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Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano Revista do instituto aRqueológico, HistóRico e geogRáfico PeRnambucano - IAHGP Número 70. recife, 2017. iSSN 0103-1945 CAPA: retrato do moNSeNhor fraNciSco muNiz tavareS. Baltazar da câmara. Óleo S/ tela. 1961. acervo do iahGP. editoRes BruNo romero ferreira miraNda (ufrPe/iahGP) dirceu SalviaNo marqueS marroquim (dPPc/iahGP) assistente de edição lariSSa rodriGueS de meNezeS (dPPc/ufPe) conselHo editoRial aNtôNio JorGe de Siqueira (ufPe/iahGP) BruNo auGuSto dorNelaS câmara (uPe/iahGP) erNSt vaN deN BooGaart (iahGP) JoSé luiz mota meNezeS (iahGP) marcuS Joaquim maciel de carvalho (ufPe/iahGP) oNéSimo JerôNimo SaNtoS (iahGP) YoNY de Sá Barreto SamPaio (ufPe/iahGP) conselHo consultivo acácio catariNo (ufPB) aNa lúcia do NaScimeNto oliveira (ufrPe) aNtôNio Paulo rezeNde (ufPe) BrodwYN fiScher (uNiverSidade de chiGaGo) carla marY da Silva oliveira (ufPB) celSo de caStro (cPdoc/fGv) daNiel de Souza leão vieira (ufPe) GiSelda Brito Silva (ufrPe) JoSé maNuel SaNtoS Pérez (uNiverSidade de SalamaNca - eSPaNha) maria âNGela de faria Grillo (ufrPe) mariaNa de camPoS fraNçozo (uNiverSidade de leideN - PaíSeS BaixoS) rômulo luiz xavier do NaScimeNto (ufPe/iahGP) Scott JoSePh alleN (ufPe) SeveriNo viceNte da Silva (ufPe) SuelY creuSa cordeiro de almeida (ufrPe) welliNGtoN BarBoSa da Silva (ufrPe) Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – IAHGP Fundado em 1862 rua do hoSPício, 130, Boa viSta, recife-Pe, BraSil. ceP 50.080-060 55 81 3222-4952 @ iahgp.info@gmail.com Número 70 Recife, 2017 Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano diRetoRia do instituto aRqueológico, HistóRico e geogRáfico PeR- nambucano – iaHgP PaRa o biÊnio 2017-2019 PResidente: GeorGe Felix Cabral de Souza 1º vice-PResidente: MarGarida de oliveira Cantarelli 2º vice-PResidente: Silvio tavareS de aMoriM 3º vice-PResidente: Maria de betânia Correia de araújo 1º secRetáRio: reinaldo joSé Carneiro leão 2º secRetáRio: táCito luiz Cordeiro Galvão 1º tesouReiRo: YonY de Sá barreto SaMpaio 2º tesouReiRo: MauríCio barreto pedroSa Filho diRetoRia de PatRimônio: Fernando Guerra de Souza comissão de admissão de associados: Fernanda ivo neveS nilzardo Carneiro leão raMireS CotiaS teixeira comissão de Publicação e divulgação: bruno dornelaS CâMara bruno roMero Ferreira Miranda MarCelo CaSSeb Continentino comissão de HistóRia e geogRafia: CarloS bezerra CavalCanti MarCuS joaquiM MaCiel de Carvalho joSé luiz Mota MenezeS comissão de aRqueologia e etnogRafia: CieMa Mello antônio jorGe de Siqueira jaCqueS alberto ribeMboiM comissão de genealogia e HeRáldica: reinaldo joSé Carneiro leão táCito luiz Cordeiro Galvão raFael henriqueS piMentel de paula conselHo fiscal: luíS jorGe lira neto dirCeu Salviano MarqueS MarroquiM joSé raiMundo de oliveira verGolino suPlentes: GeorGe eMílio baStoS GonçalveS FranCiSCo bonato pereira da Silva táCito auGuSto MedeiroS assessoRia JuRídica: MarGarida de oliveira Cantarelli nilzardo Carneiro leão raMireS CotiaS teixeira assessoRia da gestão: alípio duranS assessoRia de PatRimônio e infRaestRutuRa: reinaldo joSé Carneiro leão (aCervo MuSeolóGiCo) táCito luiz Cordeiro Galvão (aCervo biblioGráFiCo e doCuMental) alberto neveS Salazar (inFraeStrutura) assessoRia Relações inteRnacionais: ana Maria penha braSil iSnard penha braSil júnior assessoRia de Relações institucionais: FranCiSCo Carneiro da Cunha luiz Cláudio aGuiar alexandre Furtado associados efetivos ativos e benemÉRitos do iaHgP em 2017 efetivos ativos alberto neveS Salazar alexandre Furtado de a. Correa alípio FernandeS duranS da Silva aluíSio joSé de vaSConCeloS xavier antônio jorGe Siqueira bruno auGuSto dornelaS CâMara bruno roMero Ferreira Miranda CarloS a. barreto CaMpelo de Melo CarloS bezerra CavalCanti CarMen CardoSo CieMa Silva de Mello dirCeu Salviano MarqueS MarroquiM diva GonSalveS de Mello Fernando Guerra de Souza FranCiSCo bonato pereira da Silva FranCiSCo Carneiro da Cunha FranCiSCo SaleS de albuquerque GeorGe eMílio baStoS GonçalveS GeorGe Félix Cabral de Souza Gilda Maria Whitaker verri harlan de albuquerque Gadelha Filho jaCqueS alberto ribeMboiM joão Mendonça de aMoriM Filho joSé raiMundo de oliveira verGolino liMério Moreira da roCha luíS jorGe lira neto luiz Cláudio aGuiar luiz de GonzaGa braGa barreto MarCelo CaSSeb Continentino MarCuS joaquiM MaCiel de Carvalho MarGarida de oliveira Cantarelli Maria de betânia Correia de araújo MarGot de queiroz Monteiro Maria CriStina CavalCanti de albuquerque Maria diGna peSSoa de queiroz Marieta borGeS linS e Silva MauríCio barreto pedroSa Filho nilSe FonteS de Souza nilzardo Carneiro leão paulo FrederiCo lobo Maranhão pedro nuneS Filho (in memoriam) raFael henriqueS piMentel de paula raMireS CotiaS teixeira rita de CáSSia araújo roberto CavalCanti de albuquerque roberto Mauro Cortez Motta robin de rooY rôMulo luíS xavier do naSCiMento roque de brito alveS Sílvio tavareS de aMoriM táCito auGuSto de MedeiroS valéria aGra de oliveira benemÉRitos ana Maria penha braSil Fernanda ivo neveS FranCiSCo tadeu barboSa alenCar GuStavo krauSe GonçalveS Sobrinho iSnard penha braSil júnior joSé luiz Mota MenezeS MarCo antônio de oliveira MaCiel MarCoS viníCiuS vilaça reinaldo Carneiro leão táCito luiz Cordeiro Galvão taneY queiroz e FariaS YonY de Sá barreto SaMpaio Sumário A REVOLUÇÃO BICENTENÁRIA - NOTA DOS EDITORES .............. 9 BICENTENÁRIO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão ........................................... 15 A CABALA MAÇÔNICA DO BRASIL: O PRIMEIRO GRANDE ORIENTE BRASILEIRO (BAHIA E PERNAMBUCO, 1802-1820) Pablo Antonio Iglesias Magalhães ............................................................ 73 BASÍLIO QUARESMA TORREÃO, O PATRIOTA NA BIBLIOTECA DO CURSO JURÍDICO Gilda Maria Whitaker Verri Lígia Santos da Silva Rodrigues ......................................................................................................... 139 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE PERNAMBUCO Margarida Cantarelli ............................................................................. 171 A LEI ORGÂNICA DE PERNAMBUCO NA ENCRUZILHADA DOS TEMPOS Marcelo Casseb Continentino ................................................................. 181 1817: A PRIMEIRA REPÚBLICA NO BRASIL Leonardo Dantas Silva ........................................................................... 199 O IAHGP E AS BATALHAS PELA MEMÓRIA DA REVOLUÇÃO REPUBLICANA DE PERNAMBUCO EM 1817 George F. Cabral de Souza ..................................................................... 233 REVOLUÇÃO REPUBLICANA DE PERNAMBUCO EM 1817: BURGUESIA E MAÇONARIA VERSUS ARISTOCRACIA Reinaldo Carneiro Leão ......................................................................... 251 ECOS DA REPÚBLICA DE PERNAMBUCO (1817) Fernando Guerra de Souza ................................................................... 259 O PRESOS NA REVOLUÇÃO DE 1817: UM BALANÇO EXAUSTIVO Fernanda Ivo Neves ................................................................................ 265 PADRE VIRGÍNIO RODRIGUES CAMPELO, UM PERNAMBUCANO REVOLUCIONÁRIO DE 1817 NA PARAÍBA DO NORTE: BREVE ESBOÇO BIOGRÁFICO Reinaldo Carneiro Leão ......................................................................... 301 EXPOSIÇÃO DE FATOS HISTÓRICOS QUE COMPROVAM A PRIORIDADE DE PERNAMBUCO, NA INDEPENDÊNCIA E LIBERDADE NACIONAL José Domingues Codeceira ..................................................................... 309 A MAÇONARIA E A REVOLUÇÃO REPUBLICANA DE 1817 Mário Melo ............................................................................................. 325 O PRIMEIRO CENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO REPUBLICANA DE PERNAMBUCO EM 1817 ..................................................................369 A BANDEIRA DE PERNAMBUCO Mário Melo .............................................................................................385 O CRONISTA DA REVOLUÇÃO DE 1817 Manuel de Oliveira Lima ....................................................................... 389 OS MÁRTIRES ...................................................................................393 DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DO BRASIL ............................421 POLÍTICA EDITORIAL E NORMAS GERAIS PARA A APRESENTAÇÃO DE TEXTOS ......................................................................................451 A REVOLUÇÃO BICENTENÁRIA Nota doS editoreS “Rompeu no horizonte o dia 6 de março de 1817, dia fulgurante que vinha abrir uma nova série de prosperidades ao Brasil; e Pernambuco, firme em suas convicções, é a primeira província que denodadamente dá o grito de INDEPENDÊNCIA!” Pe. Lino do Monte Carmelo Luna O ano de 2017 é marcado pela passagem do Bicentenário da Re- volução Republicana de Pernambuco em 1817, o mais importante movimento precursor da Independência do Brasil. Como guardião da memória da Revolução de 1817, o IAHGP tem se empenhado em tornar a insurgência republicana pernambucana mais conhecida pe- los brasileiros e, em particular, pelos pernambucanos. É mister salientar que, a despeito de sua importância e da magni- tude dos feitos aqui ocorridos, 1817 foi sistematicamente posta nas sombras pela historiografia oficial brasileira. Num primeiro momento, pelos historiadores da corte do Rio de Janeiro. Eles jamais ousariam afrontar o poder ao qual serviam recobrando a memória do levante republicano. Os áulicos cortesãos se empenharam mesmo em des- qualificar a Revolução para apequená-la e condená-la ao olvido. A fundação do IAHGP em 1862 foi uma reação contra esse crime de lesa-memória. Os pernambucanos precisavam contar