações dos quais os profissionais da Educação Infantil participam são dinâmicos e sofrem transformações decorrentes de mudanças sociais, culturais, históricas e também no plano das normas que regem as relações de trabalho. Além disso, os processos de construção de identidades ocorrem em um universo marcado por relações de naturezas distintas: as relações adulto criança na sociedade como um todo, as relações adulto criança na família, as relações adulto criança no contexto institucional, as relações entre profissional da Educação Infantil e as famílias/mães das crianças, as relações entre profissional da Educação Infantil e professores e professoras dos demais níveis de ensino, bem como com o Poder Público. 
	No desempenho de suas funções, os profissionais que atuam com crianças muito pequenas, especialmente com os bebês, mobilizam saberes e habilidades pessoais e profissionais para a realização de sua prática. No entanto, ao longo de nossa história, tais saberes e práticas não foram reconhecidos como parte de uma prática profissional, o que torna difícil a delimitação de uma identidade profissional. Como fatores que dificultam essa delimitação destaca-se o fato de ser recente na nossa cultura a ideia de que é possível compartilhar com instituições educacionais a educação e os cuidados da criança dessa faixa de idade. Além disso, por tratar-se de crianças ainda muito pequenas, as atividades desenvolvidas na instituição de Educação Infantil em muito se assemelham àquelas desenvolvidas na família, tornando tênues os limites entre esses dois ambientes. (CERISARA, 1996; SILVA, 2004, 2007). 
	No espaço coletivo, as relações entre professores e crianças, embora fortemente marcadas por conteúdo afetivo e também orientadas por valores, não expressam relações de parentesco, mas constituem a prática profissional dos adultos que cuidam e educam crianças oriundas de diferentes contextos familiares. 
O fazer profissionalna educação infantil
	O aprofundamento dos estudos sobre as especificidades da condição humana nos primeiros anos de vida e também sobre a complexidade das ações que envolvem o cuidado e educação das crianças em ambientes coletivos indicam a necessidade de melhor definição sobre o que caracteriza a prática profissional na Educação Infantil.
	Por um lado, ser professor ou professora da Educação Infantil significa estar ao lado do conjunto dos professores e professoras dos nossos sistemas de ensino como categoria profissional única. Por outro, cada etapa da educação escolar exigirá de seus profissionais a mobilização de saberes, competências, habilidades e disponibilidades específicas. As práticas profissionais caracterizam-se pela articulação entre as finalidades sociais da etapa da educação a que se referem com as necessidades e demandas dos sujeitos – crianças, adolescentes ou adultos atendidos. 
	No caso da Educação Infantil, sua finalidade é o compartilhamento do cuidado e da educação das crianças até os 6 anos de idade com as famílias e a comunidade. Isso implica o desenvolvimento de ações fundamentadas em conhecimento aprofundado sobre a criança e seu meio, sobre a sociedade, sobre o papel das interações entre adultos e crianças, entre as crianças e entre estas e o ambiente natural e social, para o seu bem-estar, desenvolvimento e participação na cultura.
	A dimensão de cuidados físicos presentes na prática com as crianças pequenas demandará dos professores e professoras o desenvolvimento de habilidades para lidar com o corpo da criança, para assegurar a higiene, o bem-estar, uma percepção positiva de si mesma, além de condições adequadas para a alimentação e a segurança. Com os bem pequenos, isto implica em trocar fraldas, dar banho quando este estiver previsto na rotina da instituição, oferecer e criar condições para a alimentação saudável, cuidar do espaço físico para que as crianças estejam em segurança, dentre outros aspectos.
	A realização de tais ações envolve uma intensa relação afetiva entre os adultos e as crianças. Nessas interações, professores e professoras devem proporcionar às crianças oportunidade de autoconhecimento, seja em relação ao próprio corpo, seja no que se refere a suas preferências em termos estéticos e de conforto e bem-estar. Essas ações supõem que os professores e professoras aprendam a melhor maneira de cuidar do corpo da criança e, além disso, disponham-se pessoalmente a esse contato próximo e delicado com bebês, meninos e meninas.
	Como forma privilegiada de as crianças criarem e participarem da cultura, bem como de proporcionar um desenvolvimento socioafetivo saudável, a brincadeira integra as experiências na Educação Infantil como um eixo estruturante do trabalho de professores e professoras. É preciso conhecer os fundamentos históricos, psicológicos, sociais e culturais do brincar e da brincadeira nas diferentes culturas. Envolver-se nas brincadeiras com as crianças exige dos professores e professoras uma disponibilidade para colocar-se em interação por meio dessa linguagem, que envolve o próprio corpo, a mobilização de energia e abertura para entrar na referência das crianças. Como educador ou educadora, compete a esse (a) profissional organizar o espaço, o tempo e os recursos para que a brincadeira aconteça no ambiente da instituição de Educação Infantil.
	O cuidado e a educação das crianças pequenas envolvem também a ampliação das experiências e conhecimentos das crianças a respeito de si mesmas, do seu grupo social, das possibilidades de explicação da realidade próxima e distante, o desenvolvimento do desejo de aprender, de conhecer, de indagar sobre o mundo, das capacidades de criação e apreciação artísticas. Tudo isto envolve conhecimentos gerais e específicos, habilidades e disponibilidades para aprender também por parte dos professores e professoras ao longo de sua vida profissional. 
	Outro importante elemento da prática profissional na Educação Infantil refere-se à relação entre as instituições de Educação Infantil e as famílias das crianças. No plano legal e da produção teórica, não há dúvidas sobre o reconhecimento de que a Educação Infantil é direito da criança e deve se organizar como um atendimento educacional. Essa concepção, no entanto, não deixa de considerar o benefício que o atendimento em creches significa para as famílias, especialmente para as mães, que podem compartilhar o cuidado e educação dos filhos pequenos com a instituição educacional (CAMPOS et al., 1995). Esta observação é importante porque é frequente a oposição entre direito da criança e necessidades da família. As famílias – pais, mães e outros responsáveis pelas crianças – fazem parte do universo de relações dos professores e professoras, na medida em que cada um assume responsabilidades específicas que devem ser complementares. 
	É recente em nossa cultura o entendimento de que é legítimo que as famílias compartilhem com instituições educacionais o cuidado e a educação das crianças desde bem pequenas. Ainda prevalece um imaginário de que somente a família e a mãe devem ocupar-se dos cuidados e educação dos bebês e crianças nos primeiros anos de vida. Essa forma de entender os papéis dos pais e, especialmente das mães, costuma gerar conflitos internos à família e, não raro, desta em relação à instituição e aos profissionais da Educação Infantil. 
	É importante que os professores e professoras sejam capazes de mediar essa passagem da criança de uma vivência exclusiva no ambiente familiar, para um espaço coletivo. Essa mediação deve ocupar-se tanto dos significados dessa ampliação de experiências para as crianças quanto para as famílias, especialmente as mães, que costumam sentir-se culpadas por não dedicarem atenção em tempo integral aos filhos e filhas pequenos. Os professores e professoras que cotidianamente estarão em contato com as crianças e com seus responsáveis podem contribuir para que essa vivência torne-se um momento positivo na vida da criança, o que inclui ajudar seus responsáveis a construírem referências positivas a respeito da instituição de Educação Infantil e das experiências que as crianças vivenciarão nesse espaço. 
