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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE HISTÓRIA DANIEL BRUNO DE JESUS FERREIRA “POR OCCASIÃO DA EPIDEMIA”: o aparato médico durante os surtos epidêmicos em São Luís do Maranhão (1850-1855) São Luís 2013 2 DANIEL BRUNO DE JESUS FERREIRA “POR OCCASIÃO DA EPIDEMIA”: o aparato médico durante os surtos epidêmicos em São Luís do Maranhão (1850-1855) Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Maranhão, para obtenção do grau de Licenciatura em História. Orientador: Profº. Ms. Manoel de Jesus Barros Martins São Luís 2013 3 FERREIRA, Daniel Bruno de Jesus. “Por occasião da epidemia”: o aparato médico durante os surtos epidêmicos em São Luís do Maranhão (1850-1855)/ Daniel Bruno de Jesus Ferreira. – 2013. 54- f. Impresso por computador (fotocópia). Orientador: Manoel de Jesus Barros Martins. Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Maranhão, Curso de História, 2013. 1. Saúde pública - São Luís – MA 2. Epidemias –3. Cemitérios I. Título CDU 614(812.1).06 4 DANIEL BRUNO DE JESUS FERREIRA “POR OCCASIÃO DA EPIDEMIA”: o aparato médico durante os surtos epidêmicos em São Luís do Maranhão (1850-1855) Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Maranhão, para obtenção do grau de Licenciatura em História. Aprovada em: / / BANCA EXAMINADORA Prof. Ms. Manoel de Jesus Barros Martins – (Orientador) Mestre em História Universidade Federal do Maranhão Profª Drª Antonia da Silva Mota Profª Drª Maria da Glória Guimarães Correia 5 AGRADECIMENTOS A Deus por mais essa vitória. Nossa Senhora de Fátima, São Jorge e São João que mantiveram minha fé e o meu foco. A minha mãe Wilsa por todo amor e carinho, e pelas palavras de incentivo. A meu pai José Domingos Ferreira (in memorian) pelo homem batalhador que sempre foi e pelos bons exemplos que deixou. Aos meus avós maternos Marister e Wilson (in memorian) que sempre estiveram presentes em minha vida, e sempre tiveram muito orgulho do seu neto mais velho. Ao meu irmão Marcos André que sempre torceu e desejou o melhor pra mim. A Joyce Pereira, amada e amiga pelo apoio e amor incondicional, Ao professor Manoelzinho pela amizade e pela valorosa orientação. A todos os professores do departamento de História da UFMA que cotribuíram para minha formação acadêmica, e em especial a Profª. Drª Antonia Mota, Profª. Drª Maria da Gloria Guimarães, Profª. Drª Regina Faria, Prof. Dr. Flavio Soares, Prof. Dr. Alexandre Navarro, Prof. Ms. Washigton Tourinho, Prof. Dr. Johnni Langer e Prof. Dr. Dorval do Nascimento. A todos os amigos e companheiros do Curso de História e agregados, um abraço especial para Natalia Barbosa, Rodrigo Boleta, Rodrigo Muniz (in memorian), Ruan Mota, Luis de França, Valquíria Nascimento, Rayan, Yasmim Porto, Íris Michelle, Gomes, Paulo Roberto, Luciana Fernandes, Laiana, Rogério Coelho, Wanderson, Rafael Aguiar, Peterson, Chico Junior, Thiago Brandão, Flávio, Luan, Flávia Marreiros, Danielle Caldas, Fernanda, Katiuce, Vanessa e Pedro Moraes. A toda a equipe do Arquivo Público do Estado do Maranhão, em especial a dona Lourdes, dona Ivone e dona Conceição Rios, por toda a ajuda prestada durante essa pesquisa. A dona Sandra, senhor Francisco, Marjory e Pimenta Neto, pelo apoio e amizade para comigo. A todos os amigos e familiares que estiveram presentes nessa caminhada, o meu muito obrigado. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10 CAPÍTULO I ....................................................................................................................... 12 1.1 - A Província do Maranhão no século XIX ............................................................... 13 1.1.1 - Politesse e inteligentsia maranhense e instituições ........................................ 16 1.1.2 – Urbanização e Estado Sanitário da Província do Maranhão ......................... 18 CAPÍTULO II ...................................................................................................................... 22 2.1 – A Medicina no século XVIII: populações e Estado ................................................ 22 2.2 – Medicina Francesa no XIX: “Paris, a Meca do mundo médico”. ......................... 24 2.3 – Problemas de saúde pública: as epidemias ............................................................ 26 CAPÍTULO III .................................................................................................................... 31 3.1 – Epidemias e a emergência de soluções .................................................................. 31 3.2 – Cemitérios: solução ou problema?......................................................................... 38 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 45 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 47 7 Quando uma ameaça de contágio se delimitava no horizonte de uma cidade, as coisas, no estágio do poder de decisão, passava-se geralmente da seguinte maneira: as autoridade mandavam examinar por médicos os casos suspeitos. Muitas vezes esses médicos faziam um diagnóstico tranquilizador, antecipando-se assim ao desejo do corpo municipal; mas, quando suas conclusões eram pessimistas, outros médicos ou cirurgiões eram nomeados para um contrainquerito, que não deixava de dissipar as primeiras inquietações. Jean Delumeau 8 RESUMO Este trabalho monográfico pretende analisar os discursos produzidos em torno das medidas extraordinárias realizadas pelos presidentes da Província do Maranhão no contexto dos surtos epidêmicos ocorridos em São Luís do Maranhão entre os anos de 1850 e 1855. Procura-se compreender os discursos que circulavam pela capital provincial, dando conta de uma cidade descrita como limpa e saudável. Tais discursos não condiziam com a realidade de uma cidade, geralmente assolada anualmente tanto por doenças corriqueiras quanto por surtos epidêmicos de monta, especialmente no período já mencionado. Procura- se entender também as justificativas dadas para a interdição do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia e a instituição do Cemitério do Gavião. Entre outras, utilizamos como fontes Fallas dos Presidentes de Província do Maranhão à Assembleia Legislativa Provincial (1850-1855), Coleções de Leis e Decretos da Província do Maranhão (1850-1855) e o Jornal O Publicador Maranhense (1851). Palavras-chave: São Luís – Epidemias – Cemitérios – Século XIX 9 RÉSUMÉ Ce travail monographique vise à analyser le discours produit autour les mesures extraordinaires prises par les présidents de la province du Maranhão dans le cadre des épidémies ont eu lieu à São Luís do Maranhão entre 1850 et 1855. Cherche à comprendre les discours de circulation de la capitale provinciale, rendant compte d'une ville qualifiée de propre et sain. Ces discours ne cadrent pas avec la réalité d'une ville, généralement assaillie par an aussi bien par les maladies et les grandes épidémies, surtout dans la périodementionnée ci-dessus. Cherche à comprendre les justifications données pour l'interdiction du cimetière de Santa Casa de Misericórdia et l'institution du cimetière de la buse. Entre autres choses. Nous utilisons comme sources Fallas dos Presidentes de Província do Maranhão à Assembleia Legislativa Provincial (1850-1855), Coleções de Leis e Decretos da Província do Maranhão (1850-1855) e o Jornal O Publicador Maranhense (1851). Mot-clés : São Luís-épidémies-cimetières-le XIXe siècle 10 INTRODUÇÃO Neste trabalho monográfico, pretendemos analisar os vários discursos enunciados acerca das medidas emergenciais adotadas pelos presidentes da Província do Maranhão durante o período de ocorrência de surtos epidêmicos em São Luís do Maranhão, entre 1850 e 1855. Durante o ano de 2011, acabei me deparando com um trabalho que versava sobre a epidemia de febre amarela no Maranhão, em 1850. Isso despertou meu interesse e procurei saber da existência de trabalhos sobre História da Medicina no Maranhão. A partir dos estudos sobre epidemia na Província do Maranhão, desenvolvi alguns trabalhos acadêmicos, tais como: Saber e práticas médicas no Maranhão do século XIX: o enfrentamento da febre amarela (Comunicação oral apresentada no XII Encontro Humanístico) e Medicina, Poder e Política na Província do Maranhão (1850), no III Encontro de História do Império Brasileiro. Neste trabalho, a pesquisa foi aprofundada e tornou-se mais densa. É importante ter como objeto de estudo as medidas emergenciais tomadas pelos presidentes da Província do Maranhão, pois, os trabalhos existentes sobre os surtos epidêmicos no Maranhão oitocentista, geralmente abordam as teorias médicas, as posturas adotadas no período, todavia, muito pouco deles dão conta do discurso adotado pelos governantes sobre a saúde pública, o estado sanitário e as medidas adotadas para a contenção de doenças. É nesse sentido que se enquadram os trabalhos de Jossilene Louzeiro Alves 1 , de Suzete Maria Pereira 2 , e de Heitor Ferreira de Carvalho 3 , que analisam separadamente as questões de saúde pública, enterramentos e leis. Como metodologia, utilizamos Análise de Discurso 4 , procurando compreender a língua fazendo sentido dentro do contexto do homem e da sua história. Assim, procuramos 1 ALVES, Jocilene Louzeiro. Saúde Pública em debate. 1998. