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1 FACULDADE LEGALE A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL VERSUS A LIBERDADE DE ESCOLHA DA MULHER WILLIAM MOTTA DE OLIVEIRA São Paulo (SP) 2021 2 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL VERSUS A LIBERDADE DE ESCOLHA DA MULHER William Motta de Oliveira1 Resumo O presente artigo visa discutir sobre a polêmica discussão acerca da legalização da interrupção voluntária da gestação, pauta que, não obstante o fato de ser abordada há décadas no Brasil, nunca obteve a devida atenção do legislador. Diante disso, o tema proposto para essa pesquisa é a criminalização do aborto voluntário no Brasil versus a liberdade de escolha da mulher. Para tanto, se estudará o contexto histórico do aborto, a visão do ordenamento legal brasileiro sobre o assunto e o posicionamento de outros países sobre tal, bem como as suas consequências na prática. Palavras-Chave: Direitos Fundamentais. Aborto. Direito Comparado. Direito Penal. Introdução O presente Artigo apresentará um estudo sobre o conflito entre a criminalização da interrupção voluntária da gestação no Brasil e a liberdade de escolha da mulher sobre seu próprio corpo, haja vista que possui os mesmos direitos reprodutivos do homem, assegurados pela Constituição Federal. Abordar-se-á as diferentes teorias sobre o início da vida humana, trazendo as diversas opiniões da ciência, contrapondo-as com o que determina a legislação brasileira. Serão, também, trazidos à baila os métodos utilizados no abortamento. Ao final será realizado um estudo da forma como o aborto é abordado atualmente na legislação penal brasileira. Outrossim, será estudado sobre o aborto no ordenamento jurídico brasileiro, buscando demonstrar um contexto histórico da proibição do procedimento. Tratar-se-á, também, a respeito dos avanços acerca do tema, através de projetos de lei e jurisprudências, bastante recentes ou não. Buscará analisar também o aborto sob o viés do direito comparado, demonstrando a visão de diversos países sobre o assunto, tentando traçar paralelos entre a legislação estrangeira e a brasileira, a fim de trazer exemplos de eficácia na aplicação da lei que poderiam ser empregados no nosso país. Por fim, apresentar-se-á a legalização da interrupção voluntária da gestação como uma alternativa ao problema de saúde pública enfrentado atualmente no país. A partir desta pesquisa, buscar-se-á apresentar a legalização do aborto voluntário como uma forma de garantir o cumprimento dos direitos e garantias fundamentais à dignidade da pessoa humana, à cidadania, à não discriminação, à inviolabilidade da vida, à liberdade, à 1 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ – Campus Santa Rosa 3 igualdade de gênero, à saúde e o planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas, bem como a proibição de tortura e tratamento desumano ou degradante. 1 O Aborto Voluntário No Brasil Apesar da ilicitude, todos os anos milhões de mulheres, de forma clandestina e ilegal, interrompem gestações indesejadas, por inúmeros motivos, seja por não ter condições socioeconômicas de criar e sustentar uma criança, ou em razão de deformações do feto. Entretanto, devido à falta de regulamentação deste procedimento, muitas dessas mulheres vêm a óbito ou ficam permanentemente impossibilitadas de terem filhos, em sua maioria, aquelas que não têm condições de pagar por clínicas clandestinas melhor estruturadas, revelando a criminalização do aborto como uma forma de eugenia social, causando um verdadeiro problema de saúde pública e afrontando os direitos à dignidade humana da mulher e liberdade de escolha sobre seu próprio corpo. O principal impasse nesta discussão se encontra no que tange ao fato do aborto caracterizar, ou não, um crime contra uma vida humana, trazendo à baila uma pluralidade de teorias sobre o início da vida, propriamente dita. Tais posicionamentos são utilizados ao argumentar de forma favorável ou contrária à descriminalização. Contudo, acredita-se que no atual contexto social, não há mais que se falar em criminalização de um ato cuja prática cabe, tão somente, à mulher decidir, com sua consciência e seus valores, uma vez dona de seu próprio corpo e ciente da complexidade e riscos a serem levados em conta. 1.1 O Início Da Vida Humana Quando se trata sobre a interrupção voluntária da gestação, é inegável que uma das questões mais polêmicas gira em torno do momento em que se inicia a vida humana, pois não há consonância entre as diferentes teorias a respeito do tema, conforme explanado nas palavras de Tessaro (2008, p. 38): Até o momento, não existe consenso na ciência, filosofia ou religião, sobre qual o momento em que se inicia a vida. Destacam-se algumas posições majoritárias, tais como a fecundação, nidação ou o início da atividade cerebral, entretanto, todas elas são passíveis de questionamentos, traduzindo-se não raras vezes, num debate apaixonado baseado mais num ato de fé do que na razão. O ordenamento jurídico brasileiro menciona, no artigo 2º do Código Civil de 2002 que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde 4 a concepção, os direitos do nascituro”, entretanto, a