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COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR DE SANTA CATARINA – CESUSC FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE FLORIANÓPOLIS – FCSF NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO: LEITURA, LETRAMENTO, ARTE E LITERATURA CONVÊNIO CESUSC/INSTITUTO LUTERANO DE EDUCAÇÃO COMO SE DÁ A AQUISIÇÃO DE CONCEITOS NA CRIANÇA CEGA NO PROCESSO DE OUVIR HISTÓRIAS?1 Jacqueline Medeiros Januário Schalm2 Resumo Tem como objetivo investigar como se dá a aquisição de conceitos na criança cega por meio da contação e leitura de histórias, sendo que, pela falta da visão, ela não tem acesso as imagens, um dos componentes do texto. Por seu desenvolvimento acontecer com perdas significativas relacionadas à falta do sentido da visão, a criança pode elaborar processos conceituais através do tato e das outras sensações vivenciadas, através de relacionamentos sociais e afetivos. A prática da leitura e contação de histórias têm seus diferenciais com crianças cegas e por meio delas é possível proporcionar à criança cega a oportunidade de ampliar seu âmbito de relações com o mundo letrado, tornando as palavras vivas e percebidas por outros sentidos. Esse é um estudo de caso, de abordagem qualitativa, que utilizou como instrumentos de coleta de dados os registros realizados no decorres da prática de leitura e contação de histórias para uma criança cega no Centro de Estimulação e Apoio Pedagógico (CEVAP), centro de referencia em Blumenau, SC. Os dados demonstram que é necessário haver um olhar sensível, provendo momentos de qualidade e conduzindo os ouvintes cegos no mundo literário, transpondo barreiras e aprimorando novas formas de ouvir e contar histórias, incluindo a todos. Pode- 1 Artigo elaborado no curso de Especialização em Leitura, letramento, arte e literatura, CESUSC/Blumenau. Orientado pela Prof. Dra. Carla Carvalho 2 Graduada em Artes Cênicas pela FURB. Especialista em Leitura, letramento, arte e literatura pelo CESUSC/Blumenau. jacquemjs@gmail.com 2 se afirmar que a criança com deficiência visual vai se desenvolver criando elaborações mentais adequando-se ao mundo dos videntes, no entanto, percebe o mundo diferente dos videntes, explorando outros órgãos que estão à sua disposição. Palavras-chave: Deficiência Visual. Aquisição de conceitos. Contação e leitura de histórias. 1 INTRODUÇÃO As Histórias fazem parte de nossas vidas desde que nascemos sendo pessoas videntes ou não. No decorrer de nossos dias construímos a nossa história, somos influenciados e agimos sobre outras pessoas e histórias que nos rodeiam. Pela leitura e contação de histórias aproximamos as crianças do mundo letrado, alimentamos seu imaginário, conduzimos a experiência lúdica, enriquecemos seu vocabulário, aprimoramos seu traçado no desenho e na escrita e desenvolvemos sua oralidade, entre outros conceitos e habilidades. Contar histórias é uma prática pedagógica que deve ser diária na rotina escolar. Contar e narrar histórias difere-se da leitura propriamente dita. Nessa pesquisa utilizei ambas as formas na narrativa de histórias e selecionei histórias específicas utilizando recursos que explorassem os outros sentidos além da visão, por estar atuando com criança portadora de deficiência visual. Esta investigação aconteceu no Centro de Estimulação e Apoio Pedagógico (CEVAP), considerado um centro de referência no atendimento visual de zero a 16 anos em Blumenau e região. É uma instituição privada que atende os portadores de deficiência visual, baixa visão e cegueira, oferecendo orientação pedagógica para alunos e famílias; ensinamentos na escrita Braille; aulas de matemática através do soroban e técnicas lúdicas; estimulação visual precoce facilitando o aprendizado escolar; reabilitação e adaptação de materiais e apoios necessários para promover a independência e a inclusão na sociedade como cidadão. Os profissionais atendem as crianças em salas 3 específicas com materiais adequados ao trabalho, sendo momentos de aulas individuais e em pequenos grupos, com a duração de uma hora, dois dias na semana. Para esta pesquisa, meu trabalho compreendeu momentos de observação e atuação com contação de histórias para uma aluna de 5 anos e 10 meses, no processo de alfabetização em Braille, com o objetivo de responder a seguinte pergunta: Como se dá a aquisição de conceitos na criança cega no processo de ouvir histórias? Para responder a essa pergunta elencamos como objetivo geral: Compreender como se estrutura a elaboração conceitual de uma criança cega no processo de ouvir histórias. Os objetivos específicos elencados para esse processo investigativo foram: Conceituar e classificar a deficiência visual; analisar os recursos utilizados nas contações de histórias com uma criança cega. Para abordar este tema e desenvolver a pesquisa fez-se necessária a vivência direta com a criança cega, levantamento de dados referentes à deficiência e análise das reações diante das histórias contadas com o uso de recursos táteis e auditivos. Esta é uma pesquisa de abordagem qualitativa, relatando as impressões do ouvinte e com registros das atividades realizadas. Trata-se de um estudo de caso em função da sua particularidade. Segundo Lüdke e André (1986), o estudo do caso é o estudo de um caso, o qual deve ter seus contornos claramente definidos no desenrolar do estudo. Esse tipo de pesquisa deve ser utilizado quando se pretende estudar algo singular, que tenha um valor em si mesmo. O desenvolvimento do estudo de caso se dá em três fases, que se interligam e se completam no decorrer do estudo: fase exploratória - trata-se do levantamento de questões iniciais, baseando-se nas observações, entrevistas, levantamento de hipóteses do pesquisador e exame da literatura específica; a delimitação do estudo: trata-se da coleta das informações e levantamento dos aspectos mais relevantes a serem estudados; a análise sistemática e a 4 elaboração do relatório: trata-se da articulação de unir as informações, organizá-la e torná-la disponível. As atividades foram organizadas com o objetivo de conhecer o local investigado, conhecer a dinâmica das atividades e a aluna envolvida na pesquisa. Os procedimentos metodológicos foram: contato com o CEVAP, diálogo com a direção do centro para poder compreender o processo, neste encontro é que se percebeu a necessidade e relevância de uma atividade com uma única aluna, caracterizando um estudo de caso. Observei nessa etapa que os alunos são atendidos individualmente e em algumas dinâmicas unindo amigos e família. Após conhecer a realidade da aluna selecionamos os livros a serem lidos e organizamos os momentos de encontro com a aluna. Foi um total de dez encontros. Todos os encontros foram realizados no CEVAP, inicialmente com o acompanhamento da professora. Os encontros foram semanais. O instrumento de coleta de dados foram os registros realizados durante os encontros. A investigação aconteceu com uma aluna que estuda no CEVAP. A aluna R3 é portadora de cegueira total desde o nascimento, portanto não tem resíduo de memória visual, sua aprendizagem acontece com grande estímulo por parte da família sendo irmã de uma menina e de um menino com visão normal, são trigêmeos. É participativa, bem humorada e apresenta bom vocabulário. Seus irmãos atuam como apoio constante contribuindo para seu desenvolvimento afetivo, social e cognitivo. Participa da escola regular, envolvida nas atividades com as crianças videntes. Sua família colabora ativamente e tem auxílio dos avós paternos no seu dia a dia proporcionando- lhe vivências significativas em locais variados, como: cidade, sítio, praia, passeios, entre outros. Para locomoção no ambiente do CEVAP utiliza sua bengala e demonstra domínio do espaço.Apresenta vocabulário elaborado e reage prontamente aos estímulos sonoros. A cada encontro realizava comentários remetendo- se a história que havia ouvido na última vez, pedidos 3 Utilizei a letra R para identificar a aluna participante da pesquisa, a letra não tem relação com seu nome para manter sigilo. 