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal do Maranhão. São Luís, MA. 2 PEREIRA, Maria Suzete. Mudanças nas Práticas de Sepultamentos em São Luís do Maranhão em meados do século XIX. 2006. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal do Maranhão, São Luís, MA. 3 CARVALHO, Heitor Ferreira. A civilização nos trópicos: um estudo do processo civilizatório de São Luís no século XIX. 2000. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal do Maranhão. São Luís, MA. 4 ORLANDI, Eni Pucelli. Discurso de Texto: formação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001. 11 refletir sobre as condições de produção dos processos da linguagem no século XIX referentes às epidemias por parte dos governantes da Província do Maranhão. O corpus documental utilizado nesse trabalho é composto fundamentalmente pelas Fallas dos Presidentes de Província do Maranhão à Assembleia Legislativa Provincial (1850-1855), pela Coleção de Leis e Decretos da Província do Maranhão (1850-1855) e pelo Jornal O Publicador Maranhense (1851). 5 Este trabalho foi estruturado em três capítulos com temas similares. No primeiro capítulo, A província do Maranhão no século XIX, procuramos tratar das condições políticas, econômicas, sociais, culturais e sanitárias da província vigentes nesse período. No segundo capítulo, Medicina, saúde publica e as epidemias no século XIX, discutimos vários aspectos relativos ao processo de cientificização da medicina e do processo de medicalização das sociedades ocidentais. No último capítulo, O Aparato Médico Nos Surtos Epidêmicos: As Despesas Extraordinárias e os Cemitérios-1850-1851, reunimos as fontes e analisamos as decisões tomadas pelos Presidentes de Província quanto às epidemias e aos cemitérios. 5 Colleccção de Leis, Decretos e Resoluções da Província do Maranhão. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, (1849-1856). Falla dirigida pelo exm. Presidente da provincia do Maranhão, Honorio Pereira de Azeredo Coutinho, à Assembéa Legislativa Provincial, por occasião de sua installação no dia 7 de Setembtro de 1850. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1850. Disponível em <http://www.crl.edu/brazil/provincial/maranhao>. Falla dirigida pelo exm. Presidente da provincia do Maranhão, Honorio Pereira de Azeredo Coutinho, à Assembéa Legislativa Provincial, por occasião de sua installação no dia 7 de Setembtro de 1851. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1851. Disponível em <http://www.crl.edu/brazil/provincial/maranhao>. Jornal Publicador Maranhense. Julho a Setembro de 1850. Relatório com que o presidente da Provincia do Maranhão, o Dr. Eduardo Olimpio Machado, passou a administração da mesma Provincia ao vice-presidente Manoel de Sousa Pinto de Magalhães em 9 de Julho de 1852. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1852. Disponível em <http://www.crl.edu/brazil/provincial/maranhao>. Relatório do presidente da Provincia do Maranhão, o Dr. Eduardo Olimpio Machado na abertura da Assembéa Legislativa Provincial no dia 3 de Maio de 1855. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1855. Disponível em <http://www.crl.edu/brazil/provincial/maranhao>. Relatório com que o vice-presidente, José Joaqim Teixeira Vieira Berford, entregou a presidência da Provincia do Maranhão ao Illm. e Exm. Snr. Commendador Antonio Candido da Cruz Machado. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1856. Disponível em <http://www.crl.edu/brazil/provincial/maranhao>. 12 CAPÍTULO I A PROVÍNCIA NO MARANHÃO NO SÉCULO XIX De um casebre miserável, de porta e janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada, de mulher, cantar em falsete a “gentil Carolina era bela”; do outro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico: “Fígado, rins e coração!’’ 6 Aluísio Azevedo A transferência da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808 7 representou o estímulo para a formação de uma nova nação, bem como a instalação e a consolidação do poder monárquico no Novo Mundo 8 . A cidade do Rio de Janeiro tornou-se a capital do Império Português e passou por grandes transformações para tentar assemelhar-se aos padrões culturais europeus. Dentre essas realizações podemos citar a criação do Museu Real, Imprensa Régia, Real Horto, a Biblioteca Real, a Missão Artística Francesa. 9 Para além de mudanças arquitetônicas, também foi iniciado o disciplinamento dos costumes e dos hábitos, tendo como referência o modelo francês e Paris como a cidade- símbolo. Segundo Suzete Maria Pereira, Essas normas trazidas para o Brasil, tratando, sobretudo, do comportamento, traziam regras sobre como as pessoas “civilizadas” e “educadas” deveriam se portar diante das mais variadas situações e eventos sociais. Nessa época era comum o uso de manuais que orientavam as pessoas de como se comportar à mesa, como cuidar do corpo, da saúde, enfim, como se tornar um cidadão civilizado. Os manuais expedidos geralmente na Corte Francesa funcionavam no Novo Mundo, como uma espécie de livro didático que trazia em suas páginas os 6 AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Livraria MartinsEditora S.A., 1969. 7 “A mudança da Corte fora conseqüência imediata da pressão exercida por Napoleão, que insistia na necessidade de Portugal romper com a Inglaterra e aderir ao Bloqueio Continental”. Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 12 8 Cf. TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. O Rio de Janeiro no tempo de D. João VI. In: AMARAL, Sonia Guarita do. (org.). O Brasil como Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009. p. 39 9 Para uma análise da Missão Artística Francesa, ver SCHWARCZ, op. cit. 13 tão sonhados modelos e condutas, úteis em todas as circunstâncias da vida terrena e indispensáveis a jovens e adultos. 10 Para Heitor Carvalho, como sede Corte Portuguesa, cidade do Rio de Janeiro se transformou num pólo centralizador e difusor de hábitos e costumes vigentes. 11 Era dessa cidade que irradiavam os padrões e normas oriundos do Novo Mundo, geralmente de Paris, É possível identificar vários indícios da influência francesa nos bailes, nos saraus, nas roupas elegantes, em filós e rendas, entre outros. Essa influência não ficou restrita somente à Corte Portuguesa nas Américas. Na verdade, esse discurso civilizador chegou com maior ou menor força em todas as províncias brasileiras, atingindo, principalmente, capitais importantes como Salvador, Recife e São Luís. 12 1.1 - A Província do Maranhão no século XIX É quase consensual na historiografia regional, que a economia maranhense somente „deslanchou‟ com a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão, em 1755, que retirou a então capitania da situação de penúria em que se encontrava. Ao iniciar suas operações no Maranhão, para cumprir os objetivos de sua constituição, a Companhia de Comercio adotou uma série de medidas, dentre elas “introduziu a mão-de- obra africana, melhores técnicas agrícolas e crédito, impulsionando a agricultura principalmente do algodão e do arroz”. 13 Essas iniciativas concorreram fortemente para a constituição de um sistema agroexportador no Maranhão. Segundo Regina Faria, O sistema agroexportador montado no Maranhão, a partir de meados do século XVIII, se caracteriza por um tipo específico de acumulação, por meio do qual se solidarizam o capital mercantil, o Estado metropolitano e o grande proprietário rural, sob o predomínio do primeiro. Desde sua gênese, organiza-se no Maranhão a grande produção mercantil e escravista, voltada para o mercado internacional de matérias-primas e alimentos (a grande lavoura), a qual cumpre dessa forma uma função 10 PEREIRA, Maria Suzete. Mudanças nas Práticas de Sepultamentos em São Luís do Maranhão em meados do século XIX. 2006. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal do Maranhão, São Luís, MA., p.15. 11 Cf. CARVALHO, Heitor Ferreira. A civilização nos trópicos: um estudo do processo civilizatório de São Luís no século XIX. 2000. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal do Maranhão. São Luís, MA., p. 07. 12 Cf. PEREIRA, op. cit., p. 19. 13 CAMPOS, Marize Helena de. Senhoras Donas: economia, povoamento e vida material em terras maranhenses (1755-1822). São Luís: Café e Lápis; FAPEMA, 2010, p. 104. 14 específica na divisão internacional do trabalho ditada pelo capitalismo industrial, em fase de consolidação no final dos setecentos. 14 A Revolução Industrial foi a grande responsável pela introdução do algodão maranhense no mercado internacional, já que as exportações originárias da América do Norte estavam estagnadas devido às guerras de independência ocorridas nos Estados Unidos 15 : A industrialização da Europa, com sua demanda por algodão aumentando de maneira exponencial, garantiu, a partir de 1780, um mercado em expansão constante para o principal produto de exportação maranhense, e ajudou a consolidar o crescimento do setor de exportação. O algodão passou a representar 75% das exportações do Maranhão, e chegou mesmo entre 1796 e 1811, ao segundo lugar nas exportações brasileiras com 24,4% logo depois do açúcar, com 34,7%. O Maranhão era então a segunda região exportadora do produto – depois de Pernambuco - e São Luís chegou a ser o quarto porto exportador do Brasil. 