lei não especifica quando pode ser determinado o início da vida. A respeito do referido artigo, Farias et. al. (2017. p. 29) aduz que: A proteção que a lei confere ao ser humano em gestação no útero materno merece atenção especial. O nascituro já é sujeito de direito, embora ainda não possa ser considerado pessoa, o que justifica que a proteção concedida aos seus interesses fique condicionada ao seu nascimento com vida. Neste sentido, a própria ciência tem inúmeras respostas para a mesma pergunta, uma vez que, com o avanço tecnológico, cada vez mais surgem novas descobertas acerca do tema. Conforme explana Tessaro (2008. p. 2): Os novos recursos de diagnóstico pré-natal e o advento das técnicas de reprodução assistida trouxeram novo fôlego para as discussões sobre o momento em que se deve considerar existente a vida humana, inclusive no que se refere a sua proteção jurídico- penal. Isso porque, no que concerne ao diagnóstico pré-natal, atualmente é possível conhecer detalhadamente as etapas do desenvolvimento embrionário e fetal, inclusive com a detecção de anomalias que comprometam sua viabilidade extra-uterina. Atualmente fala-se em “genética”, “manipulação do DNA (Ácido desoxirribonucleico)”, “bebês de proveta”, feitos completamente inimagináveis há poucos anos atrás. Entretanto, as próprias respostas trazidas pela ciência diferem entre si, sendo cinco as principais teses, como será tratado a seguir. 1.1.1 Cinco Teses Da Ciência Para enumerar as diferentes opiniões da ciência acerca do início da vida humana, denotam-se cinco visões divergentes: a visão genética, a visão embriológica, a visão neurológica, a visão ecológica e a visão metabólica. Conforme Muto e Narloch (2005, p. 64), segundo a visão genética “a vida humana começa na fertilização, quando espermatozoide e óvulo se encontram e combinam seus genes para formar um indivíduo com um conjunto genético único. Assim é criado um novo indivíduo”. Cabe mencionar que tal posicionamento é o mesmo tomado pela Igreja Católica, sobre qual será aprofundado mais adiante. Na visão embriológica, os autores esclarecem: “a vida começa na terceira semana de gravidez, quando é estabelecida a individualidade humana. Isso porque até 12 dias após a fecundação o embrião ainda é capaz de se dividir e dar origem a duas ou mais pessoas.”. Esta visão justifica a possibilidadede se utilizar a chamada “pílula do dia seguinte” sem ser considerado um aborto voluntário. Acerca da visão neurológica, Tessaro (2008, p. 41) aduz que “[...] no terceiro mês de gravidez, com a constituição dos hemisférios cerebrais, já é possível fazer a distinção entre um 5 organismo vivo humano dos demais primatas.” Nesta mesma seara Sarmento (2005, p. 30) relata: [...] pelo menos até a formação do córtex cerebral - que só acontece no segundo trimestre de gestação -, não há nenhuma dúvida sobre a absoluta impossibilidade de que o feto apresente capacidade mínima para a racionalidade. Antes disso, o nascituro não é capaz de qualquer tipo de sentimento ou pensamento. A visão ecológica, para Muto e Narloch (2005. p. 64) determina que o início da vida se dá no momento que o feto adquire capacidade de sobreviver fora do útero. Um bebê só se manteria vivo após os pulmões completamente formados o que ocorre após cerca de 20 a 24 semanas de gravidez. Por fim, a visão metabólica, refere que “a discussão sobre o começo da vida humana é irrelevante, uma vez que não existe um momento único no qual a vida tem início.” (MUTO; NARLOCH. 2005. p. 64). Para essa corrente, o óvulo e o espermatozoide já possuem tanta vida quanto qualquer ser humano já desenvolvido. 1.2 O Aborto Em Números No Brasil E No Mundo Apesar de ilícito, todos os dias inúmeras mulheres abortam, muitas delas morrem no procedimento e outras tantas ficam com graves sequelas. Não obstante o fato de se tratar de um assunto em alta no momento, não se trata de um problema atual. Em 2012, segundo Castro, Tinoco e Araujo (2013. p. 1), “foram 205.855 internações decorrentes de abortos no país — sendo 51.464 espontâneos e 154.391 induzidos (ilegais e legais)”, demonstrando que a proibição não evita que os abortos ocorram. Tratam-se de números alarmantes, 20% das mulheres com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida, conforme Castro, Tinoco e Araujo (2013. p. 1). Atualmente no Brasil estima-se que existem cerca de 37 milhões de mulheres nessa faixa etária (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. 