	Além disso, o cuidado e a educação crianças nos primeiros anos de vida envolvem ações fortemente enraizadas nas práticas culturais das famílias – e também dos professores e professoras – orientadas por valores que definem o que é melhor para a criança, tanto em termos de cuidados físicos quanto no que se refere aos comportamentos, ao acesso a informações, dentre outros aspectos. Essa diversidade de formas de agir se fará presente no cotidiano da Educação Infantil. Reconhecer, respeitar as diferenças e encontrar soluções compartilhadas com as famílias fazem parte das atribuições dos professores e das professoras que trabalham com bebês e crianças pequenas. 
	Finalmente, é importante destacar a disponibilidade requerida do profissional da Educação Infantil em colocar-se nesse ambiente também como sujeito de aprendizagens. Cumpre desenvolver aguçado senso de observação e capacidade de escuta das crianças, cujo conhecimento é condição sem a qual não será possível atender aos interesses, necessidades e capacidades dos bebês, dos meninos e das meninas que cotidianamente se encontram na instituição de Educação Infantil.
TEXTO 6 - “MEU IRMÃO TEM 3 ANOS E NÃO ESTUDA PORQUE ELE É CRIANCINHA” - O QUE DIZEM AS CRIANÇAS SOBRE A EDUCAÇÃO INFANTIL E O DIREITO? 
	 Investigação que abordou a temática do direito à Educação Infantil sob a ótica das crianças que teve como objetivo compreender e refletir a respeito da perspectiva delas sobre o que constitui esse direito e suas visões sobre a escola. Com esta finalidade, foram realizadas treze oficinas que foram filmadas, com a utilização de literatura infantil e conversas em grupo e individuais, durante nove meses de imersão no campo.
1. O campo e suas relações – o percurso metodológico 
 	Num primeiro momento após a realização das oficinas, elas foram chamadas para uma conversa sobre as cenas dos vídeos, paraque tivessem a possibilidade de atribuir sentidos próprios ao que disseram e fizeram. Posteriormente, foram criadas categorias para a análise, tendo em vista a análise delas. Para iniciar o diálogo, a estratégia inicial foi a de apresentar filmes curtos relacionados à temática dos direitos das crianças, bem como, ler histórias, partindo das noções “direitos cumpridos” x “direitos não cumpridos” pela sociedade, relacionado aos lugares que a criança deveria ocupar – baseado no vídeo “Mudar o mundo” e da montagem das oficinas. 
	O objetivo de eleger as orientações etnográficas para a pesquisa corrobora com o proposto por Freitas (2007), ou seja, dar espaço para a participação ativa das crianças no processo de pesquisa. Entretanto, admitir que o outro participe ativamente do processo de investigação legitimando sua voz, além de reconhecer sua função de construtor do conhecimento, requer uma atitude ética do pesquisador, pois, de acordo com Amorim (2007) o que ocorre na investigação é o fato de que a maneira como olho o outro não é a mesma como ele olha a si mesmo. Desse modo, o papel do pesquisador na relação com o sujeito da pesquisa é o de “tentar captar algo do modo como ele se vê, para depois assumir plenamente meu lugar exterior e dali configurar o que vejo do que ele vê”. (AMORIM, 2007, p. 14). É o que Bakhtin chama de exotopia e que nas palavras da autora “significa desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior. Esse lugar exterior permite, segundo Bakhtin, que se veja do sujeito algo que ele próprio nunca pode ver”.
	Foram utilizadas entrevistas individuais e em grupos. A esse respeito, afirma Corsaro (2011, p. 62) “que Entrevistas, individuais e em grupo, com crianças são um bom método para explorar suas interpretações sobre suas vidas. Utilizando entrevistas, os pesquisadores podem estudar tópicos das vidas das crianças que são extremamente importantes, mas raramente são discutidos nas interações diárias”. O autor sugere que o pesquisador tenha a consciência de que a idade e o status entre pesquisador e sujeito da pesquisa podem provocar um aumento do desequilíbrio de poder entre eles. Entretanto, isso pode ser minimizado quando se incluem “entrevistas em grupo, a criação de um contexto natural, o uso de vários métodos e o compromisso com a reciprocidade” (CORSARO, p. 62) 
	É um desafio para o pesquisador agir no tensionamento entre “o eu e o outro”, sem intervir de forma dominadora, respeitando as culturas infantis e mantendo um afastamento e uma aproximação, de modo a ver o que ainda não foi visto, sob outro enfoque, com outro olhar. São questões que exigem reflexão do pesquisador sobre a pesquisa, seus objetivos e o respeito aos sujeitos investigados. De acordo com Freitas (2007, p. 31), “nesse sentido, na observação etnográfica interpretativa está presente a autoridade do pesquisador que representa os sujeitos, enquanto na nova perspectiva o pesquisador está com os sujeitos produzindo sentidos dos eventos observados. De fato, o que se busca com esta observação não é realizar uma análise, entendida em seu sentido etimológico, mas uma compreensão marcada pela perspectiva da totalidade construída no encontro dos diferentes enunciados produzidos entre pesquisador e pesquisado”. 
 	Assim, em primeiro lugar, o objetivo foi possibilitar às crianças atribuírem sentidos ao que disseram. Foram projetados os vídeos das oficinas para elas e conversamos sobre trechos das oficinas, pedindo para que se expressassem sobre como se sentiram, para que falassem o que quisessem sobre o que disseram e fizeram. Dessa maneira, a “perda” de sentido na comunicação, apresentada por Amorim (2001), talvez pudesse ser minimizada, uma vez que extingui-la seria praticamente impossível, pois entre o dizer e o atribuir sentido, indubitavelmente, muitas coisas acontecem. 
	Na análise das oficinas o desafio para captar as vozes das crianças foi ainda maior. Em primeiro lugar, porque ficavam eufóricas quando se viam nos vídeos. Ainda que tivesse sido realizada uma projeção para tentar minimizar esse “estranhamento”, com vistas a que se expressassem acerca das cenas selecionadas nos três encontros seguintes, as crianças continuaram eufóricas com suas imagens e com a de seus pares, dificultando que se focalizassem nos aspectos selecionados para a análise. As culturas da infância se sobrepunham aos objetivos traçados para elas pela pesquisa. A teoria passava a ganhar outros significados na prática. Assim, mudou-se foco e a conversa versou sobre as temáticas desenvolvidas nas oficinas, sem a preocupação de relacionar a análise às cenas, em si. 
	Após o término da pesquisa, foi editado um vídeo a ser apresentado aos sujeitos da pesquisa, com seu resultado. A partir das questões e análises, as imagens das próprias crianças refazem o caminho percorrido na investigação e apresentam as vozes e imagens das crianças, bem como sua visão da escola e do direito. 