5 de outras histórias também foram feitos. Para haver compreensão das histórias contadas fazer uso de recursos táteis e auditivos foi de suma importância. Houve grande participação da aluna em cada momento, na medida em que a história se relacionava com alguma experiência vivida. É uma criança bastante expressiva, curiosa, alegre, cheia de idéias com comportamento adequado para sua idade cronológica. Diante das reações ao ouvir as histórias apresentadas, relatos e indagações levantamos hipóteses sobre seu modo de elaborar os conceitos e conhecimentos novos, sendo que há ausência do recurso visual. As imagens não podem ser totalmente expressadas com a palavra ou através do toque, podemos audiodescrever para que haja uma elaboração mental do ouvinte e este possa elaborar seu conceito mental, mas ainda haverá perdas neste processo. A criança com deficiência visual vai se desenvolver criando elaborações mentais adequando-se ao mundo dos videntes, em contrapartida percebe o mundo diferente dos videntes, explorando mais os outros órgãos que estão à sua disposição. 2 A DEFICIÊNCIA VISUAL Atualmente há um acordo entre os estudiosos do tema, entre os quais se encontram médicos, educadores, professores e outros profissionais específicos, denominando deficiente visual todo sujeito que possui uma alteração tanto no funcionamento quanto na estrutura dos olhos. Estão incluídas as pessoas visualmente incapacitadas, como os cegos e os que apresentam baixa visão. É necessário fazer uma distinção entre cegueira e deficiência visual. Cegueira - supõe uma perda de visão. São aqueles que são totalmente cegos, que não tem nada de visão. Já a Deficiência Visual - são alterações no sistema visual, que se define pelos parâmetros de acuidade e campo visual. Entende-se por acuidade visual a capacidade que o sujeito tem para distinguir objetos a uma determinada distância. Leva- se em consideração a distância da qual se pode apreciar o objeto e o ângulo formado pelos olhos ao olhar esse objeto. O campo visual é definido como o grau que o olho pode 6 abranger em cada direção, cujos limites normais são na parte externa 90°, na parte superior 50° e na inferior 70°. (Gonzales, 2007) No plano funcional, podemos definir a criança com deficiência visual como aquela cuja deficiência visual interfere na boa aquisição da aprendizagem, a não ser que sejam feitas adaptação com os atuais métodos de aprendizagem, com materiais específicos, fortalecendo a aprendizagem ambiental. (Gonzales, 2007). A baixa visão ou vista parcial são aquelas pessoas com uma ampla série de graus e tipos de incapacidade visual que, mesmo depois de utilizar meios corretivos ou auxílio ópticos, ambientais e técnicos, continuam visualmente prejudicadas. (Gonzales, 2007). De acordo com estes conceitos, falamos de pessoas visualmente incapacitadas, incluímos os cegos e os que apresentam baixa visão. Isto é, desde os que necessitam de óculos para enxergarem corretamente até os que são totalmente cegos. Os portadores desta deficiência são heterogêneos, levando em conta duas características importantes: o resíduo visual que possuem e, por outro lado, o momento de aquisição de sua deficiência. Uma pessoa cega de nascença não é igual aquela que adquire essa condição no decorrer de sua vida. De acordo com o momento da cegueira, sua experiência pessoal e suas aprendizagens serão totalmente diferentes. Pode-se classificar por graus diferentes de deficiência visual: parcial ou total. Na categoria parcial: são apresentados os defeitos ópticos que são problemas na refração do olho, visão nebulosa, miopia, astigmatismo e a hipermetropia, ambliopia. Estas podem ser corrigidas com pequenas intervenções cirúrgicas ou com o uso de lentes e estas pessoas podem ter uma aprendizagem normal com lentes ou aparelhos especiais utilizando material adequado. 7 2.1 PADRÕES DE DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA VISUAL Quando a pessoa não tem associado nenhum outro tipo de deficiência ou incapacidade, além da falta de visão, ele a compensa com os outros sentidos, como o tato, a audição e o olfato. Porém em determinadas áreas do seu desenvolvimento apresenta perdas em relação ao vidente. 2.1.1 Desenvolvimento motor O desenvolvimento sensório- motor pode se desenvolver mais rápido na criança vidente, pois existe uma estreita relação entre visão e movimento. Porém não aparecem diferenças nos primeiros meses de vida, nas crianças videntes e não videntes. Posteriormente ocorrem desigualdades, pois a criança não vidente não costuma engatinhar, isso acarreta diferença no seu caminhar e também há falta de manejo de suas mãos e com isso sua motricidade fina sofrerá um atraso. Fraiberg denomina mãos cegas porque a criança não as usa para explorar. Outro problema que ocorre nestas crianças é a estereotipia, que consiste nos balanços corporais e de cabeça e esfregação dos olhos, que segundo Herranz e Rodríguez de La Rubia, se deve ao fato de o sujeito não receber informação visual e, com esses comportamentos, tentar compensar a falta de estímulos visuais. (Gonzales, 2007) Quanto ao sorriso podemos classificá-lo como expressão motora, em algumas crianças não videntes e ele não existe, ou pode aparecer estereotipado provocando, muitas vezes rejeições com outras pessoas videntes. Podem ocorrer atrasos no desenvolvimento motor pela falta de estimulação visual, e também auditiva e tátil. O bebê aprende como brincadeira a coordenação olho-mão, mas a criança com dificuldades visuais precisa dos sons para manter contato com o mundo que a cerca, portanto os brinquedos devem ser sonoros, com texturas agradáveis e que estimulem a coordenação mão-ouvido. Esta coordenação irá auxiliar posteriormente na localização de sons e na orientação espacial, principalmente para que haja o movimento desta no espaço. No plano de orientação e mobilidade destas crianças são: insegurança, falta de 8 conhecimento do medo, problemas no caminhar e movimentos estereotipados. Ainda que as etapas de desenvolvimento espacial sejam iguais nas crianças videntes e não videntes, aparecem primeiro os conceitos métricos e depois os projetivos. Nas crianças não videntes a aquisição destes conceitos é mais lenta, porém próximo aos 14 anos, se igualam. Estas considerações são para as crianças que nasceram sem visão ou que perderam em idade precoce. 