a história dos feitos de 1817 – e de outros momentos da história do Brasil – a partir de uma perspectiva que escapasse às estreitas balizas estabelecidas na corte. Chegado o regime republicano de 1889, a figura escolhida para herói nacional foi produzida a partir dos acontecimentos transcor- ridos em Vila Rica, Minas Gerais, em 1789. O mártir único e cris- Bruno Romero Ferreira Miranda / Dirceu Marroquim / George F. Cabral de Souza10 tificado do movimento que nunca estalou, adrede escolhido pelos vencedores do 15 de novembro, sobrepujou todos aqueles que em Pernambuco ousaram transformar o sonho da liberdade em realidade concreta, depondo o governador português, proclamando a indepen- dência com um regime republicano e pondo em vigor uma proto- -constituição feita por brasileiros, entre outras providências pioneiras. Honrando as tradições históricas pernambucanas e fazendo valer os objetivos que nortearam sua fundação, o IAHGP se empenha du- rante as celebrações do bicentenário em divulgar a história de 1817 e em propor uma comemoração reflexiva sobre o ideário republicano do movimento, uma discussão que reputamos essencial nos dias con- turbados em que vivemos. Nossos antecessores realizaram uma im- ponente rememoração da insurgência pernambucana em 1917, por ocasião do centenário do movimento. Agora, no bicentenário, nos esforçamos com afinco para reverenciar a memória de todas as pes- soas que em 1817 enfrentaram as violências do despotismo na defesa de uma sociedade mais justa, livre e progressista, chegando inclusive ao sacrifício das próprias vidas. Nas celebrações do bicentenário, várias atividades começaram a ser realizadas desde o ano passado e se estenderão até o final de 2018. O IAHGP integra a Comissão das Comemorações constituída e dirigida pela Secretaria da Casa Civil do Governo do Estado de Per- nambuco ao lado de outras instituições como a Academia Pernambu- cana de Letras e o Museu da Cidade do Recife/Forte da Cinco Pontas. O Governo do Estado de Pernambuco, mediante a lei 15.877, de 12 de julho de 2016, concedeu subvenção ao IAHGP para a realização de ações de divulgação e de salvaguarda dos bens culturais relativos à Revolução. Parte do acervo restaurado está disponível para a frui- ção do público no Museu da Cidade do Recife. Em parceria com esta instituição, o IAHGP realiza uma grande exposição que permanecerá em cartaz até março de 2018. Outra ação importante é a aposição de painéis de azulejos nos locais onde ocorreram os principais lances da Revolução Pernambu- cana. São ao todo dez painéis, dos quais, oito se situam no Recife, um em Olinda e um em Salvador. Esta iniciativa contou com o apoio da Grande Loja Maçônica de Pernambuco. Uma segunda exposição com imagens das peças do museu e reproduções de documentos Notas dos Editores 11 percorrerá várias cidades do interior numa parceria com a Secretaria de Educação e com o SESC. Vários dos associados do IAHGP têm rea- lizado palestras para diferentes públicos em todo o estado enfocando a Revolução de 1817. O IAHGP contribuiu ainda na produção do filme “1817, a Revolução esquecida”, dirigido por Tizuka Yamazaki e Ricardo Favilla para veiculação nacional na TV Escola (Ministério da Educação). A Revista do IAHGP não poderia deixar de também dedicar um número especial à Revolução de 1817. O dossiê comemorativo foi organizado por George F. Cabral de Souza. O presente volume reúne artigos, ensaios, uma seleta de textos publicados nos séculos XIX e XX, e um documento histórico inédito, tudo relativo ao movimento republicano. O número 70 da Revista se inicia com o texto de Gon- çalo de Barros Carvalho e Mello Mourão intitulado “Bicentenário da Diplomacia Brasileira”. Nele o autor ressalta o pioneirismo pernam- bucano com o envio de Antônio Gonçalves da Cruz Cabugá como embaixador da República de Pernambuco nos Estados Unidos da América e também as repercussões externas do movimento. Pablo Magalhães, mediante uso de documentação inédita, esquadrinha os primórdios da maçonaria no Brasil e comprova a existência de um Grande Oriente Brasileiro que articulava os pedreiros-livres de Per- nambuco e Bahia, antecedendo o grêmio formado no Rio de Janeiro. Gilda Verri e Lígia Santos da Silva Rodrigues analisam a atuação de Basílio Quaresma Torreão, participante dos movimentos de 1817 e 1824, como primeiro bibliotecário do Curso Jurídico, ressaltando a importância da circulação de livros em Pernambuco como combus- tível para as insurgências libertárias do primeiro quartel do século XIX. Margarida Cantarelli dedica seu texto ao estudo da Lei Orgânica da República de Pernambuco, ressaltando a presença das noções de soberania popular e democracia constantes nos seus artigos. A Lei Orgânica também é o foco da abordagem do texto de Marcelo Cas- seb. O autor, com base na história conceitual de Reinhart Koselleck, defende que a “Lei Orgânica de 1817” aproxima-se semanticamente do moderno conceito de “Constituição”. O contexto da eclosão da Revolução Pernambucana de 1817, seus desdobramentos e seu lega- do são trabalhados por Leonardo Dantas Silva em seu artigo, no qual recorre à fontes e testemunhos de época. George F. Cabral de Souza Bruno Romero Ferreira Miranda / Dirceu Marroquim / George F. Cabral de Souza12 discorre sobre a memória da Revolução no período compreendido entre 1840 e 1917 e sobre o papel do IAHGP como guardião e de- fensor da história do movimento. Reinaldo Carneiro Leão analisa a atuação dos principais grupos sociais e políticos envolvidos no mo- vimento, e as motivações que lastrearam seus atos. Fernando Guerra de Souza se debruça sobre o contexto histórico da Revolução e rea- firma a necessidade premente de torná-la mais conhecida e celebrada pelo povo brasileiro. Fernanda Ivo Neves, mediante o cotejamento de várias listas de acusados, presos, executados e indultados, realiza o mais exaustivo levantamento já feito dos participantes do movimento de 1817. Na sequência, Reinaldo Carneiro Leão traça um breve perfil biográfico do Padre Virgínio Rodrigues Campelo, participante da Re- volução de 1817 de quem publicamos um “Requerimento solicitando a restituição de sua liberdade” feito a Dom João VI em 1820. O docu- mento pertence ao acervo da BibliotecaNacional do Rio de Janeiro e não integrou a Coleção de Documentos Históricos publicada por aquela instituição. A transcrição foi realizada por Reinaldo Carneiro Leão e George F. Cabral de Souza. Aproveitamos a ocasião festiva para republicar alguns dos mais importantes textos já estampados na Revista do IAHGP sobre 1817. A seleta se inicia com a “Exposição de fatos históricos que com- provam a prioridade de Pernambuco, na independência e liberdade nacional”, de autoria de José Domingues Codeceira e publicada em 1890. De Mário Melo coletamos três contribuições: “A Maçonaria e a Revolução republicana de 1817” de 1913; “O primeiro centenário da Revolução Republicana de Pernambuco em 1817” e “A bandeira de Pernambuco”, estes dois últimos publicados em 1917. Neste mesmo ano Manuel de Oliveira Lima publicou “O cronista da Revolução de 1817”, sobre o Monsenhor Francisco Muniz Tavares. Fechando a se- leta, sob o título “Os Mártires”, está o conjunto de contribuições de vários sócios efetivos e correspondentes sobre os participantes da Revolução que foram executados. Renovamos nossos sinceros agradecimentos a todos que nos têm apoiado na realização dos atos comemorativos do Bicentenário de 1817 e também à Companhia Editora de Pernambuco, que tem regu- larmente cumprido o preceito da Constituição Estadual que garante a impressão da Revista do IAHGP. Não podemos deixar de destacar Notas dos Editores 13 o importante papel que a CEPE tem desempenhado nas celebrações promovendo a reedição da História da Revolução de Pernambuco em 1817, de autoria de Francisco Muniz Tavares, primeiro presidente do IAHGP, para além de toda uma série de obras relativas ao nosso movimento republicano. Por fim agradecemos a todos os autores que enviaram suas contribuições e desejamos uma boa leitura. Recife, dezembro de 2017. Bruno Romero Ferreira Miranda Dirceu Marroquim George F. Cabral de Souza A CABALA MAÇÔNICA DO BRASIL: O PRIMEIRO GRANDE ORIENTE BRASILEIRO (BAHIA E PERNAMBUCO, 1802-1820) Pablo Antonio Iglesias Magalhães1 RESUMO: O presente artigo tem como objetivo investigar a organização do Grande Oriente Brasileiro (1813-1817) na capitania da Bahia. Ignorado pela historiografia, que só reconhece o segundo Grande Oriente Brasileiro formado no Rio de Janeiro a partir de 1822, o primeiro Grande Oriente do Brasileiro foi instalado na cidade de Salvador e exerceu significativa influên- cia nas estruturas políticas e culturais da colônia. Por iniciativa de Hipólito da Costa foi impresso o Compendio das Instrucções Maçonicas para uso do G:. O:. B:. (c. 1814), utilizado pelas lojas de pedreiros-livres da Bahia e de Pernambuco que, aqui revelado pela primeira vez, constitui-se na principal prova material da existência daquela Obediência maçônica, cujos associados podem ser identificados a partir de três documentos negligenciados pela historiografia maçônica e acadêmica. ABSTRACT: This paper investigates the organization of the Grand Orient of Brazil (1813-1817) in the captaincy of Bahia. Ignored by historiography, which only recognizes the second Grand Orient of Brazil, formed in Rio de Janeiro from 1822, the first Grand Orient of Brazil was installed in the city of Salvador and exerted significant influence on the political and cultural struc- tures of the colony. On the initiative of Hipólito da Costa, the Compendio das Instrucções Maçonicas para uso do G:. O:. B:. (C. 1814) was printed and used by the freemasonry lodges of Bahia and Pernambuco. Here revealed for the first time, the Compendio constitutes the main material evidence of the existence of that Masonic Obedience whose members can be identified from three documents which were neglected by Masonic and academic his- toriography. KEYWORDS: Masonry; Hipólito José da Costa; Pernambuco Revolution of 1817. 