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2 Capítulo I, item IV do Código de Ética Médica 3 Capítulo I, item XXI do Código de Ética Médica SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 9 1. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRECEPTOR, MÉDICO RESIDENTE E ACADÊMICO DE MEDICINA ................................................................................................. 10 1.1 Introdução ..................................................................................................................... 11 1.2 Breves Comentários sobre Responsabilidade Civil ........................................... 12 1.3 Tipos de Responsabilidade Civil e Pressupostos .............................................. 13 1.4 O Preceptor e o Médico Residente ......................................................................... 16 1.5 O Preceptor e o Acadêmico de Medicina .............................................................. 24 1.6 Considerações Finais ................................................................................................. 26 1.7 Referências ................................................................................................................... 27 2. O DEVER DE INFORMAR NA PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA .... 30 2.1 Introdução ........................................................................................................................ 31 2.2 Da violência obstétrica ............................................................................................... 31 2.3 O dever de informação em obstetrícia ................................................................. 33 2.4 Considerações Finais ................................................................................................. 36 2.5 Referências ....................................................................................................................... 37 3. A INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ÀS RELAÇÕES PACIENTE-MÉDICO ........................................................................................ 39 3.1 Introdução ..................................................................................................................... 40 3.2 Incongruências da aplicação do CDC às relações paciente-médico ............ 41 3.3 Considerações Finais ................................................................................................. 47 3.4 Referências ................................................................................................................... 48 4. DESAFIO DA PUBLICIDADE MÉDICA FRENTE ÀS LIMITAÇÕES ÉTICAS ...... 49 4.1 Introdução ..................................................................................................................... 50 4.2 Considerações Finais ................................................................................................. 54 4.3 Referências ................................................................................................................... 56 5. MEU CORPO MINHAS REGRAS? O DIREITO DE MORRER E O AGIR MÉDICO À DIRETIVA ANTECIPADA DE VONTADE DO PACIENTE ........................................... 57 5.1 Introdução ..................................................................................................................... 58 5.2 Expondo a Autonomia de Vontade como Meio de Garantia do Desejo Pessoal .................................................................................................................................. 59 5.3 Das Vertentes Sobre o Direito de Morrer .............................................................. 61 5.4 O Agir Médico à Diretiva Antecipada de Vontade do Paciente ....................... 64 5.5 Considerações Finais ................................................................................................. 66 5.6 Referências ................................................................................................................... 67 6. TRANSFUSÃO DE SANGUE: ANÁLISE DO EPISÓDIO “BAD BLOOD” DA SÉRIE GREY’S ANATOMY ................................................................................................... 69 6.1 Introdução ..................................................................................................................... 70 6.2 Análise do Episódio "bad blood” e sua Importância para o Meio Jurídico 70 6.3 A Recusa da Transfusão de Sangue ou Hemoderivados pelos Testemunhas de Jeová: Implicações na Ordem Jurídica Atual ....................................................... 72 6.4 Considerações Finais............................................................................................ 75 6.5 Referências .............................................................................................................. 75 7. JUDICIALIZAÇÃO DA MEDICINA SOB DUAS ÓTICAS QUE SOBRECARREGAM O SISTEMA: ....................................................................................... 77 7.1 Introdução ..................................................................................................................... 78 7.2 A Aventura Jurídica que Busca o Enriquecimento sem Causa por Meio de Ações de Indenização por Erro Médico ....................................................................... 79 7.3 Nem tudo é Erro Médico ............................................................................................ 80 7.4 Os Principais Potencializadores do Aumento dos Processos Judiciais ...... 82 7.5 Da Ineficácia das Liminares na Busca de Vagas por Leitos em UTI.............. 84 7.6 Considerações Finais ................................................................................................. 89 7.7 Referências ................................................................................................................... 90 8. NEM TODO MAU RESULTADO É ERRO MEDICO .................................................. 92 8.1 Introdução ..................................................................................................................... 93 8.2 Erro Médico ................................................................................................................... 94 8.2.1 Negligência ............................................................................................................ 95 8.2.2 Imprudência .......................................................................................................... 95 8.2.3 Imperícia ................................................................................................................. 95 8.3 Iatrogenia ...................................................................................................................... 95 8.4 Responsabilidade Civil do Médico ........................................................................ 96 8.5 Responsabilidade Civil do Médico á Luz do Código de Defesa do Consumidor ............................................................................................................................. 98 8.6 Considerações Finais ............................................................................................... 100 8.7 Referências ................................................................................................................. 101 9. A IMPORTÂNCIA DO SIGILO PROFISSIONAL NA RELAÇÃO MÉDICO- PACIENTE............................................................................................................................... 102 9.1 Introdução ................................................................................................................... 103 9.2 Contudo, surge a pergunta: o sigilo profissional é absoluto? ...................... 105 9.3 LegislaçõesEsparças e o dever de manutenção do sigilo ....................... 106 9.4 O sigilo profissional no direito português .......................................................... 108 9.5 Considerações Finais ............................................................................................... 109 9.6 Referências ................................................................................................................. 110 10. A RECUSA TERAPÊUTICA NOS TRATAMENTOS DA COVID19 E A AUTONOMIA MÉDICA DIANTE DO LEITO: “A ESCOLHA DE SOFIA” .................... 112 10.1 Introdução ................................................................................................................. 113 10.2 A autonomia médica x a recusa do tratamento pelo paciente .................... 113 10.3 A resolução CFM nº 2232/19 e os casos de COVID19 ................................... 115 10.4 COVID 19: A escolha de Sofia .............................................................................. 117 10.5 Considerações Finais ............................................................................................. 120 10.6 Referências ............................................................................................................... 