2010), ou seja, cerca de 7.400.000 já realizaram procedimentos para interromper a gestação, em casos amparados, ou não, pela legislação. Segundo Tornquist et. al. (2009. p. 488-489), dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que anualmente ocorrem no mundo cerca de 75 milhões de gestações não desejadas e não planejadas, bem como, verificam-se 46 milhões de abortos voluntários ao ano (22%), variando de país a país. No Brasil, realizou-se em 2016 a Pesquisa Nacional do Aborto, na qual foram entrevistadas mulheres alfabetizadas, as quais possuem idades entre 18 e 39 anos e residem nas áreas urbanas, objetivando colher dados sobre a magnitude da pratica de abortos no país. Tal estudo obteve os seguintes resultados (DINIZ et al. 2016. p.655-656): 6 Das 2.002 mulheres alfabetizadas entre 18 e 39 anos entrevistadas pela PNA 2016, 13% (251) já fez ao menos um aborto. [...] Na faixa etária de 35 a 39 anos, aproximadamente 18% das mulheres já abortou. Entre as de 38 e 39 anos a taxa sobe a quase 19%. A predição por regressão linear das taxas de aborto pelas idades é de que a taxa a 40 anos é de cerca de 19%. Por aproximação é possível dizer que, em 2016, aos 40 anos de idade, quase uma em cada cinco mulheres já fez aborto (1 em cada 5,4). [...] Em 2016 o total estimado de mulheres de 18 a 39 anos no Brasil, incluindo as vivendo em áreas rurais, era de 37.287.746. Extrapolando-se a partir das taxas de aborto de alfabetizadas urbanas (13%), o número de mulheres que, em 2016, já fez aborto ao menos uma vez, portanto, seria em torno de 4,7 milhões. Aplicando-se a taxa de aborto no último ano, o número de mulheres que o fizeram somente no ano de 2015 seria de aproximadamente 503 mil. Neste sentido, cabe mencionar que em países em que o aborto já é regulamentado, não houve aumento no número de procedimentos realizados, como bem demonstra Chade (2016. p. 1): [...] países com leis que proíbem o aborto não conseguiram frear a prática e que, hoje, contam com taxas acima daqueles locais onde o aborto é legalizado. Já nos países onde a prática é autorizada, ela foi acompanhada por uma ampla estratégia de planejamento familiar e acesso à saúde que levaram a uma queda substancial no número de abortos realizados. Isso ocorre pois, com a regulamentação do aborto, as gestantes recebem o acompanhamento de especialistas, os quais orientam sobre os riscos e consequências do procedimento, aumentando os índices de desistência. Cabe mencionar, também, que altas taxas de aborto estão relacionadas com dificuldade no acesso à métodos contraceptivos. 1.3 A Criminalização Do Aborto No Direito Brasileiro O crime de Aborto apareceu pela primeira vez expressamente no Código Criminal do Império, datado de 1830, em seus artigos 197 a 200. Acompanhe-se (BRASIL. 1830. p.21-22): Art. 197. Matar algum recemnascido. Penas - de prisão por tres a doze annos, e de multa correspondente á metade do tempo. Art. 198. Se a propria mãi matar o filho recem-nascido para occultar a sua deshonra. Penas - de prisão com trabalho por um a tres annos. Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos. Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas - dobradas. Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique. Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos. 7 Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes. Penas - dobradas. Nota-se que no referido dispositivo legal “abortar era crime grave contra a segurança das pessoas e da vida. No entanto, quando era praticado pela própria gestante ela era preservada de alguma punição” (SOUZA. p.5. 2009). Tal posicionamento seria semelhante ao adotado no Código Penal da República, em 1890 “em que o aborto passa a ser punido quando praticado por terceiros, podendo ou não ter aprovação da gestante, e se ele resultasse na morte da mesma” (SOUZA apud PRADO. p.5. 2009). O ordenamento jurídico Civil brasileiro deixa bem claro, já em seu artigo 2º, que a personalidade jurídica se inicia no momento do nascimento com vida, deixando a salvo os direitos do nascituro, desde a sua concepção (BRASIL. p.1. 2002). O conceito de Personalidade se confunde com o conceito de pessoa, tal qual esclarece Gonçalves (2016. p.125): O conceito de personalidade está umbilicalmente ligado ao de pessoa. Todo aquele que nasce com vida torna-se uma pessoa, ou seja, adquire personalidade. Esta é, portanto, qualidade ou atributo do ser humano. Pode ser definida como aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil. É pressuposto para a inserção e atuação da pessoa na ordem jurídica. A personalidade é, portanto, o conceito básico da ordem jurídica, que a estende a todos os homens, consagrando-a na legislação civil e nos direitos constitucionais de vida, liberdade e igualdade. Deste modo, nota-se que é necessário que haja o nascimento com vida para que surja um sujeito de direito, capaz de exercer funções e cumprir deveres em um estado democrático de Direito. Entretanto, no mesmo artigo supramencionado, destaca-se que estão a salvo os direitos do nascituro, desde a sua concepção, para fins de direito sucessório, ou recebimento de doações, com anuência de seu representante legal. Do ponto de vista constitucional, afirma Tessaro (2008. p. 7) que a Constituição Federal de 1988 “garante a todos o direito à vida, não fazendo qualquer menção expressa à proteçãoda vida humana desde a concepção”. Neste mesmo sentido a autora prossegue (2008. p. 8): A proteção constitucional da vida em formação não garante ao nascituro o status de pessoa, uma vez que não é sujeito de direitos e deveres, possuindo tão-somente interesses patrimoniais salvaguardados pela lei civil. Assim, pode-se afirmar que é pessoa em potência, que só será sujeito de direito a partir de seu nascimento com vida. Atualmente a interrupção voluntária da gestação é criminalizada no Brasil, com pena de detenção de 1 a 3 anos para a gestante, conforme artigo 124 do Código Penal, bem como pena de reclusão de 1 a 4 anos para o médico, ou quem quer que tenha realizado o procedimento com o consentimento da gestante, conforme artigo 126 do mesmo texto legal. 