1 Sócio Efetivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia – IGHB. Doutor em História pela Universidade Federal da Bahia. Professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia. 74 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 PALAVRAS-CHAVE: Maçonaria; Hipólito José da Costa; Revolução Pernam- bucana de 1817. Em 1827, José da Silva Lisboa, então Visconde de Cairú, publicou no Rio de Janeiro a Historia das principaes successos politicos do im- perio do Brasil, descrevendo no capítulo VIII, Revolução na Cidade da Bahia, o que ocorreu após as notícias da Revolução do Porto chegarem a Salvador: Tendo as Praças do Porto e Lisboa activo Commercio com a da Bahia, as noticias de Revolução de Portugal chegarão em breve a esta Cidade, com as Proclama- ções e papelladas incendiarias do Douro e Téjo. Já os espiritos de seus habitantes se achavão exasperados com a nova do Despacho que ElRei havia feito em fim de Dezembro de 1820, nomeando o Conde de Villa-Flor para Governador da Capitania. A Cabala Maçonica se precipitou a fazer (quanto antes) a explosão da Cratéra Revolucionaria da predo- minante sociedade correspondente do Grande Oriente. Os Emissarios da antiga Metropole não per- derão tempo em pôr no seu partido a Tropa do Paiz. [...] esta Praça, sendo quasi huma Colonia do Minho, tomou vivo interesse na Revolução do Porto; [...]. Os naturaes da Bahia seguirão o impulso dado pe- los emissarios da Cabala Maçonica de Lisboa. Poserão-se em movimento os membros mais ac- tivos das Sociedades Secretas, assaz notorios na chronica escandalosa do Paiz, cujos nomes ora he desnecessario individuar, por honra de suas pessoas; He todavia impossivel não declarar alguns dos Corifêos, que forão a Causa de tantas desgraças da Nação Brasileira, e da propria Patria local, para execração da posteridade e são o Tenente Coronel Manoel Pedro de Freitas Guimarães, o Desembar- gador Luiz Manoel de Moura Cabral, e o Cirurgião Cypriano José Barata. [...] A selecta Mestrança dos 75 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) Pedreiros Livres em a noite de 9 de Fevereiro do corrente anno accordou no seu Club Jacobinico fazer acclamar a Constituição de Portugal pelo Corpo de Artilheria na Praça do Trem, contigua ao Forte de S. Pedro. Os principaes Chefes da Tropa da Guarnição da Praça estavão de mãos dadas com o dito Tenente Coronel Manoel Pedro, Commandante do Corpo de Artilheria (LISBOA, 1827:43-46). O parágrafo acima revela a atuação das sociedades maçônicas da Bahia no início do processo de ruptura política que teve lugar na Bahia, após a Revolução do Porto. O Visconde de Cairú destaca a existência de um grupo de influentes indivíduos, civis e militares, que se articularam no seio da maçonaria em Salvador, entre 1821 e 1822. É notório que o referido cronista tornou-se um ferrenho inimigo das sociedades maçônicas, apesar de membros da sua família, incluindo seu filho Bento da Silva Lisboa, ter alcançado elevados cargos no seio da maçonaria brasileira, sendo Grão Mestre do Grande Orien- te Brasileiro (do Passeio), já sob a Ordem Imperial (MAGALHÃES, 2013:789-824).2 Uma questão negligenciada tanto pela historiografia política, quan- to pela historiografia maçônica, em particular, é a existência de uma influente associação de pedreiros livres na capitania da Bahia na se- gunda década do século XIX, organizada sob o Grande Oriente Bra- sileiro (G. O. B.). Nessa questão, a historiografia sobre a maçonaria brasileira, que remonta aos Annaes Maçônicos Fluminenses (1832), apresenta diversos problemas, sob qualquer aspecto. A referida obra, que mais tende a esconder do que a apresentar os fatos e persona- gens ligados à maçonaria brasílica, foi escrita por Januário da Cunha Barbosa (Ir:. Kant), à época pedreiro livre que alcançara o grau de Cavaleiro Rosa Cruz (Grau 18o). Impresso em 1832, em seguida à criação dos dois Grandes Orientes no Rio de Janeiro (1831) ao tempo em que, na Bahia, ocorriam movimentos federalistas (1831-1833),nos 2 É possível que José da Silva Lisboa, suspeito de atuar na Conjuração Baiana de 1798, tenha sido pedreiro-livre até por volta dos 50 anos, quando sua indisposição contra as sociedades maçônicas se acentuou, levando-o, em 1823, a publicar o Atalaia, declarado periódico anti-maçom. 76 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 quais atuaram sociedades de pedreiros-livres, o livro buscou mini- mizar a presença histórica das lojas maçônicas em outras capitanias, observando apenas a existência da maçonaria fluminense. É possível que a razão desse silêncio historiográfico sobre a exis- tência (e primazia) de um Grande Oriente Brasileiro, na Bahia colo- nial, esteja na própria instabilidade política sob o período regencial. Os Annaes Maçônicos Fluminenses contém um Quadro Histórico da Maçonaria no Rio de Janeiro, que dividiu a história da presença da- quelas sociedades em três épocas, sendo a primeira compreendendo os anos 1800-1805, a segunda 1805-1822 e a terceira 1823- 1832. Para a primeira fase, o autor afirma que os maçons do Rio de Janeiro, ao buscar um tratado com o Grande Oriente Lusitano em 1804, travaram contato com os maçons da Bahia e nada mais foi registrado sobre aquele grupo. Nota-se, ainda, que a divisão de épocas sequer consi- derou o Alvará de 1818, que extinguiu, pelo menos na forma da lei, as sociedades secretas (ou iniciáticas) no Brasil, já então elevado a Reino Unido a Portugal e Algarves. Isso indica que o referido Alvará, feito sob o ministério do implacável inimigo da maçonaria Tomás Antonio de Vila Nova Portugal, não teve sobre as lojas fluminenses o mesmo impacto que teve sobre as lojas da Bahia e de Pernambuco. Dezesseis anos depois da publicação dos Annaes, o cirurgião e pedreiro livre Manoel Joaquim de Menezes (1789-1872) retomou os estudos sobre a história da maçonaria no Brasil. Menezes (Ir:. Penn), um dos autores da Constituição do G.O.B de 1839, escrevera o Es- boço histórico da maçonaria no Brasil, Rio de Janeiro, 1848, com 20 páginas. Esse texto foi ampliado na Exposição histórica da maçona- ria no Brasil, particularmente na província do Rio de Janeiro, em re- lação com a independência e integridade do Império, Rio de Janeiro, 1857, contando 67 páginas. Nesse segundo livro, Menezes buscava demonstrar que a Ordem imperial brasileira devia à maçonaria o Dia do Fico de 9 de Janeiro, o título de Defensor Perpétuo, o 7 de Se- tembro e a proclamação do Imperador D. Pedro. Mesmo em tempos de estabilidade política interna do Império, e quando a maçonaria baiana havia retomado seu crescimento de associados, sua expansão geográfica e importância política, os historiadores continuaram a ne- gligenciar a história das lojas maçônicas que não estavam inseridas na Corte Fluminense (MENESES, 1857). 77 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) Em 1895, já sob a República, Alfredo Paiva publicou no Rio de Janeiro uma História da Maçonaria que, concernente à maçonaria na Bahia, limita-se a repetir trechos do texto publicado pela Astrea (1847), que é a cópia de um capítulo do Almanak do Rit:. Esc:. Ant:. e Acc:. em Portugal para o Ano de 5845, de que adiante se tratará. Na segunda metade do século XX, em 1968, Kurt Prober (cujo pseudônimo era Isa Ch’an) em nada avançou nas investigações acer- ca de um Grande Oriente Brasileiro criado na Bahia em 1813, mas admite acertadamente que “a maçonaria brasileira (sic) dos tempos primevos, por força das circunstâncias, tomou uma feição puramente política” (CH’AN, 1968:35 e 37).3 José Castellani, também historiador da maçonaria brasileira, afirma que as três lojas maçônicas da Ba- hia colonial foram “tomadas por muitos fantasistas como um Grande Oriente Brasileiro”, afirmando em seguida tratar-se de uma “Obediên- cia efêmera e sem suporte legal” (CASTELLANI, 1993:29 e 31). Ao in- vés de buscar fontes documentais mais sólidas, Castellani continuou a minimizar ou negar a existência do Grande Oriente que atuou no período colonial. Em 1990, Antonio Henrique de Oliveira Marques, historiador da maçonaria portuguesa, afirmou que aquele primeiro Grande Oriente Brasileiro, que prefigurou a autonomia das lojas brasílicas em rela- ção ao Grande Oriente Lusitano, teria sido fundado em 1813, restrito a quatro lojas, três na Bahia e uma no Rio de Janeiro (MARQUES, 1990:109). Oliveira Marques, não obstante, em nada avançou sobre a existência do primeiro Grande Oriente Brasileiro e tampouco teve notícias de quem pertencera aos seus quadros. As incertezas sobre aquela instituição perduram tanto que Alexandre Mansur Barata, em 2006, afirmou que “caso esse centro de poder maçônico tenha exis- tido, ele possuiu vida breve, visto que em 1815 suas atividades já se encontravam encerradas” (BARATA, 2006:78). Assim, a historiografia luso-brasileira ignorou completamente a existência de uma das insti- tuições mais influentes nos últimos anos do Brasil colonial. As primeiras tentativas de investigar os primórdios da maçonaria na Bahia focaram apenas a hipotética existência da Loja Cavalheiros da Luz. Foi Francisco Borges de Barros, no cargo de Diretor do Ar- 3 Esse livro não foi posto à venda, mas distribuído entre iniciados na maçonaria. 