16 No que concerne à produção do arroz, que também foi incentivada pela Companhia, ela teve uma trajetória produtiva mais tortuosa, passando do cenário de exportação bem sucedida em 1767, para um período de seca de 1768, e por uma devastadora praga de ratos nos arrozais do interior da capitania em 1770. 17 Após essa conjuntura desfavorável, a produção rizícola continuou em expansão, porém passou a esbarrar em problemas de logística, decorrente da grande exportação de algodão. Conforme relatou César Marques, já em 1775, “saíram daqui doze navios e levaram para mais de cem mil cruzados de arroz e tivera ido muito mais, se os navios da praça não viessem com o ajuste de levar só meio porão de arroz”. 18 Em 1780, a exportação de arroz só „perdia‟ para a de algodão. São Luís tinha se tornado, no fim do século XVIII, a segunda cidade mais importante do Estado do Brasil. Mas, segundo Matthias Rohring, o algodão americano a partir de 1800, começou a 14 FARIA, Regina Helena Martins de. A transformação do trabalho nos trópicos: propostas e realizações. 2001. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, p. 32. 15 As perspectivas de lucros com a produção algodoeira levou a uma rápida expansão no Maranhão: o cultivo e o beneficiamento eram fáceis, os equipamentos não eram caros, sendo as maiores despesas os gastos com os escravos, ensacamento, frete e dízimo. Cf. CAMPOS, op. cit., p. 105. 16 ASSUNÇÃO, Matthias Rohring. Exportação, mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão, 1800-1860. Estudos Sociedade e Agricultura, 14, abril 2000, pp. 03-04. 17 Cf. CAMPOS, op. cit., p. 109. 18 Cf. CAMPOS apud MARQUES, op. cit., p. 109. 15 substituir, pouco a pouco, o algodão maranhense no mercado inglês. Assim, apenas em conjunturas de guerra (como 1812-14 e 1861-65) a província do Maranhão voltou a ocupar lugar de destaque no mercado internacional. 19 Semelhante ao algodão, a partir de 1821, os preços do arroz também começaram a declinar. Regina Faria acentua que As exportações de arroz, por sua vez, também começam a declinar no decênio de 1820. Não se conhecem informações sobre estes indicadores para as três décadas seguintes; quando voltam a ser mencionados, em relação ao ano de 1856, equivalem a um quinto do volume exportado no qüinqüênio de 1815-1819, período em que foram mais elevados. Maria do Socorro Coelho Cabral (1984, p. 73) compara a produção do início do século (560.000 alqueires, em média) com a de 1860 (544.500 alqueires), indicando que a queda das exportações foi compensada, em parte, com o aumento do consumo interno. 20 Esse consumo interno do algodão ou de arroz representou para os lavradores 21 a chamada “decadência da lavoura” 22 , ou seja, falta de altos lucros para o pagamento de suas despesas de luxo, bem como para o investimento feito na compra de escravos, mas, para o historiador Mathias Rohring foi o processo de “interiorização da economia”. Como solução para a “decadência”, os grandes proprietários investiram na produção de açúcar e os comerciantes diversificaram a aplicação de seus capitais. 23 Os preços estavam baixos, mas a conjuntura internacional permitiu um êxito à agroindústria açucareira: A passagem do Maranhão de importador a exportador de açúcar é atribuída à ação do Presidente Joaquim Franco de Sá, por ter tomado uma série de medidas para incentivar-lhe a produção, quandoadministrou a Província, de 1846 a 1848. Antes disso, bem poucos eram os “engenhos de açúcar”. Em 1822, apenas sete, enquanto os “engenhos de aguardente”, que exigiam capitais muitíssimos menores, eram cento e quinze. Apesar da secular tendência de baixa no preço do açúcar, especialmente o de cana, a conjuntura estava favorável, devido à “[...] abolição da escravidão nas Antilhas Inglesas, em 1836 – provocando a desorganização temporária [da produção], num momento de expansão do mercado metropolitano. Assim, as exportações brasileiras passaram de 19 Cf. ASSUNÇÃO, op. cit., p. 299. 20 FARIA, op. cit., p. 34. 21 Segundo Alfredo Wagner os lavradores eram “os sesmeiros e grandes proprietários de fazendas de algodão, notadamente do Vale do Itapecuru”. ALMEIDA, Alfredo Berno Wagner de. A ideologia da decadência: uma leitura antropológica a uma história da agricultura do Maranhão. 2ª edição. Rio de Janeiro: Casa 8/ Fundação Universidade do Amazonas, 2008, p. 33. 22 Para saber mais ver ALMEIDA, op. cit. p.33. 23 Cf. FARIA, op. cit., p. 34. 16 479.951 toneladas no decênio de 1821/30, para 1.004.043 toneladas no de 1841/50. 24 Até 1880, o Maranhão obteve êxito nas exportações de açúcar, mas a abolição da escravidão (1889) e a concorrência internacional com o açúcar de beterraba e o açúcar de Cuba levou ao preço mais baixo do período imperial. 25 1.1.1 - Politesse 26 e inteligentsia maranhense e instituições O surto progressista na economia maranhense, graças à exportação do algodão e do arroz, proporcionou aos grandes proprietários rurais e comerciantes a construção de grandes casarões e sobrados para abrigar suas famílias e negócios. 27 O enriquecimento os levou a procurar o refinamento de seus hábitos e costumes: “Os jovens que iam estudar na Europa, principalmente em Coimbra, foram os principais divulgadores da cultura europeia no Maranhão. Ao retornarem com títulos de bacharéis e doutores, sobretudo em leis, filosofia e medicina, disseminavam novos padrões estéticos”. 28 Esse refinamento não passou despercebido daqueles que visitavam a capital maranhense, como foi o caso dos viajantes austríacos Spix e Martius, em 1819, para os quais: A população branca do Maranhão é, verdadeiramente, notável pela elegância, de seus modos e sua educação esmerada. Não só a riqueza da região, o desejo de imitar os costumes europeus (...), mas também, e principalmente, a liberdade, a boa educação, a polidez e a doçura das maranhenses contribuíram para tornar aquela cidade um dos lugares do Brasil onde é mais agradável a permanência. Quase todas educadas em Portugal, as jovens maranhenses levam consigo o gosto pelo trabalho e pela ordem e hábitos de reserva e discrição. (...). Quanto aos homens são quase todos mandados aos bons colégios da França e Inglaterra. 29 24 FARIA, op.cit., pp. 34-35. 25 Cf. ibid, p. 36. 26 Define-se como politesse “ensemble de règles qui régissent le comportement, le langages considérés comme le meilleurs dans une sociéte; le fait el La manière d‟observer ces usages (conjunto de regras que regem o comportamento, a língua, o modo de se comportar na sociedade,)”. DICTIONAIRES LE ROBERT MICRO, Poche: Paris, 2006, p. 1016. 27 Não devemos olvidar a presença marcante de ingleses no Maranhão neste momento devido à exportação de algodão. Sobre a atuação deles, ver ASSUNÇÃO, op. cit. 28 PEREIRA, op. cit., p. 21. 29 CARVALHO apud CALDEIRA, op. cit., p. 31. 17 Com o surgimento dos espaços públicos como lugar de divertimento, a sociedade sanluisense também sentiu necessidade de espaços para representar sua politesse. O Teatro União, inaugurado em 1817, foi um desses locais. Antonia Mota acentua que a maioria dos lucros da agroexportação foi gasta em elementos ligados ao mundo urbano e que a elite ludovicense se diferenciava do resto da sociedade pobre e/ou escravizada ostentando sua riqueza: 30 “Ficamos a imaginar em que ocasiões seria possível ostentar tamanha riqueza. Provavelmente em reuniões sociais, festas familiares, recepções, festejos. Sabemos que o primeiro teatro de São Luís foi inaugurado logo no início do XIX, talvez construído para oferecer ocasião ao convívio social das famílias abastadas”. 31 Em 1821 foi fundada a Tipografia Maranhense e foi impresso o primeiro jornal maranhense: “O Conciliador do Maranhão”. Em 1829 foi criada a Biblioteca Pública de São Luís e, quase dez anos depois (1838), o Liceu Maranhense e o Seminário Episcopal de Santo Antônio tornaram-se locais por excelência de educação dos jovens. 32 Também não podemos olvidar a criação em 1834 da Assembléia Legislativa Provincial. Ela foi a responsável pela aprovação dos Códigos de Posturas, que vieram disciplinar os hábitos considerados ociosos e nocivos à sociedade. 33 Esse número crescente de instituições produziu um considerado número de escritores reconhecidos nacionalmente e criou para São Luís a alcunha de “Atenas Brasileira”, título que até hoje é usado como referência a um passado glorioso. Isso só foi possível, em virtude da riqueza gerada pela cotonicultura, que possibilitou o deslocamento dos filhos dos senhores algodoeiros para estudar na Europa, a fim de adquirirem uma educação requintada. Baseados no conceito de 30 Cf. MOTA, Antonia da Silva. A dinâmica colonial portuguesa e as redes de poder local na Capitania do Maranhão. 2007. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE, p. 128. 31 MOTA, op. cit., p. 162. 32 Cf. CARVALHO, op. cit., p. 34. 33 Cf. ibid, p. 38. “A partir de 1834, foi instituída, para cada província, uma Assembléia Legislativa Provincial, cuja função era legislar em sua área de competência. O referido órgão, instalado em 1835, era responsável pela aprovação dos Códigos de Postura – Instrumento normativo que estabelecia parâmetros gerais para o convívio da sociedade – proposto pelas Câmaras Municipais, que desde a Carta Constitucional de 1824 possuíam natureza exclusivamente administrativa. Cf. id. 18 civilização, quando retornaram a São Luís tornaram-se ícones da vida cultural e intelectual da província do Maranhão. 