8 Para aquele que provocar aborto sem o consentimento da gestante, a pena é de reclusão de 2 a 10 anos, conforme o artigo 125. Neste sentido acompanhe-se o texto legal ipsis litteris (BRASIL. 1940. arts. 124-126): Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54) Pena - detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54) Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência (grifo do autor) Tal artigo tem como justificativa a proteção do direito à vida, presente na Constituição Federal em seu artigo 5º, onde menciona que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida” (BRASIL. p.1. 1988). A partir disso, a próxima grande mudança legislativa a tratar sobre o aborto foi o Código Penal de 1940, o qual está em vigor até os dias de hoje. Ocorreram tentativas de modificar o disposto nos artigos 124 a 126, mas ainda não se obteve sucesso para tal, conforme será mais aprofundado no próximo capítulo. 2 O projeto de lei nº 1.135/91 Em 1991, através do Projeto de Lei (PL) nº 1.135, os deputados Eduardo Jorge e Sandra Starling propuseram a supressão do disposto no artigo 124 do Código Penal de 1940, objetivando fosse legalizado o aborto voluntário no Brasil, conforme consta no Diário do Congresso Nacional (BRASIL. 1991. p. 25): O presente projeto de lei tem por objetivo atualizar o Código Penal, adaptando-o aos novos valores e necessidades do mundo atual, particularmente no sentido do reconhecimento dos direitos da mulher enquanto pessoa humana. O artigo que se suprime penaliza duramente a gestante que provoca aborto ou consente que outro o realize. Esta é uma disposição legal ultrapassada e desumana. O projeto de lei vinha embasado no princípio da dignidade da pessoa humana, presente no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, como forma de proteger a mulher que deseja interromper a gestação, no exercício do seu livre arbítrio, conforme prosseguem os autores (BRASIL. 1991. p.25): http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=54&processo=54 http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=54&processo=54 http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=54&processo=54 9 A lei não pode pretender punir baseando-se apenas na compreensão isolada e individual do ato e desconsiderando toda a realidade social a que está submetida a mulher brasileira. Ademais, é absolutamente desnecessário e desumano querer aplicar penalidade a uma pessoa que já foi forçada a submeter-se a tamanha agressão. A gestante, quando provoca aborto em si mesma ou permite que outro o faça, está tomando uma providência extrema que a violenta física, mental e, com frequência, moralmente. Contudo, tal projeto foi votado somente em 2008, sendo rejeitado por 33 votos contrários e nenhum a favor, seguindo para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, onde foi novamente rejeitado, desta vez por 57 votos contrários e 4 favoráveis (FREITAS. 2008) e, deste modo, o Projeto de Lei foi arquivado na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, situação na qual permanece até o momento. 2.1.1 ADPF nº 422 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) consiste em uma ação proposta perante o STF que visa à reparação de lesões a preceitos fundamentais da Constituição Federal, que resultem de ato do Poder Público, nos termos do art. 102, § 1º do mesmo diploma legal (BRASIL. 1988), sendo regulada pela Lei nº 9.882 de 1999. Conforme explanam Paulo e Alexandrino (2017. p. 852): A ADPF vem completar o sistema de controle de constitucionalidade concentrado, uma vez que a competência para sua apreciação é originária e exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Nos termos em que foi regulada aADPF pelo legislador ordinário, questões até então não passíveis de apreciação nas demais ações do controle abstrato de constitucionalidade (ADI e ADC) passaram a poder ser objeto de exame. Os exemplos mais notórios são a possibilidade de impugnação de atos normativos municipais em face da Constituição Federal e o cabimento da ação quando houver controvérsia envolvendo direito pré-constitucional. Ainda, impende observar que a ADPF não se restringe à apreciação de atos normativos, podendo, por meio dela, ser impugnado qualquer ato do Poder Público de que resulte lesão ou ameaça de lesão a preceito fundamental decorrente da Constituição Federal. Dito isso, a Arguição de nº 442, já em sua nota introdutória, traz a base jurídica para seus pedidos, qual seja, a alegação de que a proibição do aborto fere os direitos fundamentais contidos nos artigos 1º, incisos I e II; art. 3º, inciso IV; art. 5º, caput e incisos I, III; art. 6º, caput; art. 196 e art. 226, § 7º, todos da Constituição Federal de 1988. Acompanhe-se o trecho a seguir (BOITEUX. et al. p. 1. 