121 INTRODUÇÃO O Direito Médico é um ramo do Direito relativamente novo, porém em ampla ascensão. Observamos um crescimento exponencial das ações no Direito Médico e da saúde, ampliando o campo de visão de muitos advogados sobre a importância da advocacia especializada. Buscar conhecimento é o que impulsiona os estudiosos do Direito Médico e da Saúde, tornando a área tão dinâmica e apaixonante. Não se trata apenas de defender um médico no conselho de classe ou em alguma ação indenizatória, lidamos com vidas, com advocacia humanizada e com a busca pelo acesso integral da saúde. A minha atuação na advocacia médica visa a aplicação prática de todos os princípios constitucionais que norteiam o Direito e a Saúde, auxiliando profissionais da saúde na efetivação dos seus direitos, e ajudando advogados a potencializar os seus resultados. Foi assim que surgiu o TREINAMENTO PRATICANDO DIREITO MÉDICO, uma capacitação prática sobre o direito médico. Quando lancei a primeira turma, tinha em mente escolher apenas 10 alunas que estariam dispostas a mudar a forma de trabalho, a se desafiar diariamente e principalmente sair da zona de conforto. O que eu encontrei foram 10 mulheres maravilhosas, dedicadas, muitas mães que assistiam as aulas com os filhos no colo, pessoas reais, cada uma com sua personalidade, mas todas com o mesmo objetivo ATUAR COM SEGURANÇA NO DIREITO MÉDICO E DA SAÚDE. O resultado do curso está aqui no presente E-BOOK, um compilado de artigos feitos pelas alunas, que hoje tenho a honra de chamar de amigas. Muito obrigada a cada uma de vocês. Boa leitura! 1. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRECEPTOR, MÉDICO RESIDENTE E ACADÊMICO DE MEDICINA Ana Luiza Gandra Torres Pereira 1.1 Introdução A responsabilidade civil é um tema muito amplo, constantemente estudado e com diversas nuances que merecem atenção diante da frequente evolução da sociedade, o que faz com que a discussão quanto à responsabilidade de um indivíduo se torne melindrosa. Eugenio Facchini Neto 1assim define o tema: “dificilmente haverá no direito civil matéria mais vasta, mais confusa e de mais difícil sistematização do que a responsabilidade civil”. Abordar o tema trazendo-o para a realidade da prática médica se faz ainda mais desafiador haja vista a complexidade do desempenho dessa atividade. Cediço que para a formação de um médico há todo um caminho acadêmico a ser percorrido, envolvendo a formação teórica, estágios práticos, internatos e residências. No Brasil, atualmente, existem 347 escolas de medicina2, um número bastante elevado e que faz preocupar com a quantidade de profissionais que se graduarão sem uma formação de excelência, visto que muitas instituições funcionam precariamente. Elucidar as questões atinentes à responsabilidade do estudante e do médico em cada estágio de sua formação é de suma importância para que, cada vez mais, se possa buscar um desempenho pautado na excelência técnica amparado pelos ditames legais. 1 FACCHINI NETO, Eugênio. Da responsabilidade civil no novo Código Civil. In O novo Código Civil e a Constituição. Coord. Ingo Wolfgang Sarlet. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 2 Dados disponíveis em: [www.escolasmedicas.com.br]. Acesso em 15/03/2021. 1.2 Breves Comentários sobre Responsabilidade Civil A palavra “responsabilidade” deriva do latim “respondere” trazendo em si a percepção de preservação, de reparação ou ressarcimento daquilo que foi lesado, como descrito por Rui Stoco:3 “A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana”. A responsabilidade civil impõe ao indivíduo que repare um dano causado a outrem, seja este de ordem patrimonial (material) ou moral. Dependendo de quem causou o dano, tem-se caracterizadas duas categorias de responsabilidade: direta, quando o dano advém de um ato praticado por si próprio, e indireta, quando o dano for provocado por alguém pelo qual esta pessoa responda ou por alguma coisa que a ela pertença. A obrigação de reparar um dano pode também derivar de um impositivo legal, onde o ordenamento jurídico, por si só, o institui. Ressalta-se que além de sua função primordial, qual seja, a reparação ou indenização pelo dano sofrido, a responsabilidade civil assume um caráter preventivo e educativo quando, a partir do reconhecimento do dano e da imputação de sua reparação, projeta-se que a conduta ilícita praticada não mais venha a ocorrer. 3 STOCO, Rui. Tratado da Responsabilidade Civil: Doutrina e Jurisprudência. 7ª ed. São Paulo: RT, 2007. Atualmente, o papel fundamental da responsabilidade civil baseia-se no princípio da dignidade da pessoa humana (Constituição Federal, art. 1º, inciso III) e visa a restituição integral do status que o ofendido detinha antes de ser lesado. Isto é feito por meio de uma indenização fixada em proporção ao dano. A responsabilidade civil, abarcada no Código Civil vigente, de 2002, busca a reparação do dano seja através do retorno da situação ao status quo ante ou pelo ressarcimento através de um quantum correspondente ao prejuízo suportado pelo ofendido, seja ele de ordem material ou moral, buscando restabelecer a composição do equilíbrio entre as partes e destes com a sociedade, sempre atentando-se à função social do Direito. 1.3 Tipos de Responsabilidade Civil e Pressupostos Com a evolução dos estudos e do melhor entendimento sobre a responsabilidade civil, percebeu-se que não somente a culpa a caracterizaria, considerando-se então a avaliação da responsabilidade ante o risco, como bem corrobora Maria Helena Diniz:4 “A insuficiência da culpa para coibir todos os prejuízos, por obrigar a perquirição do elemento subjetivo da ação, e a crescente tecnização dos tempos modernos, caracterizado pela introdução de máquinas, pela produção de bens em larga escala e pela circulação de pessoas por meio de veículos automotores, aumentando assim os perigos à vida e à saúde humana, levaram a uma reformulação da teoria da responsabilidade civil dentro de um processo de humanização. Este representa uma objetivação da responsabilidade,sob a ideia de que todo o risco deve ser garantido, visando a proteção jurídica à pessoa humana, em particular aos trabalhadores e às vítimas de acidentes, contra a insegurança material, e todo dano deve ter um responsável.” 4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Ponderoso avultar que a culpa aqui mencionada é a lato sensu, englobando tanto a culpa stricto sensu quanto o dolo. Por sua vez, para a responsabilidade objetiva não se indaga se a conduta foi ou não culposa, sendo assim resumida por Sérgio Cavalieri Filho5. “Todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou independente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de nexo de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa”. De tal sorte, a reparação do dano segundo a Teoria do Risco, que justifica a responsabilidade objetiva, fundamentar-se-á no risco da atividade desenvolvida, não importando se houve ou não culpa do ofensor, uma vez que se entende que qualquer indivíduo que desempenhe uma atividade motiva um risco de dano a outrem. Esta teoria predomina no Código de Defesa do Consumidor, porém, relativamente aos profissionais liberais, prioriza-se a teoria subjetiva, carecendo da prova da culpa, estabelecida no artigo 14, § 4º deste dispositivo. “Art. 14 Omissis... § 4º: A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”. Atesta-se a aplicação deste artigo no seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível Nº 70050277201, de relatoria de Tasso Caubi Soares Delabary 6 em que não houve configuração do erro médico a partir da análise de verificação da culpa, amparada no artigo referido. Resta evidente, diante do exposto, que a teoria objetiva prevalece no Código de Defesa do Consumidor mas, em se tratando de profissionais liberais, aplica-se a 5 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10ª. ed. São Paulo: Atlas, 2012. 6 APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESCRIÇÃO DE MEDICAMENTO. ERRO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. NÃO CONFIGURAÇÃO. A responsabilidade do médico é apurada mediante a verificação da culpa, nas modalidades de negligência, imperícia e imprudência, na esteira do art. 14, § 4º, do CDC. (...) Sentença de improcedência mantida. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70050277201, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em 29/08/2012) teoria subjetiva, sendo inevitável a configuração da culpa para a tipificação do dever de reparação, sendo este um dos pressupostos da responsabilidade civil. Assim como a culpa, persistem como pressupostos da responsabilidade civil o dano e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano. A responsabilização de alguém, no âmbito civil, depende substancialmente do dano, ainda que presumido, como característica essencial, posto que, ausente este, não há que se falar em reparação, em dever de indenizar, ou seja, em responsabilidade civil. O dano pode ser tanto patrimonial quanto moral. Há, inclusive, uma súmula do Superior Tribunal de Justiça que reconhece a cumulatividade do dano moral com o patrimonial. Súmula 37 do STJ: São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato. Destaca-se que ao tratar-se de profissionais médicos, a responsabilidade civil que a estes recai é a subjetiva, havendo que comprovar-se a culpa em uma de suas três modalidades, quais sejam: imprudência, imperícia e negligência. Rui Stoco 7assim as conceituam: “a) imprudência, visto como o comportamento apressado, exagerado ou excessivo; b) negligência, que ocorre quando o agente se omite e deixa de agir quando deveria fazê-lo ou deixa de observar regras de bom senso, que recomendam zelo e cuidado e c) imperícia, verificada pela atuação profissional desqualificada, sem conhecimento técnico e científico, conduzindo ao dano.” Contextualizando a culpa no desempenho médico, Gomes e França 8 discorrem o seguinte: “erro médico é o dano provocado no paciente pela ação ou inação do médico, no exercício da profissão, e sem a intenção de cometê-lo. Há três 7 STOCO, Rui. Tratado da Responsabilidade Civil: Doutrina e Jurisprudência. 