2.1.2 Desenvolvimento cognitivo Há uma estreita relação do desenvolvimento motor com o cognitivo, também relacionado com o processamento da informação. Nos primeiros meses de vida é difícil notar diferenças do desenvolvimento cognitivo das crianças videntes e não videntes. Nos estudos de Warren, as crianças não videntes podem ter um atraso entre 4 meses e 2 anos na aquisição do conceito de objeto. (Gonzales, 2007). Causada pela falta de interação perceptiva com o ambiente e poucas experiências corpo-objeto, função exercida pelo uso da visão que essas crianças não possuem. Também aparecem diferenças quanto à inteligência representacional nas crianças cegas, pois a permanência do objeto é diferente da dos sujeitos videntes. O processo cognitivo que a criança cega experimenta é discriminar, reconhecer, perceber e utilizar estas informações, sempre com estímulo das pessoas videntes que a acompanham. 2.1.3 Desenvolvimento perceptivoPor meio da percepção recebemos informações do ambiente e também das conseqüências das nossas atitudes sobre este ambiente. O desenvolvimento perceptivo se adquire aos poucos, de acordo com o processo do seu desenvolvimento. Nas primeiras semanas de vida, a criança só enxerga vultos sendo incapaz de focalizar seu olhar, não existe percepção espacial, nem acomodação, nem convergência ocular, nem seqüência exploratória. Nesse momento não há diferenças entre crianças videntes e não videntes. No final do primeiro trimestre, as crianças videntes podem percebem freqüências espaciais e pequenos contrastes, elas focalizam adequadamente e coordenam ambos os olhos com o olhar. Entre os 4 e 6 meses percebem profundidade e aos 6 meses fixam o olhar. Neste momento do desenvolvimento se dá o 9 distanciamento entre as crianças videntes a não- videntes. Os deficientes visuais utilizam o tato para perceber e reconhecer os objetos, por isso deve-se reforçar o uso das mãos e as atividades com elas como uma forma importante de aprendizagem. Eles também utilizam bem as informações que recebem pelo restante dos sentidos, porém como a visão é o sentido mais integrador, têm a desvantagem da falta de rapidez na integração. 2.1.4 Desenvolvimento da linguagem Podem ocorrer atrasos na compreensão do significado das palavras e, fundamentalmente nos advérbios, nas crianças com deficiência visual. Herranz e Rodriguez de la Rubia detectaram nas expressões: “ para cima”, “para baixo”, “na frente”, “atrás”, “dentro”, “fora”. Próximos dos 10 e 12 anos esta situação é amenizada, pois a deficiência visual cria dificuldades nas aprendizagens normativas, porém com reforço de atividades é possível compensar essas deficiências. Quanto às características da linguagem das crianças não videntes encontramos: a ausência de gestos, dificuldades para associar palavras com conceitos e o uso dos verbos. Muitas vezes ocorre uma tendência à ecolalia, isto é, a repetição da última palavra, som ou frase ouvida, como meio de comunicar com outras pessoas. (Gonzales, 2007) 2.1.5 Desenvolvimento afetivo e social O desenvolvimento e a aprendizagem do ser humano iniciam no momento em que ele nasce e se relaciona com suas necessidades, sentimentos e potencialidades. A criança não-vidente apresenta as mesmas necessidades que as outras crianças videntes, cabe aos pais ou responsáveis uma atenção especial e a busca de conhecimento específico para criar um ambiente de confiança e tranqüilidade. O desenvolvimento afetivo depende do auxílio da família e do interesse em fazer que a criança aumente suas potencialidades como ser humano e busque sua independência e autonomia, na medida do possível. Como as crianças não-videntes não conseguem ver as expressões faciais, é necessário buscar contatos auditivos e táteis para que a criança possa intervir no mundo e não se afastar dele. A criança não-vidente brinca com seu corpo como forma de substituir a brincadeira visual. Por causa 10 de suas características, os deficientes visuais apresentam menos oportunidades de firmar sua identidade e compreender seus sentimentos. As perturbações pessoais da criança não-vidente ocorrem nos primeiros 18 meses de vida, pois ela se sente rejeitada por estar envolvida num mundo em que faltam estímulos, a menos que esteja envolvida num ambiente afetivo e acolhedor. Por isso as interações humanas são muito importantes para a aprendizagem da criança e para lhe dar segurança e desenvolver uma conduta afetiva positiva por meio das interações com as pessoas da família. 2.2 AQUISIÇÃO DE CONCEITOS Para buscar alternativas e respostas para a questão da pesquisa, busquei embasamento na concepção teórica de Lev. S. Vigostki (1896-1934). Ele aborda a questão da aquisição de conceitos, fazendo distinção entre os conceitos espontâneos e conceitos científicos, os primeiros adquiridos na experiência pessoal da criança, e os científicos adquiridos pelo ensino sistemático em sala de aula. De acordo com o livro de Smolka (2009, p.8) Vigotstki defende que “o homem é um agregado de relações sociais” e que o desenvolvimento da criança encontra-se assim, intrinsecamente relacionado à apropriação da cultura. Essa apropriação se dá pela ação ativa da criança nos modos sociais de perceber, sentir, falar, pensar e se relacionar com os outros. Ele encontra na capacidade humana de criação e uso de signos uma forma explicativa para o funcionamento mental, social e individual. Os signos, segundo Vigostki são um meio/ modo de relação social e são expressos pela forma verbal de linguagem contribuindo no desenvolvimento do ser humano e na formação de conceitos. Desta forma, a palavra como meio de comunicação social e como generalização de experiências, desempenha um papel central no desenvolvimento do pensamento e na evolução histórica da consciência humana. Os estudos de Vigostki sobre a aquisição de conceitos e linguagem decorrem da compreensão do homem como um ser que se forma em contato com a sociedade. Ele atribuía um papel importante às relações sociais nesse processo, e desta teoria se originou a corrente pedagógica de seu pensamento 11 que é chamado de sociointeracionismo. Assim o desenvolvimento da criança não é simplesmente um processo espontâneo, linear e natural: é um trabalho de construção do homem sobre o homem. Através de seus estudos, ele tinha compreensão do homem como ser que se forma na relação com a sociedade. Para Vigostki, a formação se dá numa relação recíproca entre sujeito e a sociedade a seu redor, ou seja, o homem modifica o ambiente e o ambiente modifica o homem. Outra consideração importante é sobre a relação entre a realidade vivida e a imaginação, criação de conceitos mentais na criança. A imaginação sempre se constrói pela realidade. A criança cria enquanto brinca, não acontece apenas uma simples recordação do que vivenciou, mas uma reelaboração criativa de impressões vivenciadas. Ela apresenta o ímpeto para criar, é imaginação em atividade, assim como na brincadeira. Assim a elaboração mental constrói- se pela interação na realidade, pela ação criadora. Em cada estágio a criança tem uma expressão singular: cada período da infância possui uma forma de criação. Assim, não existe modo isolado no comportamento humano, mas depende diretamente das experiências vividas com o outro e com o acúmulo de experiências pessoais. Quanto mais rica a experiência da criança, mais material está disponível para a imaginação e criação mental dela. A imaginação origina- se exatamente destas experiências significativas. Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou mais ela sabe e assimilou: quanto mais variada sua experiência vivida, mais produtiva será a atividade de sua imaginação. Diante disso Smolka indica que (2009, p. 20) “A primeira forma de relação entre imaginação e realidade consiste no fato de que toda obra de imaginação constrói-se sempre de elementos tomados da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa”. No que se refere às práticas pedagógicas, temos o trabalho constante de inventar e planejar, de forma mais efetiva, o acesso das crianças ao conhecimento e na sua participação na produção cultural e histórica. Podemos pensar a atividade pedagógica como atividade criadora, trazendo significativas implicações pra a educação das crianças portadoras de necessidades educativas, como aqui o caso da aluna não – vidente. 12 Outra forma de relação entre a imaginação e a realidade, se dá entre os elementos já existentes que a criança internalizou em sua imaginação e algum fenômeno real. Essa relação torna-se possível pela experiência do outro ou experiência social. A imaginação é uma condição necessária para quase toda atividade mental humana e adquire uma função muito importante na formação do comportamento e desenvolvimentodo ser humano. Através da atividade de contação e narração de histórias, podem-se formar imagens, criar mentalmente cenas e cenários, imaginar, tomando por base a experiência do outro. Tanto a ficção (contos clássicos, por exemplo) como a história (os acontecimentos vividos e narrados) implicam a atividade criadora da imaginação. A pessoa pode imaginar o que não viu ou o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal. Para Smolka (2009, p.24) “Ao considerar a experiência prévia, no nível pessoal Vigostki enfatiza que ela é forjada na e pela incorporação da experiência social, histórica, coletiva, sendo esta vista como condição fundamental na produção do novo”. Ainda podemos perceber outra forma de relação entre a atividade de imaginação e a realidade, a de caráter emocional. Os sentimentos influenciam na emoção que evoca das imagens. A emoção parece selecionar impressões, idéias e imagens de acordo com o humor de determinado momento. Desta maneira as pessoas aprenderam a expressar externamente seus estados internos, as imagens da fantasia servem de expressão interna dos sentimentos. Podemos citar as cores, como exemplo: dizemos que o tom vermelho é quente. A fantasia guiada pelo fator emocional, pelo sentimento que evoca, constituirá o tipo de imaginação mais interna, mais subjetivo. Porém ocorre também o inverso, a imaginação influi no sentimento também. Muitas vezes a combinação de impressões externas provoca na pessoa muitos sentimentos, como por exemplo: ouvir uma música, ouvir uma história. Por último, existe outra relação entre a imaginação e a realidade. Consiste em que a construção da fantasia pode ser algo totalmente novo, que nunca tenha acontecido na experiência de vida da pessoa e sem correspondência com algum objeto existente, porém quando vivenciado adquire concretude e essa imaginação “cristalizada” começa a existir e influir 13 no mundo real que vivemos. Essa imaginação torna- se realidade. Vigostki defende “que a imaginação precisa ser completada, isto é, realizada num artefato, numa palavra, numa obra; precisa tomar uma forma, tornar-se um produto que possa integrar, de maneira objetiva, a produção coletiva.” (Smolka, 2009, p. 30) Assim, faz sentido um olhar cuidadoso para a relação elaborada pela criança não vidente no processo de ouvir histórias. 2. 3 OUVIR E CONTAR HISTÓRIAS... Ouvir e contar histórias estão, quase sempre, presentes em nossas vidas desde o dia do nosso nascimento. De modo informal ouvimos e participamos de experiências e depois também contamos as nossas histórias utilizando variadas formas de linguagem. No dia-a-dia da infância da criança esta prática de partilha se torna visível, o ato de ouvir e contar, esses papéis vão se intercalando entre as crianças. Assim contadores e ouvintes de histórias vão aprendendo em parceria, ampliando suas relações com a oralidade e a leitura. De acordo com Kaercher “Todos temos necessidade de contar aquilo que vivenciamos, sentimos, pensamos, sonhamos... Dessa necessidade humana surgiu a literatura: do desejo de ouvir e contar para, através desta prática, compartilhar”. (2001, p.81) Contadas através do conto de literatura oral, as histórias permitiram que a humanidade transmitisse de geração em geração seus feitos, suas conquistas e derrotas, seus sonhos e temores... isto é, a sua História. Os povos orientais sempre consideraram importante o conto oral, defendem que além de ser um estilo literário, neles estão contidos o conhecimento e as idéias de um povo, é possível indicar condutas e resgatar valores e ainda pode atuar como restaurador do equilíbrio emocional, adquirindo um caráter terapêutico. Para Bettelheim, 1903- 1990 (1980) “... o conto de fadas encanta, antes pelas suas qualidades literárias - o próprio conto como uma obra de arte”. Ele defende que através de um conto a criança dá vazão aos seus afetos. Apoiando estas idéias, Busatto (2003) acrescenta que o conto de tradição oral, seja ele conto de fada, mito, lenda, fábula, ou conto de ensinamento, encanta por alimentar o nosso imaginário e dar 14 mais brilho ao nosso mundo interior. Ao narrar um conto se concede ao ouvinte a possibilidade de criar o seu cenário, a sua música e as suas cores. (2003, p.17) Desta forma o conto é uma forma de expressão artística libertadora e ampla, isto é, cada pessoa tem a oportunidade de reter o que é significativo para si, de comum acordo com seus referenciais. A capacidade de imaginar o espaço e o tempo de cada conto nunca será o mesmo, isto será construído por cada ouvinte, de acordo com a realidade interna de cada um. A criação de imagens ajuda a despertar as sensações e a ativar os sentidos do paladar, tato, audição, visão e olfato trazendo a recordação de experiências anteriores. Desta forma, o conto proporciona prazer e satisfação, encantando a pessoas videntes ou não. Ao realizar a contação ou leitura de contos e histórias fazemos o uso, quase que exclusivamente, da palavra falada. Ao selecionar um conto é necessário escolher as palavras, entre todas, as que têm maior força para transmitir os significados, expressar os personagens, exprimir ritmo e boa sonoridade. Segundo Smolka (2009) A palavra - forma verbal de linguagem -, como produção humana, viabiliza modos de interação (com os outros) e modos de operação mental (individual e intersubjetiva). A palavra possibilita ao homem indicar, nomear, referir, analisar, conhecer o mundo e conhecer-se. Pela linguagem o homem planeja e orienta as ações; por elas e com elas ele pode objetivar e construir a realidade. (2009, p.77) Para contar histórias às crianças cegas percebi que é necessário através das palavras, trazer à tona as intenções dos personagens, despertar emoções e impulsionar o ouvinte a reflexão. Entonação, ritmo, e boa sonoridade darão vida a narrativa, tornando quase que palpável, a narrativa para haver maior compreensão, despertar emoções e proporcionar entretenimento. 