Buscar

Gabi Oliveira Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça

Prévia do material em texto

Copyright © 2019 by Editora Letramento
Copyright © 2017, 2018 by Reni Eddo-Lodge
Copyright da tradução ©2019 by Elisa Elwine
Publicado pela primeira vez por Bloomsbury Publishing, Londres, Inglaterra
Diretor Editorial | Gustavo Abreu
Diretor Administrativo | Júnior Gaudereto
Diretor Financeiro | Cláudio Macedo
Logística | Vinícius Santiago
Assistente Editorial | Giulia Staar e Laura Brand
Tradução | Elisa Elwine
Preparação e Revisão | Lorena Camilo
Adaptação de Capa | Luís Otávio Ferreira
Projeto Gráfico e Diagramação | Gustavo Zeferino
Todos os direitos reservados.
Não é permitida a reprodução desta obra sem aprovação do Grupo Editorial Letramento.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
E21p Eddo-Lodge, Reni
Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça / Reni Eddo-
Lodge ; traduzido por Elisa Elwine. - Belo Horizonte : Letramento, 2019.
214 p. ; 15,5cm x 22,5cm.
Tradução de: Why I’m No Longer Talking to White People About Race
Inclui bibliografia e índice.
ISBN: 978-65-86025-06-4
1. Racismo. 2. Raça. I. Elwine, Elisa. II. Título.
 CDD 305.8
2019-1281 CDU323.14
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Índice para catálogo sistemático:
1. Racismo 305.8
2. Racismo 323.14
 
Belo Horizonte - MG
Rua Magnólia, 1086
Bairro Caiçara
CEP 30770-020
Fone 31 3327-5771
contato@editoraletramento.com.br
editoraletramento.com.br
casadodireito.com
mailto:contato@editoraletramento.com.br
http://editoraletramento.com.br/
http://casadodireito.com/
Para T&T
1
2
3
4
5
6
7
APRESENTAÇÃO
PREFÁCIO
HISTÓRIAS
O SISTEMA
O QUE É PRIVILÉGIO BRANCO?
MEDO DE UM PLANETA NEGRO
A QUESTÃO DO FEMINISMO
RAÇA E CLASSE
NÃO HÁ JUSTIÇA, HÁ APENAS NÓS
POSFÁCIO
BIBLIOGRAFIA
AGRADECIMENTOS
NOTAS
APRESENTAÇÃO
No Brasil, nos últimos dez anos, tivemos um avanço significativo em
relação ao debate sobre questões étnico-raciais. Seja por autoras e autores
que se popularizaram, blogs, programas de TV ou pelas redes sociais.
Conceitos e discussões que antes estavam restritos às universidades
chegaram ao grande público, gerando conversas importantes para o
rompimento de uma ideia alimentada por décadas: o mito da democracia
racial.
Mito este que nos fazia crer que raça não deveria ser vista como um
fator determinante às interações do indivíduo, já que fomos
profundamente afetados pelo processo de miscigenação, e com isso
teríamos solucionado o racismo. Racismo esse que era um fenômeno que
acontecia nos Estados Unidos, já que lá houve uma segregação
institucionalizada.
Entretanto, apesar dos avanços e da conscientização de milhares de
pessoas negras, ainda hoje, quando falamos sobre raça, naturalmente
entendemos que o sujeito a ser observado e o que deve falar sobre o
assunto, necessariamente é o que está inserido no que chamamos de
minorias étnicas, traduzindo: todos aqueles que não são considerados
brancos.
Mas, neste momento, quero destacar uma das diversas perguntas que
encontrei no Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre
raça: o poder da branquidade como raça deve ser julgado? Esses e outros
questionamentos e definições trazidos pela autora Reni Eddo-Lodge me
fizeram entender que essa é uma leitura necessária para tirar um grupo da
zona de conforto, e levar outro ao descanso da falta de obrigação. Mas não
é só isso, nas páginas a seguir também encontramos conversas relevantes
sobre comodidade da branquitude, o racismo no movimento feminista, a
intersecção entre raça e classe, a experiência de filhas e filhos negros de
casais inter-raciais ou adotados por pessoas brancas e muitos outros
debates atuais e necessários para que avancemos. Isso tudo com uma
linguagem de fácil entendimento, inclusive para pessoas que nunca
tiveram contato com a temática.
Você pode estar na dúvida se uma autora britânica, que teoricamente
vive uma realidade totalmente diferente da brasileira, teria o que
acrescentar aos debates que temos aqui. Mas, te garanto que, como pessoa
negra ou como pessoa branca, através dessa leitura você perceberá que
essa realidade, na verdade, tem muitas semelhanças, já que por aqui, assim
como por lá, o poder da branquitude é estrutural e estruturante, assim
como o poder segregador do racismo.
Nós não estamos numa era pós-racial e esta publicação confronta
firmemente essa ideia. Não é porque vemos mais pessoas negras nas
diversas mídias ou nas universidade que podemos pensar que o debate
sobre raça e racismo estão esgotados. Tampouco porque estamos na era da
troca, onde muitas pessoas de diferentes etnias passam a não ver problema
em se relacionar. Os grupos de extrema-direita e seu crescente número de
adeptos estão aí nos alertando sobre um novo levante da aceitação da ideia
de supremacia racial. E qual é o papel das pessoas brancas que se dizem
progressistas nesse atual cenário? Como bem citado por Renni a fala do
ativista político Martin Luther King na Letter From the Birmingham Jail:
“[…] a aceitação indiferente é mais desconcertante do que a rejeição
total.” É necessário se movimentar. Diante disso, esse livro passa a ser
uma obra fundamental para que pessoas brancas que se dizem antirracistas
saiam do seu local de culpa pela sua branquitude e pelos seus privilégios,
para uma posição de luta real.
Se você ainda está em dúvida se vale a pena dar continuidade a essa
leitura, acredite em mim, ela pode te fazer refletir sobre questões e te
trazer conceitos que ainda não tinham sido apresentados, já que, apesar da
minha familiaridade com a temática, a minha leitura foi repleta de
destaques e demarcações ao longo do texto, além do despertar de novas
ideias e reflexões.
Esse também é um bom livro para ser dado de presente, já que a Reni
Eddo-Lodge nos fez o grande favor de conversar com pessoas brancas
sobre racismo, para que assim outras pessoas negras, já cansadas de
debates muitas vezes desgastantes, pudessem simplesmente seguir sem a
necessidade de falar mais uma vez sobre racismo com pessoas brancas. E
também para que pessoas brancas, que se comprometem na causa
antirracista, possam ler e presentear seus pares.
Se você é uma pessoa branca que vive perguntando por aí qual é seu
papel na luta contra o racismo, esse livro é para você. Se você é uma
pessoa branca que jamais pensou sobre a sua brancura, esse livro também
é para você. Agora, se você é uma pessoa negra que já não aguenta mais
debates, esse livro também é para você, porque ele vai te trazer a sensação
de que alguém finalmente falou o que você sempre quis gritar aos quatros
ventos.
Desejo uma desconfortável, mas agradável, leitura para todas e todos
vocês.
Gabi de Pretas
Graduada em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e criadora do canal DePretas por Gabi Oliveira,
considerado um dos canais mais relevantes em relação às discussões
étnico-raciais no Brasil.
PREFÁCIO
Em fevereiro de 2014 publiquei um post no meu blog. Dei o título de
“Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça”.
O post dizia:
Não estou mais entrando em discussões sobre raça com pessoas brancas. Não todas as
pessoas brancas, apenas a vasta maioria que recusa a aceitar a legitimidade do racismo
estrutural e seus sintomas. Não consigo mais me envolver com o abismo de uma
desconexão emocional que as pessoas brancas exibem quando uma pessoa de cor* fala
sobre sua experiência. Você consegue ver os olhos dessas pessoas fecharem e
endurecerem. É como se melaço fosse despejado em seus ouvidos, bloqueando seus
canais auditivos. É como se eles não pudessem mais nos ouvir.
Essa desconexão emocional é a conclusão de uma vida absorta do fato de que sua cor de
pele é normal e todas as outras fogem ao padrão. Na melhor das hipóteses, pessoas
brancas foram ensinadas a não mencionar que pessoas de cor são “diferentes”, no caso de
isso nos ofender. Elas realmente acreditam que as experiências de suas vidas, resultadas
na cor de suas peles, podem e devem ser universais.
Eu simplesmente não consigo me envolver com a perplexidade e amaneira defensiva
enquanto elas tentam lidar com o fato de que nem todos experimentam o mundo da
mesma forma que elas. Pessoas brancas nunca tiveram que pensar sobre o que significa,
em termos de poder, ser branco, então todas as vezes em que são vagamente relembradas
desse fato, interpretam isso como uma afronta. Seus olhos se enchem de tédio ou
arregalam de indignação. Suas bocas começam a se contorcer à medida que vão ficando
defensivas. Suas gargantas se abrem enquanto elas tentam interromper, ansiosas para falar
em cima de você sem realmente escutar, porque elas precisam informar que você
entendeu tudo errado.
A jornada para entender o racismo estrutural ainda exige que as pessoas de cor priorizem
os sentimentos brancos. Mesmo que eles consigam te ouvir, eles não estão realmente
escutando. É como se alguma coisa acontecesse com as palavras assim que elas saem de
nossas bocas e chegam aos ouvidos. As palavras atingem uma barreira de negação e não
passam desse ponto.
Essa é a desconexão emocional. Não é muito surpreendente, porque eles nunca
entenderam o que significa acolher uma pessoa de cor como uma igual, com pensamentos
e sentimentos que são tão válidos quanto os seus. Assistindo The Color of Fear,* de Lee
Mun Wah, vi pessoas de cor se debulhando em lágrimas enquanto tentavam convencer
um homem branco e provocador de que suas palavras estavam reforçando e perpetuando
um padrão branco e racista. O tempo todo ele olhava de forma alheia, completamente
confuso diante dessa dor, na melhor das hipóteses, banazilando-a, e, na pior,
ridicularizando-a.
Já escrevi sobre essa negação branca ser a política de raça onipresente que opera sobre
sua invisibilidade inerente. Então não posso mais conversar com pessoas brancas sobre
raça por causa das consequentes negações, estranhas piruetas e acrobacias mentais que
elas demonstram quando esse assunto é posto em pauta. Quem realmente gostaria de ser
alertado sobre um sistema estrutural que o beneficia às custas de outros?