34 1.1.2 – Urbanização e Estado Sanitário da Província do Maranhão No início do século XIX, as capitais das províncias estavam preocupadas em reorganizar os seus espaços. Segundo Agostinho Coe, melhorias deveriam ser feitas para proporcionar um ambiente mais saudável aos habitantes da urbe: A idéia desenvolvida no Brasil do século XIX, e que obteve destaque no contexto ludovicense, era de que existia um caminho a ser seguido por todas as cidades que buscavam o “progresso”, ou seja, uma espécie de modelo geral que primava pelo “aperfeiçoamento moral e material”, tendo validade para qualquer contexto histórico. Assim, cabia aos governantes cuidar para que tal caminho fosse percorrido o mais rapidamente possível. Uma das prioridades era a solução dos problemas de higiene pública. 35 A urbanização ocorrida no século XIX não se preocupou em higienizar os espaços públicos. Na verdade, buscou atender aos interesses de uma classe emergente (grandes proprietários de terra e de trabalhadores escravos). Não existia ainda, a ideia de que o poder público era responsável pela infraestrutura das cidades e este exercia seu poder por meio da consolidação da política e da cultura. 36 As questões debatidas em torno da saúde pública estavam mais preocupadas em preparar um ambiente que atraísse os estrangeirosdo que atender o bem estar da população: Assim, a intervenção do Estado Brasileiro na saúde pública, na segunda metade do século XIX, em vez de atender à coletividade, tentou basicamente controlar a febre amarela, uma vez que atingia mais aos estrangeiros. Desta forma, procurou promover os interesses de fazendeiros, preocupados em garantir braços para a lavoura cafeeira, além de contribuir para o progressivo embranquecimento da população brasileira. Logo, „todos os esforços e recursos foram dirigidos à febre amarela, enquanto doenças como tuberculose e a varíola, ambas 34 SANTOS, José Luso. A cidade revisitada: Urbanismo, saúde pública e epidemias em São Luís na virada do século XIX. 2010. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal do Maranhão. São Luís, MA, p. 19. 35 COE, Agostinho Holanda. “Nós, os ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”: a higiene e o fim dos sepultados eclesiásticos em São Luís (1828-1855). 2008. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE., p. 09. 36 Cf. ALVES, op. cit., p. 31. 19 normalmente associadas a mestiços, pobreza, eram sempre quase completamente negligenciadas. 37 As ações imperiais não criaram melhorias significativas nas condições de higiene pública, quase sempre eram aplicadas somente no Rio de Janeiro. As elites provinciais atrelavam seus interesses aos interesses públicos, impedindo as políticas de saúde. 38 Apesar da existência das posturas municipais, as necessidades fundamentais não eram atendidas: As ruas fediam a água podre, as praças fediam a animais mortos, as avenidas formavam matas verdejantes, os baixos de sobrados e cortiços sem ventilação fediam a mofo, fedia o matadouro a carne podre e sangue coagulado, fedia o mercado a verdura e legumes podres – o lixo proliferava pelas casas e vias públicas emanando podridão e torpor. 39 Desde o período colonial, o abastecimento de água de São Luís era bem precário e feito especialmente nas fontes, que estavam localizadas em pontos estratégicos da cidade. As principais eram a Fonte do Ribeirão, das Pedras, do Bispo, do Apicum e do Mamoim, mas a água daí retirada não era própria para a alimentação. Para os locais mais distantes, os aguadeiros a transportavam e comercializavam em pipas carregadas em burros. 40 Até a metade do XIX, o abastecimento era feito pela Companhia de Águas de Ana Jansen, que detinha o monopólio, mas, a partir de 1850, o poder público se preocupou em montar um sistema de abastecimento de água. Em 1874, concedeu à Companhia Rio Anil o monopólio da distribuição de água por sessenta anos, que provinha do rio Anil, ficando ela também responsável pelos encanamentos e pela distribuição. Assim, foram distribuídos seis chafarizes pela cidade, os quais não conseguiram suprir às necessidades da população. 41 Como o esgoto não era canalizado, a dispersão dos dejetos e da água suja era feita pela população de diversas maneiras: nas casas onde havia fossas, as fezes decompunham- 37 Cf. ALMEIDA, Maria de Conceição Pinheiro de. Saúde Pública e Pobreza: São Luís na Primeira República. In: Org.: COSTA, Wagner Cabral da. História do Maranhão: novos estudos. São Luís: EDUFMA, 2004, p. 234. 38 Cf. ALMEIDA, op. cit., p. 235. 39 GALDEZ FERREIRA, Márcia Milena: Epidemia de varíola em São Luís: amálgama de crenças, saberes e fazeres. In: FARIA, Regina Martins de & BESERRA COELHO, Elizabeth Maria. Saberes e fazeres em construção: Maranhão, séc. XIX-XX. São Luís: EDUFMA, 2011, p.38. 40 Cf. SANTOS, op. cit., p. 24. 41 Cf. ibid 20 se lá dentro; e onde não havia esse sistema, os escravos eram os responsáveis pelo despejo das matérias fecais, geralmente no mar. Devido a esse hábito, a Travessa 28 de Julho, no centro de São Luís, ficou conhecida também como o Beco da Bosta: Beco da Bosta (Travessa Vinte Oito de Julho) Parte da Rua de Santo Antônio (ten. Mário Carpentier) e atinge a Rua Parque 15 de Novembro. É beco estreito por onde transitavam os escravos carregando tonéis de excrementos das famílias para jogá-los na maré, os conhecidos tigres ou cabungos, únicos meios de despejo até então. 42 Segundo SANTOS, “Os hábitos de higiene dentro das casas eram praticamente inexistentes. Nas moradias onde não havia latrinas, as necessidades fisiológicas eram feitas nos cômodos e os excrementos ali ficavam até o período da noite quando eram lançados ao mar”. 43 O lixo também não tinha um destino apropriado, ficando espalhado pelas ruas e praças. Quando chegava o período das chuvas, essa situação de precariedade contribuía em muito para que epidemias eventuais grassassem sem muitas barreiras. A salubridade pública, em São Luís, seguia realmente comprometida: Na virada do século XIX a cidade marcada pela existência de praças ajardinadas em seu centro era também a cidade do lixo. O lixo doméstico que não tinha um destino seguro era comumente jogado em locais a esmo. As ruas da cidade estavam enfeitadas de uma variedade de lixo que ia de resquícios de alimentos a restos de animais (...) situação que piorava no período de chuvas, onde a variedade de lixo associada à umidade que aumentava as regiões alagadiças, concorriam para a eminência de doenças epidêmicas. 44 Esse cenário da cidade de São Luís, descrito para a virada do século XIX, serve sem muitas variações para todo esse século. Ora, essas condições de higiene tornaram mais propício o surgimento de surtos epidêmicos de febre amarela, desinteria, pneumonias, 42 LIMA, Carlos de. Caminhos de São Luís: ruas, logradouros e prédios históricos. 2ª ed. São Luís: Livraria Vozes, 2007, p. 36. 43 SANTOS, op. cit., p. 27. 44 Id. 21 bronquites, coqueluches, hepatites, sarampo, cólera morbus e varíola em São Luís no século XIX. 45 45 Cf. ALVES, op. cit., p.27. 22 CAPÍTULO II MEDICINA, SAÚDE PÚBLICA E AS EPIDEMIAS NO SÉCULO XIX Abram alguns cadáveres e as teorias irreais dos antigos desaparecerão! 46 Xavier Bichat, pai da Histologia. Os sujeitos da segunda metade do século XIX acreditavam estar vivenciando um momento crucial na história da humanidade. Nesse sentido, as descobertas científicas divulgadas cotidianamente apareciam como se fossem finais, isto é, como as últimas possibilidades da capacidade industriosa do homem. 47 Segundo Bresciani, A máquina o século XIX conferiu todo o poder transformador e produtor da abundância e apostou nela, como possibilidade, não muito remota, de superação do reino da necessidade (superação de um mundo sempre às voltas com a escassez de recursos para manter o crescimento ilimitado do gênero humano), mas também a ela foi conferido o poder transformador da estrutura social (the fabric of society), o que colocava em algo exterior ao próprio homem a potência movimentadora do novo sistema social (social system). 48 Essa mudança na sociedade perpassou pela relação entre a medicina e a população. Nesse momento histórico, a normatização das condutas sociais era feita por meio da higiene dos corpos. Neste capítulo faremos um breve percurso sobre a evolução da medicina entre os séculos XVIII e XIX, mostrando como ela se transformou e transformou o mundo. 2.1 – A Medicina no século XVIII: populações e Estado A Medicina européia até 1780 caracterizou-se por um cunho individualista. Nesse momento, o médico tinha o papel de vencer a doença na relação pessoal entre ele e o doente. O conceito de um bom médico era constituído no processo de “transmissão de 46 BYNUM, William. História da medicina.Porto Alegre: RSL&PM, 2011, p. 64. 47 HOSBSBAWN, Eric. A Era do Capital. 2 ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 261. 48 BRESCIANI, Maria Stella Martins. Metrópoles: as faces do Monstro Urbano (as cidades no século XIX). In: Revista Brasileira de História. São Paulo. ISSN 1806-9347, Vol 05, nº 8/9, setembro1984/abril 1985, p. 35. 23 receitas mais ou menos secretas ao público”. 