2. O que dizem as crianças sobre a escola e (seu) direito à educação
	A concepção da criança como incapaz de oferecer “de primeira mão” as informações é criticada por Sousa (2008). A autora assevera que muitas vezes esse questionamento é disfarçado pelo discurso do rigor acadêmico a criança é um sujeito confiável? Como acessar o seu discurso? O que ela “fala” tem importância? (...) E, mesmo na aparência da sociedade capitalista contemporânea, em que a infância parece posta em destaque (...) a criança continua, cotidianamente, não confirmada como sujeito de seu tempo e da sua história”. (SOUSA, 2008, p. 177) 
	Vale registrar o que afirma Corsaro (2011) a respeito da marginalização e da subalternalização da criança na sociedade, vista como alguém que “virá a ser” e não “que é”. Segundo o autor, “é comum que os adultos vejam as crianças de forma prospectiva”, ou seja, “raramente as crianças são vistas de uma forma que contemple o que são – crianças com vidas em andamento, necessidades e desejos”.
	Autoras como Campos e Cruz evidenciam a necessidade de reconhecer a competência dos discursos infantis e da urgência de ouvir as crianças. Cruz (2008, p. 12) afirma que as “ideias de criança como pessoa completa, competente, curiosa e criativa, com direito a ser ouvida e atendida nas suas necessidades específicas” surgem tanto nos discursos dos profissionais envolvidos com elas, como nas pesquisas e estudos que propõem uma “escuta e olhar sensíveis e livres de pré-conceitos”, de iniciativas capazes de “ver e ouvir crianças concretas, vivas, reais” (CRUZ 2008, p. 12). 
	Entretanto, de acordo com Rocha (2008, p. 46) Deixar as crianças falarem não é suficiente para o pleno reconhecimento de sua inteligibilidade, ainda que nem isso tenhamos conquistado no campo científico e da ação; depende da efetiva garantia de sua participação social e da construção de estratégias, em especial no âmbito das instituições educativas da qual fazem parte e que têm representado espaços e contexto privilegiados das vivências da infância. 
	Nesse sentido, a instituição tem o papel e a responsabilidade de prever esses espaços de participação, nos quais as crianças, mais que ouvidas, sejam auscutadas, de modo que sua opinião seja considerada e gere efetivas mudanças. A começar pela proposta pedagógica, que constitui um espaço privilegiado no qual a criança deve poder se expressar acerca de seus desejos e expectativas com relação a sua institucionalização. Indubitavelmente, essa não é uma tarefa fácil e requer metodologias capazes de captar essas vozes e transformar esses desejos em ações. Segundo Rocha (2008, p. 47) “nessa perspectiva, os projetos pedagógicos deixam de ser apenas para as crianças, para serem definidos a partir das crianças e com elas”
	Para possibilitar que as crianças se expressem, as instituições sociais, sobretudo a escolar, devem garantir espaços para que isso ocorra, sobre as mais diversas temáticas. Assim, vale registrar o pensamento de Campos e Cruz (2006, p. 67) sobre essa questão, “as informações que as crianças podem oferecer são relevantes não apenas para se conhecer melhoro que se passa nas instituições (...) mas também para entender como elas veem, como se sentem, o que temem e o que desejam na sua experiência educativa”. 
	Com relação ao envolvimento das crianças na pesquisa, Campos (2008) aponta que muitos autores indicam a inserção delas desde a “participação no planejamento e organização da pesquisa, na análise de dados, na validação das informações e como assistentes de pesquisa”. (CAMPOS, 2008, p. 37). A autora prossegue questionando alguns pressupostos que podem ser assumidos pelos pesquisadores no que tange à investigação com as crianças. 
1. os pesquisadores adultos assumem que sabem quais são as questões significativas;
2. os pesquisadores assumem que as crianças possuem percepções e opiniões sobre as questões que os preocupam e que essas percepções e opiniões podem ser rapidamente expressas quando as perguntas são feitas;
3. os pesquisadores esperam respostas sinceras a suas questões.
	Esses pressupostos acompanharam o pesquisador durante a condução da pesquisa. De fato, o pesquisador tem sua hipótese e questões a serem tratadas e planeja um caminho que procure solucioná-las. Entretanto, na pesquisa com as crianças há que se ter o cuidado de não apagar a figura central, os sujeitos das pesquisas, as crianças. Essa é uma tarefa muito difícil quando se direciona o trabalho de modo a responder às questões. É necessária uma consciência ética no desenvolvimento do trabalho que impeça que esse apagamento aconteça. Ademais, as crianças devem ser “empoderadas”, para que tenham a possibilidade de construir sua representação do mundo social. Isto ocorre quanto o pesquisador se utiliza de recursos que sejam adequados a faixa etária pesquisada e considerem o ambiente cultural no qual as crianças estão inseridas. (CAMPOS, 2008, p. 38). 
	Outros fatores a serem considerados pelo pesquisador, de acordo com Campos (2008), são: 
i) a idade, pois “crianças menores sentem dificuldade de se expressar oralmente; outras formas de expressão podem ser utilizadas, como jogos e desenhos”;
ii) o nível de desenvolvimento da linguagem e escolaridade “crianças escolarizadas já adquiriram um modelo escolar de reagir a perguntas, sentindo mais dificuldade em se expressar livremente do que as que ainda não tiveram essa experiência”;
iii) quais crianças são ouvidas dentro de um grupo, ou seja, “quais são as mais comunicativas? As que possuem maior liderança? Elas são representativas do grupo?”(CAMPOS, 2008, p. 38-39) 
	Com relação ao primeiro item, foram realizadas oficinas com uso de Literatura Infantil, bem como desenhos e vídeos; atendendo ao segundo, atentou-se para as respostas que as crianças davam em coro e as oficinas tiveram várias configurações com relação ao tamanho dos grupos; para o terceiro item, organizaram-se grupos diferenciados de trabalho, mudando as crianças e colocando os ”líderes”” em grupos separados, para que todos tivessem a oportunidade de se expressar. 
	Com vistas a compreender a visão das crianças sobre seu direito à EI e sobre a escola, na pesquisa foram ouvidas as 24 crianças cujo grupo é composto por crianças oriundas de famílias de baixa renda, cujos pais, majoritariamente, são empregados domésticos, pedreiros, trabalhadores informais e do comércio. Algumas mães se intitulam do lar.
	De acordo com Corsaro (2011, p. 278) De todos os fatores que contribuem com os problemas sociais das crianças, a pobreza é o mais penetrante e maléfico. A pobreza claramente rouba a infância e, com frequência, as próprias vidas de muitas crianças no mundo em desenvolvimento. 
	Durante as oficinas, algumas crianças apresentaram dificuldades na expressão de suas ideias e opiniões. Ainda que se repetisse a pergunta, simplificando ao máximo ou tentando dar exemplos para que pudessem entender, algumas pareciam fugir do assunto ou não entender a questão. Segundo Campos (2008), “é preciso saber relacionar as respostas das crianças ao meio ambiente no qual vivem seu cotidiano”. E problematiza: “quantas outras respostas dariam se não tivessem limitadas em seu potencial de expressão? Como reagiria outra criança de outro meio social a essas mesmas condições impostas às crianças daquela instituição?” (CAMPOS 2008, p. 41). 