Eu não consigo mais ter essa conversa, porque estamos chegando a ela de lugares
completamente diferentes. Eu não posso ter uma conversa com as pessoas sobre detalhes
de um problema se elas sequer reconhecem que o problema existe. Pior ainda é a pessoa
branca que pode estar disposta a considerar a possibilidade do racismo dito, mas que
pensa que entramos nessa conversa como iguais. Nós não entramos.
Sem mencionar que entrar em uma conversa com pessoas brancas provocadoras é uma
tarefa, francamente, perigosa para mim. À medida que as hostilidades aumentam e a
provocação cresce, tenho que seguir com muito cuidado, porque se eu demonstrar
frustração, raiva ou exasperação por sua recusa em entender, elas vão recorrer aos
estereótipos racistas sobre pessoas negras e raivosas que são uma ameaça a elas e à sua
segurança. É bem provável que elas me pintem como uma valentona ou uma abusadora.
Também é provável que seus amigos brancos se juntem a elas, reescrevam a história e
transformem mentiras em verdades. Tentar conversar com elas e navegar pelo seu racismo
não vale a pena.
Em meio a toda conversa sobre “pessoas brancas que são gentis” se sentindo silenciadas
por conversas sobre raça, existe uma espécie de ironia e evidente falta de compreensão ou
empatia por nós que fomos visivelmente marcados como diferentes durante toda nossa
vida e que vivemos com as consequências disso. É realmente uma vida inteira de
autocensura que as pessoas de cor têm que viver. As opções são: falar sua verdade e
encarar a represália, ou morder sua língua e progredir na vida. Deve ser uma vida
estranha, sempre tendo permissão para falar e se sentindo indignado quando você
finalmente é convidado a ouvir. Decorre do direito dos brancos de nunca serem
questionados, suponho.
Eu não posso mais continuar a me exaurir emocionalmente tentando passar essa
mensagem, ao mesmo tempo em que me deparo com uma linha bem precária que tenta
não implicar qualquer pessoa branca, em seu papel de perpetuador de um racismo
estrutural, com receio de ser assassinada.
Então eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça. Eu não tenho o imenso
poder de mudar a forma como o mundo funciona, mas posso estabelecer limites. Posso
suspender o direito que elas sentem em relação a mim e vou começar parando a conversa.
A balança tende demais a favor delas. Suas intenções muitas vezes não são de ouvir e
aprender, mas exercer seu poder, provar que estou errada, me drenar emocionalmente e
reequilibrar o status quo. Eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça a não ser
que eu realmente precise. Se tiver alguma matéria ou aparição em conferência que
significa que alguém pode ouvir o que estou dizendo e se sentir menos solitária, então eu
participarei. Mas não lido mais com pessoas que não querem ouvir, que desejam
ridicularizar e que, francamente, não merecem.
Depois que eu cliquei em “publicar”, o post ganhou vida própria. Anos
depois, eu ainda conheci novas pessoas, em diferentes países e diferentes
situações, que me contaram que leram o texto. Em 2014, enquanto o post
era compartilhado em toda a internet, eu me preparei para a habitual onda
de comentários racistas. Mas a resposta foi nitidamente diferente, tão
diferente que me surpreendeu.
Houve uma clara divisão racial na forma como o post foi recebido.
Recebi várias mensagens de pessoas negras e pardas.* Foram tantos
“obrigado” e vários “você falou sobre minhas experiências”. Houve relatos
de lágrimas e um pequeno debate sobre como abordar o problema, com
educação sendo classificada como uma solução para preencher a lacuna da
comunicação. Ler essas mensagens foi um alívio. Eu entendia como era
difícil colocar esse sentimento de frustração em palavras, então quando
pessoas entraram em contato e me agradeceram por explicar uma coisa
que elas sempre tiveram dificuldade, fiquei feliz que o post foi útil a elas.
Eu sabia que se eu estava me sentindo menos sozinha, então elas também
estavam.
O que eu não estava esperando foi a avalanche de emoções vindas de
pessoas brancas que sentiram que, ao decidir parar de conversar com
pessoas brancas sobre raça, eu estava tirando algo do mundo e que isso era
uma tragédia absoluta. “De partir o coração” parecia a melhor expressão
para descrever esse sentimento.
“Sinto muito mesmo que você tenha sido levada a se sentir dessa
forma”, uma pessoa comentou. “Como uma pessoa branca, estou
dolorosamente envergonhada pelo privilégio sistêmico que negamos e
gozamos diariamente. E tão vergonhoso que eu nem havia percebido até
dez anos atrás.”
Outro comentarista implorou: “Não pare de conversar com pessoas
brancas, sua voz é precisa e importante e existem maneiras de fazê-la
passar.” Outro, dessa vez uma pessoa negra, dizia: “Seria uma tarefa
dolorosa persuadir as pessoas, mas nós não devemos parar.” E um último e
definitivo comentário dizia simplesmente: “Por favor não desista das
pessoas brancas.”
Apesar de essas respostas serem sistêmicas, elas eram evidências da
mesma lacuna de comunicação que eu havia escrito a respeito no post do
blog. Elas pareciam uma falta de compreensão a respeito de para quem
esse texto foi escrito. Ele nunca foi escrito com a intenção de propagar
culpa nas pessoas brancas, ou de provocar qualquer tipo de epifania. Eu
não sabia, naquela época, que eu havia inadvertidamente escrito uma carta
de término para a branquitude. E eu não esperava que os leitores brancos
fossem fazer na internet o equivalente a ficar do lado de fora do meu
quarto, com uma caixa de som e um buquê de flores, confessando suas
falhas e erros, me implorando para não deixá-los. Tudo isso pareceu
estranho e ligeiramente desconfortável para mim. Porque, ao escrever
aquele post, como se estivesse dizendo que bastava para mim; não foi um
pedido de ajuda ou um clamor pela compreensão e compaixão das pessoas
brancas. Não foi um convite para os brancos se entregarem à
autoflagelação. Eu parei de falar sobre raça com pessoas brancas porque
eu não acredito que desistir é um sinal de fraqueza. Às vezes é sobre
autopreservação.Eu transformei “Por que eu não converso mais com pessoas brancas
sobre raça” em um livro – paradoxalmente – para continuar a conversa.
Desde que eu estabeleci meu limite, tenho feito pouco além de falar sobre
raça – em festivais de música e estúdios de TV, para pupilos de escolas
secundaristas e conferências de partidos políticos – e a demanda por essa
conversa não mostra sinais de enfraquecimento. As pessoas querem falar
sobre isso. Esse livro é produto de cinco anos de agitação, frustração,
explicações exaustivas, e longos parágrafos em comentários no Facebook.
É sobre não apenas o lado explícito, mas sobre o lado escorregadio do
racismo – os detalhes que são difíceis de definir, e os detalhes que te
fazem duvidar de você mesmo. A Grã-Bretanha ainda está profundamente
desconfortável com raça e diferença.
Desde que eu escrevi aquele post em 2014, as coisas mudaram bastante
para mim. Agora eu passo a maior parte do tempo conversando com
pessoas brancas sobre raça. O mercado editorial é muito branco, então não
existiria uma maneira de publicar esse livro sem conversar com pelo
menos algumas pessoas brancas sobre raça. E durante a minha pesquisa eu
precisei conversar com brancos que eu nunca pensei que algum dia
trocaria palavras, incluindo o ex-líder do Partido Nacional Britânico, Nick
Griffin. Sei que muitas pessoas acreditam que ele não deveria ter uma
plataforma onde seus pontos de vidas pudessem ser transmitidos de forma
incontestável, e agonizei com a entrevista na página 109. Não sou a
primeira pessoa com uma plataforma a dar tempo para Nick Griffin, mas
espero que eu tenha usado suas palavras com responsabilidade.
Uma palavra rápida sobre definições. Neste livro, a frase “pessoas de
cor” é usada para definir qualquer um com uma raça que não seja branca.
Eu a usei porque é uma definição infinitamente melhor do que “não-
branca” – uma expressão que sugere a falta de alguma coisa e algum tipo
de deficiência. Eu uso a palavra “negra” neste livro para descrever pessoas
de herança africana e caribenha, incluindo pessoas mestiças. Cito muitas
pesquisas, então você vai, ocasionalmente, ler a frase “etnia negra e
minoritária” (ou ENM). Não é um termo que eu goste porque evoca
pensamentos de monitoramento clínico de diversidade, mas no interesse
de interpretar a pesquisa com a maior precisão possível, optei por segui-la.
Escrevo – e leio – para assegurar para mim mesma que outras pessoas
sentiram o que estou sentindo também, que não sou só eu, que isso é real,
válido e verdadeiro. Sou ciente da raça apenas porque fui rigorosamente
marcada como diferente pelo mundo que conheço desde que me lembro.
Embora eu analise a branquitude invisível e reflita frequentemente sobre
sua natureza excludente, observo como uma outsider. Entendo que esse
não é o caso para a maior parte das pessoas brancas, que passam pelo
mundo alegremente alheias de sua própria raça até que sua dominância
seja posta em xeque. Quando pessoas brancas pegam uma revista,
navegam na internet, leem um jornal ou zapeiam na TV, nunca é raro ou
estranho ver pessoas que se parecem com elas mesmas em posições de
poder ou exalando autoridade. Na cultura, em particular, as afirmações
positivas de branquitude são tão difundidas que a pessoa branca comum
sequer as nota. Em vez disso, essas afirmações são tranquilamente
consumidas. Ser branco é ser humano, ser branco é universal. Eu só sei
disso porque não sou.
Escrevi este livro para articular essa sensação de ter sua voz e confiança
tiradas de você na arrogância do status quo. Este livro foi escrito para
contrariar a falta de conhecimento histórico e do pano de fundo político
que você precisa para ancorar sua oposição ao racismo. Espero que você o
use como uma ferramenta.
*
*
*
Nunca vou me impedir de falar sobre raça. Cada voz levantada contra o
racismo afasta seu poder. Nós não podemos nos permitir ficar em silêncio.
Este livro é uma tentativa de falar.
 
N.T.: O termo “pessoa de cor” foi traduzido de forma literal do inglês para preservar a
escrita da autora e o sentido inicial. Ao usar essa expressão, a autora se refere a todas as
pessoas não-brancas.
Esse documentário de 1994 sobre raça foi apoiado pela Oprah na época em que foi
lançado. É um filme poderoso.