7ª ed. São Paulo: RT. 2007. 8 GOMES, Júlio Cézar Meirelles, FRANÇA, Genival Veloso. Erro médico. In: COSTA, Sérgio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel; GARRAFA, Volnei (coord.). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina; 1998. possibilidades de suscitar o dano e alcançar o erro: imprudência, imperícia e negligência.” Mister frisar que há situações em que ainda que tenha o agente praticado uma conduta danosa, se esta não estiver diretamente relacionada aos prejuízos sofridos pelo ofendido, não se falará em obrigação de reparação, recaindo sobre as excludentes da responsabilidade, quais sejam: culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior e fato de terceiro. Feitas essas breves considerações acerca da responsabilidade civil de maneira geral, passemos à análise referente aos preceptores, médicos residentes e acadêmicos de medicina. 1.4 O Preceptor e o Médico Residente A Residência Médica primeiramente foi regulamentada pelo Decreto n.º 80.281, de setembro de 1977, criando a Comissão Nacional de Residência Médica. Já em 1981, a Lei n.º 6.932, dispôs sobre as atividades do médico residente. O Artigo 1º da supracitada Lei conceitua a residência como sendo uma modalidade de ensino de pós-graduação, com treinamento em serviço sob a orientação de profissionais médicos, ou seja, um processo de capacitação conduzido. Isto posto, depreende-se da letra da lei que o residente deve estar sob a constante supervisão de um preceptor experiente e qualificado. Importante destacar que muitas vezes a residência se confunde com o trabalho, e a força de trabalho do residente ultrapassando o objetivo maior do programa de residência que é a instrução, o conhecimento. Desta mesma maneira asseveram Pessoa e Constantino.9 “A força de trabalho do residente, reconhecidamente importante em todos os hospitais com programa de 9 PESSOA, José Hugo Lins; CONSTANTINO, Clóvis Francisco. O médico residente como força de trabalho. Rev.SOC. CARDIOL. Estado de São Paulo, v.12, n.6, 2002. residência médica deve ser vista e utilizada no sentido de que esse é um momento aprendizagem. Ou seja, o atendimento prestado pelo residente, isoladamente, não é o objetivo da inserção do mesmo no programa”. Tendo em vista a posição de estudante do residente e a imposição legal de que esteja sempre atuando sob supervisão, conjectura-se que seja menos provável que responda civilmente quanto à sua atuação no programa de residência. Porém, o Código de Ética Médica consolida a consciência de que, sendo o residente um médico inscrito no Conselho, ele apropria-se do compromisso direto por seus atos, não lhe sendo concedida a alternativa de imputar seu insucesso a outrem. O Conselho Nacional de Residência Médica e o Conselho Federal de Medicina10 disciplinam o tema na mesma perspectiva do Código de Ética. “De acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Residência Médica, estes profissionais deveriam estar sob supervisão permanente, de modo que seus erros refletiriam legalmente na responsabilidade do médico supervisor. Todavia, sua responsabilidade não seria escusada, já que até mesmo a autarquia entende que não há como isentar os médicos residentes da responsabilidade jurídica por eventuais danos, uma vez caracterizada a prática do ato ilícito.” Relativamente à responsabilidade ética do preceptor, no tocante ao residente, o Conselho Federal de Medicina11 pactua com a teoria do professor Genival 10 Conselho Federal de Medicina (CFM). Parecer nº3/1992. Relator: Hilário Lourenço de Freitas Junior. Disponível em: www.portalmedico.org.br/pareceres/ CFM/1992/3_1992.htm. Acesso em 15/03/2021. 11 PROCESSO-CONSULTA CFM Nº 0913/91 -- PC/CFM/Nº 03/1992 –No que tange a responsabilidade ética do preceptor, por atos médicos realizados por Médicos Residentes sob a sua supervisão, entendemos que tal responsabilidade é consequente ao caráter peculiar da tarefa da preceptoria, redundando no que o Prof. Genival Veloso de França, em seu livro "Direito Médico", define por "Responsabilidade Derivada" ou "Responsabilidade Compartida". Nela cada membro de uma equipe médica carrega consigo a corresponsabilidade por atos médicos executados no âmbito da instituição prestadora da assistência médica. Concluindo, entendemos que tanto o Médico Residente quanto o Preceptor estão passíveis de responderem ética e juridicamente por atos médicos realizados bastando, para tanto, que cada instância judicante defina a responsabilidade a ser atribuída a cada membro da equipe médica pelo ato médico realizado. Veloso de França que sustenta a Responsabilidade Derivada ou Compartida entre os membros da equipe médica. Contudo, o entendimento majoritário é o de que, sendo médico, o residente se enquadra na responsabilidade subjetiva respondendo, quando demandado no polo passivo, juntamente com o preceptor ou supervisor da residência.12 Nesta mesma esteira de raciocínio Miguel Kfouri Neto13 considera até mesmo falar-se em culpa presumida quando o residente executa uma ação para a qual ainda não está devidamente preparado, mas adverte que haverá uma imprudência do médico preceptor que permita que o residente seja colocado à frente de uma situação para a qual não esteja preparado, visto que está em processo de aprendizagem para uma atuação mais especializada. Desta feita, vê-se que o residente pode ser perfeitamente inserido na responsabilidade civil subjetiva, caso pratique ato danoso. O entendimento majoritário se dá no sentido de que o residente responderá por seus atos na mesma proporção que o preceptor, conforme assevera Jurandir Sebastião14. “Para a lei no que diz respeito ao dever de indenizar nos casos de dano ao paciente (erro médico), ou responder por crime cometido (interesse público), não há qualquer distinção entre médicos. Residente ou não, clínico geral ou especialista, todos são iguais.” O Tribunal de Justiça de São Paulo tem julgado com essa percepção de que não há diferenciação entre o preceptor e residente, consoante se infere da decisão da Apelação n. 0057761-21.2012.8.26.0114, de relatoria de Heloísa Mimessi15 onde ambos, preceptor e residente foram responsabilizados pelo óbito 12 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2019. 13 Idem. 14 SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade Médica Civil, Criminal e Ética. Del Rey, 1998. 15 RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ERRO MÉDICO. Óbito de neonato cinco dias após o nascimento. Utilização de fórceps no parto. Laudo do IML que indica como causa da morte um hematoma intracraniano, provocado por um instrumento contundente. Acervo probatório dos autos que permite associar a utilização do fórceps ao resultado danoso. Responsabilidade solidária entre o Hospital, conveniado com o Município, o Município e os médicos. Responsabilidade do médico residente, que conduziu o parto, e do médico preceptor. Precedentes deste de um neonato cinco dias após seu nascimento em virtude da utilização do fórceps no parto. Em sentido diverso, há julgados em que se concebeu a adequação da responsabilidade do residente, graduando a sua culpa, uma vez que este está na condição de aprendiz de uma especialidade, em processo de formação e aprimoramento. Para essa corrente minoritária ao julgar preceptores e residentes da mesma maneira, como se estivessem no mesmo patamar de conhecimento científico e técnico, fere-se o princípio da isonomia, pois está-se dando tratamento igual a um desigual. Uma decisão do Tribunal de Justiça do Paraná, na Apelação 00023513320088160037, julgada em novembro de 2018, de relatoria de Luiz Cezar Nicolau16, isentou de culpa um residente que, constatando a necessidade de um parto de emergência para o qual não se sentiu capaz de realizar, ainda mais por não estar sob a supervisão do preceptor, fez contato com este que somente após duas horas efetuou o ato cirúrgico. Nesta decisão, como o médico preceptor não fora demandado, entendeu-se pela responsabilidade objetiva do hospital que não garantiu à autora o atendimento de urgência necessário, TJSP. DANOS MORAIS. Dano moral puro e irretorquível. Pedido indenizatório procedente. Redução do valor indenizatório. DANOS MATERIAIS. Em se tratando de família de baixa renda, pensão mensal devida no período em que o filho presumivelmente contribuiria com o orçamento familiar. Precedentes do E. STJ e deste TJSP. Recurso dos autores, recursos dos réus. 16 APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PROCEDIMENTO MÉDICO. PARTO DE URGÊNCIA. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. MÉRITO. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA DO PROFISSIONAL. MÉDICO RESIDENTE. PROCEDIMENTO QUE EXTRAPOLA O ÂMBITO DA MEDICINA GENERALISTA. PARTO CIRÚRGICO ATINENTE À RESIDÊNCIA MÉDICA FREQUENTADA PELO PROFISSIONAL. MÉDICO RESIDENTE QUE DEVE ATUAR SOB SUPERVISÃO CONTÍNUA DE UM MÉDICO PRECEPTOR. ATO CULPOSO NÃO COMPROVADO. DEMORA PARA REALIZAÇÃO DA CIRURGIA QUE NÃO PODE SER IMPUTADA AO RESIDENTE QUE DIAGNOSTICOU A NECESSIDADE DO ATO MÉDICO CIRÚRGICO EM TEMPO ADEQUADO. INDÍCIOS NO SENTIDO DE QUE HOUVE OMISSÃO DO HOSPITAL EM MANTER EQUIPE CIRÚRGICA DE PRONTIDÃO PARA ATENDER A EMERGÊNCIA NO DIA DOS FATOS. CIRURGIA REALIZADA PELO MÉDICO PRECEPTOR APENAS DUAS HORAS APÓS O DIAGNÓSTIDO DO MÉDICO RESIDENTE. MÉDICO PRECEPTOR QUE, ADEMAIS, NÃO FORA DEMANDADO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO RESIDENTE QUE DEVE SER AFASTADA. EVIDÊNCIA DE FALHA DO SERVIÇO HOSPITALAR. ESTABELECIMENTO QUE NÃO GARANTIU CONDIÇÕES DE ATENDIMENTO DE URGÊNCIA À AUTORA, POR MÉDICO DEVIDAMENTE HABILITADO PARA O PROCEDIMENTO (CIRURGIÃO E ANESTESISTA). RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO HOSPITAL. SENTENÇA MANTIDA NESTE PONTO. DANOS MORAIS. QUANTUM INDENIZATÓRIO. JURISPRUDÊNCIA DESTA CÂMARA. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO. RECURSO DE APELAÇÃO (1) A QUE SE NEGA PROVIMENTO. RECURSO DE APELAÇÃO (2) PROVIDO, POR MAIORIA DE VOTOS. caracterizando a falha na prestação do serviço, não reconhecendo a culpa do residente que atuou de maneira diligente e dentro do que preconiza a lei que versa sobre a residência médica. Teresa Ancona Magalhães17 segue esta mesma linha de pensamento ao dizer que “o clínico geral deve ser tratado com maior benevolência que o especialista.” Insta destacar a decisão do Ministro Ruy Rosado18, no REsp 316.283/PR, defendendo a percepção de que nem todo médico pode ser tratado de forma igual, pois há inúmeros fatores que devem ser levados em consideração como “as condições pessoais do médico e as circunstâncias de sua atuação, que serão muito distintas entre o único médico de um pequeno hospital do interior e o especialista que tem à sua disposição a sofisticada aparelhagem do hospital de referência.” A supracitada decisão se reporta à concordância com a gradação da culpa do residente ao distinguir que “ele não está capacitado por si mesmo para efetuar toda classe de atividades médicas, pois se submete a uma espécie de aprendizagem, e seus atos estão sujeitos à supervisão do médico titular do serviço”19. Isto colaboraria para que a responsabilidade civil recaída sobre o residente se desse em uma dimensão inferior à do preceptor na ocorrência de execução de um ato médico com culpa comprovada, ainda que preparado para a realização desse procedimento. Tem-se no Direito um amparojurídico para a justa atenuação da indenização, que deve ser proporcional à culpa do agente. Veja-se o artigo 944, parágrafo único do Código Civil que elucida que em caso de “excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.” 17 MAGALHÃES, Teresa Ancona Lopez de. Responsabilidade civil dos médicos. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.) Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1984. 18 REsp 316.283/PR, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 18.12.2001 19 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2019. Frente a isto Miguel Kfouri Neto20 corrobora a possibilidade de o juiz comparar as condutas, levando em consideração o grau de formação do profissional (médico especialista ou residente). “Nosso Código, ao restaurar a tradicional gradação da culpa, para determinar a extensão da indenização, em leve, levíssima e grave, faz com que o juiz estabeleça comparações entre condutas, observadas as mesmas condições e iguais circunstâncias de tempo e lugar.” Perante todas essas argumentações, o Ministro Aldir Passarinho21 em seu voto no Apelação 00158831620118260482 do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgado em fevereiro de 2108, apesar de acreditar que seja possível abrandar a responsabilidade do residente em relação a seu preceptor, mostrou certa preocupação com tal condução em razão de que isso poderia cooperar para uma omissão das pessoas sobre as quais não se incidiria a responsabilidade, fazendo com que desabituassem-se a agir com o devido cuidado e competência. “Compreendo as razões que tendem a atenuar a responsabilidade do residente em relação ao médico orientador, mas, parece-me, ainda é melhor que assim não se faça para que não se estimule exatamente o oposto, que é a omissão das pessoas que, não-sujeitas diretamente a uma responsabilidade, poderiam com isso deixar de atuar com eficiência, dedicação e zelo que são impostos, ainda mais em uma profissão dessa natureza, que lida com a saúde dos seres humanos. De modo que, prefiro 20 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 10ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2019. 21 APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. Demanda que envolve a reparação de prejuízos advindos da prestação defeituosa de serviços médicos. PRESCRIÇÃO. Inocorrência. Demanda ajuizada antes do prazo quinquenal. TRANSFERÊNCIA DE GESTÃO DO HOSPITAL. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE. Inocorrência. A sucessão empresarial somente pode ser usada como fundamento para eventual ação de regresso; jamais para eximir-se de eventual responsabilidade perante o consumidor. RESPONSABILIDADE DO MÉDICO RESIDENTE. Possibilidade. O residente é profissional médico habilitado perante o Conselho Regional de Medicina, formado na faculdade de medicina, e está sujeito a responder por eventual descumprimento dos deveres inerentes à atividade profissional. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO HOSPITAL. Possibilidade. A partir do momento em que o hospital admite a residência, o médico residente torna-se seu preposto. ERRO MÉDICO. Ocorrência. Paciente que fora erroneamente diagnosticado com cólica renal em hipótese de apendicite aguda. Sofrimento além do necessário. Culpa do médico verificada na conduta negligente de liberar o paciente sem a adoção de quaisquer medidas capazes de conferir maior grau de segurança ao seu diagnóstico. DANO MORAL. Ocorrência. Existência de lesão a direito de personalidade. Quantum debeatur fixado em atenção ao princípio da dupla finalidade de reparação, bem como aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade. Sentença reformada. RECURSO PROVIDO acompanhar o voto do eminente Sr. Ministro-Relator, não conhecendo do recurso. Penso que a responsabilidade é por igual, todos são médicos”. Em alguns casos o residente poderá ser responsabilizado por uma ação que exclusivamente ele desempenhou, sem que reste omissão ou negligência do preceptor. Neri Tadeu Câmara22, de forma primorosa aclara este ponto. “Poderemos igualmente ter uma situação em que não há a atuação, ou omissão do médico preceptor, ou seja, é exclusivamente do médico residente o atuar que vem a causar um dano ao paciente. Este, então, é quem poderá vir a ser responsabilizado pelo dano sofrido pelo paciente como decorrência de seu agir culposo. Mas, mesmo neste caso, em determinadas situações de atendimento, poderá também o médico preceptor, assim como o hospital, vir a ser responsabilizado em virtude da obrigação legal de fiscalização, vigilância, supervisão, orientação, da atividade de aprimoramento profissional (especialização) em serviço do médico residente, com presença física, obrigatória, respeitadas as circunstâncias, peculiaridades, do caso concreto, do preceptor nos atos médicos”. O presente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo da Apelação Cível 0012833-67.2013.8.26.0625 de relatoria de Rosangela Telles23, evidencia a 22 Neri Tadeu Câmara Souza, in: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article &id=20445:responsabilidade-civil&utm_source=blog&utm_campaign=rc_blogpost, visitado em 16.03.2021). 