78 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 quivo Público do Estado da Bahia, sendo também Grão-Mestre da Grande Loja da Bahia (1928), quem apresentou os primeiros estudos sobre a existência da Loja Cavalheiros da Luz, que teria sido criada em Salvador por volta de 1798. Essa loja teria sido o suposto centro de articulação da Conjuração Baiana e entre seus associados estariam os baianos José da Silva Lisboa, Francisco Agostinho Gomes, Cipria- no Barata, Paulo José de Azevedo e Brito e José Borges de Barros, sendo este último ancestral do próprio historiador. Francisco Borges de Barros não indicou onde encontrou alguns documentos que uti- lizou ao longo de artigos publicados nos Annaes do Arquivo Públi- co do Estado da Bahia e no livro História da Maçonaria na Bahia (1932). Por isso não foi possível, até o presente, confirmar ou negar a existência da Loja Cavalheiros da Luz. Francisco Borges de Barros, à época alinhado ao projeto de cisão da maçonaria brasileira enca- beçado por Mário Behring (1927), nada diz da existência do Grande Oriente Brasil na Bahia colonial. Celso Jaloto Ávila, no livro A Maçonaria na Bahia e sua História (2000), foi o único pesquisador que tentou apresentar um esboço his- tórico sobre o primeiro Grande Oriente Brasileiro, sem oferecer aos pesquisadores, contudo, qualquer indicação de fonte que fundamen- tasse suas afirmações. Na prática, as dificuldades em compreender a real dimensão da maçonaria colonial e provincial limitaram e até comprometeram o conhecimento mais amplo não só da História da maçonaria baiana, mas da própria História da Bahia. Segundo Luís Henrique Dias Tavares, Nestes, como em outros autores, sem indicação de fontes, comportamento que se repete nos historiado- res da maçonaria brasileira, a começar pelo bem in- formado Alexandre José de Mello Morais (foi maçom que alcançou o mais alto grau), continuando-se em Mário Behring e nos mais recentes Nicola Aslan e José Castellani, apesar do valor dos seus trabalhos. As dificuldades que encontramos repousam nas mu- ralhas de segredos e proibições da maçonaria (TAVA- RES, 2005a:37). 79 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) Na investigação sobre a existência do primeiro Grande Oriente Brasileiro, a historiografia fracassou tanto como uma História da ma- çonaria em si, quanto em inserir a maçonaria na História do Brasil. Não é exagero observar que a História da Maçonaria no Brasil é importante demais para permanecer restrita apenasaos historiadores maçons. Os historiadores acadêmicos podem oferecer novas infor- mações e leituras sobre a influência do(s) Grande(s) Oriente(s) na História do Brasil. No geral, os historiadores maçons brasileiros, a exemplo de Francisco Borges de Barros, Mario Mello e Kurt Prober empregaram parte considerável dos seus trabalhos a questões refe- rentes à primazia das lojas maçônicas no Brasil, discutindo se foram criadas no Rio de Janeiro, em Salvador ou no Recife. Essa, contudo, parece uma questão de menor valor. A importância de estudar as pri- mitivas lojas maçônicas existentes desde o período colonial consiste em compreender as conexões políticas dessas influentes sociedades no contexto da década que antecedeu a Independência. O presente artigo tem como objetivo, portanto, apresentar as ori- gens das primeiras lojas maçônicas em Salvador e o estabelecimento do primeiro Grande Oriente Brasileiro (1813), cuja existência, confor- me demonstrado acima, é constantemente posto em dúvida. Também será discutida a relação entre o G.O.B. e a Revolução Pernambucana de 1817. Além disso, diferente da prudência de José Silva Lisboa em 1827, é necessário, ao presente, identificar e revelar os indivíduos que atuaram na maçonaria baiana antes de 1822, visto que a maior parte deles exerceu profunda influência na vida política e cultural da capitania da Bahia entre 1802 e 1820. 80 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 aS PrimeiraS loJaS Na caPitaNia da Bahia (1802-1813) Há notícias de que desde fins do século XVIII os pedreiros-livres circulavam pela Bahia. O cronista mineiro Joaquim Felício dos Santos, em 1868, afirmou que na referida capitania funcionava um importan- te centro de conluios políticos concebidos no seio da maçonaria: Não sabemos como a maçonaria se introduzira no Brasil; é certo, porém, que no meiado do seculo pas- sado já funccionava na Bahia o grande oriente ma- çonico, e é um facto, que se não pode negar, a sua importante cooperação no trabalho lento, occulto, persistente, para a nossa independencia. A inconfi- dencia de Minas tinha sido dirigida pela maçonaria. Tiradentes e quasi todos os conjurados erão pedrei- ros livres. Quando Tiradentes foi removido da Bahia, trazia instrucções secretas da maçonaria para os pa- triotas de Minas (SANTOS, 1869:251-255). A afirmação de Joaquim Felício dos Santos carece de comprovação documental e, portanto, torna-se temerária de ser aceita. O cronista Emílio Maia, filho de Joaquim José da Silva Maia, escrevendo nos anos de 1830, confirma que na “Cidade da Bahia se estabeleceram lojas maçônicas desde os fins do século passado”.4 Sua fonte seria seu próprio pai, comerciante portuense estabelecido no Recôncavo baiano desde 1795, que se tornou Venerável da Loja Humanidade, de que se falará adiante. Atualmente, não obstante, a documentação comprova que pedreiros-livres se articulavam politicamente em Sal- vador antes de 1798, a exemplo do bahiense José Borges de Barros, que se iniciou na maçonaria na Ilha da Madeira e estivera na mira das polícias de Portugal e da Inglaterra entre 1799 e 1803 (MAGALHÃES, 2017:01-48). Não é uma tarefa fácil investigar as sociedades iniciáticas na Amé- 4 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro. Lata 345, pasta 17. Es- tudo Sétimo. Agradeço a Maiara Alves do Carmo por ter, generosamente, trans- crito e cedido esse documento. 81 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) rica portuguesa, particularmente a maçonaria, em decorrência de dois fatores. Primeiro, obviamente, por se tratar de associações onde apenas os iniciados têm acesso aos rituais e à circulação de informa- ções. Segundo, porque não existe significativa documentação acerca das primeiras lojas maçônicas no Brasil, na transição entre o século XVIII e o XIX. Eventualmente, os pedreiros-livres foram arrolados em devassas de conjurações e inconfidências em Portugal, Brasil e Ilhas Atlânticas. A maçonaria na Capitania da Bahia aparece pela primeira vez, como ente político, no episódio da Conjuração Baiana (1798) e em decorrência de supostamente ter sido organizada pela Loja Ca- valheiros da Luz, da qual praticamente nada pode ser afirmado com fundamentos documentais. Diante do silêncio dos primeiros historiadores e da escassez de documentos, como então é possível recuperar elementos e documen- tos da História da maçonaria colonial? Acima foi exposto que desde a criação do Grande Oriente Brasileiro no Rio de Janeiro (1822, refun- dado em 1832), os historiadores da maçonaria oitocentista, oriundos do centro-sul do país, particularmente do Rio de Janeiro, negligencia- ram e omitiram a existência de outras lojas e, até mesmo, da primeira Obediência Maçônica, constituída ainda na América portuguesa. O que foi possível apurar dos primeiros tempos da presença da maçonaria na Bahia deve-se ao historiador e pedreiro-livre por- tuguês Rodrigo José de Lima Felner (1809-1877), que, em parceria com e a Antônio Nunes dos Reis, imprimiu em 1846 o «Progressos da Maçonaria na Bahia» inserto no Almanak do Rit:. Esc:. Ant:. e Acc:. em Portugal para o Ano de 5846, entre as páginas 66-71 ([FELNER], 1846). Completamente desconhecidos pelos pesquisadores brasilei- ros, o «Progressos da Maçonaria na Bahia» é relevante na medida em que apresenta informações precisas sobre a criação das três primeiras lojas maçônicas estabelecidas na Bahia entre 1802 e 1813, bem como do Grande Oriente Brasileiro. As informações apresentadas por Lima Felner não puderam mais ser negligenciadas pelos cronistas maçons de meados do século XIX. Parte delas foram reproduzidas, com mui- tas omissões propositais, no Astrea: Almanak Maçônico, impresso no Rio de Janeiro em 1847. O Astréa, diga-se que não era uma publica- ção oficial de nenhum dos dois Grandes Oriente fluminenses. A fonte de Lima Felner foi o pedreiro-livre baiano José Mendes 82 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 da Costa Coelho, que enviou para o cronista português uma carta e dois impressos, possivelmente de sua autoria. Um dos impressos pode ter sido o Discurso recitado no 3o dia do sétimo mez do anno 1837 da V. L. Cap. Humanidade em o acto da posse do presidente, do qual infelizmente não possível encontrar nenhum exemplar, mas está referenciado por Sacramento Blake. Pouco se conhece sobre José Mendes da Costa Coelho, mas era natural da Bahia e serviu na Guerra de Independência em 1822, sendo “condecorado com a medalha da campanha da independência em sua província, na qual serviu o cargo de official da secretaria do governo provisório”.5 Traduziu em 1826 Entretenimentos de Phocion sobre a relação do moral com a política, traduzidos do grego em francez pelo abbade de Mably, do qual existe um exemplar na Biblioteca do Itamaraty. Foi sua correspondência com Felner que preservou a história das primeiras lojas maçônicas na Bahia. De acordo com o «Progressos da Maçonaria na Bahia», a primei- ra associação maçônica em Salvador foi a Loja Virtude e Razão, no Rito Francês (ou Moderno), que começou a operar a 5 de julho de 1802 [15/04/5802 A:. V:. L:.]6. Observaria a Constituição do Grande Oriente Lusitano (1804), mas não era subordinada a ele. A crer 5 Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Testamentos/Salvador/ Livro 43, fl. 85-89v. Natural de Salvador, batizado na freguesia de Nossa Senho- ra da Conceição da Praia, filho do capitão Francisco Mendes da Costa e de sua mulher Paula Maria do Carmo. Foi casado em primeiras núpcias com sua prima Thereza Claudia de Jesus, com que teve nove filhos. Após enviuvar, casou-se em segundas núpcias com outra prima, Anna Joaquina de Jesus. Faleceu no Engenho das Pedras, Vila da Capela, Sergipe. A 11 de janeiro de 1864 ocorreu abertura do seu testamento (SACRAMENTO BLAKE, 1970:v. 5, 97-98; TITARA, 1835: v. 4, 42). A Loja Acácia Cachoeirense, sendo filiada ao GOB [no Rio de Janeiro], no Rito Escocês, sob o N° 90, foi regularizada em 16/abr/1849, pelo Delega- do do GOB, na Bahia, José Mendes da Costa Coelho. Segundo Rodrigo Felner (1846:67), “O Resp:. Ir:., José Mendes da Costa Coelho, gr:. 