N.T.: “Black and brown people”, no original.
1
HISTÓRIAS
Foi só a partir do meu segundo ano na universidade que comecei a
pensar na história dos negros na Grã-Bretanha. Eu tinha entre dezenove e
vinte anos e tinha acabado de fazer uma nova amiga. Estávamos estudando
o mesmo curso e passávamos a maior parte do tempo juntas mais pela
proximidade e o medo da solidão do que por interesses em comum. Ao
escolhermos uma das nossas próximas matérias, optamos por um módulo
sobre o tráfico transatlântico de escravos. Nenhuma de nós sabia bem o
que esperar. Eu só havia tido contato com a história dos negros por meio
de exibições educacionais centradas na América e em planos de aula no
ensino primário e secundário. Com um foco enorme em Rosa Parks, nas
rotas clandestinas de Harriet Tubman* e Martin Luther King Jr., os nomes
mais conhecidos do movimento americano pela busca dos direitos sempre
pareceram importantes para mim, mas também era milhões de
quilômetros distantes da minha vida como uma jovem menina negra,
crescendo no norte de Londres.
Entretanto, esse curto módulo da universidade mudou completamente a
minha perspectiva. Ele trouxe a história da colonização britânica e do
tráfico de escravos incrivelmente para perto de casa. Durante o curso,
descobri que era possível pular em um trem e visitar um antigo porto de
escravos em três horas. E foi exatamente o que fiz enquanto viajava para
Liverpool, que tinha o maior porto de escravos do Reino Unido. Um
milhão e meio de africanos passaram pelo porto da cidade. O Albert Dock
abriu quatro décadas depois que o último navio de escravos, o Kitty’s
Amelia, zarpou da cidade, mas foi o mais próximo que cheguei de encarar
o mar e imaginar a cumplicidade da Grã-Bretanha no comércio de
escravos. De pé na beira do cais, senti desespero. Passando pelos edifícios
mais antigos da cidade, me senti mal. Onde quer que eu olhasse, conseguia
ver o legado da escravidão.
Na universidade as coisas estavam começando a se encaixar para mim.
Durante uma orientação, lembro-me claramente de um debate onde
questionavam se o racismo era simplesmente uma discriminação ou uma
discriminação baseada no poder. Pensar no poder me fez perceber que o
racismo era muito mais do que preconceito pessoal. Era sobre estar na
posição de afetar negativamente as chances de vida de outras pessoas.
Minha visão começou a mudar drasticamente. Minha amiga, por outro
lado, ficou apenas em algumas aulas antes de largar a disciplina. “Não é
para mim”, ela disse.
Suas palavras não caíram bem comigo. Agora entendo o porquê. Eu me
ressentia do fato de que ela parecia sentir que essa parte da história
britânica não era de forma alguma relevante para ela. Ela era indiferente
aos fatos. Talvez, para ela, os dados não parecessem reais, urgentes ou
pertinentes para sua forma de viver a vida agora. Não sei o que ela pensou,
porque eu não tinha os recursos para levantar essa questão com ela na
época. Mas agora sei o que me ressentia nela. Porque eu sentia que sua
branquitude a permitia demonstrar desinteresse na violenta história da
Grã-Bretanha, fechar os olhos e dar as costas. Para mim, isso não parecia
uma informação que você poderia escolher não aprender.
Com o rápido avanço da tecnologia transformando a forma como
vivemos – saltos e limites sendo dados em apenas décadas, em vez de
séculos – o passado nunca foi tão distante. Nesse contexto, é fácil ver a
escravidão como algo terrível que aconteceu em um passado bem distante.
É fácil se convencer de que o passado não tem influência na maneira como
vivemos hoje. Mas o Ato de Abolição da Escravidão foi apresentado ao
Império Britânico em 1833, há menos de 200 anos. Dado que os britânicos
começaram a negociar escravos africanos em 1562, a escravidão como
instituição britânica existiu pormuito mais tempo do que atualmente foi
abolida – mais de 270 anos. Gerações e gerações de vidas negras foram
roubadas, famílias foram destruídas, comunidades foram separadas.
Centenas de pessoas nasceram na escravidão e morreram sendo escravas,
nunca entendendo o que poderia significar ser livre. Vidas inteiras
sustentando a brutalidade e violência constantes, vivendo em um medo
sem fim. Geração após geração de riqueza branca sendo acumulada dos
lucros da escravidão, sendo agravada e infiltrando-se no cerne da
sociedade britânica.
A escravidão era um comércio internacional. Europeus brancos,
incluindo os britânicos, negociavam com as elites africanas, trocando
produtos e bens para o povo africano, o que alguns negociantes brancos de
escravos chamavam de “gado negro”. Ao longo do período do tráfico de
escravos, estima-se que 11 milhões de pessoas negras africanas foram
transportadas pelo Oceano Atlântico para trabalharem sem remuneração
em plantações de açúcar e algodão, nas Américas e nas Índias.
Os registros mantidos não eram diferentes das contas de um negócio
moderno, documentando lucros e perdas, e mantendo listas detalhadas de
negros comprados e vendidos. Esse estoque humano – esse “gado negro”,
era a commodity ideal. Escravos eram mercadorias lucrativas. Os sistemas
reprodutivos das mulheres negras foram industrializados. Crianças
nascidas escravas eram propriedade padrão dos donos de escravos e isso
representava trabalho ilimitado, sem custo adicional. Essa reprodução foi
muito facilitada pela rotina de estupro a qual as escravas africanas eram
sujeitadas pelos proprietários brancos de escravos.
Lucros e perdas também significavam documentar as mortes do “gado
negro”, porque isso era ruim para os negócios. Os vastos navios negreiros
que transportavam os africanos através do Atlântico eram severamente
apertados. A jornada poderia demorar até três meses. O espaço ao redor de
cada escravo era semelhante ao de um caixão, condenando-os a viver entre
sujeira e fluidos corporais. Os mortos e moribundos eram jogados ao mar
por motivos de fluxo de caixa: poderia ser recolhido um dinheiro do
seguro para os escravos que morressem no mar.
A imagem do navio negreiro Brooks, publicada pela primeira vez em
1788 pelo abolicionista William Elford, retratava as condições habituais.1
Ela mostra um navio negreiro bem carregado: corpos eram alinhados um a
um, horizontalmente, em quatro fileiras (com três fileiras extras na parte
de trás do navio), mostrando a eficiência insensível usada para transportar
uma carga de pessoas africanas. O Brooks era propriedade de um
comerciante de Liverpool chamado Joseph Brooks.
Contudo, a escravidão não estava acontecendo apenas em Liverpool.
Bristol também tinha um porto de escravos, assim como Lancaster, Exeter,
Plymouth, Bridport, Chester, Poulton-le-Fylde, em Lancasshire, e, claro,
Londres.2 Embora os africanos escravizados transitassem regularmente
pelas costas britânicas, as plantações em que trabalhavam não eram no
Reino Unido, mas nas colônias britânicas. A maioria estava no Caribe,
então, ao contrário da situação na América, a maioria dos britânicos via o
dinheiro sem o sangue. Alguns britânicos possuíam plantações que
funcionavam quase inteiramente com trabalho escravo. Outros compravam
apenas um punhado de escravos de plantação, com a intenção de obter um
retorno sobre seus investimentos. Muitos escoceses foram trabalhar como
feitores de escravos na Jamaica, e alguns trouxeram seus escravos com
eles quando voltaram para a Grã-Bretanha. Escravos, assim como qualquer
outra propriedade particular, poderiam ser herdados, e muitos britânicos
viveram confortavelmente do trabalho de pessoas negras escravizadas,
sem se envolverem diretamente na transação.
A Sociedade para Efetuar a Abolição do Comércio de Escravos, fundada
em Londres em 1787, foi ideia do funcionário público Granville Sharp e
do militante Thomas Clarkson. Sharp e Clarkson formaram a sociedade
com dez outros homens, a maioria era Quakers.* Eles fizeram campanha
por 47 anos, ganhando amplo apoio e atraindo líderes de alto nível, como
membros do Parlamento – sendo o mais famoso o abolicionista William
Wilberforce. A pressão pública da campanha funcionou e uma lei do
Parlamento declarou a escravidão abolida do Império Britânico em 1833.
Todavia, os beneficiários da compensação pela dissolução de uma
indústria lucrativa e significativa não foram aqueles que haviam sido
escravizados. Em vez disso, foram os 46 mil cidadãos britânicos e
proprietários de escravos que receberam cheques por suas perdas
financeiras3. Essa compensação unilateral parecia ser a conclusão lógica
para um país que havia negociado com carne humana.
Apesar da abolição, uma lei do Parlamento não iria mudar a percepção,
da noite para o dia, dos africanos escravizados, de quase animal para
humano. Menos de 200 anos depois, esse dano ainda está para ser desfeito.
Depois da universidade, eu estava com sede de mais informações. Eu
queria saber sobre os negros na Grã-Bretanha e pós-escravidão. No
entanto, essas informações não eram facilmente acessíveis. Essa era a
história disponível apenas para as pessoas que realmente se importavam,
apenas “alcançada” por meio de uma grande quantidade de estudo
independente. Então procurei ativamente e comecei a investigar o Mês da
História Negra.
A existência do Mês da História Negra no Reino Unido é relativamente
recente. Foi apenas em 1987 que as autoridades locais, em Londres,
começaram a organizar eventos para celebrar as contribuições negras para
o Reino Unido. Linda Bellos nasceu em Londres de um pai nigeriano e
uma mãe branca britânica e foi sob sua liderança que um Mês da História
Negra Britânica passou a existir. Na época, ela era líder do Conselho de
Lambeth, no sul de Londres, e presidente da Unidade de Política
Estratégica de Londres – parte do agora extinto Grande Conselho de
Londres. A ideia do Mês da História Negra foi pensada por Ansel Wong,
chefe da divisão de igualdade racial da Unidade de Políticas Estratégicas.
“Eu disse sim, vamos fazer”, ela me explicou em sua casa em Norwich.
“Pensei que o Mês da História Negra era uma ótima ideia. O que eu não
iria fazer, era torná-lo como o americano, porque nós temos uma história
diferente… Existem tantas pessoas que não têm ideia – e estou falando de
pessoas brancas – nenhuma ideia sobre a história do racismo. Eles não
sabem por que estamos neste país.”