23 Paciente que fora internado para realização de procedimento cirúrgico de "hérnia lombar" e teve sua artéria ilíaca atingida, em decorrência de imperícia médica. Falha na prestação do serviço caracterizada. RESPONSABILIDADE DO MÉDICO RESIDENTE. O médico residente é profissional habilitado perante o Conselho Regional de Medicina e está sujeito a responder por eventual descumprimento dos deveres inerentes à atividade profissional. No presente caso, o residente participou diretamente do procedimento e assinou a ficha de cirurgia do paciente, de modo que deve ser responsabilizado. RESPONSABILIDADE DO MÉDICO PRECEPTOR. A regulamentação da residência médica exige a presença física do preceptor no serviço, orientando e supervisionando o residente. Ausência do preceptor que configura negligência médica. Denunciação da lide que, nessa hipótese, deve ser acolhida para reconhecer a responsabilidade da pessoa jurídica por meio do qual o médico preceptor prestava seus serviços ao hospital. DANO MORAL. Ocorrência. Inequívoca a dor e a angústia suportadas pela autora em virtude do falecimento de seu marido. Quantum indenizatório mantido, em atenção ao princípio da dupla finalidade de reparação. PENSÃO MENSAL DEVIDA À VIÚVA. Cabimento. Fixação em um salário mínimo mensal, desde a data da morte da vítima até o dia em que completaria 70 anos de idade. SUCUMBÊNCIA. Redistribuição dos ônus sucumbenciais. HONORÁRIOS RECURSAIS. Fixação em desfavor do réu ROMEL. RECURSO DO HOSPITAL E DA AUTORA PARCIALMENTE PROVIDOS. RECURSO DO CORRÉU ROMEL NÃO PROVIDO”. condenação do residente por cirurgia por ele realizada, sem a supervisão do preceptor. Porém o preceptor foi responsabilizado por negligência em virtude do descumprimento do dever legal de orientar e supervisionar constantemente o residente em seus atos. Outrossim, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação 0145634882001819000, de relatoria de Elton Martinez Carvalho Leme24, responsabilizou o residente de anestesia por dano causado à paciente pela incorreta administração de mistura gasosa inadequada durante o procedimento. O médico preceptor ausentou-se da sala cirúrgica sem deixar nenhum substituto e a concordância do residente em ficar só, sem supervisão, fez com que ele assumisse o risco e a responsabilidade pelo evento. Imprescindível recordar que o médico não responde apenas na esfera cível em caso de dano ao paciente, mas também pode responder na esfera penal e administrativa, junto ao seu Conselho de classe. Com o avanço da ciência e a ininterrupta mudança da sociedade e dos tempos, João Lobo Antunes25 enfatiza as transformações do atuar médico. “A profissão médica mudou apreciavelmente, nos últimos anos, com profundas consequências sociais e até jurídicas. O progresso do conhecimento tornou a medicina cada vez mais complexa, arriscada e perigosa, sendo o processo de decisão, com as respetivas implicações éticas e jurídicas, sobremaneira mais difícil. A decisão em medicina não é um mero exercício racional apoiado em instrumentos analíticos, em “guidelines” ou na medicina baseada na evidência. Diferentemente, ela terá de ser sempre 24APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. MÉDICO- ANESTESISTA. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DA MÉDICA DESIGNADA PARA OUTRA CIRURGIA. ACOLHIMENTO. PRESCRIÇÃO SUSCITADA EM APELAÇÃO. REJEIÇÃO. INCIDÊNCIA DO PRAZO VINTENÁRIO DO ART. 177 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. ENTENDIMENTO DO STJ. CIRURGIA DE CORREÇÃO DE ESTRABISMO. SEQUELAS NEUROLÓGICAS ATRIBUÍDAS A ERRO ANESTÉSICO. CULPA COMPROVADA. NEXO DE CAUSALIDADE DEMONSTRADO. HIPOXEMIA. LAUDO PERICIAL CONCLUSIVO. RESPONSABILIDADE DA MÉDICA PRECEPTORA E DO MÉDICO-RESIDENTE. SEQUELAS IRREVERSÍVEIS EM FILHA DE DOIS ANOS DE IDADE. DANOS MATERIAIS. LUCROS CESSANTES DA MÃE. COMPROVAÇÃO. DANO MORAL CONFIGURADO. MAJORAÇÃO. PROVIMENTO PARCIAL DO PRIMEIRO RECURSO E DESPROVIMENTO DOS SEGUNDO E TERCEIRO RECURSOS. 25ANTUNES, João Lobo. Medicina e direito – intersecções. In: Tribunal da Relação de Lisboa - Uma casa da Justiça com rosto, Lisboa: edição do Tribunal da Relação de Lisboa, 2010. sustentada por um núcleo de ciência envolvido em compaixão, humildade e responsabilidade. Na essência, trata-se de uma “arte volitiva”. A medicina tem uma base pré-interventiva, que é o suporte da convicção, não sendo suscetível de uma racionalização completa. A medicina é uma epistemologia (conhecimento) moral (valores). Daí decorre uma responsabilidade mais profunda.” Vê-se que a responsabilidade civil do preceptor e do residente é averiguada a partir da constatação da culpa respondendo ambos pelo dano causado e comprovado. Se haverá ou não a graduação da responsabilidade, isso dependerá da corrente jurídica adotada por cada tribunal. 1.5 O Preceptor e o Acadêmico de Medicina A formação academia do médico inclui toda uma preparação teórico-prática, em que os estudantes devem acompanhar um profissional médico nas consultas, cirurgias e demais procedimentos, caracterizando os períodos de estágio e internato. Do PARECER CFM nº 15/14, destaca-se que o internato tem característica de estágio que ocorre em um ambiente de trabalho, sempre supervisionado. “A complementação do ensino médico tem no internato característica de um estágio. O estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, consoante Lei n° 11.788 de 25 de setembro de 2008.” O acadêmico, por ainda não ser formado e ter registro no Conselho, relativamente à responsabilidade civil responderá de forma objetiva e direta, haja vista que não é um profissional liberal. Neste diapasão, não haverá que se comprovar a culpa, basta o dano e a certificação da conduta. Miguel Kfouri Neto26 ressalta que, não sendo médico, o acadêmico responderá com os demais prepostos do hospital pela execução de atividades paramédicas. Assim como o residente, o acadêmico necessita de supervisão constante de um médico responsável e, estando devidamente acompanhado por um profissional inscrito no CRM, pode realizar procedimentos clínicos. Caso execute alguma conduta desacompanhado do preceptor incorrerá em exercício ilegal da medicina que é crime tipificado no artigo 282 do Código Penal, com pena de detenção de 6 meses a 2 anos e, se com objetivo de lucro, caberá multa. Nestes sentido, tem-se o PARECER CRM-MG Nº222/2020 – PROCESSO-CONSULTA Nº157/2020.27 CONSIDERAÇÕES DO RELATOR (Cons. José Nalon de Queiroz) A formação curricular do médico nas Faculdades de Medicina passa por fases sucessivas e de complexidade crescente de aprendizado teórico- prático, iniciando pelo ciclo básico, com prevalência de carga teórica. A seguir vem o ciclo profissionalizante, em que surge, agregada aos ensinamentos teóricos, a atividade prática de treinamento ambulatorial e hospitalar, sob a supervisão direta de professor preceptor, o qual orienta e assina, assumindo total responsabilidade sobre os atendimentos prestados, seja em ambulatório ou enfermaria. Na última fase curricular, denominada internato, com duração em torno de dois anos, acentua-se a atividade prática com diminuição significativa das aulas teóricas, prevalecendo neste período as discussões de caráter eminentemente prático, além das sessões clínicas. É o aprender fazendo, interagindo com os pacientes e familiares. Permanece a responsabilidade integral do atendimento sobre o professor preceptor. A execução de atos médicos por estudantes sem supervisão médica configura-se como exercício ilegal da medicina, assumindo o estudante a responsabilidade 26 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2019. 27 BRASIL. Ministério da Educação. Portal MEC. Acesso em 15/03/2021. criminal de seus atos, pois sobre ele não existe qualquer poder dos CRMs, podendo ser a instituição responsabilizada ética e criminalmente, na figura de seus diretores médicos, Clínico e Técnico. O médico preceptor não pode, em qualquer hipótese, entregar ao estagiário o seu receituário ou da instituição, previamente assinado com as folhas em branco, pois estará incorrendo em infração ética aos artigos 33 e 39 do Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.246/1988).” Na hipótese de gerar algum dano ao paciente, conforme a Resolução CNE n.º 03 de 2014, os acadêmicos não serão penalizados do ponto de vista ético pelo fato de não estarem habilitados para o exercício da Medicina, conquanto podem responder civil e/ou criminalmente. 1.6 Considerações Finais A responsabilidade civil, como já dito anteriormente, é um dos temas mais espinhosos do Direito e pode-se constatar isto através de todo o exposto no presente artigo. Não há claramente uma lei que defina a responsabilidade civil do Preceptor, do Residente e do Acadêmico de Medicina e os julgados mostram que os tribunais apresentam diferentes teses para a imputação dessa responsabilidade, sobretudo a do residente no que tange à gradação da mesma. No entanto, infere-se que esses profissionais, assim como o acadêmico de medicina devem estar sempre atentos às suas competências, atreladas ao disposto na legislação vigente, resoluções dos Conselho e do Ministério da Educação, a fim de atuarem com zelo, dedicação e atenção buscando praticar com excelência esta arte tão multifacetada, complexa e necessária. 1.7 Referências ANTUNES, João Lobo. Medicina e direito – intersecções. In: Tribunal da Relação de Lisboa - Uma casa da Justiça com rosto. Lisboa: edição do Tribunal da Relação de Lisboa, 2010. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito Civil: Teoria geral das obrigações. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Direito Civil. Apelação n. 70050277201, Nona Câmara Cível. Relator: Des. Tasso Caubi Soares Delabary. Julgado em 29, ago. 2012. BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação n. 00023513320088160037 PR 0002351-33.2008.8.16.0037 (Acórdão), 8ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Clayton de Albuquerque Maranhão. Julgado em 08, nov. 2018. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 0012833- 67.2013.8.26.0625, 2ª Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargadora Rosangela Telles. Julgadoem 03, set. 2019. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 0057761- 21.2012.8.26.0114, 5ª Câmara de Direito Público, Relator: Desembargadora Heloísa Martins Mimessi. Julgado em 28, maio 2018. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 0015883- 16.2011.8.26.0482, 2ª Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargadora Rosangela Telles. Julgado em 19, fev. 2018. BRASIL. Conselho Federal de Medicina (CFM). Parecer nº 3/1992. Relator: Hilário Lourenço de Freitas Junior Disponível em: www.portalmedico.org.br/pareceres/ CFM/1992/3_1992.htm. Acesso em 15/03/2021. BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Pareceres. Acesso em 15/03/2021 https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2002/13 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação n. 01456348820018190001, 17ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Elton Martinez Carvalho Leme. Julgado em 16, nov. 2011. BRASIL, Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica. Acesso em 16/03/2021. https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf BRASIL. Código Civil. Acesso em 16/03/2021. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6932.htm BRASIL. Código Penal. Acesso em 18/03/2021. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm BRASIL. Ministério da Educação. 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Acesso em 18/03/2021. https://www.revistas.usp.br/sej/article/view/142266/137463 MACHADO, Yasmin Aparecida Folha; VIANNA, José Ricardo Alvarez. Necessidade de Equalização da Responsabilidade Civil do Médico Residente. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLLI, Rafaela (Coord.) Debates Contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: RT, 2020. MAGALHÃES, Teresa Ancona Lopez de. Responsabilidade civil dos médicos. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.) Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1984. NERY Jr., Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Fato de Outrem. 2 ed. São Paulo: RT, 2000. PESSOA, José Hugo Lins; CONSTANTINO, Clóvis Francisco. O médico residente como força de trabalho. Rev.SOC. CARDIOL. Estado de São Paulo, v.12, n.6, 2002. ROSENVALD, Nelson; MILAGRES, Marcelo (coord.) Responsabilidade Civil – Novas Tendências. São Paulo, 2017. STOCO, Rui. Tratado da Responsabilidade Civil: Doutrina e Jurisprudência. 7ª ed. São Paulo: RT, 2007. https://www.revistas.usp.br/sej/article/view/142266/137463 2. O DEVER DE INFORMAR NA PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Alessandra Alves de Vasconcelos28 28 Alessandra Alves de Vasconcelos. Advogada. Mestre em Ciências da Saúde. Pós-graduação em Bioética e Direito da Saúde. E-mail: ale_vasconcelos@hotmail.com. 2.1 Introdução A questão da violência contra a mulher em qualquer fase da vida e em qualquer lugar do mundo é tema de estudo recorrente em várias áreas do conhecimento. A cada dia novas teorias são reveladas e discutidas, novos conceitos aparecem, mas a violência contra a mulher permanece. A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz em seu artigo 3° que “todo indivíduo tem o direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa” e em seu artigo 5° que “ninguém será submetido a torturas nem a penas ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.29 Dessa forma, não se admite que tantas mulheres tenham seus direitos violados sendo agredidas, humilhadas e passem por situações constrangedoras nas instituições de saúde brasileiras. Este breve artigo tem o objetivo de abordar algumas das formas com que as mulheres são tratadas nestes espaços de atenção à saúde quando se sentem vulneráveis e desprotegidas, por desconhecer o que estar por vir no processo de parturição e como o dever informacional pode contribuir para a prevenção da violência obstétrica. 2.2 Da violência obstétrica A definição de violência segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) se refere à imposição de uma pessoa a um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis. Enquanto, a violência contra a mulher, abarca não somente a violência física, mas a sexual e psicológica também. Conforme discutido na Convenção de Belém do Pará, "[...] inclui qualquer ato ou conduta baseada no gênero, causando morte, dano ou sofrimento de ordem física, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada".30 29 ONU.Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em:< https://brasil.un.org/pt- br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 17 mar.2021 30 COMITÊ LATINO-AMERICANO E DO CARIBE PARA A DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER. Instituto para Promoção da Equidade, Assessoria, Pesquisa e Estudos. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, 'Convenção Belém do Pará'. São Paulo: KMG, 1996. A Venezuela foi o primeiro país latino-americano a adotar a expressão “violência obstétrica” em uma lei de 2007, a Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violência, advinda de reivindicações de parte do movimento feminista local e do processo de reconhecimento institucional da violência contra a mulher como um problema social,político e público.31 A violência institucional obstétrica está relacionada a um tipo de violência praticada pelas equipes de saúde com o consentimento das mulheres durante o trabalho de parto. Estas se submetem a esse tipo de violência por desconhecerem o processo fisiológico do parto, por não serem informadas sobre as melhores práticas de assistência, por temerem pela vida do bebê e pela condição de desigualdade entre médico e paciente ou simplesmente por acreditarem que “é assim mesmo”.32 Nesse sentido, a violência obstétrica institucional pode ser identificada nas seguintes formas e situações: peregrinação por diversos serviços até receber atendimento; falta de escuta e tempo; frieza, rispidez, falta de atenção, negligência e maus-tratos dos profissionais com os usuários, motivados por discriminação, devido à idade, orientação sexual, deficiência física, gênero, racismo, doença mental; violação dos direitos reprodutivos, aceleração do parto para liberar leitos, preconceitos em relação às mulheres soropositivas quando grávidas; desqualificação do saber prático, da experiência de vida de cada uma, diante do saber científico.33 De acordo com D’Oliveira, Diniz e Schraiber,34 a violência contra as mulheres nas instituições de saúde se subdividem sob quatro aspectos: negligência 31 XAUD, Jeane Magalhães. A cooperação binacional entre o Brasil e Venezuela relativa à rede de enfrentamento da violência praticada contra mulheres. / Jeane Magalhães Xaud. – Boa Vista, 2016. Disponível em: em:<http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFRR_9d601833a54d7bdafccd71d5b990c8a0>. Acesso em: 17.mar.2021. 32 WOLFF, L. R.; WALDOW, V. R. Violência Consentida: mulheres em trabalho de parto e parto. Saúde Soc. São Paulo, v. 17, n. 3, p. 138-151, 2008 33 REDE PARTO DO PRINCÍPIO. Violência Obstétrica “Parirás com dor”: dossiê elaborado para a CPMI da violência contra as mulheres. Brasília: Senado Federal, 2012. Disponível em: <comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20 367.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2021. 34 D'OLIVEIRA, A.F.P.L.; DINIZ, C.S.G.; SCHRAIBER, L.B. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet, v.359, n.11, p.1681-5, 2002. Disponível em: (omissão do atendimento), violência psicológica (tratamento hostil, ameaças, gritos e humilhação intencional), violência física (negar o alívio da dor quando há indicação técnica) e violência sexual (assédio sexual e estupro). No cotidiano dos serviços de saúde, usuárias e profissionais não associam suas práticas como maus-tratos ou violência na assistência ao parto. Em pesquisa realizada por Aguiar 35, as gestantes e os profissionais de saúde consideram essas práticas como rotineiras ou como resposta dos profissionais às parturientes que demandam uma maior atenção às suas queixas. Os profissionais entrevistados, relacionam a violência à uma agressão física ou sexual, mas não com suas práticas diárias. 2.3 O dever de informação em obstetrícia O direito à informação está previsto no art. 5, inciso XIV, da Constituição Federal como um direito fundamental. Compreende o direito de informar, o direito de se informar e o direito de ser informado.36 O direito de informar consiste na liberdade de transmitir informações a outrem, sem qualquer impedimento pelo Poder Público, pois a todos é concedido o direito à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, sem qualquer restrição, observado o disposto na Constituição. Já o direito de se informar consiste no direito de todos ao acesso à informação. Portanto, é possível exigir a informação de quem a detém, desde que sejam respeitadas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Por fim, o direito de ser informado nasce, sempre, do dever que alguém tem de informar. <https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(02)08592-6/fulltext#back-bib39>. Acesso em 13 mar.2021. 35 AGUIAR, Janaina Marques de. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. 2010. Tese (Doutorado em Medicina Preventiva) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. doi:10.11606/T.5.2010.tde-21062010-175305. Acesso em: 17 mar.2021. 