	Por outro lado, Corsaro (2005, p. 448), apresenta esse desafio aos pesquisadores que propõem investigações com crianças pequenas. O autor afirma que os adultos querem iniciar conversas com crianças, mas não se sentem à vontade com as respostas mínimas das crianças e sua tolerância para o que (para os adultos) parecem ser longos silêncios. 
	Nesse sentido, nem sempre os silêncios podem ser interpretados como incapacidade para expressarem sua opinião. Talvez seja apenas o tempo necessário para que as crianças reflitam a respeito das indagações e formulem, de fato, sua opinião. 
 
2.1. Quebrando o gelo no piquenique
 
	A estratégia de começar pelo piquenique foi escolhida como uma forma de mostrar para as crianças que o pesquisador tomaria um lugar diferente do ocupado pelos demais profissionais da instituição. Seria uma pessoa que conviveria com elas, utilizando-se de outras estratégias, com objetivos que foram explicados na apresentação da pesquisa. Foi uma estratégia de aproximação. 
	A proposta das oficinas foi utilizar a Literatura Infantil para possibilitar que as crianças discutissem a temática do direito de modo lúdico, por meio da fruição e do poder de sedução que as histórias têm com este público específico. O objetivo foi permitir às crianças pensarem a temática do direito e da liberdade para expressarem suas opiniões, para perceberem que isso seria justamente o que seria feito no decorrer da pesquisa. 
 
2.2. Como você gostaria que fosse a escola? “Grandona. Pra todas as pessoas estudarem”
	Na observação do cotidiano das crianças com a professora, no início da pesquisa, foi possível perceber que ela procurava envolver as crianças nas decisões. Em determinados momentos, elas costumavam brincar sozinhas e, em outros, a professora brincava com elas. Algumas atividades eram dirigidas e individuais, mas a maioria era realizada coletivamente.
	Para conversarmos mais detidamente sobre a escola, como eles a veem, do que mais gostam e o que não agrada a elas, partiu-se de um desenho cuja temática era justamente o universo escolar. De acordo com Gobbi (2009, p. 71) “o desenho e a oralidade são compreendidos como reveladores de olhares e concepções dos pequenos e pequenas sobre seu contexto social, histórico e cultural”. 
	Os desenhos sobre a instituição remetem a algumas cenas do cotidiano escolar e outras revelam os desejos das crianças, como os relacionados ao futebol. A Copa do Mundo e as atividades que foram realizadas na instituição em decorrência dela foram muito marcantes para algumas, como Lucas. 
	Pesquisador– Lucas, o que você desenhou? 
	Lucas – o campo de futebol, as letras e os números. 
	Pesquisador– por que você desenhou o futebol? 
	Lucas – porque eu adoro. 
	Pesquisador– e o que futebol tem a ver com a escola? 
	Lucas – porque quando eu ser grande eu vou entrar no Brasil. Vou ser o goleiro. 
	Pesquisador– o que você mais gosta na escola é do futebol? 
	Lucas – futebol, brincar de carrinho, brincar de brinquedo. Eu pinto futebol, letra. 
	Pesquisador– você gosta de letra? Onde você aprendeu? 
	Lucas – estudando. 
	Pesquisador– o que você estuda? 
	Lucas – desenhar, fazer as letras. 
	Pesquisador– e o que mais você gosta de fazer? 
	Lucas – lanchar, comer a comida. 
	Pesquisador– e como você gostaria que a escola fosse? 
	Lucas – grandona. Pra todas as pessoas estudar. 
	Pesquisador– ah é? Por quê? Tem gente que não estuda? Quem não estuda?
	Lucas – as pessoas que fica em casa, chorando. Pra escola, pra aprender. A mãe falando pra arrumar a casa ele não entende nada. Aí ele precisa da escola. 
	Pesquisador– e o que você gostaria que tivesse na escola? 
	Lucas – muito brinquedo. Muito livro pras pessoas ler. 
	Lucas falava euforicamente sobre futebol. Seus olhos brilhavam. Neste momento e em outras oficinas e conversas deixou isso claro. No desenhoquase tudo estava relacionado ao universo do futebol. As letras tinham relação com o seu nome, segundo ele, mas os números formavam os placares dos jogos. 
	A fala de Lucas sobre como gostaria que a escola fosse “grandona. Pra todas as pessoas estudar” reflete a visão que as crianças exprimiam naquele momento da pesquisa, a de que as crianças têm direito a educação, mas esse direito somente se efetivará se houver escola disponível e, consequentemente, vagas para que todos sejam atendidos.
	Pesquisador– você pode me explicar seu desenho? 
	Tainá – isso daqui é as mesas onde a gente senta. Isso aqui também. E aqui são os brinquedos. 	Pesquisador– você desenhou a sala? O que você mais gosta de fazer na sala, com a professora? 
	Tainá – brincar, desenhar, fazer dever. 
	Pesquisador– gosta de brincar de que? 
	Tainá – de boneca. De tudo. De carrinho. 
	Pesquisador– o que você acha mais legal na escola? 
	Tainá – ir lanchar. Pesquisador– o que você acha que não é legal na escola? 
	Tainá – tudo é legal. 
	Pesquisador– não tem nada que você não goste? 
	Tainá – não! 
	Pesquisador– o que você acha chato na escola? 
	Tainá – nada. 
	Pesquisador - como você acha que a escola deveria ser?
	Tainá – ué. Pintar de rosa e de azul. 
	Pesquisador– você acha que tem alguma coisa na escola que você gostaria que tivesse, mas não tem? 
	Tainá – tem tudo aqui que eu gosto. 
 	Tainá foi a criança que mais pareceu pensar no que seria adequado dizer. Cruz (2004) aborda a questão da criança frente ao adulto. Essa relação assimétrica pode ser intimidadora para a criança, uma vez que se trata da maneira como essa criança percebe o adulto e o que pensa que ele quer saber, o que aceita ou aprecia. Tudo isso influencia o que as crianças pensam que seria adequado dizer. 
	Cruz (2004) problematiza as estratégias para captar o ponto de vista das crianças na faixa etária pesquisada. Segundo a autora Aos cinco anos, a criança já acumulou conhecimentos suficientes para saber o que um adulto prefere ou não ouvir, isto é, quais as suas opiniões e desejos considerados “bons” ou não; aliado a isso, começa a ter a possibilidade de exercer algum controle sobre o que quer ou não dizer ao pesquisador. (CRUZ, 2004, p. 4) 
 
2.3. Do que você não gosta na escola? “fazer bagunça” 
 
	Quando indagadas sobre o que não gostam na escola, como ocorre em outras pesquisas deste tipo, as crianças citam coisas que os adultos não gostam que elas façam no ambiente institucional. 
	Pesquisador – e aqui na escola, do que você não gosta? 
	Lucas – se jogar no chão. Correr, pra não se machucar. 
	Wendel– não gosto de fazer sujeira e bagunça. 