2.3.1 Por que contar histórias? “Contar histórias é uma arte, uma arte rara, pois sua matéria – prima é o imaterial, e o contador de histórias um artista que tece os fios invisíveis desta teia que é o contar”. (Busatto, 2008, p.9) A leitura e contação de histórias são práticas que ocupam um significativo espaço no processo pedagógico. São momentos lúdicos e de grande importância para o desenvolvimento integral da criança. Devem ser 15 contadas de acordo com o interesse dos alunos e pode-se apresentar uma variedade de autores e estilos textuais. As histórias proporcionam o contato com os conflitos humanos, trazem familiaridade com a estrutura narrativa, favorecem o conhecimento da linguagem literária, ampliam o vocabulário, desenvolvem a capacidade de imaginação da criança. Também contribuem na formação do caráter, sugerem questionamentos, ampliam a curiosidade e instigam a pesquisa. Ao ouvir uma história a criança pode vivenciar momentos únicos e se identificar com os personagens ou situação vivida, além de desenvolver sua escuta, estimular sua oralidade e despertar seu interesse pela literatura. Defendo aqui a leitura e contação de histórias, livres de atividades didáticas posteriores. A vivência deste momento deve ser significativa e prazerosa para despertar no ouvinte o desejo de buscar novas leituras e não vir acompanhado de tarefas roubando o brilho e afetividade que este momento transmite. Quando contamos histórias, segundo Carlos Ademir Farias (2011) alimentamos duas das mais importantes características dos seres humanos: a imaginação criativa e a oratória. Somente os seres humanos dizem era uma vez... somente nós fazemos isso: contamos nossa história, acrescentamos detalhes, criamos situações que nãoaconteceram de fato,imaginamos outros mundos, outros seres, outras paisagens, outras formas de ver e viver neste e em outros mundos imaginários. (2011, p.20) Quanto mais cedo for introduzido este hábito, mais ganhos haverá para a criança. Ela amplia seu vocabulário e passa a se expressar com mais desenvoltura, de forma espontânea e mais comunicativa, desde a primeira infância. Ouvir e contar histórias são práticas que devem ser inseridas nos meios familiares, escolares e na comunidade, como nos tempos dos nossos ancestrais, atraindo ouvintes variados e contadores testemunhas da História da Humanidade. O conto deve voltar a ocupar o espaço da casa, escola, clubes, asilos, hospitais, centro comunitários, ruas; como nos tempos antigos pelo contador de histórias, sendo os avós, os pais, educadores ou qualquer outra pessoa da comunidade que tenha histórias pra contar... 2. 3. 2 Qual é a história hoje? Nelly Novaes Coelho (2000) sugere alguns princípios orientadores que podem ser úteis para a escolha de livros adequados a cada categoria de leitor. 16 Elenco aqui os que se enquadram na idade da criança em que foi realizada esta pesquisa, considerando que no processo dessa pesquisa foi necessário sempre buscar alternativas no momento das leituras e contações valorizando a audiodescrição das imagens e os recursos táteis e sonoros. O pré- leitor/ Categoria inicial que abrange duas fases: Primeira infância (dos 15 -17 meses aos 3 anos) - a criança inicia o reconhecimento do mundo que a cerca, principalmente pelos contatos afetivos e pelo tato. Seu impulso básico é pegar tudo o que alcança, relacionamos aqui as crianças videntes. Também é o momento da criança conquistar sua própria linguagem e passar a nomear as realidades ao seu redor. Por isso o adulto precisa propor brinquedos de animais, gravuras e objetos familiares, em material adequado para tateio e descobertas. Nesta fase o mundo natural e o mundo cultural começam a se relacionar. (Coelho, 2000) Segunda infância (a partir dos 2/3 anos) - aqui predomina os valores vitais (saúde) e sensoriais (satisfação ou carências afetivas), a criança toma consciência de si mesma. Passa pela fase egocêntrica e dos interesses. Apresenta grande interesse pela comunicação verbal e da adaptação ao meio físico. A brincadeira com o livro deve ser orientada pelo adulto de forma lúdica. As repetições são formas de manter a atenção da criança e as imagens devem ser atraentes e significativas. A criança começa a perceber a inter-relação entre o mundo real que a cerca e o mundo da palavra que nomeia esse real. (Coelho, 2000) O leitor iniciante (a partir dos 6/7 anos) fase do aprendizado da leitura, alfabetização. Início do processo de socialização e de racionalização da realidade. A presença do adulto como agente estimulador/ mediador, conduzindo a criança a se encontrar com o mundo contido nos livros, desenvolvendo sua imaginação e criação. Os livros devem trazem a imagem predominante, a narrativa deve desenvolver uma situação linear, pois o pensamento lógico da criança está em processo de desenvolvimento. O humor deve estar presente e os personagens podem ser reais ou simbólicos exprimindo comportamentos bem nítidos, com limites precisos entre bons e 17 maus, fortes e fracos, etc. A criança está em formação e as histórias irão contribuir neste processo. O texto deve ser estruturado com palavras de sílabas simples e com frases curtas. Os argumentos de vem estimular à imaginação, a inteligência, a afetividade, as emoções. Nesta fase a criança é atraída pelas histórias de aventuras, bem humoradas e com a apresentação da esperteza do fraco vencendo o forte, a inteligência vencendo o mal, entre outros. (Coelho, 2000) Esta é uma contribuição de Coelho para a seleção de histórias levando em consideração o texto, porém no caso em questão foi necessário também levar em consideração a ilustração em livros por se tratar de uma criança cega. Muitas vezes a ilustração trabalha junto ao texto, outras vezes amplia o texto e apresenta novas possibilidades dinamizando as relações entre palavra, imagem e a imaginação do leitor. Ainda é recente a ilustração tátil, incluindo a criança cega no mundo da leitura pelo toque nas imagens táteis e imagens em relevo. Considerados como livros inclusivos, estas publicações são direcionadas também aos portadores de baixa visão e às crianças de visão normal. O uso deste material deve ser bem orientado, para que haja real compreensão da relação entre imagem e palavra. O papel do mediador, educador é fundamental para que a criança se sinta estimulada e incorpore o hábito da leitura. Quando houver dominado a leitura do Braille, aos poucos não haverá mais a necessidade de mediação. Porém como o uso das imagens táteis não é muito comum ainda não temos automatizado um código de leitura das imagens táteis. Faz-se necessário um projeto gráfico com planejamento especial para que as duas formas de escrita e as duas formas de apresentação das imagens possam estar integradas e não causem confusão ao leitor. De acordo com Cardeal (2010) pode haver expressiva facilitação para leitura tátil quando: A linha do contorno da ilustração é bem definida, a forma é esquemática, existe a repetição da forma ao longo da leitura, a forma é simplificada, limpa e sem detalhes. Em contrapartida formas com muitos detalhes, linha de contorno incompleta, forma muito grande que não cabe na mão, linha de relevo em contorno irregular com variações de 18 espaços entre os pontos, forma em perspectiva, podem dificultar a identificação e reconhecimento das ilustrações. 