2017): A tese desta Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é que as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, porque violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas. 10 Outrossim, a ação menciona o fato do Brasil ser um estado laico, não podendo embasar sua legislação em paradigmas religiosos. A ADPF relata também que a legalização do aborto é “um caso difícil pelo forte apelo moral que provoca” (2017. p. 2-3), dividindo fortes opiniões favoráveis e contrárias ao procedimento. A ADPF nº 442 busca reparar o disposto nos artigos 124 e 126, do Código Penal de 1940, aduzindo que tais dispositivos estão ferindo diversos preceitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal. Este tipo de ação está resguardado no artigo 102, § 1º da Constituição e regulado Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999 que diz em seu artigo 1º (BRASIL. 1999. p.1): Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,incluídos os anteriores à Constituição; Deste modo, conforme a arguição, os dispositivos do Código Penal, quais sejam atos do poder público (cabível, assim, a ação) ferem os seguintes preceitos fundamentais, entre eles a dignidade da pessoa humana e da cidadania, bem como a promoção do bem a todas as pessoas, sem discriminação (art. 1º, incisos I, II e art. 3º, inciso IV, da Constituição), acompanhe-se (BOITEUX. et al. 2017. p. 8-12): A criminalização do aborto e a consequente imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres, pois não lhes reconhece a capacidade ética e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de vida. [...] Devido à seletividade do sistema penal, são também as mulheres mais vulneráveis as diretamente submetidas à ação punitiva do Estado. De outra banda, os artigos ferem também o direito à saúde (art. 6º, da Constituição), à integridade física e psicológica das mulheres e às submetem à tratamento desumano ou degradante (art. 5º, inciso III, da Constituição), conforme cita-se (BOITEUX. et al. 2017. p. 9): a negação do direito ao aborto pode levar a dores e sofrimentos agudos para uma mulher, ainda mais graves e previsíveis conforme condições específicas de vulnerabilidade que variam com a idade, classe, cor e condição de deficiência de mulheres, adolescentes e meninas. Nesta mesma seara, os dispositivos legais ferem também o direito ao planejamento familiar, o qual consta no artigo 226, §7º da carta magna, o qual menciona que “o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de 11 instituições oficiais ou privadas” (BRASIL. 1988. p. 94), uma vez que a mulher é impedida de tomar uma decisão importante sobre gerar um filho. A ADPF 54 menciona também o fato dos dispositivos do código penal ferirem direitos sexuais e reprodutivos, os quais, não obstante o fato de não estarem presentes de forma expressa no texto constitucional, tem estreita ligação com os direitos à liberdade e igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal) e estão enumerados em compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Outro preceito fundamental desrespeitado nos artigos 124 e 126 é a igualdade de gênero (art. 5º, caput, da Constituição Federal), conforme é mencionado na arguição (BOITEUX. et al. 2017. p. 12): afronta também o princípio da igualdade de gênero, decorrente do direito fundamental à igualdade (CF, art. 5º, caput) e do objetivo fundamental da República de não discriminação baseada em sexo (CF, art. 3º, inciso IV), uma vez que impõe às mulheres condições mais gravosas,24 inclusive perigosas à sua vida e saúde, para a tomada de decisões reprodutivas, desproporcionais em comparação com as condições para a tomada das mesmas decisões por parte dos homens, que não são submetidos à criminalização e a consequências da coerção penal nas condições de exercício de seus direitos a uma vida digna e cidadã. A presente arguição, ainda não foi analisada pelo STF e é um importante marco nos avanços sobre a legalização do aborto no país, caso venha a ser julgada de forma favorável mudará drasticamente o cenário. 2.1 Habeas Corpus 124.306 Rio de Janeiro Julgado pelo Supremo Tribunal federal em 2016, tendo como relator o Ministro Marco Aurélio, o Habeas Corpus (HC) 124.306 RJ versava sobre o cometimento do crime de aborto, tipificado nos artigos 124 a 126 do Código Penal. Apesar do não cabimento do HC em questão, a primeira turma do STF acolheu de ofício o caso para derrubar a prisão preventiva imposta aos acusados nos termos do voto do Ministro Luís Roberto Barroso (2016. p. 5): Não se encontram preenchidos, no caso concreto, os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, que exigem, para decretação da prisão preventiva, que estejam presentes riscos para a ordem pública ou para a ordem econômica, conveniência para a instrução criminal ou necessidade de assegurar a aplicação da lei. Note-se que a prisão torna-se ainda menos justificável diante da constatação de que os pacientes: (i) são primários e com bons antecedentes; (ii) têm trabalho e residência fixa; (iii) têm comparecido devidamente aos atos de instrução do processo; e (iv) cumprirão a pena, no máximo, em regime aberto, na hipótese de condenação. Aplicável, portanto, a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal no sentido de que é ilegal a prisão cautelar decretada sem a