	Pesquisador – você não gosta de fazer bagunça ou alguém falou que você não pode fazer bagunça? 
	Wendel– é que eu não quero. 
 	Campos e Cruz (2006, p. 34) comentam sobre essa questão de “não poder ter indisciplina”, quando afirmam que Tanto nos atos contra a escola e seus materiais quanto nas agressões contra colegas, ficam ressaltados os “maus comportamentos” das crianças, o que elas não devem fazer. Essa tônica parece expressar que, pelo menos no nível do discurso, assimilaram muitas regras e proibições. Infelizmente, elas são bastante presentes nessas instituições, com a característica de ter como foco exclusivo a criança. 
 	Dessa maneira, fazer bagunça, pegar as coisas dos outros, fazer sujeira ou correr, ações que são recriminadas pelos adultos, são apontadas pelas crianças como coisas que não gostam na escola, pois são ensinadas a não fazerem isso na instituição. 
2.4. Vídeo mudar o mundo 
 
	Quando questionadas se todas as crianças têm direito a ter alimentação, elas respondem que não. Mas não pareciam querer dizer que elas não tenham esse direito, mas sim, que esse direito não é garantido porque elas sabem que algumas passam fome. O mesmo acontece quando indagadas sobre se todas têm comida e elas respondem que sim. Provavelmente querem expressar que todas devem ter esse direito. Enquanto o pesquisador achava que as crianças não tinham compreendido as perguntas, na realidade ele não tinha entendido as “respostas”. 
	As crianças mudam seu posicionamento sobre a questão quando identificam que a “resposta” não era a esperada, pois percebem que o pesquisador parece esperar por uma única resposta, quando deveria perguntar o motivo de terem outra opinião. Isso deveria ter sido explorado melhor nesse momento da pesquisa, pois algumas realmente poderiam ter algum motivo para pensar diferente e deveriam ter tido esse espaço para se expressarem, o que só foi identificado na análise dos vídeos. Percebendo que as crianças poderiam estar confusas, há tentativa de explicar melhor o que significa “ter direitos” 
	Pesquisador – vocês acham que todas as crianças têm o direito a ter uma casa? 
	Crianças – não! 
	Pesquisador – elas têm que ter uma casa? 
	Crianças – sim! 
	Pesquisador – quando eu falo assim “ter o direito”, eu gostaria de saber se vocês acham que elas têm que ter isso. 
	Lucas – eu falei sim, ela que falou não. 
	Pesquisador – não tem problema, cada um pode dizer o que acha. As crianças do vídeo não tinham ninguém cuidando delas. Vocês acham certo isso? 
	Crianças – não! 
 	Na realização de todas as oficinas, na discussão das temáticas, buscava-se relacioná-las ao direito e à escola. Nessas conversas, as crianças sempre apontavam para o fato de que conheciam alguém que não estudava, geralmente crianças próximas a elas, como irmãos, primos ou vizinhos. Várias diziam que tinham irmãos de 1, 2, 3 e 4 anos que não estudam. No começo elas achavam que todos tinham escola, mas quando pensavam em alguém de seu cotidiano, de uma realidade mais próxima a delas, percebiam que nem todos conseguem estudar, uns porque, na concepção delas, são muito pequenos, outros porque a mãe não conseguiu a vaga nas escolas existentes no bairro. 
	A vaga (ou a falta dela) indica o lugar que as crianças ocupam nas políticas públicas de nosso país. O acesso às escolas de Educação Infantil somente é possível a partir do momento que haja instituições em número suficiente para atender a todas as crianças com conforto, de acordo com o preceituado nos documentos oficiais e na legislação que trata da temática. No caso da pré-escola, há políticas que visam a expansão da rede para o atendimento dessa faixa etária, como o Proinfância, que é um programa nacional. Entretanto, isso suscita outra questão, que é o investimento nas instituições que atendem à faixa etária de 0 a 3 anos, também um direito das crianças. Sabe-se que o atendimento em creche já é deficitário antes mesmo do advento da obrigatoriedade da pré-escola.
	Pesquisador – Será que todo mundo tem escola? 
	Yngrid – meu irmão vai fazer 4 anos e não tem escola. 
	Wendel – meu irmão acabou de fazer 4 anos. 
	Pesquisador – e ele estuda? 
	Wendel – ele vai estudar aqui só ano que vem. 
	Mateus – meu irmão tem 3 anos e não estuda. 
	Caroline – o meu irmão também tem 3 anos e não estuda. 
	Pesquisador – por que você acha que ele não estuda? 
	Caroline – porque ele é criancinha. 
	Pesquisador – mas você não acha que ele poderia estudar? 
	Caroline – eu fiquei triste porque não tem escola pra ele. 
 	A temática do direito a educação suscitou outros direitos em algumas conversas com as crianças, como o direito à saúde e a ter um atendimento adequado, uma vez que a criança também deve ser atendida com prioridade quando necessita de cuidados médicos. Infelizmente a fala de Caroline não reflete a efetivação desse direito na realidade das crianças 
	Caroline – um carro já passou na rua e me atropelou. Esse pé aqui meu ficou a marca do carro. 	Pesquisador – quem estava com você nessa hora? 
	Caroline – eu tava na rua brincando com as minhas colegas. Aí, quando eu fui entrar, eu tava na calçadinha e o carro passou em cima do meu pé. E não teve nenhum hospital pra mim. 
	Pesquisador – sério? Como assim? 
	Caroline – não teve, tio, não teve. Eu juro por Deus (junta as mãos, como se estivesse orando). Aí o carro ficou em cima do meu pé. Eu fiquei chorando. Aí meu primo falou pro carro chegar pra trás. Aí quandoeu cheguei no hospital, não teve nenhum hospital pra mim. 
	Pesquisador – e como você ficou depois? Caroline – eu fiquei dentro de casa e chorando. 
 	O relato da menina evidencia o descaso com a saúde da criança nessa situação, pois segundo ela, houve três tentativas de atendimento, mas nenhuma foi bem-sucedida. Foi interessante ver que, imersa na temática do direito, Caroline estabeleceu uma relação, a partir da fala da colega, desse direito negado quando precisou dele. 
	Considerações finais 
 
	Como pesquisador, pretender entrar e ser aceito na vida das crianças, segundo o preceituado por Corsaro (2011), constituiu o primeiro desafio da pesquisa. Outros surgiram no caminho na tentativa de buscar a opinião das crianças, de modo a ecoar suas vozes por meio das palavras, gestos, entonações e silêncios. Inspirado no que afirma Amorim (2007), busquei praticar o exercício bakhtiniano da exotopia, no papel de pesquisador, de modo a tentar olhar o outro “um pouco mais como ele se olha”, na configuração daquilo que vejo sobre o que ele vê de si mesmo. Visando atingir essa finalidade, foram utilizadas como estratégias metodológicas conversas com as crianças em grupos, entrevistas individuais, em duplas ou trios e desenhos, de modo a “captar” suas vozes, sobre sua realidade e seus desejos. 