33 Grande Digna- tario honorario do Gr:. Or:. do Brasil [no Rio de Janeiro], e Pres.: do Gr:. Cap:. Bahiense, nos favoreceu com uma carta acompanhada de dois impressos, de cujo conteúdo passaremos a dar conhecimento”. Dos dois impressos, Blake cita um. Atualmente não se conhece nenhum exemplar dos dois, mas é possível indicar que José Mendes da Costa Coelho foi o primeiro cronista da maçonaria na Bahia. 6 O Astréa: Almanak Maçonico para 5847 oferece a data de fundação das lojas no calendário gregoriano. O Almanak de Lima Felner indica a data de acordo com o calendário maçônico. 83 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) nas informações de Emílio Maia, a Virtude e Razão “possuída de espírito de independência democrática, compunha-se de proprie- tários, fazendeiros e alguns empregados”. Não há indicações de quem teria sido o seu venerável, mas não deve ser coincidência que essa loja tenha surgido em seguida ao retorno de Francisco Agostinho Gomes, que, após livrar-se das suspeitas de participar da Conjuração de 1798, voltou de Lisboa apadrinhado por D. Ro- drigo de Sousa Coutinho. As informações apresentadas no «Progressos da Maçonaria na Bahia» de Felner está em perfeita sincronia cronológica com as notícias apresentadas pelos viajantes que estiveram na Bahia entre 1802 e 1813. Em alinhamento ao que Felner afirmara, a existên- cia da Virtude e Razão foi registrada também pelo contrabandista Thomas Lindley, quando esteve preso em Salvador em 1803. Pro- prietário do brigue Packet, cujo diário de viagem foi impresso em Londres, em 1805, relatando sua permanência em Porto Seguro e Salvador entre julho de 1802 e agosto de 1803, Lindley afirma que “Os maçons da Bahia ousaram ir além dos limites de sua cautela habitual, reunindo-se em assembleia, na catedral, a fim de cumprir os últimos deveres de humanidade, no enterro de um irmão ex- -capitão de marinha, vítima dessa lastimável doença, tuberculose, na flor da idade (LINDLEY, 1805:128).” A pesquisa no Arquivo da Cúria, em Salvador, permitiu identificar quem era o maçom a quem Lindley presenciou o funeral: No dia vinte e sete de abril de mil oitocentos e tres nesta Sé Cathedral, tendo recebido todos os sacramentos falecera tísico com idade de trinta e tres annos o Capitão de Ingenheiros e Lente da Real Academia de Goarda Marinha na cidade de Lisboa, Antonio Caetano de Siqueira Serio, casado com D. Maria do Carmo moradora da Freguesia de Nossa Senhora da Saúde na cidade de Lisboa, foi amortalhado na forma militar, e sepultado na Igreja da Sé, conduzido por despacho do Ilmo. Dr. Providor Manoel Marques Brandão; sendo acom- panhado pelo seu Reverendo Paroco de capa de 84 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 aspergir, e sacristão. De que fiz este assento, que assignei. O Coadjutor Manoel Pereira de Souza.7 A atuação da Loja Virtude e Razão ultrapassava, contudo, os limi- tes de uma associação fraternal. Foram seus membros que ajudaram o pedreiro-livre Thomas Lindley a fugir da cadeia e seguir viagem para a Inglaterra, onde as autoridades portuguesas não poderiam alcançar o contrabandista. Segundo o próprio Lindley relata: Partíamos, agora, com esses valiosos amigos, que tan- to nos tinham ajudado materialmente , num país que suas terras e bens teriam sofrido severamente se hou- vessem sido descobertos; e que procederam nisso, pelos mais puros motivos de humanidade e benevo- lência (as grandes características da sociedade a que tinham a honra de pertencer.). (LINDLEY, 1805:128). É notável que já em 1803 a Virtude e Razão estivesse tão organi- zada a ponto de cuidar do funeral de um maçom português recém- -chegado, como demonstra o episódio de Sequeira Sério. Ainda mais surpreendente foi sua capacidade de articulação política a ponto de resgatar um maçom inglês prisioneiro e dar-lhe os meios de fugir de Salvador rumo a sua terra natal. Em 1806, um ano após o relato de Lindley ser publicado, esse episódio chegou a tramitar como denún- cia no Conselho Ultramarino, sem que nenhuma investigação fosse, inexplicavelmente, levada à diante.8 Anos depois, José da Silva Lis- 7 Arquivo da Cúria. Catedral da Sé – Livro de Assentamentos de óbitos (1797- 1816), fls. 106. Gazeta de Lisboa, terça-feira 29 de janeiro de 1799, p. 4. Por Decreto de 12 de dezembro de 1798, Sequeira Serio foi promovido de Segundo Tenente para Primeiro Tenente. Segundo Supplemento à Gazeta de Lisboa, sábado, 29 de maio d 1802, p. 4: “Por Decreto de 5 de maio de 1802 foi o Principe Regente N. S. servido conceder passagem no posto de Capitão para o Real Corpo de Enge- nheiros a Antônio Caetano Sequeira Sério, 1.o Tenente da Aramada Real, sem per- juizo (sic) da antiguidade daquelles que a tiverem maior, e conservando o mesmo exercicio que tem de Lente Substituto de Navegação na Academia dos Guardas Marinhas. Sério era o encarregado das observações de eclipses na Academia de Marinha”. 8 Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia. Avulsos. Cx. 243, doc. 16790. Narrativa (tradução para o português) de uma viagem ao Brasil publicada no Montley Re- 85 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) boa, em mais um ataque às sociedades maçônicas brasileiras, criticou o resgate do contrabandista inglês pelos pedreiros-livres da Bahia. Ainda em 1806, contudo, D. Marcos de Noronha e Brito chega ao Rio de Janeiro, no cargo de Vice-rei, com instruções de proibir o funcionamento dos clubes e sociedades secretas, o que fez por meio do decreto de 2 de agosto de 1806. Isso levou à diminuição das atividades maçônicas fluminenses (BARATA, 2006:78).9 Na Bahia, contudo, a maçonaria experimentou uma significativa expansão nos seus quadros locais. Em 30 de março de 1807 [10/01/5807 A:. V:. L:.], segundo registrou Felner, doze dissidentes da Virtude e Razão fundaram a Loja Virtude e Razão Restaurada, também do Rito Fran- cês, mudando o nome, a 10 de agosto de 1808 [25/05/5808 A:. V:. L:.], para Loja Humanidade, que “compreendia muitas pessoas do comércio, dominadas o maior número pelo espírito constitucional”. 10 A existência dessa loja é fundamental para compreender os eventos políticos na Bahia até às vésperas da Guerra de Independência, que assolou o Recôncavo. Outro visitante que esteve na Bahia colonial registrou suas impres- sões da maçonaria local. O tenente da marinha holandesa Quirinus Maurits Rudolf Ver Huell, na sua estadia forçada entre fevereiro de 1808 a julho de 1810, quando toda a equipagem do seu navio De Vlieg ficou retida e o militar foi mantido em prisão domiciliar por causa do virtual estado de guerra entre Portugal e a Holanda napo- leônica, conheceu na residência de um amigo, certo professor Fer- reira, o coronel “Don Andrade”. Esse militar, descrito como homem com aparência severa e sempre apoiado numa bengala com cabo dourado, falava mal da maçonaria, definindo-a como “godvergeten” (condenada por Deus) e “hoogste schandelijk” (altamente escanda- losa), entregando ao marinheiro neerlandês um exemplar do livro anti-maçônico do abade Barruel. Huell ouvira dizer que havia uma loja maçônica funcionando numa casa abandonada, nos arrabaldes view do mês de Abril de 1806 (Artigo 30). 9 Até então, os pedreiros livres eram condenados pela Igreja Católica em razão da Bula In Eminenti (1738) de Clemente VII e do Breve Providus (1751) de Bento XIV. 10 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro. Lata345, pasta 17. Estudo Sétimo. 86 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 de Salvador, onde a população que transitava nas proximidades tinha receio e que fosse habitada pelo diabo. Essa loja pode ser a Humani- dade, localizada na Água Brusca (HUELL, 1842:174-175). Mais revelador é o relato de Sir James Prior que, em novembro de 1813, registrou a presença da maçonaria em Salvador. Prior diz que “a greater curiosity, considering the place, is a full-lenght picture of his Royal Highness the Prince Regent of England, in masonic rega- lia, occasionally seen in a recess of the body of the church” (PRIOR, s/d:103).11 O príncipe regente, duque de Sussex, desde 1813, tornou- -se o Grão-Mestre da maçonaria inglesa e seu retrato com insígnias maçônicas estava exposto na Basílica de Nossa Senhora de Concei- ção da Praia, pois Prior descrevera o templo mais rico na Cidade Baixa (lower town) “built with a species of blue stone, resembling marble, brought hither for this express purpose from Lisbon”(PRIOR, s/d:104-105).12 Surpreso pela maçonaria ser admirada e frequentada em Salvador, apesar da perseguição que sofria nos países católicos, Prior revela ainda que “There are here three lodges of the society, wich boast among their members the governor, archbishop, and the majority of the principal people, who do not, however, publicly own it; several of the minor clergy have been lately initiated” (PRIOR, s/d:104-105).13 A afirmação de Prior está em sincronia com o que foi registrado por Rodrigo Felner. Segundo o Almanak de 1845, pela segunda vez, dezoito dissidentes da Virtude e Razão fundaram em Salvador a 12 de março de 1813 [23/06/ 5813 A:. V:. L:.] a Loja União. Há indícios de que está última situava-se na Rua Nova, que atualmente é a Rua Portugal, no bairro do Comércio, contendo “em seu seio indivíduos 11 “Uma maior curiosidade, considerando o lugar, é uma imagem inteira de Sua Alteza Real o Príncipe Regente da Inglaterra, em insígnias maçônicas, visto oca- sionalmente em um nicho do corpo da igreja” (PRIOR, s/d:103). (Tradução do autor). 