49 O hospital 50 não era um lugar de diagnósticos, de cura, era um lugar para morrer, um lugar de caridade: Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de separação e exclusão. O pobre como pobre tem necessidade de assistência e, como doente, portador da doença e de possível contágio, é perigoso. Por estas razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo, quanto para proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem ideal até o século XVII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento. 51 Foucault acentuou ainda que, desde o fim do século XVI e começo do XVII, as nações do mundo europeu começaram a se preocupar com o estado de saúde de suas populações como parte da sua burocracia. O mercantilismo, sendo uma prática política, procurava o controle da economia e da atividade produtiva: A política mercantilista consiste essencialmente em marjorar a produção da população, a quantidade da população ativa, a produção de cada indivíduo ativo e, a partir daí, estabelecer fluxos comerciais que possibilitem a entrada no Estado da maior quantidade possível de moeda, graças a quem se poderá pagar os exércitos e tudo o que assegure a força real de um Estado com relação aos outros. 52 Dessa maneira, foram feitas contagens populacionais na Inglaterra e na França, medição dos níveis de natalidade e de mortalidade, mas sem uma intervenção efetiva para a melhoria da saúde. “As distribuições gratuitas de medicamentos são efetuadas na França, com uma amplitude variável, de Luís XIV a Luís XVI. Cria órgãos de consulta e de informação (O Collegium sanitário na Prússia em 1776)”. 53 Já na Alemanha, ocorria o contrário: a polícia médica, (Medizinichepolizei), propôs programas efetivos para a melhoria da saúde pública. Entre as inovações podemos destacar a “observação da morbidade pela contabilidade pedida aos hospitais e aos médicos que 49 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 102. 50 Sobre o nascimento do hospital ver FOUCAULT, op. cit., pp. 99-111. 51 FOUCAULT, op. cit., p. 102 52 Ibid., p. 82. 53 Ibid., p. 194. 24 exercem a medicina em diferentes cidades ou regiões e registro, ao nível do próprio Estado, dos diferentes fenômenos epidêmicos ou endêmicos observados”. 54 Outros aspectos relevantes da medicina alemã desse período foram a normalização do ensino médico (houve uma preocupação por parte do Estado alemão em controlar o sistema de ensino e a atribuição de diplomas), a subordinação da prática médica ao Estado alemão e o aparecimento do médico como administrador da saúde. 55 A preocupação dessa medicina não foi o corpo como força de trabalho, mas o corpo do indivíduo que constitui o Estado. É importante destacar esse modelo médico estatizado alemão como o modelo inicial da medicina moderna, pois, “os outros modelos de medicina social dos séculos XVIII e XIX são atenuações desse modelo profundamente estatizado e administrativo já apresentado na Alemanha”. 56 2.2 – Medicina Francesa no XIX: “Paris, a Meca do mundo médico”. A Revolução Francesa de 1789 não abalou só o mundo político, a medicina também se modificou. As instituições médicas características do Ancién Régime foram progressivamente abolidas. “Ao passo que as forças políticas e militares da Revolução foram ganhando poder, as instituições da medicina – médicos, cirurgiões, hospitais, as antigas academias e faculdades – foram eliminadas junto com outros detritos do Antigo Regime”. 57 Concomitante a essa nova forma de pensamento político, no século XIX houve uma “revolução médica” e tudo se modificou com o modelo francês de ensinar e aprender medicina. 58 Bynum salienta que nesse momento ocorreu uma nova educação médica. Esta enfocava fundamentalmente a medicina prática baseada nos hospitais com treinamento cirúrgico. Não houve mudanças nos pilares na medicina, mas a junção deles permitiu um novo olhar para as doenças: “A medicina hospitalar francesa baseou-se em três pilares, nenhum deles totalmente novo, mas junto constituíram um novo olhar para a doença. Os 54 Ibid., p. 83. 55 Cf. ibid., p.84. 56 Ibid., p. 85. 57 BYNUM, op. cit., p. 53. 58 Cf. ibid., p. 59. 25 três pilares eram o diagnóstico físico, a correlação clínico-patológica e o uso de um grande número de casos para elucidar categorias de diagnóstico e avaliar a terapia”. 59 O diagnóstico físico estabeleceu uma nova relação entre o médico e o paciente e como parte da nova ideologia instigava os médicos a procurarem sinais efetivos da doença: O diagnóstico físico era central nesse esforço. As quatro dimensões cardinais do diagnóstico físico, ainda ensinadas a estudantes de medicina, são inspeção 60 , palpação 61 , percussão 62 e auscultação 63 . Em formas variadas, todas já haviam sido usadas ocasionalmente por médicos desde os hipocráticos. Os médicos dos hospitais franceses as agruparam, tornando-as rotineiras e sistemáticas, e mudaram para sempre o relacionamento entre médico e paciente. 64 A vistoria clínica da doença seria confirmada com a autopsia do paciente após a morte. Esta permitiu a objetivação dos sintomas das enfermidades: “As autopsias eram conduzidas por clínicos franceses no mesmo espírito dos exames clínicos: para objetificar os fenômenos da doença e assim substituir as especulações de dois mil anos com conseqüências sólidas, palpáveis, visíveis, pesáveis e materiais da patologia”. 65 Os hospitais tornaram-se instrumentos terapêuticos que deviam ser organizados medicamente, locais de cura e de formação dos médicos. 66 Essa nova ciência médica influenciou também as cidades, pois no século XIX tanto Londres como Paris tornaram-se inúmeros canteiros de obras dos quais surgiram grandes 59 Ibid., p. 55. 60 Ação ou efeito de olhar, de examinar, de verificar: inspeção realizada para detectar problemas. Dicionário Online de Português. Inspeção. Disponível em http://www.dicio.com.br/inspecao/. Acesso em 11/03/2013 às 14:37. 61 Meio de inspeção pelo tato das partes do corpo e cavidades acessíveis, a fim de apreciar as qualidades físicas dos tecidos, sua consistência, etc. Dicionário Médico. Palpação. Disponível em http://www.dicionáriomédico.com/palpa%C3%A7%C3%A3o.html. Acesso em 11/03/2013 ás 14:06. 62 Ato de percutir, vibração mecânica, por choques, sobre uma parte vibratória ou ressonante, para sentir alterações consequentes a modificação estruturais. Dicionário médico. Percussão. Disponível em http://www.xn--dicionriomdico-0gb6k.com/percuss%C3%A3o.html. Acesso em 11/03/2013 ás 14:07. 63 Ato de ouvir sons ou ruídos produzidos no interior do organismo (coração, pulmão). Dicionário médico. Auscultação. Disponível em http://www.dicionáriomédico.com/ausculta%C3%A7%C3%A3o.html. Acesso em 11/03/2013 às 14:08. 64 Cf. BYNUM, op. cit., p. 62. 65 Cf. Ibid., p.64. 66 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 111. http://www.dicio.com.br/inspecao/ http://www.dicionáriomédico.com/palpa%C3%A7%C3%A3o.html http://www.dicionáriomédico.com/percuss%C3%A3o.html http://www.dicionáriomédico.com/ausculta%C3%A7%C3%A3o.html26 boulervards, com os quais pretendiam melhorar a circulação do ar e empurrar a classes perigosas – os pobres - para longe do centro urbano. 67 2.3 – Problemas de saúde pública: as epidemias No século XIX houve uma divisão da medicina em dois tipos: uma voltada para o indivíduo e a outra que enfocava a população. 68 Esta última ficou mais conhecida como “Saúde pública”; tinha por preocupação a manutenção da saúde, a prevenção ou a contenção das doenças epidêmicas. 69 Segundo Bynum, o movimento de saúde pública ocorrida no XIX foi uma reação direta às sucessivas epidemias de cólera que assolaram a Europa: A primeira epidemia a atingir a Europa (a primeira pandemia, que durou de 1817 a 1823, desapareceu de forma gradual depois de se espalhar da Índia até o Oriente Médio e o Norte da África) certamente aumentou a consciência sobre a doença comunitária. A partir de 1827, quando a segunda pandemia começou a se disseminar desde seu lar costumeiro, no leste da Índia, a Europa observou com ansiedade enquanto a doença se aproximava cada vez mais. 70 Houve uma rápida identificação da causa das epidemias: os pobres e sua pobreza. 71 O fato de as epidemias sempre grassarem no seio das populações menos favorecidas levou os médicos a concluírem que isso ocorria devido às suas condições de vida, alimentação pouca, e que não supria suas necessidades, além dos vícios: 72 “E houve então o diagnóstico de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habitações coletivas seriam foco de irradiação de epidemias, além de serem, naturalmente, 67 Cf. COMBEAU, Ivan. Paris: uma história. Porto Alegre, RS: L&PM , 2009, p. 76. 68 Cf. id., p. 111. 69 Cf. BYNUM, op.cit., p. 78. 70 Ibid, pp. 84-85. 71 “O Estado moderno, voltado para o desenvolvimento industrial, tinha necessidade de um controle demográfico e político da população adequado àquela finalidade. Esse controle, exercido junto às famílias, buscava disciplinar a prática anárquica da concepção e dos cuidados físicos dos filhos, alem de, no caso dos pobres, prevenir as perigosas conseqüências políticas da miséria e do pauperismo. No entanto, não podia lesar as liberdades individuais, sustentáculo da ideologia liberal. Criam-se, assim, dois tipos de intervenção normativa que, defendendo a saúde física e moral das famílias, executavam a política do Estado em nome dos direitos do homem”. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 5ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 51. 72 Cf. Ibid, p. 91. 27 terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos”. 73 Esta proposta de Medicina Social colocada no XIX era identificada com os interesses da classe dominante que tinha como objetivo tomar o corpo social enquanto espaço de promoção da saúde. 74 No Brasil, as sucessivas epidemias de febre amarela no Rio de Janeiro 75 intimaram o Governo Imperial a interferir com mais vigor na saúde pública. Nessa discussão, as relações comerciais e a imigração estrangeira estavam como pontos principais, já que a febre amarela matava mais os estrangeiros que estavam no Brasil. Assim, as intervenções realizadas na metade do século XIX não atenderam ao povo, mas buscavam o controle da febre tendo em vista os estrangeiros e o projeto de branqueamento da população do Brasil Imperial: 76 A medicina que, desde o início do século XIX, lutava contra a tutela jurídico-administrativa herdada da Colônia, deu um largo passo em direção à sua independência, aliando-se ao novo sistema contra a antiga ordem colonial. Este progresso fez-se através da higiene, que incorporou a cidade e a população ao campo do saber médico. Administrando antigas técnicas de submissão, formulando novos conceitos científicos, transformando uns e outros em táticas de intervenção, a higiene congregou harmoniosamente interesses da corporação médica e objetivos da elite agrária. 77 Adotou-se o modelo médico francês como solução para os problemas urbanos e de sua população viciosa, estatizando o indivíduo a partir do dispositivo médico: onde havia ordem jurídica foi sobreposta pelas normas que a ciência considerava correta e a censura 73 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 29. 74 Cf. LUZ, Madel Terezinha. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de saúde. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982, p. 105. 75 A febre amarela se tornou contínua nos verões do Rio de Janeiro em toda a década de 1850. Cf. ALMEIDA, Maria da Conceição Pinheiro. Saúde Pública e Pobreza: São Luís na Primeira República. In: História do Maranhão: novos estudos. (Org. COSTA, Wagner Cabral). São Luís: EDUFMA, 2004, p. 233. 76 Cf. ALMEIDA, op. cit., pp. 233-234. 77 COSTA, op. cit., p. 28. 28 pelo que era inaceitável. 78 Assim, produziram-se novas mentalidades e comportamentos individuais e sociais: 79 Entre os trunfos da superioridade médica, um dos mais importantes foi a técnica de higienização das populações. Na Colônia, a conduta anti- higiênica dos habitantes era um dos empecilhos fundamentais à saúde da cidade. A administração procurava atacar a dificuldade com auxilio de almotacés de limpeza. Esta ação vigilante da justiça operava no mesmo universo de punição que caracterizava a represália aos marginais. Ela era descontínua, fragmentar e, acima de tudo, não sabia prevenir. A própria relação numérica almotacé-população excluía a possibilidade de um controle permanente. A medicina servindo-se de técnicas análogas às da militarização, contornou esta situação. Suscitou o interesse do individuo por sua própria saúde. Cada habitante tornou-se seu próprio almotacé e, em seguida almotacé de sua casa e da vizinhança. A descontinuidade no controle e a inferioridade numérica de seus agentes foram, deste modo, superadas. Por outro lado, a medicina contava, com a participação do Estado na sustentação de sua política de saúde. Enquanto que, na Colônia, a visão caritativo-assistencial da religião reduzia a “assistência médica‟ a uma atividade social marginal e supérflua, no Império, a ética leiga dos higienistas fez ver que a saúde da população e do Estado coincidiam. A saúde da população inscrevia-se, assim, na política de Estado. 80 Os médicos eram considerados como portadores de conhecimentos que levariam o Brasil ao “progresso” e à “civilização” sendo, que isso perpassaria pelo processo de medicalização da sociedade. 81 No Brasil, durante o Segundo Reinado, os intelectuais médicos trabalharam bastante para conseguir prestígio e influência sobre as autoridades. 82 Esse foi o casamento perfeito entre autoridades e intelectuais médicos: 83 78 “A ordem da lei impõe-se por meio de um poder essencialmente punitivo, coercitivo, que age excluindo, impondo barreiras. Seu mecanismo fundamental é o da repressão. A lei é teoricamente fundada na concepção “jurídico- discursiva” do poder e histórico-politicamente criada pelo Estado medieval e clássico. A norma, pelo contrário, tem seu fundamentos histórico-políticos nos Estados modernos dos séculos XVIII e XIX, e sua compreensão teórica explicitada pela noção de “dispositivo”. Os dispositivos são formados pelos conjuntos de práticas discursivas e não discursivas que agem, à margem da lei, contra ou a favor delas, mas de qualquer modo empregando tecnologia de sujeição própria”. Ibid., p. 50. 79 Cf. LUZ, op. cit., p. 109. 80 COSTA, op. cit., pp. 29-30. 81 PEREIRA, J.O; FERREIRA, D.B.J. Medicina, epidemia e política na Província do Maranhão (1850). In: Anais do III Encontro de História do Império Brasileiro: Cultura e poder no Oitocentos. São Luís.ISSN 978-85-7745-619-2, pp. 01-02. 82 SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, CECULT, IFCH, 2001, p. 111. 83 A normatização dos cursos de formação dos médicos, profissionalização da medicina e a “caça” aos charlatães, médicos estrangeiros e curandeiros foram essenciais nesse processo. Para saber mais ver SAMPAIO, op. cit. 29 Tais questões de saúde pública estavam cada vez mais na ordem do dia, já que nos políticos e governantes daquele período estava bastante presente a noção de que havia um caminho de “civilização” e “aperfeiçoamento da moral” a ser buscado, o qual só seria atingido através da solução dos problemas de higiene pública. E, naquele contexto, ninguém melhor que os detentores do conhecimento científico, da técnica – principalmente médico – para indicar os caminhos a serem seguidos na administração do país. 84 Mas, não devemos pensar que toda essa organização dos intelectuais médicos significava que, no século XIX, o campo médico fosse coeso em suas teorias. Ao contrário, “Longe de ser uma tarefa simples, a consolidação daqueles representantes da medicina científica como influentes e poderosos diante da sociedade foi um processo conflituoso e lento, atravessado sempre por novas dificuldades não imaginadas pelos doutores”. 85 Dentre essas dificuldades, podemos destacar aqui várias teorias médicas, existentes no momento, que os intelectuais médicos eram adeptos e defensores ferrenhos: contagionismo 86 , infeccionismo 87 , homeopatas, alopatas. 88 Os conflitos teóricos acerca dos tratamentos dados aos pacientes entre esses profissionais eram constantes que levavam a população a consultá-los em último caso: 89 Não era algo comum procurar um médico quando se estava doente. Ao contrário, parecia que se render a esses especialistas era mesmo o último recurso, a derradeira tentativa de quem não tinha mais nada a perder. Após esgotar todos os meios tradicionalmente empregados, aquelas pessoas acabavam “tendo que procurar os recursos da ciência”. 90 Sampaio ressalta que não é que os populares não procurassem os médicos, mas esse grupo, não tendo na ciência sua verdade única, recorria aos curandeiros (que por sua vez 84 Ibid., p. 112. 85 Ibid., p. 25. 86 As doenças eram transmitidas pelo contato físico, objetos contaminados e pelo ar que circulava. Cf. CHALHOUB, op. cit., p. 64. 87 Os “miasmas morbíficos” (animais e vegetais em putrefação) causavam as infecções. Cf. ibid. 88 “No meio de tantas atividades diferentes que eram consideradas charlatanismo, havia uma que era sempre citada e que representava uma grande ameaça aos interesses dos médicos. Era a homeopatia. Afinal, não era tão simples qualificá-la como pura ignorância, pois muitos homeopatas eram médicos formados, possuíam um discurso articulado, uma doutrina que poderia substituir a medicina alopática. Eram adversários que pareciam ser considerados perigosos, pois discutiam em termos científicos os princípios das teorias médicas. Os médicos alopatas foram então obrigados a reconhecer que havia “charlatães” dentro de sua própria classe”. SAMPAIO. op. cit. , p. 55 89 Um desses casos “O Doutor fura–uretras” é relatado por Ibid, pp. 31-61. 90 Ibid., p. 68. 30 eram alvo dos intelectuais médicos em geral), sendo “o que havia eram restrições, tentativas de se adiar a procura do médico, resolvendo as doenças de outro modo”. 91 No próximo capítulo, trataremos do processo de medicalização da sociedade ludovicense. 91 Ibid., p. 77. 31 CAPÍTULO III O APARATO MÉDICO NOS SURTOS EPIDÊMICOS: AS DESPESAS EXTRAORDINÁRIAS E OS CEMITÉRIOS (1850-1855) E’ de presumir que, no corrente anno, appareça déficit, já em razão das despesas extraordinárias, que se fizerão com o avultado numero de doentes. 