	A observação etnográfica possibilitou estar com as crianças, na produção dos sentidos dos “eventos observados” e vivenciados, nas palavras de Freitas (2007). Estar imerso no campo permitiu uma reflexão mais apurada, uma reformulação sobre o modo como via as crianças. A análise dos vídeos, por sua vez, modificou a maneira como entendia as explicações das crianças na realização das oficinas. Isso não foi possível da primeira vez que os assisti. Não em todos os casos. Algumas vezes meus olhos e meus ouvidos me enganaram e tive de pensar, uma vez mais, no sentido que aquelas frases e pensamentos talvez expressassem. As crianças mostraram na pesquisa o que os teóricos revelam em seus estudos: o prazer em serem escutadas e a necessidade de que respeitemos o que pensam e dizem. Elas foram inseridas, como preceitua Campos (2008), desde a organização da pesquisa, quando apontaram o que gostariam que fizéssemos: desenho, lanche, brincadeira, ir ao parque. Demonstraram frustração quando souberam que as ações ocorreriam apenas no ambiente da escola. Isso revelou o desejo de saírem desse espaço e motivou a realização de um piquenique na área externa como primeiro encontro. 
	Os pressupostos de Campos (2008) se revelaram cada vez mais desafiadores. Lidar com as dificuldades de se expressarem oralmente em alguns momentos; o fator da escolaridade, que fornece às crianças um modelo escolar de reagir a perguntas, pode inibi-las de se expressassem mais livremente; tentar não assumir que minhas preocupações e questões não eram exatamente as mesmas das crianças no momento que as expunha ou esperar que se expressassem sinceramente e rapidamente, foram as maiores dificuldades na investigação e exigiram vigília e uma postura ética como pesquisador.	
	Isso apenas reforça a responsabilidade da instituição de criar espaços de participação, possibilitando que as crianças sejam auscutadas, que deem em primeira mão as informações sobre suas vidas e anseios. A participação na elaboração da proposta pedagógica é um bom momento para que a criança fale de seus desejos e expectativas sobre a instituição escolar. Mas isso requer metodologias adequadas e uma escuta sensível e livre de pré-conceitos. 
	As falas das crianças da instituição pesquisada revelam que os principais aspectos à escola são: fazer dever, brincar, lanchar, comer merenda, pintar, brincar de massinha, recreio, aprender a ler, aprender o alfabeto, aprender os números, desenhar, ir ao banheiro, beber água e jogar futebol. 
	Com relação ao que não gostam na instituição, surgiram as seguintes falas: brigar, de fazer muito dever, fazer bagunça, bater, machucar, deixar os brinquedos desorganizados. Como acontece em muitas pesquisas, isso reflete geralmente regras impostas pelos pais ou pelas instituições às crianças. Com relação ao direito, no início da pesquisa as crianças diziam que todos tinham escola assegurada. No entanto, ao relacionar crianças mais próximas, irmãos e primos, que ficavam em casa enquanto elas iam para a instituição, notavam que havia algo diferente entre o que pensavam e o que acontecia na prática. Como muitas possuem irmãos que não tem acesso às instituições por não haver escolas que os atendam, no decorrer da investigação notaram que alguns não têm acesso à escola, ou porque “são muito pequenos” ou porque “a mãe não conseguiu a vaga”. Sendo assim, a maioria espera completar os 4 anos para entrar na instituição pesquisada, a única do bairro que atende crianças de 4 e 5 anos. 
	Cabe a problematização de até quando as crianças vão ser ignoradas em seus desejos e expectativas pela sociedade e pelas instituições. É urgente a necessidade de que as metodologias que estejam mais próximas às suas realidades e que haja pessoas disponíveis para escutá-las verdadeiramente.
TEXTO 7 - De crianças a alunos: transformações sociais na passagem da educação infantil para o ensino fundamental (Flávia Miller Naethe Motta)
	Este texto discute alguns achados de uma pesquisa de doutorado que desenvolveu-se em três anos letivos, de 2007 a 2009, como um trabalho longitudinal. Uma turma foi acompanhada desde o 3º período da educação infantil até o 2º ano do ensino fundamental. 
Tecendo uma malha teórica. 
	Os fundamentos teórico-metodológicos foram tecidos através de conceitos elaborados especialmente por Bakhtin, Vigotski, Foucault, Certeau e Sacristán. Cada um contribuiu de maneira específica para a análise das questões. Os conceitos foram articulados em três momentos que, eventualmente, se entrecruzaram. Inicialmente, tivemos a concepção de linguagem de Bakhtin, principal categoria de análise dos dados do campo. Vigotski forneceu os subsídios para um pensamento dialético sobre as culturas infantil e escolar, tomadas como textos. Foucault e Certeau contribuíram para a análise das estratégias de poder e das táticas de resistência encontradas nas práticas e suas influências na subjetivação dos sujeitos. Por fim, a sociologia da infância e o conceito de cultura escolar permitiram explicitar elementos do campo, especialmente as relações das crianças entre si e com as práticas escolares, colocando-os num contexto.
Vigotski e Bakhtin: para início da conversa
	As questões são trabalhadas, então, em três níveis que estão permanentemente se atravessando: no primeiro encontram-se Vigotski e Bakhtin. A escolha teórico-metodológica apoiou-se no método dialético e na concepção de linguagem. Vigotski contribuiu também com a ideia de subjetividade, fundada na interação entre o sujeito e o outro através do desenvolvimento de uma esfera cultural decorrente do fato de que os processos intrassubjetivos aconteceram antes intersubjetivamente nas práticas sociais. Essas proposições auxiliam no entendimento da construção da categoria de aluno como um fenômeno que acontece tanto na história da sociedade quanto na história individual de cada sujeito, envolvendo dimensões sociais e culturais. 
	Bakhtin entende que a linguagem é social. Não é a experiência que organiza a expressão; a expressão precede-a e organiza, dando-lhe forma e sentido. O discurso tem sempre um significado e uma direção vivos; as palavras contêm valores e forças ideológicas: aqui se situa a abordagem histórica da linguagem. Ao mesmo tempo, a comunicação de significados implica uma relação; sempre nos dirigimos ao outro, e o outro não tem apenas um papel passivo; o interlocutor participa ao atribuir significado à enunciação, numa atitude responsiva. A ideia de linguagem dá à cultura a sua perspectiva de significação; assim, “para compreender o enunciado é preciso compreender o dito e o presumido, o dito e o não-dito” (Kramer, 2003, p. 78). Ter como categoria de análise a linguagem significa considerar a polissemia e a entoação.