Ansel organizou o primeiro Mês da História Negra e Linda foi a anfitriã
do evento. Foi uma celebração em toda a cidade de Londres. A decisão de
mantê-lo em outubro foi em grande parte logística, os Estados Unidos
realizam seu mês da história negra em fevereiro desde que começou, em
1970. “Nossa convidada de honra foi Sally Mugabe”, explicou Linda. “Não
havia tempo o suficiente para convidá-la. Se tivéssemos feito duas
semanas [depois], não teríamos as pessoas de que precisávamos.”
“Nós éramos mais inclusivos”, acrescentou ela. “O negro foi definido
em seus termos políticos. Africano e asiático.* Nós só organizamos por
dois anos, porque Thatcher estava cortando todos os nossos orçamentos.
Teria sido um prazer”.
Depois de dois anos do esgotamento do financiamento central e
liderança da Unidade de Política Estratégica de Londres, o Mês da História
Negra continuou na Grã-Bretanha, ainda que esporadicamente. Ele
consiste de exposições de trabalhos de artistas da diáspora** africana,
eventos de painéis que debatem raça e celebrações culturais mais amenas,
como desfiles de moda e festivais gastronômicos. Falando com Linda,
parecia que ela era cética em relação aos valores das atividades atuais do
Mês da História Negra. Quando perguntei por que ela queria o Mês da
História Negra na Grã-Bretanha, ela disse que era para “Celebrar a
contribuição dos negros no Reino Unido. Não era sobre cabelo… era mês
da história, não mês da cultura. Houve uma história, uma história que eu
tinha conhecimento, da experiência do meu pai.”
A história da negritude na Grã-Bretanha foi fragmentada. Por um tempoembaraçosamente longo, eu nem havia percebido que os negros tinham
sido escravos no Reino Unido. Havia uma sabedoria herdada de que todos
os negros e pardos do Reino Unido eram imigrantes recentes. Não se
discute sobre a história do colonialismo, ou de porquê as pessoas da África
e da Ásia vieram se estabelecer na Grã-Bretanha. Eu conhecia vagamente a
Geração Windrush, os 492 caribenhos que viajaram para a Inglaterra de
barco em 1948. Isso porque eles eram os parentes mais velhos de pessoas
que conheci na escola. Não houve nenhuma apresentação de “presença
negra na Grã-Bretanha” que não incluísse a Windrush. Porém, a maior
parte do meu conhecimento da história negra era a partir da história
americana. Essa foi uma educação inadequada em um país onde crescentes
gerações de negros e pardos continuam se considerando britânicos –
inclusive eu. Me foi negado um contexto, uma capacidade de entender a
mim mesma. Eu precisava saber por que, quando as pessoas balançavam a
bandeira e gritavam “queremos nosso país de volta”, parecia que o grito
estava voltado para pessoas como eu. Que história eu havia herdado que
me fez uma alienígena no meu lugar de nascimento?
Em 1º de novembro de 2008, em um evento que marcou o 50º
aniversário do Instituto de Relações Raciais, o diretor do instituto
Ambalavaner Sivanandan falou para a sua audiência: “Estamos aqui
porque você estava lá”. Desde então essa frase foi absorvida pelo
vocabulário negro britânico. Querendo saber mais sobre o que isso
significava, pesquisei mais a fundo, procurando evidências. A primeira
resposta que encontrei foi a guerra.
O envolvimento da Grã-Bretanha na Primeira Guerra Mundial não se
limitou apenas aos cidadãos britânicos. Graças à radical construção de seu
império, pessoas de países que não eram europeus – colonização à parte –,
se viram na expectativa de morrer pelo Rei e pelo país. Quando, em 2013,
o British Council perguntou às pessoas sobre suas percepções sobre a
Primeira Guerra Mundial, eles descobriram que a maioria dos britânicos
não tinha uma compreensão do impacto internacional, apesar do apelido
de “Guerra Mundial”. “Por causa do alcance dos impérios”, diz o relatório
do conselho, “soldados e trabalhadores foram recrutados no mundo todo.”4
Nos sete países* que o British Cuncil pesquisou sobre a Primeira Guerra
Mundial, a grande maioria dos entrevistados achava que tanto a Europa
ocidental quanto a oriental estavam envolvidas. Em comparação, uma
média de apenas 17% achava que a Ásia estava envolvida e apenas 11%
dos entrevistados identificaram o envolvimento da África.
Pode ser que esse equívoco sobre quem lutou pela Grã-Bretanha durante
a Primeira Guerra Mundial tenha levado a uma quase eliminação das
contribuições dos negros e pardos. Essa é uma eliminação que não poderia
estar mais longe da verdade. Mais de 1 milhão de soldados indianos – ou
sipaios (soldados indianos que servem a Grã-Bretanha) – lutaram pelo
Reino Unido na Primeira Guerra Mundial5. A Grã-Bretanha prometera a
esses soldados que seu país estaria livre do domínio colonial se eles
lutassem. Os sipaios viajaram para a Inglaterra com a crença de que eles
não apenas lutariam, mas que, ao fazê-lo, estariam contribuindo para a
eventual libertação de seu país.
Sua jornada para a Europa foi implacável. Eles viajaram de navio, sem a
roupa apropriada para a mudança do clima. Muitos sipaios sofreram com
um frio glacial que nunca haviam experimentado antes, com alguns
morrendo devido à exposição. E mesmo durante a guerra, os sipaios não
receberam o tratamento que esperavam. Mesmo o sipaio com o posto mais
alto estava abaixo do soldado britânico branco de menor escalão na
hierarquia militar. Se ferido, um sipaio seria tratado no segregado
Pavilhão de Brighton e no Hospital Dome para as tropas indianas. O
hospital era cercado de arame farpado para desencorajar os sipaios feridos
de se misturem com os locais. Cerca de 74 mil sipaios morreram lutando
na guerra, mas a Grã-Bretanha recusou-se a cumprir sua promessa de
libertar a Índia do domínio colonial.
Um número muito menor de soldados viajou das Índias Ocidentais para
lutar pela Grã-Bretanha.6 O Memorial Gates Trust, uma instituição de
caridade criada para homenagear os soldados indianos, africanos e
caribenhos que morreram pela Grã-Bretanha durante as duas guerras
mundiais, estima o número em 15.600. Esses soldados eram conhecidos
como o Regimento Britânico das Índias Ocidentais (RBIO). No Caribe, o
exército britânico recrutou de áreas pobres e, assim como na Índia, havia
um sentimento entre alguns dos candidatos ao recrutamento de que sua
participação na guerra levaria a reformas políticas em casa. No entanto,
essa opinião não era generalizada e havia um número significativo de
caribenhos que se opuseram ao combate das Índias Ocidentais, chamando-
a de “guerra dos homens brancos”. Apesar da resistência de alguns,
milhares de habitantes das Índias Ocidentais abandonaram seus empregos
para viajar para a Europa.
Mais uma vez, a longa viagem de barco foi implacável. A Grã-Bretanha
precisava da mão-de-obra extra, mas o governo falhou em fornecer às
Índias Ocidentais as roupas adequadas para sobreviver à jornada, assim
como aconteceu com os sipaios. Em 1916, o SS Verdala, viajando das
Índias Ocidentais para oeste de Sussex, teve que fazer um desvio para
Halifax, no leste do Canadá. Centenas de recrutas das Índias Ocidentais
sofreram queimaduras por congelamento, com alguns morrendo por
exposição ao clima rigoroso e frio.
Quando chegou, a maioria do Regimento Britânico das Índias
Ocidentais não lutou, inicialmente, ao lado dos soldados britânicos
brancos no campo de batalha. Em vez disso, eles foram relegados a
posições de apoio, se encarregando de trabalhos em prol dos soldados
brancos. Seus deveres incluíam tarefas árduas, como cavar trincheiras,
construir estradas e transportar soldados feridos em macas. Quando os
regimentos ingleses (formados por pessoas brancas) foram enfraquecendo
em batalha, os soldados das Índias Ocidentais receberam permissão para
lutar. Quase 200 homens morreram lutando ao final da guerra.
Em 1918, o ressentimento entre os soldados das Índias Ocidentais era
generalizado. Enquanto o regimento estava estacionado em Taranto, na
Itália, alguns homens receberam notícias de que os soldados brancos
britânicos haviam ganhado um aumento salarial do qual os das Índias
Ocidentais haviam sido excluídos. Indignados com o tratamento, os
soldados entraram em greve, reunindo assinaturas para que uma petição
fosse enviada ao secretário de Estado, o que rapidamente evoluiu para uma
rebelião coletiva. Durante o motim de Taranto, um dos grevistas foi morto
a tiros por um oficial negro sem patente e uma bomba foi disparada. A
rebelião foi rapidamente suprimida e 60 suspeitos rebeldes do Regimento
das Índias Ocidentais Britânicas foram julgados por seu envolvimento em
um motim. Alguns foram presos e um dos homens foi sentenciado a morte
por fuzilamento.
Os soldados maltratados das Índias Ocidentais voltaram para casa e a
repressão ao motim em Taranto contribuiu para uma pressão por um
movimento de autodeterminação negra no Caribe. Contudo, também
existiram soldados negros que escolheram ficar na Grã-Bretanha depois da
guerra. Quando as batalhas chegaram ao fim e os soldados foram
desmobilizados, os ex-soldados negros que moravam na Grã-Bretanha
começaram a ser perseguidos.
Manifestações parecem sempre começar no verão. Em 6 de junho de
1919, sete meses depois do fim da Primeira Guerra Mundial, rumores
começaram a circular em Newport, ao sul do País de Gales. Foi alegado
que uma mulher branca havia sido menosprezada por um homem negro.
Enquanto um número crescente de pessoas brancas iradas e agitadas
compartilhava as notícias entre si, uma multidão reuniu-se e depois se
dirigiu às casas de homens negros na área. Alguns dos homens revidaram
com armas gerando brigas e confrontos. O que, nos dias seguintes, levou
um caribenho a esfaquear um homem branco.
Apenas cinco dias depois, em 11 de junho, o South WalesEcho, um
tabloide diário, reportou: “Um veículo contendo alguns homens de cor e
mulheres brancas estava passando pela East Canal Wharf. Isso atraiu uma
multidão.”7 Cardiff, outro porto da cidade, tinha sido contagiado por um
sentimento antinegros. Ao ver os homens negros e as mulheres brancas
juntos, uma multidão frenética começou a atirar pedras no veículo. Não se
sabe ao certo se alguém dentro do veículo foi ferido. Dias depois, em um
violento protesto à audácia das relações inter-raciais, outra raivosa
multidão de pessoas brancas se deparou com uma mulher branca que era
conhecida por ter se casado com um africano. Eles a despiram e a
deixaram nua.