demonstração, empiricamente motivada, dos requisitos legais Dito isso, o Ministro elaborou seu voto de forma que restou julgado que o aborto voluntário, cometido pela gestante ou por terceiro com o consentimento desta, não seria crime, 12 caso seja realizado até o terceiro mês da gestação. Com unanimidade foi dado voto favorável à interpretação dos referidos artigos em conformidade com a Constituição. Deste modo, entendeu-se que a interrupção voluntária da gestação, pela própria gestante, é legítima, assim como a de quem realiza tal procedimento, desde que com o consentimento da mesma. Entretanto, tal decisão vale tão somente para o caso em tela, mas indica que, caso o tema seja levado ao plenário do tribunal, onde seria discutida a repercussão geral, há a possibilidade de legalização do procedimento. 2.1.1 As Excludentes de Ilicitude e a ADPF nº 54 No Código Penal brasileiro de 1940 existem três exceções à proibição do aborto, quais sejam, quando ocorre o chamado “Aborto Necessário”, ou seja, em casos em que a gravidez oferece risco à vida da gestante, não havendo outro meio de salvá-la, bem como gravidezes que resultaram de estupro ou em caso de feto anencefálo, nos termos do artigo 128 do Código Penal (BRASIL. 1940. art. 128): Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (grifo do autor) A excludente de ilicitude relacionada ao feto anencéfalo, apesar de não estar explícita no Código Penal, ganhou precedentes a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54. Tal arguição foi apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Na Saúde (CNTS) e julgada pelo ministro Gilmar Mendes, no ano de 2012, e tinha como pedido principal o que segue: [...] requer seja julgado procedente o presente pedido para o fim de que esta Eg. Corte, procedendo à interpretação conforme a Constituição dos arts. 125, 126 e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40), declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico 2 habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. No seu voto, o ministro Gilmar Mendes reconheceu que o Código Penal, por regra, veda o aborto, entretanto, nos casos de anencefalia do feto, prevaleceria a excludente de ilicitude do inciso I do artigo 128, a qual resguarda a saúde da gestante, permitindo o aborto em casos que ofereçam riscos à vida da mulher, assevera também que “o anencéfalo jamais se tornará uma 13 pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura.” (MENDES. 2012. p. 54). Nesta seara, o Conselho Federal de Medicina,através da Resolução nº 1.752/2004 (posteriormente revogada pela Resolução nº 1.949/2010) dispõe que “os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas pós-parto” (CFM. 2004. p. 1), sendo assim, impossível a vida da criança fora do útero. Dito isto, o voto do ministro diante da ADPF foi favorável, reconhecendo o aborto de anencéfalo como excludente de ilicitude e fazendo com que o disposto nos artigos 125, 126 e 128 do Código Penal seja interpretado conforme os princípios fundamentais da Constituição Federal. Mendes (2012. p. 79) assevera em seu voto: Se alguns setores da sociedade reputam moralmente reprovável a antecipação terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos, relembro-lhes de que essa crença não pode conduzir à incriminação de eventual conduta das mulheres que optarem em não levar a gravidez a termo. O Estado brasileiro é laico e ações de cunho meramente imorais não merecem a glosa do Direito Penal. A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. No caso, ainda que se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República. Mendes, em seu voto, deixou claro que a proibição do aborto em casos de feto anencéfalo é uma omissão legislativa, em desacordo com a carta constitucional e que necessita ser suprida. Outrossim, menciona o fato do Código Penal ter entrado em vigor em 1940, sendo impossível à época, do ponto de vista da tecnologia empregada na medicina, prever a anencefalia. Outra excludente de ilicitude no tipo penal é o caso de estupro, no qual a mulher, dado o constrangimento que já foi sofrido na violência sexual, pode solicitar a interrupção da gravidez, sem necessidade de apresentar qualquer documento ou exame médico que comprove o estupro, sendo o seu depoimento a principal prova. Neste sentido a Norma Técnica do Ministério da Saúde sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes (BRASIL. 