	O objetoespecífico das Ciências Humanas é o discurso ou, num sentido mais amplo, a matéria significante. O objeto é um sujeito produtor de discurso e é com seu discurso que lida o pesquisador. Discurso sobre discursos, as Ciências Humanas têm, portanto, essa especificidade de ter um objeto não apenas falado, como em todas as outras disciplinas, mas também um objeto falante. (Amorim, 2002)
	O ser humano se constitui na relação com o outro. A interação social é um processo que associa as dimensões cognitiva e afetiva. Interagindo, as crianças não apenas apreendem e se formam: ao mesmo tempo, criam e transformam – o que as torna constituídas na cultura e suas produtoras. Essa concepção implica percebê-las como sujeitos ativos que participam e intervêm na realidade ao seu redor. Suas ações são suas maneiras de reelaborar e recriar o mundo. Aos adultos cabe a importante função de mediação. Jobim e Souza (2001) diz que, para Vigotski, “estudar a constituição da consciência na infância não se resume em analisar o mundo interno em si mesmo, mas sim em resgatar o reflexo do mundo externo no mundo interno, ou seja, a interação da criança com a realidade” (p. 126)
	Toda enunciação é um diálogo que faz parte de um processo contínuo. O que é dito sempre responde a uma fala anterior e permitirá a sua réplica. O discurso é parte de um diálogo que reflete a interação de alguém que enuncia com um interlocutor num dado contexto. “Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige a alguém(...)a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros” (Bakhtin, 2002). 
	Essa ideia será o fundamento para analisar os “discursos” da cultura escolar e das culturas infantis, buscando identificar como dialogam nas práticas observadas. Essa aproximação se apoia nas ideias bakhtinianas sobre as relações dialógicas: relações de sentidos entre enunciados que têm como referência o todo da interação verbal. Ao aproximarmos enunciados que eventualmente não se dirigiam, a princípio, um ao outro, ainda assim eles “acabam por estabelecer uma relação dialógica” (Bakhtin, 1997, p. 117). Isso ocorre porque os enunciados, e os valores que expressam, são a unidade da interação social a ser analisada. Assim, o diálogo, no sentido amplo do termo (“o simpósio universal”), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais... (Faraco, 2003, p. 67). 
	Todo enunciado é sempre uma resposta ao anterior. O locutor relaciona-se, ao mesmo tempo, com o objeto da enunciação e com outros enunciados. Há uma busca implícita ou explícita por uma atitude responsiva do outro. 
	“Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver enunciado” (Bakhtin, 2000). Aquele para quem se dirige o discurso é parte ativa da cadeia discursiva, pois dá uma direção ao que é dito pela expectativa da sua resposta. A forma que o enunciado toma está relacionada a isso. O destinatário é chamado a se posicionar, pois o locutor espera dele uma resposta: “Cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte” (Bakhtin, 2000, p. 291).
Foucault e Certeau: uma analítica da disciplina e da resistência 
 
	Enquanto o sistema disciplinar, tal como definido por Foucault, incide de forma implacável sobre a vida do sujeito em todas as instituições pelas quais transita, Certeau chama a atenção para os processos antidisciplinares, ou seja, as práticas dos sujeitos comuns que podem rearranjar o que fora imposto ao cotidiano pela racionalidade técnica. Através de pequenas astúcias e táticas de resistência, o sujeito é capaz recontextualizar elementos estabelecidos pelo poder que disciplina, definindo novos usos ou diferentes combinações.
	Ao abordar o discurso, Foucault e Certeau trazem a dimensão espacial como metáfora: a linguagem é uma construção arquitetônica onde os sujeitos se movimentam e interagem. Para Foucault (1996), entretanto, o discurso é uma estratégia de dominação:
	[...] suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (p. 4)
	Foucault dedica-se às microfísicas do poder, garantia do controle e da ordem, pois, para ele, o discurso é um conjunto de práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar” (1996, p. 10).
	Bakhtin contribui para a reflexão sobre o discurso, pois, embora a linguagem seja constituidora do sujeito, ela é também uma corrente contínua que se estabelece num fluxo permanente de diálogos que relacionam o que está sendo dito ao que veio antes e ao que lhe sucederá.
	O enunciado sempre cria algo que, antes dele, não existia, algo novo e irreprodutível, algo que está relacionado com um valor [...]. Entretanto, qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa dada [...]. O dado se transfigura no criado. (Bakhtin, 2000, p. 348)
	Metaforicamente, podemos supor que o discurso em Foucault tende ao imobilismo, à fixação, enquanto para Bakhtin e Certeau ele se movimenta no mundo concreto das ações rotineiras, diante da possibilidade de novas combinações ou enunciados, não necessariamente falas inaugurais, mas um reordenamento daquilo que está posto.
	A enunciação do narrador tendo integrado na sua composição uma outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente, para associá-la à sua própria unidade sintática, estilística e composicional, embora observando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a autonomia primitiva do discurso de outrem, sem o que ele não poderia ser completamente apreendido. (Bakhtin, 2002, p. 145) 
	Enquanto Foucault se preocupa em ancorar sua pesquisa no discurso instituído, colocando as formas ordinárias de discurso fora do seu campo de estudos, Certeau fundamenta sua abordagem na linguagem da vida concreta. Como Bakhtin, ele propõe que o significado está necessariamente vinculado ao cotidiano da linguagem, e não apenas à sua produção institucional. 
	Certeau afirma que a existência das táticas torna o discurso um ato performativo, um lugar praticado onde o sujeito interfere no discurso institucional, tornando o controle da história e das práticas cotidianas uma ficção. 
	O que está em jogo para Certeau e Foucault são as questões relativas ao poder, ainda que expressas através dele. Eles se afastam na forma de conceber os micropoderes e as microrrelações. Se para Certeau eles modificam os limites da dominação colocada pelo discurso do poder, para Foucault eles alimentam essa dominação. 
	Com Foucault, prestemos atenção às estruturas do poder para identificar o que nelas aprisiona. Já de Certeau vamos aproveitar a ideia das fraturas do discurso do poder nas quais se insinua a possibilidade de mudança. 
As culturas infantis e escolar: onde a criança se faz aluna
	As crianças são vistas como produtoras de cultura e exprimem através dela suas percepções e interações com os pares ou os adultos. Suas culturas apresentam especificidades, como os modos como o lúdico e o faz de conta são incorporados. As instituições voltadas para as crianças configura o ofício de criança determinando padrões de “normalidade” para o desempenho social. Os processos de socialização desenvolvidos nesses espaços tentam se processar de maneira vertical. 
	Especialmente significativo no trabalho institucional é o papel da escola e o trabalho pedagógico que “inventou o aluno” [...] e “institucionalizou a infância” [...]. Mas as instituições são também preenchidas pela ação das crianças, seja de forma direta e participativa seja de modo intersticial, isto é, seja atravésde um protagonismo infantil, seja como modo de resistência, nos espaços ocultos ou libertados da influência adulta, e se exprime a “ordem social das crianças”. (Sarmento, 2006)
	Para Sacristán (2000), o currículo é expressão de um equilíbrio entre interesses que atuam sobre o sistema educativo e realiza os fins da educação no ensino escolarizado. Sua proposta é tomá-lo como artefato cultural que precisa ser decifrado, já que é carregado de valores. Não é suficiente analisá-lo em sua acepção mais direta, como “seleção particular de cultura (...) conteúdos intelectuais a serem aprendidos”, pois os currículos traduzem um projeto socializador desempenhado pela escola.