Na cidade portuária de Liverpool, um semelhante ódio racial estava
começando a ganhar força. O emprego durante o Pós-guerra era escasso e
mais de 100 trabalhadores negros de fábricas, de repente e rapidamente,
perderam seus empregos após trabalhadores brancos se recusarem a
trabalhar junto aos negros. Em 4 de junho de 1919, um caribenho foi
esfaqueado no rosto por dois brancos depois de uma discussão por causa
de um cigarro. Seguiram-se inúmeras brigas, com a polícia saqueando
casas onde ela sabia que viviam negros. O frenesi resultou em um dos
mais horríveis crimes de ódio racial da história britânica. Charles
Wootton, um marinheiro de 24 anos, foi abordado por uma multidão
branca enfurecida e jogado na King’s Dock. Enquanto ele nadava,
desesperadamente tentando sair da água, foi atingido por tijolos até que se
afogou. Algum tempo depois, seu corpo sem vida foi retirado da doca. Foi
um linchamento público. Os dias que seguiram o assassinato de Charles
Wootton mostraram multidões brancas dominando as ruas de Liverpool
enquanto atacavam qualquer negro que vissem no caminho.8
Esses atos de ódio racial cruel não passaram despercebidos pelo
governo britânico. Preocupado com os níveis de agitação em todo o país, o
Estado respondeu da única maneira que sabia: com uma campanha de
repatriamento. Como resultado, 600 negros foram enviados “de volta de
onde vieram” em setembro de 1919.9
Apesar de seus melhores esforços para fingir o contrário, a Grã-
Bretanha está longe de ser uma cultura única. Olhando para fora quando é
mais adequado, a história nos mostra que esse país criou um império
global do qual poderia tirar mão de obra com facilidade. Mas ele não
estava pronto para as repercussões e responsabilidades que acompanharam
sua colonização de países e culturas. Foram os negros e pardos que
sofreram as consequências.
Entretanto, algumas dessas pessoas reagiram. Nascido em Kingston,
Jamaica, em 1882, o doutor Harold Moody não foi um dos jovens
caribenhos que lutaram pela Grã-Bretanha na Primeira Guerra Mundial.
Em vez disso, ele chegou a Bristol, em 1904, com 22 anos, focado no
avanço de sua educação. Ele se empenhava para se tornar médico e passara
o tempo trabalhando na bem-sucedida farmácia de seu pai, em Kingston,
para economizar dinheiro para seus estudos. Com a Jamaica ainda sob o
domínio britânico, sua mudança para a Inglaterra não foi uma surpresa.
Entre os jamaicanos, a Grã-Bretanha era vista como “país-mãe”.
•
Depois que chegou, ele embarcou em um trem expresso para a estação
de Paddington, em Londres, e ficou em um hostel conhecido como
Associação de Jovens Cristãos (AJC), até que encontrou um lugar
permanente para viver. Foi durante esses primeiros dias em solo britânico
que ele aprendeu que o “país-mãe” não seria tão hospitaleiro quanto ele foi
levado a acreditar. Ele lutou para conseguir alugar e foi afastado de uma
série de potenciais alojamentos antes de conseguir um lugar em
Canonbury, no norte de Londres.
Uma vez estabelecido, Harold começou o treinamento médico. Ele se
formou em 1912 e passou a procurar emprego. Ele se candidatou a um
cargo no King’s College Hospital, mas seus potenciais empregadores não
queriam contratar um homem negro.10 Ele tentou novamente, se
inscrevendo para uma posição no sul de Londres, com o Conselho de
Guardiões de Camberwell. A diretoria era parte da Poor Law Parish de
Camberwell, uma organização local do governo que supervisionava o
bem-estar dos moradores mais idosos e vulneráveis da região com uma
clínica, além de gerenciar abrigos e workhouses.* Ele também foi recusado
nesse emprego, mas não sem antes escutar que “Os pobres não aceitariam
que um negro os atendesse.”11 Determinado a servir a comunidade, Harold
respondeu a essas derrotas ao começar a oferecer atendimentos
particulares.
Um ano depois de se qualificar, a clínica do Dr. Moody abriu na 111
King’s Road, em Peckham, na região sudeste de Londres. Apesar de ter
sofrido atos de discriminação racial, foi o seu cristianismo, mais do que
sua política, que levou Dr. Moody ao ativismo. Para ele, o racismo era uma
questão religiosa. Ele era participativo na comunidade cristã como um
todo. Seu respeitável trabalho de classe média o colocou como um farol
para os negros nas décadas de 1920 e 1930, na Grã-Bretanha. Ele trabalhou
em prol da comunidade, rapidamente se tornando um homem conhecido
por ajudar quem estivesse precisando. Essa popularidade o levou a formar
a League of Coloured Peoples**, em 1931.
A League era tanto uma missão cristã quanto uma organização de
campanhas. Seus objetivos, publicados em seu jornal trimestral, The Keys,
eram:
Promover e proteger os interesses sociais, educacionais, econômicos
e políticos de seus membros;
•
•
•
gerar interesse dos membros no bem-estar dos povos de cor em
todas as partes do mundo;
melhorar as relações entre raças;
cooperar e se filiar a organizações simpáticas às pessoas de cor12.
Publicado pela primeira vez em 1933, The Keys serviu como braço
escrito da League, fazendo campanha contra o racismo na contratação,
habitação e na sociedade em geral. Em 1937, o The Keys publicou uma
severa troca de palavras com o Hospital de Manchester sobre o
impedimento de contratar enfermeiras negras. A carta questiona uma frase
do chefe de enfermagem do hospital que havia escrito abertamente:
“Nunca aceitamos enfermeiras negras aqui. A questão foi levantada uma
vez pelo Comitê de Enfermagem e foi decidida uma regra definitiva de
que ninguém de linhagem negroide poderia ser considerado para o
treinamento.” Dr. Moody, então presidente da League, escreveu para o
conselho do hospital, só para descobrir que não havia regra como essa em
vigor. “Não existe”, dizia a resposta de N. Cobboth, presidente do
conselho, “nenhuma regra contra a admissão de mulheres negras para
treinamento como enfermeiras na Manchester Royal Infirmary, e a
diretoria gostaria de deixar claro que cada inscrição será individualmente
considerada pelo seu mérito.”13
O trabalho de Dr. Moody com a League of Coloured Peoples foi,
possivelmente, a primeira campanha antirracista da Grã-Bretanha, no
século XX, e esse trabalho teria, no futuro, implicações importantes para
as relações de raça no país.
Durante o tempo em que o Dr. Harold Moody vivia em Londres e estava
fazendo um trabalho pioneiro para pessoas negras, um aspecto de sua vida
pessoal – seu relacionamento com uma mulher branca e seus filhos
mestiços* ** foi um motivo de discussão na sociedade britânica na época.
Relações entre raças eram controversas no começo do século XX e, no
noroeste da Inglaterra, essas relações eram consideradas perturbadoras o
suficiente para justificar pesquisas acadêmicas. No final da década de
1920, a Universidade de Liverpool foi solidificando seu departamento de
Ciências Sociais, liderado pela antropóloga Rachel M. Fleming. Sua
pesquisa foi sobre o que ela chamou de “crianças híbridas” – aquelas na
qual os pais são negros e as mães são brancas.* Com Liverpool sendo uma
cidade portuária, muitos marinheiros negros encontraram residências
permanentes ali. Acadêmicos estimam que a população negra de Liverpool
era de 5 mil na época. Indo contra as manifestações fomentadas pela raça e
o linchamento de Charles Wootton, as relações entre raças existiam, mas
eram vistas por muitos como um problema social que precisava ser
erradicado.
Foi nesse contexto que RachelFleming ganhou o apoio das autoridades
de Liverpool para pesquisar as crianças “miseráveis” da cidade – mas,
leia-se: crianças mestiças. Ela fundou a Liverpool Association for the
Welfare of Half-Caste Children em 1927. Muriel Fletcher, formada pela
University of Liverpool, trabalhando como oficial de liberdade
condicional, foi encarregada de escrever o primeiro relatório da
associação. Esse trabalho significava que, por meio dos serviços de
assistência social, ela tinha contato com algumas das famílias mais pobres
da cidade, e foi através dessa visão distorcida para com algumas das
famílias inter-raciais mais pobres, que ela conduziu sua pesquisa.
O relatório sobre a Investigação do problema da cor em Liverpool e
outros portos foi publicado em junho de 1930. Concluiu, com escassa
evidência, que as doenças venéreas eram duas vezes mais prováveis de
serem encontradas em marinheiros negros do que em marinheiros brancos,
e que crianças fruto de diferentes etnias – ou para usar a linguagem do
relatório, “mestiças” – eram mais propensas a ficar doentes por causa
disso. “As crianças pareciam ficar resfriadas frequentemente, além de
muitas também serem raquíticas, e vários casos foram relatados em que
havia um histórico familiar ruim para a tuberculose”, escreveu Fletcher.
Talvez refletindo atitudes populares na época, Fletcher considerou
meninas e mulheres mestiças tingidas por sua raça, escrevendo: “Apenas
dois casos foram encontrados em Liverpool com mestiças que se casaram
com homens brancos e, em um desses casos, a família da garota forçou o
homem a se casar.”14 Em seu relatório, Muriel Fletcher organizou as
mulheres brancas que escolheram relacionar-se com homens negros em
quatro categorias: as mentalmente fracas, as prostitutas, as jovens e
imprudentes, e as que se sentiam forçadas ao casamento por causa de
filhos ilegítimos.
As crianças que foram pesquisadas no estudo tiveram seus olhos
examinados e seus narizes medidos, com suas características faciais
categorizadas como “negróide” ou “inglesa”. Comentando o fato de que
jovens adultos mestiços tinham dificuldade para encontrar emprego,
Fletcher escreveu: “Mães de um tipo melhor lamentavam o fato de terem
trazido essas crianças ao mundo, prejudicadas por sua cor.” Ecoando o
imensamente popular movimento eugenista da época, parece que Muriel
Fletcher achava que a mistura de raça – ou, como os eugenistas a
chamavam, miscigenação – era tão abominável que os filhos de relações
mestiças tinham “pouco futuro”.