92 Eduardo Olímpio Machado 3.1 – Epidemias e a emergência de soluções Durante o século XIX, a capital da Província do Maranhão tinha seu estado de saúde pública, considerado satisfatório pelos presidentes de Província, mas, foram constantes e intermitentes os surtos epidêmicos. Todos os anos, as mesmas doenças que ocorriam de acordo com as estações „batiam ponto‟ e deixavam muitas pessoas acamadas: o pleuriz e pulmonia, sarampo, benigna varicela, de espasmo, coqueluche, febres biliosas, de malignas, congestão cerebral, febres intermitentes e diversas outras moléstias consideradas de menos consequência. Entretanto, grandes surtos epidêmicos ocorriam e deixavam a população e o governo provincial sem saber como proceder. No Relatório de 1850, o Presidente da Província Eduardo Olímpio Machado, discorreu sobre o surto de febre amarela que ameaçou e matou uma boa parcela da população do Império do Brasil: Nos últimos meses do anno passado apareceo a febre amarella na Província da Bahia, e d‟ali communicou-se rapidamente às do Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagôas, Parayba e outras Províncias do litoral, fazendo em todas ellas horriveis estragos, sendo principalmente fatal às tripulações dos navios e aos estrangeiros recentemente chegados. Em principio do corrente ano passou ella para a Província do Pará, onde foi 92 Falla dirigida pelo exm. Presidente da provincia do Maranhão, Honorio Pereira de Azeredo Coutinho, à Assembéa Legislativa Provincial, por occasião de sua installação no dia 7 de Setembtro de 1851. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1851. Disponível em <<http://www.crl.edu/brazil/provincial/maranhao>>, p. 14. http://www.crl.edu/brazil/provincial/maranhao 32 igualmente mortífera. Julguei então que era tempo de tomar mais severas medidas de precaução para vedar a invazão do flagello nesta Província. 93 O Presidente da Província descreveu as atitudes tomadas para a que a epidemia de febre amarela não tivesse o mesmo „desempenho‟ no Maranhão. Para que tal ocorresse procurou a ajuda de médicos, a fim de que eles elaborassem um projeto para dar combate ao flagelo: “Nomeei uma comissão composta do Dr. José da Silva Maia, do Comissário Vaccinador da Província, Dr. José Miguel Pereira Cardozo, e do Provedor da Saúde, Veríssimo dos Santos Caldas, para me dar o seu parecer sobre as medidas que convinham adoptar”. 94 As recomendações aprovadas foram as do Dr. José da Silva Maia. Logo essas recomendações se tornaram posturas por meio da Câmara de São Luís. No geral, elas consistiam em instituir, para que essa medida surtisse o efeito esperado: Um Lazareto no Forte da Ponta d‟Areia, sugeitando a uma rigorosa quarentena os navios que entrassse no porto empestados, designando para ancoradouro de quarentena o igarapé que corre próximo ao mesmo Forte. Nomeei Director do Lazareto o Provedor de Saúde, que ali foi residir com os demais Empregados da Repartição da Saúde, um Empregado do Correio, dous guardas da Alfandega, os remadores do escaler, e a força militar necessária para coadjuvar a execução das medidas ordenadas pelo diretor. 95 Esse modo de lidar emergencialmente com surtos epidêmicos demonstra o despreparo do aparato médico no século XIX: “Ao passo que na entrada do porto se oppunha barreira aos ataques da epidemia, a Cidade converteu-se repentinamente em um vasto Arsenal onde todos á porfia trabalhava para remover qualquer foco de emanações nocivas á saúde pública”. 96 O presidente de Província destacou o baixo custo do combate contra a epidemia: “Assim com a modica despeza de 5:803$441 rs. conseguio-se preservar a capital da invazão da peste”. 97 Entretanto, a Santa Casa de Misericórdia teve seu rendimento afetado devido ao número de doentesque estiveram sob sua custódia durante a epidemia: “E‟ de presumir 93 Falla dirigida pelo exm. Presidente da provincia do Maranhão, Honorio Pereira de Azeredo Coutinho, à Assembéa Legislativa Provincial, por occasião de sua installação no dia 7 de Setembtro de 1850. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1850, p.11. 94 Falla..., p.11. 95 Ibid, p. 12. 96 Id. 97 Ibid, p. 13. 33 que no corrente anno, appareça déficit, já em razão das despesas extraordinárias, que se fizeram com o avultado numero de doentes, tractados no Hospital da Casa por occasião da epidemia, que lavrou nesta, já com o asseio, diversas obras e creação de uma botica no referido Hospital”. 98 Em 1851, a Santa Casa teve uma renda superior devido ao número de mortos enterrados em seu cemitério durante a epidemia de febre amarela: E aqui releva notar que a receita desse anno foi muito superior ao computo ordinário, circunstancia esta, que se deve atribuir ao avultado numero de enterramentos, que se tiverão lugar no Cemitério da Santa Casa, em conseqüência da febre amarella, que fez numerosas victimas nos mezes de Março a Junho. O rendimento do Cemitério subiu a 4:000$600 rs., sem falar nas diárias dos enfermos não indigentes, que produsirão também um rendimento superior. 99 Há notoriamente uma diferença entre a fala do Presidente, que afirma que não houve muitas mortes de pessoas vitimadas pela febre amarela, e a da mesa da Santa Casa de Misericórdia, que deixa bem expressa a existência de gastos excessivos no hospital pelo número de doentes e saldo superior devido ao número de enterramentos nos cemitérios. Qual seria a intenção de Eduardo Olímpio Machado em esconder o verdadeiro estado sanitário da Província do Maranhão? Em idos de outubro de 1855, foi dada a notícia de um surto de varíola na Capital da província, que a principio matou um soldado. Como em outras ocasiões, houve isolamento do hospital regimental para a contenção da moléstia, mas, em novembro do mesmo ano, a peste tornou-se corrente e mortífera aos moradores: “O número dos indivíduos, que tem fallecido de bexigas desde o princípio do contagio até 15 de abril, monta á 517, regulando os respectivos óbitos, o anno passado, 1 por cada dous dias em novembro, menos de 2 por dia em dezembro; este anno, 5 por dia em janeiro, pouco mais de 4 por dia em fevereiro, pouco menos de 3 e ½ por dia em março”. 100 Para tentar deter a moléstia, o presidente de província ordenou: 98 Falla dirigida pelo exm. Presidente da provincia do Maranhão, Honorio Pereira de Azeredo Coutinho, à Assembéa Legislativa Provincial, por occasião de sua installação no dia 7 de Setembtro de 1851. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1851, p. 14. 99 Relatorio com que o presidente da Provincia do Maranhão, o Dr. Eduardo Olimpio Machado, passou a administração da mesma Provincia ao vice-presidente Manoel de Sousa Pinto de Magalhães em 9 de Julho de 1852. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1852, p. 25. 100 Relatorio do presidente da Provincia do Maranhão, o Dr. Eduardo Olimpio Machado na abertura da Assembéa Legislativa Provincial no dia 3 de Maio de 1855. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1855, p. 61. 34 Tenho, durante a crise, dado todas as providencias, que estão á meu alcance, para socorrer os affectados do contagio, e minorar a propagaççao delle pelo preservativo da vaccina; já estabelecendo nesta capital na menos de dous lazaretos, onde são recolhidos e tractados gratuitamente, n‟um os bexiguentos livres, n‟outros os escravos, e distribuindo socorros públicos aos que não podem ser nelles recolhidos; já encarregado a diversos facultativos de tractar a pobresa afectada nas diferentes localidades da província, e incubindo-os igualmente de auxiliar o commisário vaccinador na capital, e de propagar a vaccina pelo interior; e já, finalmente, creando commisões médicas, que proponhão o emprego das medidas sanitárias mais convenientes. 101 No ano de 1856, o então vice-presidente da província, José Joaquim Teixeira Vieira Berford, „desabafou‟ sobre os esforços empreendidos pela saúde pública, a fim de conter as doenças, que, entretanto, continuaram a „aparecer‟: Se um dos fins a que se propõe a hygenie publica, é, como acredito, de extinguir e remover as cauzas, que, directa ou indirectamente, podem influir para a alteração da saude publica, fôra, entretanto, demasiado exigir que ella podesse affastar de nós todas as enfermidades que fagellão a humanidade. As causas, que não estou em erro, do aparecimento e do desenvolvimento das queixas que sofremos na saúde, a maior parte das vezes, permanecem, a despeito dos esforços da sciencia, occultas ao homem, e na generalidade dos casos de molestias endêmicas, esporadicas, ou epidêmicas, são elles devidos a causas telluricas ou atmosphericas, contra as quaes tem até hoje provado de pouca ou nehuma utilidade os esforços da arte; e a auctoridade, que nas occasiões mais criticas, não pode obrigar a stricta observancia das regras prescriptas pela sciencia, vê, sem poder prover de remédio, os tristes effeitos que produzem não poicas vezes prejuizos arraigados na maioria do povo, e inutilisados todos os seus sacrifícios. 102 Podemos notar na fala de Berford que as medidas tomadas para a contenção das doenças não tiveram efeito real e, retomando que são feitas apenas emergencialmente após, considerado o fim do surto a paisagem urbana e as práticas sociais que podem ser a causa de fato das enfermidades eram retomadas, bem como as que eram consideradas nocivas pelos médicos do século XIX. 101 Ibid. 102 Relatorio com que o vice-presidente, José Joaqim Teixeira Vieira Berford, entregou a presidência da Provincia do Maranhão ao Illm. e Exm. Snr. Commendador Antonio Candido da Cruz Machado. Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira, 1856, p. 07. 