2.3.3 Como contar histórias com uso de recursos Podemos utilizar inúmeros recursos na contação de histórias. Desde a simples narrativa até a narrativa com recursos visuais, táteis, sonoros, olfativos e cênicos. Esta atividade pode ser aprimorada com livros de variados materiais como: pop-up com dobraduras, pano, plástico, papéis de gramaturas diferentes, E.V.A e outros materiais alternativos. Outro recurso é o flanelógrafo, utilizando personagens e objeto em feltro, sendo colocados na flanela de acordo com o desenrolar da história e com a possibilidade da troca de cenários, despertando a atenção do ouvinte. Projetar histórias utilizando equipamentos de multimídia pode encantar muito as crianças e apresentar cenas animadas. Contar histórias com gravuras grandes e cartazes com ilustrações explorando as artes visuais ou até mesmo com produções feitas pelas crianças, também é enriquecedor. Dramatizar, encenar e manipular fantoches, dedoches e marionetes são uma forma divertida e alegre de contar histórias. Teatro de sombras, com objetos animados ou com varetas também é muito interessante. Desenhando ou realizando dobraduras também podem ser recursos valiosos para despertar o interesse e a curiosidade da criança. A responsabilidade do leitor ou contador de histórias deve ser de transmitir a história respeitando e dando mérito ao autor e ilustrador, a editora quando se tratar de literatura. No caso de contos da literatura oral nos referimos de outra forma. Coelho exemplifica: “... O contador precisa estar consciente de que a história é o que é importante. Ele é apenas o transmissor, conta o que aconteceu - e o faz com naturalidade, sem afetação, deixando as palavras fluírem”. (1999, p. 50). É necessário observar as partes da história para obter êxito ao transmiti-la. Na narração/ contação tanto como na leitura a pessoa deve saber como iniciar, atingir o clímax e concluir a história. 19 2.4 MOMENTOS E REAÇÕES NAS CONTAÇÕES DE HISTÓRIAS: UMA EXPERIÊNCIA SENSORIAL A importância de contar histórias para as pessoas com deficiência visual é a mesma para aquelas que não o são, enriquece a vida, abastece a alma, dá profundidade à mente. Quando um novo livro se abre para que as palavrasimpressas se tornem som é o reencontro com o princípio: o verbo. (Palmas, 2011, p. 193) Descrevo as ações que foram realizadas, articulando as reflexões acerca das percepções dos momentos vivenciados e dos conceitos teóricos. Acredito na importância de se contar histórias a qualquer ser humano, por isso parti desse ponto para essa pesquisa e para a seleção e organização dos momentos vivenciados com a criança cega. Para realizar os momentos de contação e leitura de histórias com a aluna, selecionei histórias de seguimentos diferentes, como: contos clássicos, de ensinamento, literatura atual, livro-brinquedo, com rimas, oferecendo temas do universo infantil. Para tornar mais compreensível e significativo estes momentos foram necessários fazer uso de recursos táteis e sonoros, pois as imagens (livros ou objetos) não poderiam ser recebidas pela visão. Através da contação e da leitura de histórias me coloquei como mediadora entre a aluna R e os livros utilizados. Após as vivências relatei as impressões da aluna e as minhas formas de conduzir os momentos com as histórias. Estes momentos seguiram com o mesmo encantamento que permeia a contação para as crianças videntes. Primeiro momento de Contação de Histórias - Conto Clássico: Os três porquinhos, com dedoches. Texto: Cristina Marques, Editora: Todolivro. A aluna já tinha conhecimento deste conto clássico por isso a escolha. Apresentei dedoches de três porquinhos e um lobo, porém ela ficou atenta as falas que eu expressei para os personagens. Repetiu as falas do lobo após cada ataque e deu risadas quando os porquinhos fugiam. Pude perceber como ela se divertiu ouvindo a história demonstrou empolgação e interesse, vibrou com a vitória dos irmãos porquinhos contra o lobo mau. Ela também citou que na sua casa também são três filhos, ela e mais dois irmãos. Neste primeiro 20 momento os irmãos estavam juntos para ouvir a história, a convite da mesma. Pedi que eles ficassem em silêncio no momento de ouvir a história, ela queria tocar e dar os nomes e pediu que não falassem nada. Segundo momento de Leitura de História - História: O Som dos Bichos, livro com sons. Texto; Stevan Richter. Editora: Vale das Letras, 2010. Iniciamos exploramos os sons dos bichos, a cada som a aluna nomeava o bicho que ouvia. Conheceu todos os sons do livro, por serem bichos de estimação disse que conhecia a todos. Após apresentar com minhas palavras cada bicho do livro, ela queria ouvir o som correspondente. Em alguns momentos demonstrou que havia organizado mentalmente a ordem dos bichos e fez comentários quando falamos sobre o cavalo. Lembrou-se que a sua avó tem um cavalo no sítio. Os outros animais ela ouviu e repetiu do seu jeito o som que ouvia. Pediu para apertar novamente todas as teclas antes de guardarmos o livro. Este livro apresenta textos pequenos de cada bicho, por ser indicado para crianças menores. Terceiro momento de Leitura e Contação de História - História: Os Animais da Floresta, livro com miniaturas de animais, em material emborrachado. Texto: Stevan Richter. Editora Vale das Letras, 2009. Este livro nos leva a fazer uma aventura na selva, com animais em miniaturas e em material emborrachado. Neste momento a aluna ouviu atenta ao texto lido por mim, com muitas informações sobre os animais da selva. Alguns animais foram novidade para ela e despertaram seu interesse. Ela pôde perceber diferenças entre eles. Ela tocou e tentou descobrir partes do corpo do animal, em momentos obteve êxito e em outros foi necessário a minha intervenção. Ela ficou atenta em cada animal apresentado. Descobriu coisas novas como o Leopardo e o Tamanduá. O bico do tucano e a boca longa do tamanduá fizeram a Sara pensar que eram bicos. Expliquei como era o pelo do Leopardo e ela disse que gosta muito de amarelo, como o sol. Ela lembrou que no sítio da avó já viu uma cobra muito maior que a do livro. Quarto momento de Contação de História - História: Olívia Polvo, com livro de pano. Texto: Stevan Richter. Editora: Vale das Letras, 2006. 