Popular no início do século XX, o movimento eugenista britânico
acreditava que a classe social era determinada por fatores biológicos,
como inteligência, saúde e os vagos critérios de “valores morais”. Os
eugenistas argumentavam que aqueles com qualidades desejáveis
deveriam ser encorajados a se reproduzir, enquanto os que não o possuíam
deveriam ser desencorajados. O racismo era inerente aqui: a branquitude
era para ser aspirada, enquanto qualquer indício de herança negra era
considerado um tipo de contaminação, levando a uma linha dura contra as
relações inter-raciais e as pessoas mestiças. Apesar do apoio de nomes
influentes como John Maynard Keynes e George Bernard Shaw, não havia
legislação aprovada na Grã-Bretanha para cimentar a eugenia no
funcionamento do Estado – por exemplo, esterilização forçada –, e um
projeto de lei de 1931 que defendia essa proposta não foi aprovado.
Na publicação, o relatório de Muriel Fletcher sobre A investigação
sobre o problema da cor em Liverpool e outros portos teve um impacto
nacional, com um representante da Sociedade Anti-escravidão chamando-
o de um “documento extraordinariamente capaz” contendo “os mais
impressionantes e autoritários detalhes”. Em um estudo recente sobre o
relatório, o acadêmico Mark Christian argumentou que ele teve um efeito
negativo duradouro sobre os negros de Liverpool e cimentou o uso do
termo “meio-casta”15.
As consequências de outra guerra mundial trouxeram novas demandas
de mão de obra, e o Reino Unido incentivou a imigração mais uma vez.
Quando o SS Empire Windrush partiu do Caribe para a Inglaterra,
transportava 490 homens caribenhos e duas mulheres caribenhas, todos
preparados para a tarefa de restaurar uma Grã-Bretanha pós-guerra.16 O
Windrush ancorou em Tilbury, em Thurrock, Essex, em 22 de junho de
1948. Naquele mesmo ano, o governo introduziu a Lei de Nacionalidade
Britânica – uma lei que efetivamente dava aos cidadãos da
Commonwealth* os mesmos direitos de residir como súditos britânicos.
A população negra do país continuou a crescer. Entre 1951 e 1961, a
população britânica nascida no Caribe cresceu de 15 mil para 172 mil,17
com a maioria dessas pessoas da Jamaica (um aumento na população de 6
mil para 100 mil).18
Em 1958, a população negra de Nottingham era de 2.500. Mas uma
década de legislação explicitamente dando as boas-vindas aos cidadãos da
Commonwealth à Grã-Bretanha não mudou o comportamento do lugar.
Trechos de um jornal local relatam uma “escala de cor” nos bares de
Nottingham, com homens negros tendo que ficar em pé, ao lado, até que
pessoas brancas tivessem sido servidas. O ressentimento dos brancos em
relação aos moradores negros da cidade era abundante, e o ressentimento
dos negros pelo ressentimento branco fervia. Em 23 de agosto de 1958,
uma discussão em um bar entre uma mulher branca e um homem negro
saiu do controle. Relatos sobre o que provocou os seguintes eventos são
imprecisos. O que sabemos é o seguinte: mais tarde naquele dia, mil
pessoas haviam se amontoado na St Ann’s Well Road, prontas para
manifestar. Lâminas, facas e garrafas foram usadas como armas e oito
pessoas foram hospitalizadas.
O que ocorreu em Nottingham também estava acontecendo em outras
partes do país. Em 20 de agosto, em Notting Hill, a oeste de Londres, um
grupo de teddy boys – homens brancos e amantes de rock and roll que
usavam sapatos e terninhos – foram às ruas com o único objetivo de atacar
negros. Eles se chamavam de “caçadores de crioulos”. Naquela noite, sua
onda violenta colocou cinco homens negros no hospital.19
Naquela época, Notting Hill era uma área pobre e superlotada de
Londres, com o desespero por habitações sendo explorado pelo notório
“senhorio de favelas”, Peter Rachman. A reputação de Rachman era tão
ruim que seu nome se tornou sinônimo de mau tratamento a inquilinos. O
Chambers 21st Century Dictionary define rachmanismo como “exploração
ou extorsão de inquilinos que vivem em condições de favela por um
senhorio”.20 Foram os negros as vítimas do problema das propriedades
pequenas e dilapidadas de Rachman e seus aluguéis extorsionários. Eles
mal tinham escolha. Relatos orais dos que viveram naqueles dias relatam
placas que diziam “sem negros, sem cachorros, sem irlandeses” nas
janelas de propriedades mais respeitáveis.21 Isso só exacerbou as relações
raciais dos pobres na capital.
Nove dias depois da caça aos negros dos teddy boys de Notting Hill, e
um casal inter-racial – um homem negro e uma mulher branca suíça –
estavam discutindo do lado de fora da estação de metrô Latimer Road. Era
um feriado bancário de agosto. Com muitos fora do trabalho, a discussão
atraiu uma multidão de homens brancos, que saltaram para defender a
mulher, talvez acreditando que ela estava sob ataque. Percebendo o ataque,
alguns negros se envolveram para apoiar o marido dela. Eles começaram a
lutar entre si.
Mais tarde, entrevistas com manifestantes brancos sugerem que havia
um rumor de que um homem negro tinha estuprado uma mulher branca.22
Esta luta fora de uma estação rapidamente se transformou em 200 pessoas
brancas vagando pelas ruas gritando insultos racistas. Enquanto o
confronto se intensificava, alguns manifestantes brancos ameaçaram a
polícia por impedi-los de atacar pessoas negras. Os tumultos se
estenderam por três dias inteiros. Suásticas foram pintadas nas portas de
famílias negras. Negros revidaram com armas e coquetéis molotov
improvisados. Aqueles negros que foram parados na rua pela polícia,
durante a violência, enfatizaram sua necessidade de sedefender. Nenhuma
fatalidade foi registrada, mas mais de 100 pessoas – a maioria branca –
foram presas.
Em 2002, documentos divulgados prematuramente pelo governo
revelaram que os detetives da polícia tiveram sucesso em convencer o
então Ministro dos Assuntos Internos, Rab Butler, de que os confrontos em
Nothing Hill não eram sobre raça, mas simplesmente o trabalho de
hooligans.* “Apesar de que havia, certamente, algum sentimento ruim
entre residentes brancos e de cor nesta área”, escreveu o sargento detetive
M. Walters, “é muito claro que grande parte do problema foi causado por
rufiões, tanto brancos quanto negros, que aproveitaram a oportunidade
para se entregar ao vandalismo.” Nenhuma menção aos “caçadores de
crioulos”, os teddy boys, foi feita.23
Depois de Nottingham e Notting Hill, as relações raciais na Inglaterra
estavam se deteriorando rapidamente. Estava ficando claro para os negros
pós-Windrush na Grã-Bretanha que eles não poderiam viver
tranquilamente, trabalhar, pagar impostos e se encaixar. Que, em vez
disso, seriam punidos por sua própria existência no Reino Unido. O
trabalho de negros e pardos foi essencial para o sucesso da Grã-Bretanha
nas duas guerras mundiais, mas os negros enfrentariam extrema rejeição
nas décadas seguintes. Ao longo da década de 1950, o governo relutou em
reconhecer que o país tinha um problema com o racismo. Mas existia um
movimento. Em 1960, o parlamentar trabalhista Archibald Fenner
Brockway tentou, repetidamente, apresentar uma lei de discriminação
racial com o objetivo de proibir “a discriminação em detrimento de
qualquer pessoa com base em cor, raça e religião no Reino Unido”.24 Em
cada uma das nove vezes que ele apresentou a proposta, foi derrotado.25
Do outro lado da balança, em 1959, Oswald Mosley, fundador da União
Britânica de Fascistas, achou por bem voltar à política parlamentar depois
de deixar o cargo em 1930. Ele ficou em um eleitorado perto de Notting
Hill e defendeu a repatriação de imigrantes, perdendo com uma quota de
8,1% dos votos.
Apenas pouco menos de uma década depois dos confrontos em
Nottingham e Notting Hill, o Estado tentou propor uma solução para o
problema do racismo na Grã-Bretanha. Entrando em vigor em 31 de maio
de 1962, a Commonwealth Immigrants Act restringiu drasticamente os
direitos de imigração aos cidadãos britânicos da Commonwealth. Até a
escolha de palavras foi diferente. A Lei de Nacionalidade Britânica de
1948 usou a palavra “cidadãos” para se referir àqueles vindos dos países
da Commonwealth; em 1962, eles foram descritos como “imigrantes”,
acrescentando uma nova camada de estrangeirismo às pessoas que tinham
desfrutado do direito de residir apenas quatorze anos antes. Com uma nova
ênfase em trabalhadores qualificados, a Lei de Imigrantes da
Commonwealth afirmou que aqueles que desejariam se mudar para a Grã-
Bretanha agora precisavam de uma autorização de trabalho para ficarem
no país.26 A lógica por trás disso prevalece até hoje.
Então, em 1965, a primeira legislação britânica de relações raciais foi
concedida pelo parlamento. A Lei de Relações Raciais foi uma escolha
estranha para o governo britânico, que havia feito uma declaração tão forte
contra a livre circulação de seus cidadãos da Commonwealth apenas três
anos antes. A lei afirmava que a discriminação racial explícita não era
mais legal em lugares públicos – embora não se aplicasse a lojas ou
residências particulares. Na época, a BBC reportou que os atos específicos
de discriminação incluíam “recusar-se a servir uma pessoa, atraso
excessivo no atendimento a alguém ou cobrança abusiva.”27 Um Conselho
de Relações Raciais foi criado como parte da lei.28 Sua finalidade era
receber denúncias e monitorar incidentes racistas – uma decisão nada ruim
quando o censo de 1961 estimou a população geral em 52.700 milhões.29
Não havia como saber o número exato de pessoas não-brancas que
moravam na Grã-Bretanha, uma vez que o censo não incluiu uma questão
sobre raça até 1991. Quase nenhuma reclamação foi feita ao Conselho e as
que foram feitas foram quase inúteis. Não existia autoridade para punir
aqueles contra os quais as queixas eram feitas. Em vez disso, seu papel era
de mediação entre o reclamante e a organização ou a pessoa que estava
sendo acusada.