	O currículo extrapola o campo pedagógico e insere-se no campo das práticas políticas, administrativas, de criação intelectual, de avaliação, entre outras, pois “o significado último do currículo é dado pelos próprios contextos em que se insere” (Sacristán, 2000). É ainda o mediador na relação entre professor e aluno, fixa seus lugares em relação à transmissão do saber e define identidades a partir dessa posição. Tem uma materialidade, e é essa dimensão que importa analisar: a do currículo em ação, sua práxis. Assim, as tarefas escolares representam
	[...]ritos ou esquemas de comportamento que supõem um referencial de conduta[...].Este caráter social das tarefas empresta-lhe um alto poder socializador dos indivíduos, pois através delas se concretizam as condições da escolaridade, do currículo e da organização social que cada centro educativo é. (Sacristán, 2000)
	Veiga-Neto (2002) propõe que o currículo deva ser problematizado através das relações que mantém com as ressignificações do espaço e do tempo. Ele foi engendrado para favorecer uma ordem e uma representação fundadas em lógicas específicas de tempo e espaço. Sua função é disciplinar. 
	Se, por um lado, é o currículo que dá a sustentação epistemológica às práticas espaciais e temporais que se efetivam continuamente na escola, por outro lado, são as práticas que dão materialidade e razão de ser ao currículo. (Veiga-Neto, 2002)
	A disciplinaridade é o elemento articulador entre as práticas e o currículo; através dela se dão as operações de docilização dos corpos infantis e a organização dos saberes em disciplinas. 
	O currículo é ainda “dispositivo subjetivante, envolvido na gênese do próprio sujeito moderno” (Veiga-Neto, 2002). Ao serem enviadas para a escola, as crianças aprendem que “ser aluno é ser estudante ou aprendiz” (Sacristán, 2005), e isso se traduz em comportamentos específicos. Sacristán (2005) reconhece, entretanto, um espaço de resistência das crianças na cultura de pares. Favorecida pela segregação do mundo adulto e institucionalização na escola.
	A experiência dividida em dois nichos é uma oportunidade para se proteger do controle total dos pais e professores. Entre os ambientes familiares e escolares, em que se pode se esconder nasce um terceiro que pode se tornar independente de ambos: o do grupo de iguais. 
	Sacristán (2005) aproxima-se de Certeau quando reconhece que a institucionalização não garante o pleno controle sobre os sujeitos; ao contrário, “ela mesma dará motivos para que seja um espaço de resistência que reforçará (...) a comunidade dos iguais” (p. 58).
A escolarização que se impõe: “disciplina é tudo!”
	Depois de um primeiro ano em que foi possível observar as interações das crianças numa prática escolar que privilegiava as lógicas infantis, seu espaço de criação e as brincadeiras, a pesquisa precisou ser redefinida e foi escolhido seguir adiante com a turma observada rumo ao ensino fundamental.	O primeiro dia de aula marcou uma drástica ruptura com o trabalho desenvolvido. As crianças não sabiam o que podiam fazer. As carteiras arrumadas em fileiras, voltadas para o quadro, a mesa da professora na frente, a presença de crianças reprovadas, a ausência de outras que compunham a turma anterior, o abecedário e os numerais na parede, tudo indicava um ano diferente. Não era permitido correr, ir ao banheiro, brincar de pique, batucar, cantar ou olhar pela janela. Havia um descompasso entre as crianças que vieram da educação infantil e as outras. Abaixar a cabeça e esperar não faziam parte do repertório do ano anterior. 
	O coordenador veio em nossa sala e disse que daria um “recado do coração”, conversou baixinho com a professora na porta e dirigiu-se à turma. Não se apresentou, não disse sua função ou nome, apenas avisou que agora era outro diretor e que as coisas mudaram. 
	– Disciplina é tudo! Não pode sair 1 minuto antes do sinal. Só pode ir ao banheiro em caso de extrema necessidade. Se descer a escada ou a rampa correndo, vai voltar até aprender a descer direito, com muita disciplina. Qualquer problema, a tia pode mandar a criança conversar comigo, pois essa é a idade de colocá-los no eixo!
	Não havia diálogo entre as crianças e o adulto que representava a escola. Importava, no entanto, que elas entendessem claramente o que se queria delas e soubessem que, se não cumprissem o desejado, seriam punidas, pois estavam na “idade de serem colocadas no eixo!” 
	Dentre os elementos observados, a fila pode ser tomada como expressão concreta do poder disciplinar: cada sujeito torna-se uma unidade, e cada uma tem lugar determinado. Na entrada, as crianças procuram a fila de sua turma, organizada dos mais novos até os mais velhos. A cada ano, as crianças mudam de série e adquirem o direito de passar para a fila ao lado. A fila é o organizador que distingue gênero, idade, tamanho, poder. As crianças aprendem, desde muito cedo, que estar na fila é fazer parte daquele universo; entretanto, ao mesmo tempo que individualiza, a fila torna seus participantes dispensáveis, pois, quando alguém falta, ela imediatamente se reconfigura através do deslocamento de suas unidades. A fila faz de cada criança mais um aluno, num espaço serial. 
	A despeito dos incômodos da pesquisadora, uma semana após o início das aulas, entretanto, as crianças estavam bem mais ajustadas. Havia um cartaz na parede contendo os “Nossos combinados”, ou seja, as regras definidas para o bom funcionamento da turma, que não pareciam ter sido elaboradas pelas crianças, pois traziam alguns conteúdos muito presentes nas falas dos adultos. Ali estava explícito o que se esperava de cada um e, de certa forma, aos poucos, as crianças já iam lidando com as novas regras de maneira mais eficaz:
	Caio cutucou William, que cutucou André e passou a mochila para ele; isso foi feito escondido da “tia”. Percebi que as crianças agora, quando desejam falar com outra criança que não está na fila seguinte, não chamam mais em voz alta, mas pedem para a criança que está entre elas para chamá-la. 
	A expressão do corpo revelava uma aprendizagem; a sala de aula, no ensino fundamental, era um espaço de movimentos mais contidos, as vozes reguladas num volume mais baixo. Os movimentos não autorizados deveriam ser feitos de maneira rápida e sutil, preferencialmente quando a professora não estivesse atenta. Percebia-se aqui uma sujeição dos corpos infantis à lógica das culturas escolares, que conformam um tipo de subjetividade bem específica: a do aluno. 
	O corpo é uma superfície que sofre as ações das relações de poder (…). Como dimensão material, preexiste ao sujeito, sendo o caminho necessário para os processos subjetivantes que formariam um “ser”, produto e prisioneiro do próprio corpo (Foucault, 1977). O exercício produzido sobre o corpo pelo poder disciplinar cria um ambiente no qual outro cenário é imediatamente visto como anormal, fora da norma. A disciplina explicita as regras, o corpo deve cumpri-las. 
	O sucesso da disciplina depende do olhar hierárquico, do castigo normalizador e do exame. Isso compõe o poder disciplinar e suas técnicas minuciosas, às vezes íntimas, mas com considerável importância. Pequenas ações no cotidiano escolar revelam isso. Um olhar severo, uma bronca, o apagador que bate no quadro, a falta de direito de ir ao parque, há um repertório variado de ações destinadas a punir o que escapa ao comportamento

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