21 Este livro é todo em tecido, proporcionado a criança o conhecimento do formato de um polvo, é possível sentir as oito perninhas do polvo, seus olhinhos em plástico e colocar a mão por dentro dele, manipulando-o como um boneco de fantoche. Tudo isso foi importante para atrair os ouvintes para a pequena história do livro, que fica inserido dentro da barriga do polvo. Antes de história conversamos sobre o local onde vive o polvo, a água profunda do mar. Lembramos da praia, da areia e da alegria de se molhar. Eles não falaram nada sobre o polvo. Eu dei pistas sobre o animal da História, mas ficaram apenas ouvindo. Então falei sobre como ele revelando seu nome, a aluna repetiu e disse que já tinha ouvido falar dele, mas não sabia como ele era ao certo. Por ser um fantoche os alunos puderam manusear e brincaram um pouco com ele. Depois da História a aluna contou sobre um dia de banho de mar com sua família nas férias. Quinto momento de Contação de História - História Bíblica do Livro: Histórias da Bíblia para crianças, Textos: Bob Hartman, Editora: Brinque-Book, 2008. Com objetos: uma ovelha de pelúcia, um cajado de massinha de biscuit, galho com espinhos secos, um livro com o som da ovelha e uma Bíblia. Nesta História apresentei em primeiro lugar uma Bíblia, foi possível perceber que havia muitas folhas dentro deste livro. A aluna manuseou as páginas percebendo o material do livro. Disse que não sabia que livro era aquele, perguntei se já havia ouvido falar sobre ele em sua casa ou família, ou na escola, mas ela falou que não conhecia. Para contar esta história trouxe outro livro para explorar o som deste animal, ela acionou o som de ovelha muitas vezes, no local indicado pelo livro. Na medida em que a história era contada eu introduzia o objeto correspondente. Ao tocar ela ouvia a história. Ao término ela contou novamente utilizando os objetos seguindo a seqüencia que havia memorizado. Sexto momento de Leitura de História - História: Dorina viu, livro com ilustração tátil e escritas em Braille. Texto: Cláudia Cotes. Editora: Paulinas, 2006. Realizei a leitura do texto e indiquei os locais onde a aluna poderia tocar. Identificou letras em Braille, porém nas gravuras em alto relevo com 22 pontilhados nos contornos do desenho apresentou dificuldades para identificá- las. Cito alguns como: um galo - não sabia onde estava localizado o bico, disse que a cauda era o bico; um beija-flor - não conseguiu identificar e pediu a minha ajuda; no contorno de uma mão orientei-a como colocar a mãozinha em cima da mão pontilhada do livro do livro. Percebi que os pontos em alto relevo não auxiliaram na compreensão, a presença do adulto vidente foi imprescindível. Nas ilustrações mais simples e com menos detalhes ela conseguiu identificar: a bola disse que era um círculo, dei pistas e após o toque nomeou corretamente a maçã, na ilustração de um livro também identificou sem dificuldades e letras do Braille. Na última ilustração do livro, não percebeu o que era e perguntou. Ficou muito alegre ao saber que era a Bandeira do Brasil. Ali nomeou as formas que estão contidas nela: quadrado, círculo, e disse que pareciam 2 triângulos de lado para o losângulo. Sétimo momento de Leitura de História - História: Linhas e Bolinhas- livro com pop-up e som de um animal, Texto: Émile Jadoul. Editora: Companhia das Letrinhas, 2008. Para esta história preparei duas cartelas de papel cartão com tiras de lãs coladas, em uma posicionei e colei as tiras de lã em linhas retas e na outra fiz a colagem das tiras de lã formando círculos, como bolinhas. À medida que contava a história apresentava a aluna a cartela correspondente ao animal da página do livro. Foi muito interativo e ao final, quando ela ouviu o som do porco, último personagem, elase divertiu muito. Imitou o som, abriu e fechou o livro várias vezes para ouvir o som novamente. Como a história apresentou animais selvagens, alguns ela não identificou pelas características apresentadas no texto, mas pôde compreender pelo tato. Oitavo momento de Contação de História - História: A festa dos animais, com pop-up. Texto: Matt Miller. Editora: Ediouro, 2007. Este livro apresenta as quantidades até 5, com cada animal abrindo a boca e mostrando o que comeu na festa. Desta forma: 1 pizza, 2 bolinhos, 3 cachorros-quentes, 4 sorvetes e 5 rosquinhas. Ela gostou muito da história e a 23 cada animal de boca aberta, a aluna tateava e contava os alimentos. Auxiliei-a apenas para saber onde estavam os alimentos na disposição das páginas, realizou a contagem demonstrando domínio. Depois ela recontou a história relatando o que cada animal comeu, virando as páginas e nomeando as comidas ao tateá-las. Nono momento de Leitura de História – História: A menina e o mar, Texto: Marta Lagarta. Editora: Salesiana, 2007. Este livro não tem figuras em alto relevo, foi elaborado para crianças videntes. Realizei a leitura do texto na íntegra, ela percebeu que as palavras eram parecidas no final, apresentando rimas. Gostou e deu risadas ao ouvir as falas da personagem. Levei conchas variadas para que pudesse tocá-las e ouvir o som de dentro delas, trazendo a recordação do mar. Ouviu toda história e depois ela contou que sempre vai à praia com seus avós, eles tem casa na praia e sempre vão com toda sua família, os irmãos brincam com ela na água e na areia. Gosta da água gelada e de brincar com os brinquedos da praia. Perguntou também o que tinha no livro ao tateá-lo e virar suas páginas. Falei que a ilustração era contornada com lápis preto e no fundo tinha pinturas em tinta. Décimo momento de Contação História - História: Cachinhos Dourados, com dedoches. Texto: Robyn Bryant. Editora: Todo Livro, 2008. Utilizei dedoches para contar esta história: mamãe urso, bebê urso e papai urso. Combinei com a aluna R, que cada vez que me referisse a Cachinhos Dourados eu iria tocas nos seus cabelos, que são cheios de cachinhos. Ela concordou e disse: - Então eu sou a cachinhos Dourados, ta? Concordei e deixei que ela participasse falando o que sabia assim contamos esta história juntas. Ela fez até uma voz diferente, tomando posse do seu personagem. Eu manipulei os dedoches e ela falava quando era a vez da personagem Cachinhos Dourados. Foi muito divertido! Pude perceber sua alegria neste momento de faz-de-conta. Nós dramatizamos de forma bem informal a história. 24 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer dos momentos de contação e leitura de histórias, ficou explícito o interesse da aluna R, ainda que com limitações devido à falta de visão. Em dias específicos não utilizei as ilustrações táteis como auxílio, pois desejei observar a relação da menina com a leitura sem esse recurso. Apesar da ausência desses recursos demonstrou compreender as histórias ouvidas. Com isso pude perceber a relevância do sentido auditivo. Por se tratar de uma criança que recebeu uma grande gama de estímulos, apenas por ouvir a narração da história foi possível compreender e recontar a história. Sem que eu conduzisse, este fed back acontecia, pois ela tinha uma necessidade de comentar e recontar o que havia ouvido. Foi muito divertido vê-la contar aos irmãos na saída, liderando a situação e fazendo- se ouvir. A aluna R realizou comentários extras, relatando fatos vividos que vieram à sua memória, sugerindo ações além do texto narrado, indagando cada vez que havia dúvidas e ainda fazendo comentários elaborados. A compreensão da aluna foi além do esperado. Com isso é possível perceber que a aprendizagem se dá na