36 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988. https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(02)08592-6/fulltext#back-bib39 Conforme França,37 o dever de informação se refere a todos os esclarecimentos considerados incondicionais e obrigatórios, tais como: necessidade de determinadas condutas e intervenções, seus riscos e consequências, sendo requisito prévio para o consentimento. Dessa forma, o chamado “consentimento livre e esclarecido” não pode ser entendido como apenas mais uma regra para atividade do médico, mas como, a operacionalização do princípio da autonomia e da beneficência, estando dentro de um contexto de uma questão político-social própria das sociedades organizadas que primam pelo bem comum. No campo da obstetrícia um documento ainda pouco utilizado, mas que pode auxiliar a dirimir maus entendimentos e más práticas durante o atendimento da parturiente, é o Plano de Parto. Tal documento pode ser realizado pela própria gestante com a ajuda de familiares, doulas, enfermeiras e pelo próprio médico que atende as consultas do pré-natal. Consiste na descrição dos desejos da mulher a respeito da assistência médica e hospitalar e dos procedimentos a serem realizados durante o pré-parto, parto, puerpério e nos cuidados com o recém-nascido. Na impossibilidade da sua realização, quais os procedimentos podem ser substituídos e quais não devem ser feitos sob hipótese alguma. Tais questões quando trabalhadas durante a gestação se torna uma ferramenta útil no confronto da violência obstétrica. O Código de Ética Médica38 em seu capítulo V, artigo 34 reforça tal dever, vedando ao médico: “Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar- lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal”. Em atenção ao princípio da autonomia, todo indivíduo tem o direito de ser autor do seu próprio destino, e uma vez que a gestante tem o conhecimento a respeito dos procedimentos que serão realizados durante e após o parto, compreendendo sua necessidade, benefícios ou prejuízos, se torna apta a 37 FRANÇA, Genival Veloso. Direito Médico.15 ed. Rio de Janeiro: Forense,2019. 38 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de ética médica. Resolução CFM n° 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 consenti-los ou não, por meio de documento escrito e com sua assinatura, o chamado Consentimento Informado. Conforme descrito no capítulo IV, art. 22 do Código de Ética Médica39, é vedado ao médico deixar de obter o consentimento informado do paciente ou representante legal, e em seu art.24, trata do direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, sem que o médico exerça sua autoridade para limitá-lo. A falta do dever de informar em obstetrícia reside no fato de muitas vezes o médico não prestar as devidas informações à gestante antes, durante e no pós- parto, sobre os procedimentos que serão realizados e suas consequências. Além de não oferecerem opção à mulher que por força da rotina do estabelecimento e do próprio processo de trabalho, só ficam sabendo que determinado procedimento será feito no momento da sua realização. São inúmeras as vezes em que a mulher é surpreendida sem que tenha tempo de pensar se deseja ou não ser submetida a determinados procedimentos e qual sua real necessidade. Um exemplo decorre do procedimento de episiotomia,o qual é uma prática desnecessária segundo dados da OMS, por não trazer benefícios à mulher. No entanto, é procedimento utilizado de rotina e geralmente sem o devido consentimento da parturiente, pois esta só é avisada da ocorrência do procedimento no momento da realização do ato, algumas vezes seguido da justificativa de que a sutura cirúrgica promove melhor cicatrização que a laceração, que na maioria das vezes nem ocorre, afinal, pessoa sempre nasceram mesmo antes do obstetra e da episiotomia. Dessa forma, tal prática fere o princípio da dignidade humana, causa um dano à integridade física da mulher, que terá um pós-parto doloroso e com maior risco de infecção. 39 Idem. 2.4 Considerações Finais Com o protagonismo e a autonomia da mulher consolidada no que diz respeito ao seu corpo e sua intimidade, qualquer profissional interessado em prestar um atendimento de qualidade à mulher, bem como aos familiares que a acompanham, terão reduzidas as chances de envolvimento em episódios de violência obstétrica se estiverem atentos às oportunidades de diálogo e troca de informações durante os atendimentos. As mudanças nas práticas assistenciais vigentes devem ser direcionadas para a redução e consequente eliminação das intervenções desnecessárias e rotineiras no contexto da atenção à saúde da mulher no ciclo gravídico- puerperal. No entanto, tais mudanças devem começar, sobretudo, na formação do profissional médico, participante indispensável na assistência obstétrica no modelo vigente no Brasil, pois é a formação o momento em que os futuros profissionais devem aprender que o lugar ocupado pela medicina hoje, difere sobremaneira, da medicina de anos atrás, quando a informação era restrita somente aos profissionais da área. Outro ponto que pode auxiliar a dirimir maus entendimentos e más práticas durante o atendimento da parturiente, reside no Plano de Parto, documento realizado pela própria gestante com a ajuda de doulas, enfermeiras e pelo próprio médico que atende as consultas do pré-natal. Apesar de o termo humanizar e seus derivados terem adquirido sentidos diversos, o movimento feminista, trouxe o sentido da humanização com o significado de uma atenção que reconhece os direitos fundamentais de mães e bebês, além do direito à tecnologia adequada baseada nas evidências científicas, o direito à informação proveniente dos médicos e profissionais de saúde que atendem essa mulher tem significativa importância para dirimir casos de violência obstétrica trazendo segurança jurídica aos profissionais que se preocupam verdadeiramente com suas pacientes.. 2.5 Referências AGUIAR, Janaina Marques. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. 2010. Tese (Doutorado em Medicina Preventiva) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. doi:10.11606/T.5.2010.tde-21062010-175305. Acesso em: 17 mar.2021. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988. COMITÊ LATINO-AMERICANO E DO CARIBE PARA A DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER. Instituto para Promoção da Equidade, Assessoria, Pesquisa e Estudos. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, 'Convenção Belém do Pará'. São Paulo: KMG, 1996. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de ética médica. Resolução CFM n° 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019. DINIZ, Carmen Simone Grilo; CHACHAM, Alessandra S. O corte por cima e o corte por baixo: o abuso de cesáreas e episiotomias em São Paulo. Questões de Saúde Reprodutiva, Rio de Janeiro, ABRASCO, v. 1, n. 1, p. 80-91, 2006. Disponível em: < http://www.mulheres.org.br/rhm1/revista1/80-91.pdf >. Acesso em: 15 mar.2021 D'OLIVEIRA, A.F.P.L.; DINIZ, C.S.G.; SCHRAIBER, L.B. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet, v.359, n.11, p.1681-5, 2002. Disponível em: <https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(02)08592- 6/fulltext#back-bib39>. Acesso em 13 mar.2021. FRANÇA, Genival Veloso. Direito Médico.15 ed. Rio de Janeiro: Forense,2019. ONU.Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em:< https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 17 mar.2021 REDE PARTO DO PRINCÍPIO. Violência Obstétrica “Parirás com dor”: dossiê elaborado para a CPMI da violência contra as mulheres. Brasília: Senado Federal, 2012. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(02)08592-6/fulltext#back-bib39 https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(02)08592-6/fulltext#back-bib39 <comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20 367.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2021. WOLFF, L. R.; WALDOW, V. R. Violência Consentida: mulheres em trabalho de parto e parto. Saúde Soc. São Paulo, v. 17, n. 3, p. 138-151, 2008 XAUD, Jeane Magalhães. A cooperação binacional entre o Brasil e Venezuela relativa à rede de enfrentamento da violência praticada contra mulheres. / Jeane Magalhães Xaud. – Boa Vista, 2016. Disponível em: em:<http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFRR_9d601833a54d7bdafccd71d5b990 c8a0>. Acesso em: 17.mar.2021. 3. A INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ÀS RELAÇÕES PACIENTE-MÉDICO Cecilia Edmond A relação de um médico com seu paciente é uma relação existencial, que tem por finalidade precípua a proteção da vida e saúde do enfermo. No cenário atual, essa relação é enquadrada enquanto consumerista, regida, portanto, pelo Código de Defesa do Consumidor. Contudo, o que se observa, é que muitos fatores, tais como a vulnerabilidade do paciente, a vedação a mercantilização da medicina, a responsabilidade com prova de culpa na atividade médica, entre outros fatores, tornam o Código de Defesa do Consumidor um diploma jurídico inadequado de se aplicar à relação paciente-médico. Assim, o presente artigo se propõe a analisar as peculiaridades entre as relações consumeristas e relações paciente-médico, esclarecendo suas diferenças e analisando se o regramento imposto à estas últimas é o adequado as suas peculiaridades. Palavras-chave: relação paciente-médico, Código de Defesa do Consumidor, mercantilista, vida e saúde. 