A primeira lei de relações raciais da Grã-Bretanha era tépida. Ela não
atacou a endêmica discriminação de moradia, e tinha ressalvas suficientes
para dar espaço àqueles que tinham a intenção de manter os negros no
Reino Unido como cidadãos de segunda classe. Um antídoto inadequado
para décadas de violência e assédio, o Conselho de Relações Raciais
parecia existir apenas por razões de postura. A maioria dos negros e
asiáticos na Grã-Bretanha nem sabia que o Conselho existia. As fraquezas
da Lei de 1965 eram óbvias. Os esforços para intimidar o racismo vieram
do mesmo Estado que sancionou o racismo décadas atrás, com a
repatriação que impulsionou as manifestações racistas – o mesmo Estado
que pegou e se livrou de corpos negros e pardos à sua própria
conveniência.
A lei foi reforçada três anos depois, proibindo a negação de moradia,
emprego ou serviços públicos em razão da raça. No entanto, os serviços do
governo estavam isentos de desafios legais. Na época, a BBC informou:
“A nova Lei de Relações Raciais pretende contrabalançar a Lei de
Imigração, cumprindo, assim, a promessa do governo de ser “justo, mas
resistente” para com os imigrantes.30
No dia 7 de março de 1965, afro-americanos foram espancados durante
uma marcha pelos direitos civis liderada por Martin Luther King Jr. Eles
exigiam seu direito constitucional de votar. Dois anos antes daquele dia
agora icônico, no oeste da Inglaterra, o jamaicano Guy Bailey, de 19 anos,
foi a uma entrevista de emprego na Bristol Omnibus Company, o serviço
de ônibus da cidade. Paul Stephenson, um jovem trabalhador local,
arranjou a entrevista para Guy, primeiro garantindo que havia empregos
disponíveis, e que ele tinha as qualificações necessárias para o trabalho.
Mas quando Guy apareceu na entrevista, descobriu que havia sido
cancelada.
Recontando sua entrevista para a BBC,31 35 anos depois, Guy recordou
o exato momento em que foi rejeitado pela recepcionista: “Ela disse ao
gerente ‘sua entrevista de duas horas está aqui. Mas ele é negro.’ E o
gerente disse: ‘Diga a ele que não temos vagas aqui, todas as vagas estão
ocupadas’.”
Guy ter sido rejeitado não era uma surpresa para a comunidade negra de
Bristol, com mais de 3.000 pessoas, tendo a maioria saído do Caribe e se
estabelecido na Grã-Bretanha depois da Segunda Guerra Mundial. Para
eles, o racismo no serviço de ônibus era uma suspeita de longa data,
muitos fizeram entrevistas na Bristol Omnibus Company apenas para
serem rejeitados. Todos que trabalhavam na empresa de ônibus eram
brancos.
Entretanto, a entrevista de Guy Bailey não foi uma coincidência. Ela foi
arranjada por um pequeno grupo de jovens: Roy Hackett, Owen Henry,
Audley Evans e Prince Brown. O grupo se intitulou de Conselho de
Desenvolvimento das Índias Ocidentais. Eles pediram a Paul Stephenson
que trabalhasse com eles em seu plano e ele concordou. Paul já conhecia
Guy, que era aluno da escola noturna onde ele lecionava. Guy era um
candidato promissor. Ele tinha uma boa aparência, já estava empregado,
estudando meio período e era ativo em uma organização de jovens
cristãos.
Assim que Guy foi recusado na entrevista, o grupo organizou uma
coletiva de imprensa. Repórteres locais lotaram o apartamento de Paul
para ouvir exatamente o que havia acontecido. Uma sessão de fotos foi
organizada, com Owen ecoando Rosa Parks sentada na parte de trás de um
ônibus. Com imprensa local e nacional cobrindo o caso, o gerente geral do
serviço de ônibus, Ian Patey, passou a ser pressionado. Quando o Bristol
Evening Post o intimou, ele disse: “Você não vai conseguir fazer um
homem branco em Londres admitir isso, mas quantos deles vão se juntar a
um serviço em que eles podem se encontrar trabalhando sob um supervisor
de cor?”32
Paul e o Conselho de Desenvolvimentodas Índias Ocidentais ganharam
o apoio de estudantes locais, viram discursos em favor de sua causa por
parte de políticos e ganharam editoriais simpáticos na imprensa local. Mas
Paul também foi repetidamente ignorado pela empresa de ônibus e pelo
Sindicato de Transportes e Trabalhadores Gerais (STTG). Embora muitas
vezes divididos por disputas trabalhistas, tanto a administração quanto o
sindicato se viram unidos pelo racismo. Eles tinham um acordo, do tipo
que se prestava bem à discriminação: a empresa de ônibus não contratava
ninguém que não fosse aprovado pela divisão local do STTG. Embora os
comentários de Ian Patey estivessem registrados, a Bristol Omnibus
Company desviava a responsabilidade, passando-a para o sindicato. O
racismo havia infectado a solidariedade dos trabalhadores, com um
representante do sindicato, na época, insistindo que mais trabalhadores
negros tirariam empregos para possíveis empregados brancos, e que
empregá-los significaria redução de horas para os atuais trabalhadores.
Enquanto a campanha continuava, Paul era duramente criticado. Ron
Nethercott, secretário da regional sudoeste do sindicato, escreveu um
artigo em um jornal nacional chamando Paul de “desonesto” e
“irresponsável”. Para seus críticos, foi seu ativismo a raiz do problema,
não a escala de cor. Algumas dessas declarações levaram a um caso de
difamação, que Paul ganhou. Enquanto isso, todos os residentes da cidade
vindos das Índias Ocidentais boicotavam o serviço de ônibus. Um líder da
luta disse ao jornal local: “Embora seja difícil dizer, muitos brancos estão
nos apoiando.” O movimento atraiu o suporte de Sir Learie Constantine,
Alto Comissário de Trinidad. Mais de 100 estudantes universitários
marcharam em apoio, todos boicotando o serviço de ônibus ou
caminhando e pedalando para se locomover pela cidade.
Um dia antes de Martin Luther King Jr. falar para uma plateia de 250
mil pessoas que ele tinha um sonho, uma reunião de 500 funcionários de
ônibus se reuniu e concordou em descontinuar a escala de cor não oficial
da Bristol Omnibus Company. No dia seguinte, o gerente geral, Ian Patey,
comprometeu-se acabar com isso de vez. Falando em uma conferência de
imprensa, ele anunciou que “o único critério será a adequação da pessoa
para o trabalho”. Contudo, é importante notar que, até o momento, a
Bristol Omnibus, agora fundida com outras empresas e eventualmente
renomeada First Somerset & Avon, nunca se desculpou por suas ações.
Nem a sucursal de Bristol do Sindicato dos Transportes e dos
Trabalhadores Gerais, desde que se fundiu com a Unite the Union. Em
2013, Laurence Faircloth, secretário da regional sudoeste da Unite,
ofereceu a Guy Bailey seu “sincero arrependimento” em nome do
sindicato.
A primeira vez que eu soube do boicote aos ônibus em Bristol, foi
quando eu era uma graduanda em 2013, enquanto estava trabalhando na
think tank* sobre igualdade racial, a Runnymede Trust. Uma pequena
equipe composta por alguns de nós viajou para Bristol para lançar uma
campanha. Além de uma barraquinha ao estilo “venha falar sobre
racismo”, nós também realizamos eventos noturnos ao redor do centro da
cidade. Um desses eventos foi com Paul Stephenson que, até então, estava
com quase oitenta anos. Lá em cima, no espaço para eventos da livraria
Foyles, Paul, sua voz enfraquecida pela idade, o ativismo e a justa ira,
comandaram a atenção de todo o lugar. Senti como se estivesse ouvindo a
história.
Mais ou menos na mesma época em que os moradores de Bristol se
organizavam contra a escala de cor, o nacionalismo branco na Grã-
Bretanha ganhava terreno. A Frente Nacional, um partido apenas de
brancos, anti-imigração e de extrema direita, estava alimentando a raiva e
o ressentimento entre os britânicos. Formada em 1967, a Frente Nacional
tem ligações estreitas com movimentos supremacistas brancos em todo o
mundo. No auge de seu crescimento, na década de 1970, os membros do
partido se enfeitaram com bandeiras do Reino Unido e com a cruz de São
Jorge, como se sentissem que sua política representava o símbolo do
britanismo. Pouco mais de uma década após sua formação, a Frente
Nacional ficou com mais de 300 pessoas nas eleições gerais de 1979 e
conquistou quase 200 mil votos. Apesar da crescente popularidade da
política nacionalista branca na Grã-Bretanha durante a década de 1970,
eram negros e asiáticos aqueles considerados como membros voláteis da
sociedade. Os membros da Frente Nacional acabaram perdendo força na
década de 1980, mas o sentimento do partido encontrou morada em outras
formas de ativismo.
Nos anos 70, os policiais usavam com frequência uma seção da então
arcaica Lei de Vagner de 1824. A seção em questão deu à polícia o poder
de parar, procurar e prender qualquer um que ela suspeitava que poderia
cometer um crime. Essa lei passou a ser conhecida como “leis-sus” –
tirada da redação da Lei que descreveu uma “pessoa suspeita”. Como a
polícia não mantinha estatísticas sobre as pessoas que estavam sendo
abordadas sob a lei, é difícil saber quantas foram perturbadas pelo crime
de não parecerem respeitáveis.33 Anedotalmente, defensores antirracistas
insistiam que os negros estavam sendo alvos, injustamente, da “lei-sus”. A
percepção de quem parece ou não suspeito – particularmente em uma
atmosfera política que, apenas dez anos antes, negava emprego e moradia
aos negros – era, sem dúvidas, com base na raça.
As “leis-sus” asseguravam uma relação tensa entre negros e policiais.
Isso foi intensificado por pânico público em relação a assaltos e
assaltantes. Em 1972, um violento e fatal roubo de rua em Handsworth,
Birmingham, levou a uma cobertura quase constante por parte da imprensa
no ano seguinte. Mugging, uma das expressões que significa roubo, em
inglês, é um termo importado dos Estados Unidos, de declarações policiais
e cobertura de imprensa em cidades com grande concentração de negros. O
medo desses roubos também foi importado.