35 Quando ele considera que o governo não pode fiscalizar as medidas que a ciência determina como as corretas, assinala nas entrelinhas que a população é a responsável por esses surtos, retirando a responsabilidade do governo Provincial, o qual sempre assegura que o estado sanitário da província do Maranhão é bom: Na crize actual, o Governo, auxiliado dos recursos, de que a sciencia pode dispor e aconselha, tem, por todos os meios a seu alcance procurado remover as causas conhecidas, que por ventura possão comprometter a saude publica, e, na eventualidade, não esperada, do desenvolvimento de uma epidemia, tem dado todas as providencias para que não fosse surprehendido, antes de haver, como lhe cumpria, disposto a maneira de prover, com regularidade e promptidão, o tractamento dos doentes e das pessoas desvalidas. Felizmente, porem, o estado da saude publica, folgo de dizel-o, é satisfactorio nesta provincia, excepção feita de algumas febres intermitentes de mão caracter e de outras molestias, que nesta quadra do anno, como V. Excª. Sabe, grassão nesta capital. 103 Ainda no ano de 1855, houve uma epidemia de cólera e, mais uma vez, os médicos discordavam sobre a origem da moléstia e não sabiam como tratá-la. Então, a Praia da Ponta da Areia recebeu um lazareto de observação dos navios que não estariam contaminados. Na Ilha do Medo que já tinha casas para o fim de isolamento de doentes, se tornou lugar de tratamento para os acometidos de cólera: O cholera, fez estabelecer um lazareto de observação na Ponta d‟Areia, visto haver na ilha do Medo, para as quarentenas de rigor, um lazareto destinado ao tractamento dos cholericos, e consistindo em duas casas, uma das quaes era para armazem de mercadorias. O lazareto da Ponta d‟areia é, como lazareto de observação,destinado para os navios que não trazem molestia suspeita á bordo, e que, durante a travessia, a não tiverão. 104 Para tais construções na Ilha do Medo (casas e um poço) foram destinadas 3:100$000. Entretanto, as embarcações que chegavam ao local deparavam-se com condições precárias e contrárias às recomendações médicas: A obra foi feita por contracto e importou na quantia de 3:100$000 rs, inclusive o poço; mas, ou fosse pela falta de capacidade professional do contractante, ou porque, pelo preço, se não podesse fazer naquelle logar, attenta a distancia, em que fica desta cidade, casas melhores do que as que se construirão, ou mesmo porque se não considerasse então a 103 Ibid, p. 07. 104 Id. 36 construcção delas, se não como uma medida provisoria, o certo é que, com a chegar do vapor Paraense aqui, depois da noticia do aparecimento da epidemia no Pará, tendo elle de ir para a quarentena na ilha do Medo, apparecerão queixas, não só pela falta de acommodações das casas, como pelo pessimo local, em que, com preterição de todos os preceitos hygienicos, tinhão sido construídas. 105 É constante o uso de desculpas por parte dos governantes da província do Maranhão para justificar os porquês dos problemas epidêmicos. Por isso, usavam-se verbas emergenciais para acabar com a epidemia e anunciava-se o fim, Mas, no próximo ano sempre apareciam as mesmas doenças quando não grandes surtos e recomeçavam o ciclo. E, observando os orçamentos percebemos que não há grandes alterações de verbas destinadas à saúde pública: 105 Id. 37 RECEITA PROVINCIAL DO MARANHÃO (1850-1855) 01/07/1850 a 30/06/1851 01/07/1851 a 30/06/1852 01/07/1852 a 30/06/1853 01/07/1853 a 30/06/1854 01/07/1854 a 30/06/1855 Saúde e caridade pública 4:220$000 Aproximadam ente 15,58% da receita 2:300$000 Aproximadam ente 9,3% da receita 5:530$000 Aproximadam ente 21,25% da receita 5:530$000 Aproximadam ente 21,09% da receita 5:830$000 Aproximadament e 23,32% da receita Conselho de salubridade pública 1:800$000 Extinto Extinto Extinto Extinto Cirurgião-Mor 300$000 300$000 300$000 300$000 300$000 Agente ... o serviço da vaccina 120$000 Não consta Não consta Não consta Não consta Santa Casa de Misericórdia e creativo dos Lazaros 2:000$000 2:000$000 5:530$000 5:230$000 5:530$000 Receita total 270:836$795 246:754$380 260:181$410 262:186$050 250:000$000 Despesa Provincial 270:836$795 246:754$000 250:568$750 262:186$050 381:673$850 Fonte: Relatórios do presidente da Província do Maranhão (1850-1855). Maranhão, impresso na Typ. Const. de I. J. Ferreira. 38 3.2 – Cemitérios: solução ou problema? Como já exposto em capítulos anteriores, ao longo do século XIX houve ascensão do pensamento científico e da medicina, mas nem todos os sujeitos estavam dispostos a aceitar as novas regras de convivência que passaram a ser perpassadas pela noção de salubridade. Em São Luís, não foi diferente das outras capitais de província e também tentou impor normas aos habitantes. Uma dessas foi a mudança na prática de enterramentos das igrejas para os cemitérios. Como o campo médico ainda não era coeso, esses intelectuais defendiam ferrenhamente que as igrejas eram grandes repositórios de doenças devido ao acúmulo de corpos e dos gases que provinham da putrefação: Os médicos eram unanimes em apontar o perigo que corriam as pessoas que iam diariamente às igrejas carregadas de eflúvios metíficos produzidos, durante a noite, pelos mortos ali enterrados. Os eflúvios eram potencializados pelo suor e a respiração dos fieis e a queima de velas e incenso. [...] Para ajudar no processo de decomposição combriam-se os cadaveres com cal e, em seguida, jogava-se terra que era batida por pesadas calceiteiras. 106 Para que fosse efetivada, houve muitas tentativas para que ela pudesse vir a acontecer. Desde 1808 que já haviam leis versavando sobre o enterramento extramuro: No Brasil, a primeira tentativa de proibição de enterros nos templos foi através da Carta Régia nº 18, de 14 de janeiro de 1808. A ordem era clara, cidades populosas deveriam construir cemitérios extramuros. Esta lei foi esquecida, tornando-se letra morta. Nova tentativa de sua aplicação ocorreu em 1825, quando Dom Pedro I tratou pela decisão número 265, de 17 de novembro de 1825, da transferência do cemitério da matriz de Campos dos Goytacazes, na província do Rio de Janeiro, para fora da cidade conforme recomendava a Carta Régia 107 . A criação das Câmaras municipais no Império do Brasil em 1828 foi responsável por legislar sobre os enterramentos extramuros. Entretanto, apenas houve indicação que os cemitérios deveriam ser construídos pelas autoridades eclesiásticas locais: A lei imperial de 1º de outubro de 1828, que instituía as câmaras municipais do Império do Brasil, regulamentou entre outras questões sobre o sepultamento fora das igrejas. Neste primeiro momento, não 106 PACHECO, Alberto. Meio ambiente & cemitérios. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2012, p.76 107 SOUZA, Fabio William. Fronteiras póstumas: a morte e as distinções sociais no cemitério de Santo Antonio em Campo Grande. 2010. Dissertação (Mestrado em história) – Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, p.15 39 ocorreu uma proibição, apenas uma recomendação para instituição dos cemitérios fora dos templos e que o mesmo fosse edificado sob a tutela da autoridade eclesiástica local. Portanto, a lei não proibiu o enterro dentro das Igrejas apenas recomendou e permitiu que as Câmaras locais legislassem sobre o tema, cada vila ou cidade deveria adotar ou não a recomendação. Assim, de 1828 a 1862, seguiram outras leis imperiais tentando disciplinar o sepultamento dos mortos fora das Igrejas. 108 A mudança dos enterros para os cemitérios não foi fácil, houve resistência por parte da população devido à importância no imaginário social da época do local de repouso eterno estar ligado diretamente à noção de salvação. Houve conflitos reais, a exemplo da Cemiterada ocorrida em Salvador a 25 de outubro de 1836: “Nesta ocasião, a multidão destruiu o cemitério do Campo Santo que tinha sido inaugurado três dias antes [...] A revolta contou com a participação indiscriminada da população, e inclusive com a complacência da polícia local [...]”. 109 Paralelamente aos conflitos entre religião e ciência, desenvolveu uma questão mais forte em São Luís. Segundo Cesar Marques, o primeiro cemitério de São Luís estava localizado no Largo do Palácio, nos fundos da Santa Casa de Misericórdia: Como a todos os corpos se dão sepultura no estreito recinto do adro da matriz da mesma capital, sucedendo encontrar-se ao abrir das sepulturas vestígios de não estarem bem consumidos os cadáveres, aconselhava ele que à vista da presente epidemia de bexigas, em que se tem perdido infinitas pessoas, elegessem a um sitio e terreno próprio para o cemitério, e cerca-lo de madeira, ficando em estado de se poder benzer e habilitar para sepultura de católico. 110 Apesar das leis que tratavam da construção de cemitérios extramuros, os enterramentos continuaram sendo feitos no terreno doado pela Câmara Municipal à Santa Casa de Misericórdia “que era no fim da Rua Grande com frente para a Rua do Passeio [...] e finalmente no Cemitério da Misericórdia, até que, em sessão de 5. Agos.1804, deliberou a mesa da Santa Casa de Misericórdia a criação de um outro cemitério, elegendo-se logo o inspetor da obra”. 111 108 SOUZA, op. cit., p. 15. 109 KANTOR, Iris.
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