3.1 Introdução O artigo em tela visa examinar, de forma objetiva, o que deu ensejo ao enquadramento da atividade médica enquanto relação consumerista para a maior parte da doutrina e jurisprudência no cenário atual. Inicialmente faz-se uma explanação da natureza jurídica das relações existentes entre consumidores e fornecedores, e entre pacientes e médicos, distinguindo- se o objeto primário que permeia ambas as relações (lucro x vida e saúde). Além disso, questiona-se as vulnerabilidades das partes consideradas fracas nessas relações. Há mesmo coincidência entre essas vulnerabilidades? Ademais, o Código de Defesa do Consumidor, como é sabido, é um microssistema jurídico. Analisamos aqui como é que um microssistema que se propõe a proteger uma determinada relação, tal qual a relação paciente-médico, não faz uma menção sequer a nenhuma dessas nomenclaturas em todo seu diploma jurídico, bem como adota teoria de responsabilidade objetiva que não se aplica a atividade médica, e ainda possui diversos artigos que simplesmente não são possíveis de incidirem na relação do profissional com o enfermo. Por fim, a partir da observação de que a atividade médica se equipara a atividade jurídica, indaga-se o motivo pelo qual estas atividades têm recebido regramentos diversos. 3.2 Incongruências da aplicação do CDC às relações paciente-médico A Medicina é uma ciência complexa, com resultados aleatórios. “Quando se trata da saúdedo ser humano, nunca se poderá afirmar, a priori, que a não obtenção da cura é imputável ao ato médico. Em nenhuma outra atividade profissional o êxito estará sujeito a fatores que refogem por inteiro ao controle quanto na Medicina. Essa realidade não pode ser desconsiderada pelo Direito”. (Kfouri Neto, 2019, p.52) O Direito Médico nasceu e vem se desenvolvendo para cumprir o objetivo de proteger o paciente (sua vida e sua saúde) de uma eventual instrumentalização sua por parte de um profissional da saúde. Foi sob essa perspectiva (a da não instrumentalização do homem por outro homem) que surgiram diversos ramos jurídicos, a exemplo do Direito do Trabalho (proteção do trabalhador em face das tentativas de instrumentalização por parte do empregador) e o Direito do Consumidor (salvaguardar o consumidor, que é visto pelo fornecedor apenas como instrumento de obtenção de lucro). Ocorre que, diversamente do Direito do Trabalho, Direito do Consumidor, assim como tantos outros ramos jurídicos em nosso ordenamento, que já são legislativa e doutrinariamente maduros e consistentes no Brasil, o Direito Médico ainda não estabeleceu institutos e normas que atendam as peculiaridades da relação jurídica que é estabelecida entre o paciente e o seu médico, uma relação completamente especial e suis generis pois tem como objeto a saúde do paciente. O fato de o Direito Médico estar em processo de amadurecimento faz com que hoje ainda não tenhamos, de forma precisa, o fornecimento, aos pacientes e médicos, de ferramentas e parâmetros adequados para que estas partes desenvolvam sua relação da maneira mais harmoniosa possível, estabelecendo direitos e deveres de forma bem clara, como ocorre nos demais ramos jurídicos. Ou seja, tem-se uma lacuna normativa no ordenamento jurídico brasileiro quanto a relação paciente-médico, que termina sendo errônea e forçosamente enquadrada como uma relação consumerista por parte majoritária da doutrina e jurisprudência. A partir de algo já pronto, foi-se na “prateleira dos diplomas normativos” existentes no ordenamento pátrio e se escolheu atribuir à relação paciente-médico um selo consumerista que ela não possui (NILO e SILVA, 2019, p.19), e que é materialmente inadequado para questões bioéticas. Apesar de esse enquadramento ter como intenção proteger o paciente (e isso está correto) é bioeticamente inaceitável reduzir juridicamente a sua saúde a uma mera mercadoria, portanto, trata-se de uma solução descabida, assim como também por tantos outros motivos que serão expostos a seguir. A Lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, é um microssistema jurídico protetivo, com a tutela geral do consumidor. Trata-se de um ramo jurídico que regulamenta o trato entre consumidores e fornecedores e a natureza da relação estabelecida entre eles, qual seja, mercantilista, em que o parâmetro de qualquer decisão é o lucro. O fornecedor oferta o produto/serviço e toma suas decisões em cima desse elemento, e o consumidor adquire o produto/serviço e o exige nos exatos termos do preço que pagou. O lucro é o alicerce de toda a atividade, tanto que o sistema de responsabilidades aqui adotado é o da responsabilidade objetiva (regulada pelas teorias do risco-criado e risco-proveito). Mas enquanto a natureza da relação jurídica estabelecida entre consumidores e fornecedores é mercantil (sendo esta regulada pelo CDC), o mesmo não se pode dizer quanto aos pacientes e médicos. Trata-se aqui indubitavelmente de uma relação jurídica existencial, com valores muito mais caros ao ser humano, sempre com a finalidade de proteger a vida e a saúde em sua integralidade, valores esses que são a dignidade, a autonomia e a liberdade. A Lei 12.842/2013 (Lei do Ato Médico) não deixa dúvidas ao taxar, em seu artigo 2º, que a saúde do ser humano e das coletividades humanas é o objeto de atuação do médico, e que em benefício delas deve agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade, sem qualquer tipo de discriminação. Igualmente diz o Código de Ética Médica, no Princípio II (“o alvo de toda atenção do médico é a saúde do ser humano...”). Dessa forma, não é possível dizer que a natureza jurídica nas relações entre consumidores e fornecedores seja a mesma das relações entre pacientes e médicos. Não há identidade com o objeto primário que permeiam ambas atividades. Na atividade de consumo, o lucro está sempre presente e é o parâmetro de decisão. Já na atividade médica, é vedado o exercício mercantilista da medicina (o Código de Ética Médica prega o humanismo solidário) e o parâmetro de decisão do médico é sempre a vida e a saúde do paciente. Outro ponto a ser questionado acerca da incidência (equivocada) do CDC para as relações paciente-médico é no tangente às vulnerabilidades das partes consideradas fracas dessas relações, quais sejam, o consumidor e o paciente. Será que há coincidência entre essas vulnerabilidades? Elas são exatamente iguais? Vejamos. O Código de Defesa do Consumidor foi elaborado para proteger o consumidor frente a busca desenfreada do fornecedor por lucros exagerados, a fim de que aquele não seja lesado em um contrato mercantil, seja com a aquisição de um produto sem a qualidade que se esperava ou de um serviço que não ofertou a segurança que prometeu, por exemplo. Trata-se, portanto, de uma hipossuficiência técnica e econômica do consumidor em relação ao fornecedor de serviços em massa. O fornecedor é o detentor dos meios de produção e do controle do mercado, e ele sempre terá como fundamento de decisão o lucro. O consumidor, aqui, é o elo mais fraco da economia, e sua vulnerabilidade está estritamente ligada a este fator. Já o Código de Ética Médica foi elaborado para proteger a vulnerabilidade do paciente frente ao conhecimento técnico/científico/específico do médico. Dentro da atividade médica, a vulnerabilidade é o desconhecimento do doente quanto ao seu diagnóstico, prognóstico, tratamento. Decorre da própria patologia, e nesse sentido o profissional deve atuar, através de um discurso humanizado e adaptado para cada paciente, de forma a reduzir essa vulnerabilidade, cumprindo com o seu dever informacional da forma mais clara possível. O médico é a autoridade técnica dentro da relação, e o seu conhecimento científico deve ser utilizado para empoderar o paciente com todo o conhecimento, informações e orientações necessárias para que ele possa resolver, tomar uma decisão esclarecida. Quando o paciente é empoderado, ele assume um lugar de equidade dentro da relação com o médico, e se torna, então, o protagonista. A tomada de decisão passa a ser compartilhada. Portanto, é papel do médico reduzir essa vulnerabilidade cumprindo com o seu dever informacional, e a partir daí, com o paciente devidamente informado, esclarecido, ele se sujeita ao risco apenas se quiser, se assim desejar. É possível inferir, dessa forma, que a vulnerabilidade que atinge os consumidores se dá sob um aspecto mercantil, e tem por finalidade protegê-lo da ambição do fornecedor, enquanto que a vulnerabilidade do paciente é derivada do próprio estado patológico, não havendo aqui nenhum fator econômico. Nesse mesmo sentido, a Professora Samantha Takahashi cita trecho escrito por Alessandro Timbó Nilo, em sua obra Direito Médico: o contrato de Tratamento no Direito Brasileiro, que ratifica todo o exposto acima (2021, p.278): ... o CDC não foi feito para disciplinar a relação paciente- médico, mas sim para regular as atividades de um fornecedor-vendedor mercantil e comercial em face de um consumidor final de um produto ou serviço, dentro da lógica de mercado, sujeito à Teoria do Risco. No entanto, e como visto, a saúde não pode ser reduzida a uma simples mercadoria. Pensar assim é retroceder em toda evolução bioética conquistada, a duras penas, no que tange a dignidade da pessoa humana e
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