2012. p. 69) aduz: O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesse caso, a não ser o consentimento da mulher. Assim, a mulher que sofre violência sexual não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento. O Código Penal afirma que a palavra da mulher que busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violência, deve ter credibilidade, ética e legalmente, devendo ser recebida como presunção de veracidade. O objetivo do 14 serviço de saúde é garantir o exercício do direito à saúde, portanto não cabe ao profissional de saúde duvidar da palavra da vítima, o que agravaria ainda mais as consequências da violência sofrida. Seus procedimentos não devem ser confundidos com os procedimentos reservados a Polícia ou Justiça. Nestes casos, é impreterivelmente necessário o consentimento da gestante, bem como, caso esta for menor incapaz, de seu representante legal, entretanto, apesar destas excludentes de ilicitude, claramente a gestante ainda não possui o direito à escolha de interromper a gravidez quando bem entender, ficando fadada à depender de casos extremos e se vendo obrigada a levar adiante gestações nas quais não terá condição de suprir uma qualidade de vida adequada à criança 2.2 O aborto no direito comparado Em relação ao aborto na antiga União Soviética, pode-se ressaltar que após a Revolução Russa de 1917, na qual foi derrubada a monarquia Tzarista russa, com a ascensão dos Bolcheviques, liderados por Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lenin, foram trazidos novos ideais de igualdade de gênero pioneiros no mundo todo, os quais objetivavam inserir a mulher como participante ativo da vida social e política do país, como forma de fortalecer a revolução. Muitos desses paradigmas, inclusive, ainda não são adotados em países ocidentais atualmente. Conforme relata Goldman (2014. p. 17-18): Sob o socialismo, o trabalho doméstico seria transferido para a esfera pública: as tarefas realizadas individualmente por milhões de mulheres não pagas em suas casas seriam assumidas por trabalhadores assalariados em refeitórios, lavanderias e creches comunitários. Só assim as mulheres se veriam livres para ingressar na esfera pública em condições de igualdade com os homens, desvencilhadas das tarefas de casa. As mulheres seriam educadas e pagas igualitariamente, e seriam capazes de buscar seu próprio desenvolvimento e seus objetivos pessoais. Nessa mesma seara, ao perceber que aumentava exponencialmente o número de mulheres que realizavam abortos de forma clandestina, veio o decreto que tornava o aborto legal, amparado pelo Estado, mas permitido somente se feito por médicos, Goldman (2014. p. 270) acerca do tema relata: Reconhecendo que a repressão foi inútil, o decreto permitia às mulheres fazerem abortos gratuitos em hospitais, mas apenas pelos médicos; as babki (parteiras camponesas) ou parteiras teriam de enfrentar sanções penais e seriam privadas do seu direito à prática da profissão. O decreto explicava que “as reminiscências morais” e as “dolorosas condições econômicas do presente” tornavam o aborto necessário. Oferecia às mulheres uma alternativa segura, legal e economicamente justa aos becos do passado 15 Tal mudança permitiu acesso a maior segurança na realização dos procedimentos, agora realizados somente por profissionais qualificados, entretanto, nem todas as mulheres tinham acesso ao aborto legal, uma vez que era realizado somente nas cidades e o país era, em sua vasta maioria, composto de áreas rurais. Contudo, após preocupante decadência na taxa de natalidade, de acordo com Goldman (2014. p.300), no ano de 1936 tal decreto foi revogado e o aborto foi novamente criminalizado, acompanhe-se: Em junho de 1936, em meio a uma grande campanha de propaganda, o Comitê Executivo Soviético Central (TsIK) e o Sovnarkom emitiram um decreto que declarava o aborto como ilegal. Aqueles que praticassem a operação estariam sujeitos a no mínimo dois anos de prisão, e inclusive a mulher que se submetia ao aborto estaria sujeita a multas altas depois da primeira infração. A nova lei oferecia incentivos para a maternidade mediante um subsídio para novas mães, bônus grandes para mulheres com muitos filhos e licenças maternidade mais longas para funcionárias administrativas. Também aumentou a quantidade de clínicas de maternidade, creches e cozinhas de leite. Somado às medidas pró- natalidade, ficou mais difícil conseguir um divórcio, e as multas e penas para os homens que negassem pagar pensões alimentícias aumentaram. A proibição do aborto foi a peça-chave de uma campanha mais ampla para promover a “responsabilidade familiar”. Apesar de suas inúmeras limitações, a experiência soviética foi muito importante para o avanço da discussão sobre o aborto na Europa e restante do mundo, uma vez que mostrou que era possível legalizar o aborto e haver apoio do Estado, como uma alternativa à realização clandestina e perigosa à saúde da mulher. Nos Estados Unidos da América, conforme Cabral (2009), a discussão acerca do aborto sempre gerou grande polemica, chegando a levar a sociedade estadunidense ase dividir entre pro-life (pró-vida), com maior viés religioso e conservador e pro-choice (pró-escolha), que defende a liberdade de escolha da mulher sobre continuar com a gestação. Tal discussão levou ao caso Roe vs. Wade, em 1973, no qual a Suprema Corte decidiu que o aborto voluntário realizado no primeiro trimestre de gravidez não seria mais criminalizado. Conforme exposto por Cabral (2009. p.1): Em síntese, no caso Roe v. Wade (1973), a Suprema Corte norte-americana estabeleceu que as mulheres tinham o direito ao aborto, como consequência do direito à privacidade protegido pela Emenda nº 14 à Constituição norte-americana. A decisão declarou a inconstitucionalidade da Lei estadual do Texas e conferiu as mulheres uma total autonomia para interromper a gravidez durante o 1º trimestre de gestação. Admitiu-se, ainda, a