Roubos de rua sempre existiram na Grã-Bretanha, mas a importação da
palavra mugging trouxe a implicação de que os autores eram
majoritariamente negros e que esse roubo era um crime exclusivamente
negro. Jornais relatavam que era uma nova tendência. O medo de assaltar
era mais do que o medo do crime e da violência; era sobre o nervosismo
daqueles que estavam com medo das lutas da libertação negra dos anos 60,
e medo intenso em torno de raça, reparações e vingança.
Houve pelo menos um incidente documentado de policiais prendendo
garotos negros pelo crime de parecerem criminosos. No dia 16 de março
de 1972, na Oval, estação de trem no sul de Londres, um grupo de policiais
brancos, à paisana, perseguiu quatro jovens negros – que,
coincidentemente, eram membros de uma organização negra radical – no
transporte público, mais tarde testemunhando no tribunal que “estava claro
que eles pretendiam roubar os bolsos dos passageiros”. Mas as únicas
testemunhas da acusação foram os próprios policiais, e os jovens
indiciados não tinham nenhuma propriedade roubada com eles.34 Os
quatro foram condenados a dois anos cada um, mas liberados um ano mais
cedo sob apelação. Cada um deles continuou alegando sua inocência.
Enquanto a polícia estava ocupada prendendo pessoas negras por
parecerem suspeitas, a Frente Nacional estava capitalizando o sentimento
anti-negro nacional. Em 1975, eles organizaram uma marcha contra os
assaltos negros, liderada pela East End, uma histórica região de Londres.
Um ano depois, eles descobriram outra causa de poder dos brancos para
apoiar. O motorista de ônibus da Leamington Spa, Robert Relf, tornou-se
notícia nacional, em 1976, quando colocou uma placa fora de sua casa que
dizia “à venda apenas para uma família inglesa”. Uma versão anterior da
placa era ainda mais extrema: “para evitar animosidade em todos os
sentidos, sem pessoas de cor”. A placa violou a Lei de Relações Raciais e
foi pedido que ele a retirasse. Ele se recusou e foi preso por desacato ao
tribunal. Relf prontamente começou uma greve de fome. A mídia
sensacionalista usou sua prisão como munição para argumentarcontra o
que eles chamavam de “politicamente correto”. Enquanto isso, para a
Frente Nacional, suas ações foram as de um mártir. Eles lançaram uma
campanha em apoio a ele e organizaram protestos que levantavam a
bandeira de “Relf livre”.
Ideias de negritude e criminalidade estavam se tornando inerentemente
interligadas. Em 1984, três anos após as “leis-sus” terem sido
desmanteladas, o ato de parar e revistar foi introduzido. As iniciativas
pareciam pouco diferentes. Enquanto as “leis-sus” permitiam que a polícia
prendesse qualquer um que achasse que estava “vadiando” com a intenção
de cometer um crime, as novas leis diziam que a polícia precisava ter uma
crença razoável de que um crime já havia acontecido antes de parar e
revistar um suspeito.35 Enquanto o pensamento policial sempre foi a de
que tais táticas previnem a criminalidade, os negros sempre foram alvos
de forma desproporcional para parar e revistar – uma pesquisa de 2015
mostrou partes do país onde pessoas negras tinham dezessete vezes mais
chance de serem paradas e revistadas do que pessoas brancas.36 Essas
eram – e ainda são – as “leis-sus”, apenas com um nome diferente.
Entre 1980 e 1982, com o país em recuperação, o desemprego para
homens negros e asiáticos aumentou cerca de 20% – em comparação com
um aumento de apenas 2% para homens brancos.37 Apesar de negros e
asiáticos estarem se tornando um elemento firme na paisagem urbana
britânica, algumas comunidades brancas ainda estavam desconfortáveis
com suas presenças. Havia um sentimento entre elas de que jovens negros
desempregados escolheram não trabalhar, e em vez disso, optaram por
vidas socialmente agravadas. Em um radiodocumentário transmitido pela
BRMB Radio Birmingham, em 1982, PC Dick Board, um policial
trabalhando na cidade deixou claro seus sentimentos a respeito de jovens
negros desempregados: “Vamos ser justos”, ele disse. “Estamos falando de
um certo tipo de gente agora. Nós tivemos todos esses motivos nos anos
vinte e trinta e nós nunca tivemos isso. Nós nunca tivemos essas
crescentes taxas de criminalidade e o que hoje conhecemos como a
expressão americana mugging, que é o roubo com violência. Nós temos
um tipo diferente de pessoa, que, por quaisquer meios necessários, vai
conseguir o que quer, às custas dos outros, mesmo dos seus semelhantes.
Esse é o ponto. Não interessa esse negócio de desemprego, nós temos uma
situação aqui e agora que está sendo usada deliberadamente e não há
dúvida sobre isso, eles não poderiam se importar menos com o fato de
terem ou não um emprego, na verdade eles estão mais felizes sem um.”
Ele continuou: “Tudo isso é besteira sobre eles estarem procurando
emprego e ‘não consigo um emprego’ e tudo mais… Muitos deles usam
sua cor como vantagem contra nós… eles usam isso e usam muito bem.
Há pessoas o suficiente nesse país preparadas para ouvir e fechar os olhos
para o que esses indivíduos fazem.”38
Quando o PC Dick Board falou sobre “o que essas pessoas fazem”, acho
que ele estava se referindo ao crime. Juntamente com o desemprego
alimentado pela recessão, aumentaram os temores de crimes em cidades
do interior, que estigmatizaram áreas inteiras onde negros e pardos
viviam.
O verão de 1987 teve mais tumultos em todo o país – em Brixton, em 10
de abril, em Toxteth, Liverpool, em 3 de julho, Handsworth, Birmingham,
em 10 de julho, e Chapeltown, Leeds, no mesmo mês. As condições
sociais de cada região eram bastante parecidas. Pobres. Negras. Tanto em
Brixton quanto em Toxteth, o comportamento policial era um fator
contribuinte. Brixton, o primeiro tumulto do ano, foi deflagrado pela
Operação Swamp, da polícia metropolitana, em que eles realizaram mais
de mil paradas para revista em apenas seis dias.39 Quando policiais
pararam para ajudar um menino negro ferido, uma multidão se aproximou
e a situação se intensificou.40 Em Toxteth, a polícia perseguiu um
motociclista negro, acreditando que sua moto era roubada. Ele caiu e a
polícia tentou prendê-lo, apenas para ser confrontada por uma multidão
furiosa. Mais uma vez, a situação se intensificou. Os tumultos,
aparentemente, eram contagiantes.
Como a história é escrita pelos vencedores, evidências de assédio
policial contra pessoas de cor no início dos anos 80 são difíceis de
encontrar. Mas o Newham Monitoring Project contrariou essa tendência. A
organização foi formada em 1980 após o adolescente asiático Akhtar Ali
Baig ser assassinado por uma gangue de skinheads brancos enquanto
voltava da faculdade para casa. O julgamento que se seguiu teve um juiz
comentando que o assassinato foi “motivado por ódio racial”41. Frustradas
pela falta de implementação de leis contra o racismo, as pessoas da
comunidade se juntaram para oferecer apoio logístico contra o assédio
movido pelo racismo, formando o Newham Monitoring Project. A
organização de base, grass-roots,* fez campanha contra a violência racista
– incluindo a violência promulgada pela polícia – até 2015, quando foi
forçada a se desligar devido à falta de verba.
Uma parte do trabalho do Newham Monitoring Project se mostrou em
seus relatórios anuais e o de 1983 dá um vislumbre do que era ser negro no
leste de Londres naquela época. Durante aquele ano, o projeto recebeu 73
relatórios de assédio policial. Dos que foram assediados pela polícia e
posteriormente presos, 47 foram liberados sem acusações. Aqueles que
foram indiciados pela polícia foram liberados mais tarde. Estudos de caso
no relatório revelam um retrato de famílias negras sob cerco. “A casa do
Sr. N e sua família foi revistada 4, 5 vezes só este ano,” diz o relatório.
“Toda vez que os policiais traziam mandados, eram relacionados a objetos
roubados. Todas as vezes eles não encontraram nenhuma evidência e,
portanto, preferiram não fazer acusações… a família espera sua casa ser
invadida a qualquer momento. Eles vivem com um medo constante da
próxima visita da polícia.”42
Houve também o caso de Osei Owusu, de 45 anos, que, após a polícia
aparecer na sua casa pedindo que ele soprasse o bafômetro, recusou.
Minutos depois, enquanto ele estava no banheiro de sua casa, de dez a
doze policiais arrombaram sua porta e invadiram sua casa. Ele foi, então,
arrastado nu para fora do banho, agredido por cassetetes e levado para a
delegacia de Forest Gate. Uma vez na delegacia, ele soprou o bafômetro.
Os três testes deram negativo.
Em um incidente, policiais visaram toda uma família. “John Power
estava andando para casa depois de ter ido a um clube de jovens”,
registrou o projeto. Enquanto ele andava, um carro da polícia parou ao
lado dele, na calçada. O policial no carro gritou: “Oi, venha aqui seu
bastardo negro.” John continuou andando. Então, temendo que algo
pudesse acontecer, começou a correr para casa. Os policiais o seguiram até
em casa, chegaram à porta da frente, abriram-na e puxaram John para fora,
então começaram a espancá-lo. Quando seu pai interveio, “os policiais
começaram a espancá-lo também.” Quando a irmã de John viu o que
estava acontecendo e gritou de medo, “um policial mandou que ela se
calasse e depois a empurrou e bateu nela. Os três foram, então, colocados
em diferentes viaturas e levados para a delegacia East Ham. Eles foram
acusados de obstrução e várias denúncias por assediar policiais.”
Ao mesmo tempo em que acontecia essa intensa brutalidade policial,
também havia um movimento que buscava restaurar a confiança perdida
entre pessoas de cor e a polícia. Tomando a dianteira dos Estados Unidos,
a polícia começou a promulgar uma nova estratégia. O policiamento
comunitário colocou os policiais em contato com as pessoas nas áreas
locais para que os moradores pudessem conhecê-los. O falecido chefe de
polícia John Alderson argumentou, no início de 1980, que a polícia deveria
ter um envolvimento mais humano nos locais policiados43. Mas esse tipo
de abordagem da comunidade não funcionou em benefício dos negros. O
relatório de 1983 do Nehman Monitoring Project destacou isso com o caso
em que um inocente estudante negro foi detido pela polícia. Shayn
Robertson, estudante de 11 anos

Continue navegando