12 “(...) construído com uma espécie de pedra azul, assemelhando-se a mármore, aqui trazido para este expresso propósito de Lisboa” (Idem, 104-105) (Tradução do autor). 13 “Existem aqui três lojas da sociedade, que gabar-se ter entre os seus membros, o governador, arcebispo, e a maioria das principais pessoas, que não fazem, todavia, publicamente; vários clérigos menores foram recentemente iniciado” (Ibidem, 104-105) (Tradução do autor). 87 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) de diversas profissões, grandes nomes de militares e quase todos os oficiais de artilharia baiana”. 14 Deste modo, Prior mostra-se bem informado ao afirmar que haviam três lojas maçônicas pois existiam a Virtude e Razão (1802), a Humanidade (1807) e a União (1813). Prior afirmou ainda que o Conde dos Arcos, D. Marcos de Noronha e Brito, e o Arcebispo D. José de Santa Escolástica Alvarez Pereira (1804-1813), assim como boa parte do clero menor, eram iniciados na maçonaria. o GraNde orieNte maçôNico Na Bahia (1813-1817) O desenvolvimento da maçonaria na capitania da Bahia e o es- tabelecimento do Grande Oriente Brasileiro podem ser explicados a partir das suas conexões com o mais influente pedreiro-livre luso- -brasílico que atuou nas duas primeiras décadas do século XIX: Hi- pólito José da Costa Furtado de Mendonça. A iniciação de Hipólito na maçonaria deu-se durante sua viagem à Filadélfia, nos Estados Unidos em 1798 e 1799. De volta a Lisboa (1800), ligou-se a D. Rodri- go de Sousa Coutinho e foi nomeado um dos diretores da Impressão Régia, junto com frei José Mariano da Conceição Veloso. Sua ativa participação no Capítulo dos Cavaleiros da Espada no Oriente (1801- 1802) e no reconhecimento do Grande Oriente Lusitano (1803) pela maçonaria inglesa lhe rendeu a prisão no Santo Ofício após seu retor- no para Lisboa, de onde fugiu para a Inglaterra em 1805, com auxílio dos pedreiros-livres de Lisboa. No autoexílio em Londres, Hipólito da Costa atuou continuamente nos negócios da maçonaria portuguesa. É pouco conhecido, até o presente, que o editor do Correio Brazilien- se (1808-1822) também intervira profundamente no desenvolvimento das lojas maçônicas coloniais. Francisco Muniz Tavares, que tomou parte na Revolução Pernambucana de 1817, afirma que “Erigirão o Grande Oriente, ou Governo Supremo da Sociedade, na Bahia, re- sidência do maior número dos sócios, que tinhão sido iniciados, e elevados aos altos graos na Europa” (TAVARES, 1884:11-12). 14 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro. Lata 345, pasta 17. Estudo Sétimo. 88 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 Em 1812 foi criada a Loja Luzitana N.o 184, ao Grande Oriente de Londres, tendo como seu venerável Hipólito José da Costa. Os estatu- tos foram impressos por L. Thompson e naquele mesmo ano Hipólito teve a iniciativa de convidar portugueses influentes, na política e na imprensa, chegando até mesmo a convidar antigos adversários políti- cos, para ingressar naquela sociedade.15 A partir da Luzitana 184 e de um dos seus sócios fundadores, Domingos José Martins, os anos de 1812 e 1813 foram decisivos para a maçonaria tanto na Bahia quanto em Pernambuco. É certo que a maçonaria da Bahia não se submeteu ao Grande Oriente Lusitano. Somente as lojas do Rio de Janeiro o fi- zeram desde 1804. Acertadamente, Evaldo Cabral de Melo afirma que Ao contrário da maçonaria fluminense, a pernambu- cana escapou ao controle do Grande Oriente Lusita- no. Seu aparecimento datava também dos primeiros anos do século, sob o estímulo do naturalista Manuel Arruda da Câmara e do seu discípulo, padre João Ri- beiro. Mas foi igualmente a partir de 1813 que ela foi reativada não de Lisboa ou do Rio, mas de Londres, por Domingos José Martins, emissário de pedreiros- -livres ingleses (MELLO, 2002:9). 15 PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA/000409 Carta de Bernardo José de Abrantes e Castro ao Conde da Barca. Londres, 04 de novembro de 1812; 4 pp.; 201 mm x 253 mm ; “Ha outra causa da raiva do perverso Hyppolito contra mim, a saber elle organizou aqui huma Loja Maçonica intitulada Loja Luzitana: convidou- -me para entrar nella - respondi a q.m me veio fallar da parte delle que não queria sociedades, e que era precizo ter hum grande T na testa para cahir outra vez de- pois que eu tinha promettido a S.A.R. e ate publicado pela imprensa que nunca mais me ligaria a semelhante Sociedade enquanto S.A.R. não consentisse. Nada indignou tanto o perverso Hyppolito. Eu prometti a VEx.ca de abandonar a So- ciedade; e eu não sou homem capaz de faltar ao que prometo”. 89 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) Imagem 1: Exemplar da Biblioteca da Universidade Católica Portuguesa Domingos José Martins era, decerto, um dos agentes de Hipólito da Costa na América portuguesa. Um ano antes de criar a Luzitana 184, Martins apresentava-se bem relacionado com outros pedreiros- -livres portugueses. Desde meados de 1811, os maçons portugueses na Inglaterra estavam se organizando e em 25 de julho aquele ano, Domingos de Sousa Coutinho, irmão do Ministro D. Rodrigo, tomou parte de uma cerimônia no “club” City of London Tavern que servia de fachada para uma loja maçônica presidida pelo madeirense José Sebastião de França e Andrade. Naquela noite, os membros daquela associação “depois de terem tractado dos seus respectivos negocios, celebrarão com hum esplendido jantar a entrada, como seu Membro honorario, do Excellentissimo Sr. D. Domingos Antonio de Souza Coutinho, Embaixador Extraordinario, e Ministro Plenipotenciario”. O club londrino, que prezava pelas virtudes da“união, patriotismo e fi- 90 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 delidade”, era formado por Jacinto José Dias de Carvalho (secretário) Manoel Ribeiro Guimarães, Antonio Martins Barroso, João Ferreira Duarte, José Antonio Gonçalves de Oliveira, Manoel Fernandes Alves, Ignacio Palyart, João Antonio Fructuoso, Francisco Alves de Carvalho Vianna e Domingos José Martins.16 Domingos José Martins é fundamental para entender as transfor- mações da maçonaria nas capitanias do norte da América portuguesa entre 1811 e 1817, especialmente na Bahia e em Pernambuco. Segun- do Evaldo Cabral de Mello, a partir de 1813, “as lojas pernambucanas haviam-se tornado exclusivamente brasileiras, excluindo portugue- ses, os quais por isso mesmo fizeram seu inferno à parte” (MELLO, 2004:36). A maçonaria estava dividida entre a influência do Grande Oriente Francês e das lojas inglesas. Entre 1811 e 1813, a guerra en- tre a França napoleônica e a Inglaterra, aliada de Portugal, estava no auge. A realidade das lojas maçônicas de Pernambuco era, contudo, diferente das lojas da Bahia, onde a presença portuguesa foi cons- tante até 1822. O que os historiadores não perceberam é que antes de seguir para Pernambuco, Domingos José Martins estivera em Salvador desde o início de 1812. Domingos José Martins, que seria um dos chefes da Revolução Pernambucana de 1817, estava na Bahia a pretexto de divulgar suas duas firmas, em Londres e Liverpool, em sociedade com o supracitado Antônio Martins Barroso. 17 Decerto a firma de Martins e Barroso já não era prospera e faliu em 1814, mas foi essa sociedade que trouxe para Salvador, em 1810, os dois prelos utiliza- dos na Tipografia de Manoel Antonio da Silva Serva. No primeiro se- mestre de 1811, Hipólito da Costa tentara introduzir uma imprensa e duas caixas de tipos em Salvador, embarcados secretamente no navio Americana, que foi interceptado pelas autoridades coloniais em de- corrência de uma mensagem enviada pelo embaixador português na Inglaterra, D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, Conde do Fun- chal, ao Conde de Linhares, ministro no Rio de Janeiro, que alertou o 16 Idade d’Ouro do Brazil. N. 56, sexta-feira, 22 de novembro de 1811. Sobre o presidente José Sebastião de França e Andrade, natural da Ilha da Madeira, ver OLIVEIRA MARQUES, 1990:141. 17 Idade d’Ouro do Brazil. N. 23, sexta-feira, 20 de março de 1812. 91 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) Conde dos Arcos em Salvador.18 Essa imprensa funcionaria, decerto, clandestinamente na Cidade da Bahia, possivelmente por meio de conexões entre o editor do Correio Braziliense e a maçonaria local. Em maio daquele mesmo ano, contudo, foi inaugurada a Tipogra- fia de Manoel Antonio da Silva Serva (1811-1819). Os primeiros anos do funcionamento da imprensa na Bahia foram de expansão dos quadros maçônicos na capitania. A própria família Silva Serva esta- va ligada ao Grande Oriente Lusitano e Manoel José da Silva Serva, parente do tipógrafo Manoel Antonio da Silva Serva, era o tesoureiro daquela instituição, sob o nome iniciático de Ciro, que chegou a ser denunciado à intendência da polícia em maio de 1817 por ser o res- ponsável pelo aluguel de um sobrado no Pátio da Galega onde fun- cionavam clandestinamente agremiações maçônicas (MAGALHÃES, 2016b:223-256).19 Após examinar, um por um, o nome dos autores/tradutores/edito- res dos 147 impressos produzidos pela Tipografia de Manoel Antonio da Silva Serva, é possível afirmar que os intelectuais que gravitavam em torno desse personagem e da sua tipografia eram pedreiros-livres, ligados não somente ao Grande Oriente Brasileiro, mas também à maçonaria portuguesa. O redator do jornal Idade d’Ouro do Brazil, o padre Ignacio José de Macedo, foi um dos acusados por frei Amador da Santa Cruz de ser um dos mais influentes maçons da Bahia. A par- tir da sua trajetória e dos seus escritos, particularmente da coleção do Velho Liberal do Douro (1826-1827; 1833-1834), foi possível confirmar as ligações do Ignacio “Gazeteiro” com as sociedades maçônicas e os ideais liberais em Salvador e em Portugal (MAGALHÃES, 2013:221- 262). Ignácio José de Macedo foi acusado de ensinar um catecismo maçônico impresso em Londres na “Impressão de Segredo”; o nome correto é Impressão do Silêncio e os três volumes do Compendio das Instrucções Maçonicas para uso do G:. O:. B:., foram preparados em Londres por diligência de Hipólito José da Costa. Por intermédio de 18 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Seção de Manuscritos - 33, 24, 6; Oficio do Conde de Linhares, ao conde dos Arcos. Rio de Janeiro, 04 de setembro de 1811. 