relação entre o vivido e a memória, pois a criança foi e voltou nas suas experiências, relacionando fatos e questionando o que não foi compreendido. Pude perceber que a aquisição de conceitos transcorre pela vivência ativa do corpo-objeto, corpo-corpo, corpo e o outro. A imagem criada com elementos da realidade é como se tomasse forma em seu cérebro passando pela percepção tátil, sendo expressa por meio da linguagem. Com isso foi possível perceber o que foi assimilado. Por se tratar de uma aluna com outros dois irmãos videntes e gêmeos e de uma família comprometida com seu desenvolvimento, ela recebeu muitos estímulos, foi envolvida num contexto rico de vivências familiares e culturais, com vocabulário refinado superando limitações para uma criança cega. Toda essa vivência atuou diretamente em sua compreensão da realidade, demonstrando adaptar-se aos locais onde vive, domina sua locomoção com o uso de uma bengala e não quer auxílio manual, apenas na condução por palavras. Nos momentos de encontro apresentou-se sempre interessada, 25 contando suas vivências, criando suas histórias e aceitando os desafios propostos a cada dia. Sempre de bom humor e muito comunicativa. Smolka nos aponta a intrínseca relação entre a aprendizagem dos conceitos, vivências, imaginação e afetividade na criança: Com base na experiência e por meio da linguagem, as crianças inventam situações imaginárias, nas quais podem exercer funções e assumir as mais variadas posições. Essas formas de atividade viabilizam modos de participação das crianças na cultura, tornando possível a elas internalizar e elaborar, antecipar e projetar conhecimentos, afetos, relações. (2009, p. 99). Percebi que desenvolvemos uma interação de afetividade e desejo pelas histórias. Este sentimento ficou aparente a cada momento de despedida, ela já deixava combinado comigo que estaria me esperando com a próxima História. A construção do saber, elaboração de conceitos se deu a partir dos estímulos oferecidos aos sentidos da audição e tato, e através da linguagem foi possível perceber suas elaborações mentais. A importância da relação construtiva com o meio em que vive ficou revelada a cada encontro, foi possível perceber que houve compreensão de cada história. Para a audiodescrição das imagens dos livros, para relatar os detalhes que a visão não podia explicitar e para responder a cada indagação feita pela aluna R, a linguagem verbal foi um dos meios de comunicação mais importantes, ela uniu contador e ouvinte. Sendo uma criança cega de nascença, seu vocabulário surpreende pela riqueza e boa elaboração dos fatos. Sua memória é ativa e ao contar suas histórias de vida, gesticula, exprime sentimentos na entonação de sua voz e demonstra elaboração textual citando começo, meio e fim em seus comentários. A escolha das histórias contadas se deu pela necessidade de trazer livros e recursos que pudessem enriquecer seu mundo imaginário, suas experiências e ampliar seu vocabulário, como por exemplo: animais da floresta e aquáticos, animais de estimação, ambientes de festa, praia, selva, sítio. A apresentação do livro com ilustração tátil foi uma novidade para ela e como não estava acostumada houve dificuldade no reconhecimento das ilustrações. Acredito que o fato de ter nascido cega pode ser também um indicador para 26 essa dificuldade. Como a aluna está sendo alfabetizada em Braille, as letras em alto relevo logo foram percebidas e algumas nomeadas. No primeiro dia estive apenas como observadora em sala de aula, e logo após as apresentações devidas a aluna pediu que eu contasse Os três porquinhos como primeira história. Este é o motivo da primeira história a ser contada. A menina foi colaborando comigo na contação, fazendo vozes diferentes para os personagens e se divertindo ora com medo, ora com alegria. Foi possível perceber a importância do faz de conta nesse processo, pois a falta de visão não é limitação para a imaginação. Sendo cega de nascença, a aluna desfrutou da história, brincou ao contar história de forma espontânea. Experimentamoso que defende Vigostki sobre a força das elaborações mentais na narrativa, no faz de conta e na brincadeira da criança. Pude perceber que a elaboração de conceitos se deu através das vivências significativas que envolveram a linguagem na relação com a imaginação, a memória, a relação com outras pessoas e contextos vividos, experiências do momento vivido com o contador/leitor, eu. Ao ouvir histórias a menina demonstrou por meio da linguagem oral suas idéias e a formulação de conceitos que são elaborados por meio de experiências que envolvem outros órgãos do sentido que não a visão. Com isso foi possível perceber que as experiências, quando vivenciadas com o auxílio de diversos recursos, possibilitam uma elaboração mental, baseada em vivências sonoras e táteis. Esta elaboração mental proporciona maior segurança e domínio do mundo visível em que a criança cega está inserida. REFERÊNCIAS DAS LITERATURAS INFANTIS: BRYANT, Robyn. Cachinhos Dourados, Blumenau: Todolivro, 2008. COTES, Cláudia. Dorina viu. São Paulo: Paulinas, 2006. HARTMAN, Bob. Histórias da Bíblia para crianças. São Paulo: Brinque-Book, 2008. JADOUL, Émile. Linhas e Bolinhas. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008. 27 LAGARTA, Marta. A menina e o mar, São Paulo: Salesiana, 2007. MARQUES, Cristina. Os três porquinhos, Blumenau: Todolivro. MILLER, Matt. A festa dos animais, Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. JADOUL, Émile. Linhas e Bolinhas. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008. RICHTER, Stevan. Olívia polvo. Blumenau: Vale das Letras, 2006. RICHTER, Stevan. Os Animais da Floresta. Blumenau: Vale das Letras, 2009. RICHTER, Stevan. O Som dos Bichos. Blumenau: Vale das Letras, 2010. REFERÊNCIAS BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 21ª ed. São Paulo: Paz e Guerra. 1980. BUSATTO, Cléo. Contar e encantar: pequenos segredos da narrativa. 5ª ed. Petróplois, RJ: Vozes, 2003. COELHO, Betty. Contar histórias: uma arte sem idade. 10ª ed. São Paulo: Ática, 1999. COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. FARIAS, Carlos Aldemir. Contar histórias é alimentar a humanidade da humanidade In: PRIETO, Benita. Contadores de História: um exercício para muitas vozes. Rio de Janeiro: Edigráfica, 2011, p. 18-22. KAERCHER, Gládis. E por falar vem literatura... In: CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis. Educação Infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 81-88. GONZALES, Eugenio. Necessidades Educacionais Específicas: intervenção psicoeducacional. Porto Alegre: Artmed, 2007. 28 LÜDKE M. e ANDRÉ, M.E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1986. PALMA, AnaLu. Palavras Táteis. In: PRIETO, Benita. Contadores de História: um exercício para muitas vozes. Rio de Janeiro: Edigráfica, 2011. p. 190-194. SALOMON, Sônia Maria. Deficiente Visual: um novo sentido de vida: proposta psicopedagógica para ampliação da visão reduzida. São Paulo: LTr, 2000. SMOLKA, A. L. Apresentação e comentário. In: VIGOTSKI, Lev S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para professores. São Paulo: Ática, 2009.