19 Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Intendência da Polícia. Papeis diversos, maço 600, DOC. nº199-199ª. 92 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 Domingos José Martins seus exemplares foram distribuídos entre os pedreiros-livres iniciados na Bahia e em Pernambuco. Até as pre- sentes linhas, foi repetidamente afirmado que esse livro não existia. A principal prova material da existência de um Grande Oriente do Brasil nos tempos coloniais reside na própria existência dos três vo- lumes desse livro. Na correspondência da Legação de Londres, conservada no Ita- maraty, existe uma carta na qual D. Domingos Antônio de Souza Coutinho, referindo-se a Hipólito da Costa, afirma “ouvi depois que ele tinha composto certas cartas maçônicas e hum catecismo que aqui se imprimiu em portuguez” (DOURADO, 1857:121). Esse “cate- cismo” está desaparecido há mais de dois séculos e todos os autores que escreveram sobre Hipólito da Costa duvidaram da existência do referido impresso. Segundo Rubens Borba de Moraes, o renomado conhecedor de impressos sobre o Brasil, “o catecismo impresso em português em Londres não me consta que tenha sido publicado, nun- ca vi um exemplar mencionado e nem os biógrafos de Hipólito da Costa citam a existência de algum. É pouco provável, aliás, o minis- tro português não o afirma, ouviu dizer” (MORAES, 1968:244-245). Borba de Moraes, nessa questão, subestimou Hipólito da Costa e Domingos José Martins. Outra pista sobre a existência do “catecismo” sobre o qual Souza Coutinho “ouviu dizer” está na carta de frei Amador da Sancta Cruz. Esse misterioso frade, que possivelmente se esconde sob um pseudô- nimo, vivia em Salvador e em 1817, após o Seis de Março, enviou às autoridades na Corte do Rio de Janeiro uma missiva contendo graves acusações contra os pedreiros-livres da Bahia. A carta foi encontrada pelo historiador português Ângelo Pereira no arquivo particular do Conde dos Arcos e impressa em 1956. Nela, o denunciante revela que a malvada seita dos Pedreiros Livres, cujo principal acento he nesta Cidade [da Bahia], plantada, há mais de vinte annos por Joze Francisco Cardozo (...). Os Padres Ignacios, Gazeteiro, o M.e de Grammatica, e outro mestre da mesma lingoa, Dominicano, e o Substituto das mesmas Cadeiras são iguaes aos ante- cedentes, todos elles profanadores do seo estado, e 93 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) as mais fortes columnas da Massonaria; elles são, q. explicão o cathecismo, e Ritual das funçoes massoni- cas, cujo livro foi impresso em Londres com o titulo = Compendio p.a o Oriente da Bahia= na Impressão de Segredo (PEREIRA, 1956:251-252).20 Apesar de Borba Moraes, Carlos Rizzini e Mecenas Dourado du- vidarem da existência do “catecismo” foi possível, após dois séculos da sua impressão, encontrar uma coleção completa dos três volumes, que comprovam tanto o valor do ouvido do Souza Coutinho quanto da carta de frei Amador da Sancta Cruz. Pesquisas no The Library and Museum of Freemasonary, em Londres, possibilitaram identificar um exemplardo Compendio das Instrucções Maçonicas para uso do G:. O:. B:. [insígnias maçônicas] :recopilado por hum cavalleiro de todas as ordens maçonicas maçoneria Adonhiramita azul.[London] : Impressão do Silencio, Anno L. 3 v; 12 x 7.5 cm. Call Number: VBR 200 BRA Item ID: L4297.21 20 O único catálogo bibliográfico onde o Compendio está referenciado é o da Wigan Free Public Library (1882), onde está descrito: “Compendio das instrucções ma- çonicas para uso do G.: O.: B.: Recopilado por hum cavalliero (sic) de todas as ordens maçonicas. Maçoneria Adonhiramita, Azul, Impressão do Silencio, Anno L. [Lond.] 3vols. 18mo.”. 21 Agradeço ao bibliotecário sr. Martin Cherry e ao sr. Paul Saxton, ambos do Li- brary and Museum of Freemasonry, de Londres, que ao meu pedido, generosamente enviaram as imagens do Compendio das Instrucções. Eles não conheciam a real natureza do impresso que a referida instituição custodia. Durante a correspon- dência, o sr. Cherry escreveu: “We haven’t dated this book but there is a small publisher/book seller catalogue for F. Wingrave of the Strand at the back of the book. He appears to have specialised in foreign language books (including Portuguese) and was active from about 1795 to the middle of the 19th Century. Most of the books listed in his catalogue were printed between 1800 and 1815 but as the Grand Orient of Brazil did not come into being until 1822, I suspect this book was printed in the 1820s. Do you believe this is correct? ”. Isto posto, foi possível demonstrar que os três volumes das Instrucções eram de autoria de Hi- pólito da Costa e que fora impresso por volta de 1814. Tanto o sr. Saxton quanto o sr. Cherry aceitaram as informações e incorporam ao catálogo da biblioteca, a 18 de julho de 2016. 94 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 Cada volume do Compendio das instrucçoens maçonicas para uso do G:. O:. B:. contempla um dos graus iniciáticos da maçonaria ado- nhiramita; o primeiro volume é para o grau de aprendiz, o segundo é para o grau de companheiro e, por fim, o terceiro é para o grau de mestre maçom. Não estão datados, apresentando apenas “Anno L.”, ou Ano Lucis (Ano da Luz), em conformidade com o tipo de calen- dário usado pela maçonaria. Corrigindo um importante detalhe na denúncia de frei Amador de Sancta Cruz: não é “Impressão de Segredo”; o correto é Impressão do Silencio, mas isso demonstra cabalmente que o denunciante sa- bia muito sobre a sociabilidade maçônica na capitania da Bahia. De todo modo, essa tipografia, nunca registrada pelos historiadores da maçonaria, do livro e da leitura ou da história luso-brasileira em ge- ral, foi uma forma de Hipólito José da Costa ocultar a sua influência (ou política e intelectual) sobre diversos indivíduos espalhados pelas capitanias brasílicas, mas ligados ao Grande Oriente Brasileiro. Não resta dúvida de que a Impressão do Silêncio era a casa tipográfica de Wright, o mesmo que imprimia o Correio Braziliense. A existência desses três livros demonstra como os principais bió- grafos de Hipólito José da Costa pouco conheceram a real extensão de sua influência sobre a maçonaria brasílica. 95 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) Imagem 2: do Library and Museum of Freemasonry, Londres Essas instruções maçônicas foram impressas para serem utilizadas na Bahia entre 1813 e 1817. Kurt Prober conhecia o rito utilizado nos primeiros tempos da maçonaria brasílica: Usava-se primitivamente no Brasil o rito Adonhira- mita e por isto mesmo a Arte Real de 1800 até 1834 tinha (...) o nome genérico de ‘Maçonaria Adonhira- mita’, nome derivado do mestr.: Adonhiram, designa- ção que ainda encontramos no Manual Maçônico ou Cobridor de todos os ritos maçônicos, impresso no Rio de Janeiro em 1833 (PROBER, 1981:92). 96 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 Kurt Prober, o maior colecionador particular de livros sobre maço- naria no Brasil, contudo, sequer teve notícia do Compendio impresso para o Grande Oriente Brasileiro. Outro elemento que merece ser observado é a importância do conteúdo dos livros feitos para a maçonaria da Bahia, que continua- ram a ser copiados pela maçonaria fluminense até os anos de 1830. Tanto isso que, na verdade, os três volumes do Compendio feito na Impressão do Silêncio para o G.O.B. foram reimpressos por diligên- cia de Januário da Cunha Barbosa no Rio de Janeiro em 1833, na Tipografia do maçom Seignot-Plancher, para ser utilizando na Loja Comércio e Artes. Na edição fluminense foi revelando, finalmente, que o autor do Compendio fora Hipólito da Costa. As duas obe- diências maçônicas em atividade no Rio de Janeiro a partir de 1832 tomaram cuidado de não mencionar qualquer ligação do Compendio com o primitivo Grande Oriente que fora implantado na Bahia. O Compendio das Instruções maçônicas para uso na Loja Comércio e Artes, que está na raiz da formação do Grande Oriente Brasileiro do Rio de Janeiro, é uma mera cópia dos que foram utilizados no primei- ro Grande Oriente Brasileiro, em Salvador e também pelos rebeldes pernambucanos de 1817, já que foram achados na casa de Domingos José Martins, que os distribuía no Recife e em Olinda. 97 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) Imagem 3: Coleção Guita e José Mindlin É possível, até mesmo, identificar outros agentes de Hipólito da Costa atuando em Salvador na distribuição dos seus impressos. José Joaquim da Silva Maia, que redigiu o Semanário Civico da Tipografia da Viúva Serva, e Carvalho entre 1822 e 1823, revelou: Nós com maior satisfação, nos encarregamos naquele tempo [isto é, durante a década entre 1812 e 1822] de ser o agente para distribuir nesta cidade os seus folhetos, e a nossa estima a seu respeito ain- da mais se aumentou, quando cabalmente soubemos que, tendo sido consultado pelos corifeus democra- tas de Pernambuco, ele não aprovou os seus planos (que eles a seu pesar puseram em prática em 1817), 98 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 formalmente declarando-lhe que o Brasil está ainda no estado infantil, não tinha ainda a virilidade para constituir-se em Estado independente.22 Hipólito, apesar dos seus diversos agentes e da sua influência po- lítica, estava demasiado distante para interferir no cotidiano do Gran- de Oriente Brasileiro. Assim, uma questão importante diz respeito à identidade do Grão-mestre do Grande Oriente Brasileiro entre 1813 e 1817, ou seja, a maior autoridade instituída naquela Obediência maçônica. As informações são imprecisas, mas uma pista está no MANIFESTO do G:. O:. B:. [Grande Oriente Brasileiro] a todos os GG:. OO:. GG:. LL:. LL:. RR:. E MM:. [a todos os Grandes Orientes e Grandes Lojas Regulares e Maçónicas] de todo o Mundo, de autoria de José Bonifácio de Andrada e Silva: Passado este primeiro golpe da partida e do despo- tismo, os dispersados maçons se reuniram de novo e instalaram a Loja Beneficência, e outras; já então amestrados na escola da experiência, reconheceram a necessidade de nacionalizar o regime maçônico, criando um Grande Oriente do Brasil [Sic] que ofe- recesse um ponto de apoio e de união a todos os seus filhos, vedasse novas tentativas lusitanas e des- se aos maçons brasileiros aquela força que só pode resistir aos tufões da tirania. Animados deste espírito convocaram as Lojas existentes na então primogênita do Brasil [Bahia] e na pátria do Camarão [sic, Per- nambuco]; e com a sua zelosa aquiescência deram impulso à grande empresa, inaugurando o primeiro Grande Oriente do Brasil, que foi logo reconhe- cido e saudado pelos Orientes estrangeiros, e proclamado grão-mestre interino o cidadãoAn- tonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado. (...) (ANDRADA E SILVA, 1832). 22 Semanário Cívico, n. 103, 1823. 99 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) Ainda segundo se pode inferir do Manifesto (1832), a Loja Bene- ficência, estabelecida no Rio de Janeiro, também estava subordinada ao Grande Oriente estabelecido na Bahia, por curto período, quando “já as Lojas das Províncias procederam à nomeação de seus represen- tantes, quando a revolução de uma delas eriçou de suspeitas o cora- ção do chefe da nação e pôs em movimento as cem garras do despo- tismo” (Idem). Bonifácio também sinaliza uma aproximação entre o Grande Oriente e as lojas de Pernambuco. O historiador maçom José Castellani, que bem conheceu o referido Manifesto de 1832, demons- trou desprezo pela história do primeiro “Grande Oriente Brasileiro”. Segundo o referido autor, tratava-se de uma instituição “sem qualquer regularidade e sem as características de um núcleo maçônico com influência disciplinar sobre as demais Lojas, o que configura, apenas, uma tentativa de criar uma Obediência nacional, sem qualquer con- sequência, não podendo, portanto, ser considerada como uma real instalação, como pretende o manifesto, ao falar de uma reinstalação do Grande Oriente” (CASTELLANI, 1993:91). José Castellani, contu- do, também não conheceu os Compêndios impressos em Londres e muito menos conheceu a História dos indivíduos que gravitavam em torno daquela associação. Decerto que uma instituição que tivera, entre seus associados, tão influentes indivíduos deixaria significativos registros na Bahia colo- nial. Onde, então, esses registros estariam? Ora, estão dispersos no lugar mais seguro para se esconder algo: à vista de todos. Por exem- plo, na literatura, a mais importante e bela obra literária que se impri- miu na Tipografia de Manoel Antonio da Silva Serva foi a Parafraze dos Provérbios de Salomão que é um poema de cariz maçônico. Seu autor foi o pedreiro-livre mineiro José Eloi Ottoni, primo de Joaquim José Vieira Couto, que estivera preso no Santo Ofício de Lisboa junto com Hipólito da Costa. Em recente artigo, publicado na Bahia e em Lisboa, pelo bicentenário daquela obra, foi demonstrado que o poe- ma de Ottoni (1815, mas supostamente teve sua primeira edição em 1813) é um código moral inçado de elementos da simbologia e dos rituais maçônicos de então (MAGALHÃES, 2015:369-419). Desde 1812, agentes associados a Hipólito da Costa começaram a disseminar textos de autores maçônicos na capitania da Bahia. Exem- plo disso foi o gramático baiano, radicado em Liverpool, Manoel José 100 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 de Freitas, que por meio de sua Arte da Grammatica, revendida na loja de Silva Serva, divulgou textos dos influentes pedreiros-livres An- drew Michael Ramsay e Wellins Calcott. Não foi à toa que Hipólito fez um elogioso editorial sobre essa gramática e o seu autor nas páginas do Correio Braziliense (MAGALHÃES, 2013:8). Outro pedreiro-livre bastante influente em Salvador foi Diogo Soa- res da Silva e Bivar. Fundara em 1802, na vila de Abrantes, a Socie- dade Tubuciana, junto com Filippe Ferreira de Araújo e Castro, o mesmo pedreiro-livre que ajudara Hipólito da Costa a fugir do Santo Ofício de Lisboa para Gibraltar na Espanha. O inconfidente portu- guês Diogo Soares da Silva e Bivar, preso em Salvador desde 1810 por auxiliar as tropas francesas de Junot, foi colaborador de Macedo no jornal Idade d’Ouro e redigiu a revista As Variedades (1812), a pri- meira do Brasil, também impressa por Serva, estampando as insígnias dos pedreiros livres no seu frontispício.23 Imagem 4: Insígnias maçônicas em detalhe do frontispício de As Variedades (1812) Não chega a surpreender a facilidade com que a tipografia de Serva publicasse um poema maçônico ou estampasse as divisas dos pedreiros livres na revista As Variedades. A Comissão de Censura de Livros instituída na Bahia em 1811 era formada por pedreiros-livres 23 Sobre as ligações maçônicas de Bivar, ver MAGALHÃES, 2016a. 101 Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 A cabala maçônica do Brasil: o primeiro Grande Oriente Brasileiro (Bahia e Pernambuco, 1802-1820) cujos nomes são indicados nas listas de denúncias, conforme será abaixo demonstrado. Entre os membros da Comissão de Censura estavam os pedreiros-livres José Francisco Cardoso de Moraes, José Fernandes da Silva Freire e Antonio Luiz Pereira da Cunha. Francisco Carneiro de Campos, apesar de não ser citado em nenhuma das três listas, também era iniciado na maçonaria. Em suma, a Comissão de Censura literária na Bahia era formada por membros das lojas maçô- nicas soteropolitanas (MAGALHÃES, 2017:203-236). Esses sinais da presença do Grande Oriente do Brasil em Salvador não se restringem a discretos impressos, alcançando também a arqui- tetura. O obelisco construído em homenagem a D. João VI e inaugu- rado em janeiro de 1815, decerto o primeiro monumento comemo- rativo estabelecido no Brasil, no antigo terreno do Passeio Público (e hoje esquecido defronte ao Palácio da Aclamação) é, antes de uma homenagem ao rei, uma manifestação da influência política da ma- çonaria local. Se restar alguma dúvida de que o referido monumento é um constructo da maçonaria colonial, o beneditino Francisco de Paula de Santa Gertrudes Magna a ele se refere em 1816 como a “Py- ramide, erecta no Passeio Publico” (MAGNA, 1816). Sua disposição no Passeio Público, dirigido desde 25 de janeiro de 1812 pelo maçom Domingos Borges de Barros (CALMON, 1963:1448), sinalizava aos viajantes e estrangeiros iniciados na maçonaria que havia em Salva- dor lojas de franco-maçons e, portanto, a sua fraternal assistência, em caso de necessidade. No dia da inauguração, o orador da maçonaria, não por coincidência, Ignacio José de Macedo, concorreu para con- sagrar o obelisco Concluido o Pontifical subio ao pulpito o R.do P. Igna- cio José de Macedo, e aproveitando as circunstancias da columna pyramidal, que no dia seguinte se havia consagrar ao mesmo Real assumpto, principiou a orar com aquelle texto do Genesis = Erexit titulum Lapi- deum: Levantou hum titulo de pedra.24 Ignacio José de Macedo imprimiu um sermão para celebrar a inau- 24 Idade d’Ouro, n. 7, terça-feira, 24 de Janeiro de 1815. 102 Pablo Antonio Iglesias Magalhães Revista do IAHGP, Recife, n. 70, pp. 73-137, 2017 guração do monumento, observando ter sido esse tipo de padrão servia como um “código” capaz de “instruir os homens”: Singelos Padrões levantados em cima da terra pelas devotas mãos dos Patriarchas, forão os primeiros Tem- plos, e os primeiros Altares em que o Ceo recebeo as primicias da Religião Natural: e pedras lavradas pelo Dedo do Altissimo forão o primeiro Código, em que o Mundo recebeo os preceitos da Religião Revelada [...] Logo os Monumentos de pedra são os mais dignos de agradarem a Deos, e os mais capazes de instruirem os homens (MACEDO, 1815). O Grande Oriente do Brasil expandiu-se até 1817, ano que foi conturbado para a maçonaria nos dois lados do Atlântico. Em Por- tugal ocorreu a Conspiração de Gomes Freire de Andrade, levan- do ao cadafalso doze pessoas acusadas de Inconfidência, incluindo o próprio líder, que ocupava naquele ano o cargo de Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano (OLIVEIRA MARQUES, 1990:112-5). Na América portuguesa teve início, em 6 de março, a Revolução Pernam- bucana, chefiada por Domingos José Martins, que organizou uma loja maçônica “Pernambuco Occidente” em sua casa no Recife (TAVARES, 1884:LXX).25 Os dois movimentos estavam articulados pela maçonaria. O histo- riador José Inácio de Abreu e Lima (também maçom), filho do padre Roma, emissário enviado pelos dirigentes do movimento pernambu- cano para a Bahia, afirmou em 1843 que a Revolução Pernambucana havia sido arquitetada em conjunto
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