existência de alguns critérios de limitação aos abortos praticados nos 2º e 3º trimestres de gestação. De uma forma geral, pode-se dizer que a decisão da Suprema Corte afetou quase a totalidade das Leis estaduais que disciplinavam a prática do aborto nos Estados Unidos. De acordo com Pereira (2015), a Suprema Corte estabeleceu que a gestação seria dividida em trimestres, sendo que no primeiro trimestre, uma vez que o abortamento oferece 16 tantos riscos à mulher quanto um parto, a prática seria legalizada, não havendo motivos para a interferência do estado em tal procedimento. Já a partir do segundo trimestre, o procedimento poderia ser regulamentado, visando preservar a saúde da mulher. E após o terceiro trimestre da gestação, uma vez que já é viável a sobrevivência do feto fora do útero, o aborto poderia ser, inclusive, proibido. Deste modo, após tal decisão da Suprema Corte, nos Estados Unidos as Mulheres possuem a liberdade de escolher se querem, ou não, dar prosseguimento à gestação, tendo o apoio necessário do Estado, desde que realizado dentro do período já estabelecido em lei. Na França, houve grande luta de movimentos sociais pró-escolha, tendo como principais expoentes o Manifesto das 343 pelo Nouvel Observateur, no qual centenas de personalidades femininas assinaram declarando já ter realizado um aborto clandestino e posteriormente o surgimento dos movimentos Choisir e MLAC (Movimento pela Liberalização do Aborto e da Contracepção) que, de acordo com Lavinas (2015. p.1), “reúniu à época não apenas feministas, mas também membros da classe médica que passam a praticar aborto seguro, ainda que ilegal e passível de prisão”. Sarmento (2005) lembra que no ano de 1979, tais normas tornaram-se definitivas, deste modo o aborto voluntário nas dez primeiras semanas de gravidez tornou-se legalizado, em um modelo semelhante ao adotado posteriormente em Portugal. Em 1982, nova lei surgira, prevendo a obrigação da Seguridade Social francesa de arcar com 70% dos gastos decorrentes da interrupção da gestação. O ordenamento jurídico de Portugal divide as mesmas raízes romano-germânicas do brasileiro, trazendo grandes semelhanças na forma como se regulamenta a sociedade, por todo o histórico como colônia até o século XIX. No entanto, apesar de tais similaridades, em Portugal a interrupção voluntária de uma gestação (IVG) não é criminalizada. Conforme relata Dias (2017), até fevereiro de 2007 o aborto em Portugal era criminalizado e possuía tão somente três excludentes de ilicitude, semelhantes às existentes no Brasil, quais sejam a má formação do feto, estupro e risco de morte para a mãe. Entretanto, naquele ano foi realizado um referendo nos quais os portugueses responderam nas urnas a pergunta “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”, tendo o “Sim” vencido com 59% dos votos. Tal referendo deu origem a Lei nº 16/2007 de 17 de abril, a qual tornou a IVG legal e estabeleceu parâmetros para o procedimento. O dispositivo alterou a redação do artigo 142 do Código Penal Português, tendo agora a seguinte redação (PORTUGAL. p.33. 2007): 17 Artigo 142.º - Interrupção da gravidez não punível 1 — Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando: a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida; b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez; c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando -se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo; d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas; e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez. (grifo nosso) Para tanto, foi estabelecido a necessidade de uma consulta prévia e um período de reflexão de, no mínimo três dias, conforme enumerado nas alíneas 4 e 5 do artigo supracitado, bem como consentimento expresso da gestante ou seu representante legal, caso seja menor de 16 anos. Passados dez anos desde a legalização, Portugal é atualmente um dos países que menos aborta na Europa e os números vem diminuindo ao longo dos anos, conforme Dias (2017.p.1): É difícil precisar, mas estima-se que, na década de 1970, o número de abortos em Portugal ultrapassava 100 mil. Destes, 2% resultavam em morte (o aborto era a terceira causa de morte das mulheres). Naquela época, todos os abortos eram ilegais - por isso, o número é apenas uma estimativa. Dados mais recentes, de 2008, mostram que o país registrou 18.014 abortos. O número cresceu ligeiramente nos primeiros anos da legalização, mas desde 2013 está em queda constante. Em 2015 foram 10% menos abortos do que em 2008. Cabe mencionar, conforme Madeira (2016) que tal direito estende-se inclusive para mulheres imigrantes, independentemente de sua situação legal no país, resguardando-se a privacidade e o sigilo profissional em todas as etapas do processo de interrupção da gravidez. Outrossim, médicos que não concordem com a realização do procedimento podem alegar “objeção de consciência” e indicar o procedimento a outro médico. Deste modo, Portugal passou a tratar a interrupção voluntária da gestação como procedimento permitido e o Estado passou a fornecer ajuda àquelas mulheres que escolhem não levar adiante a gestação, desde que até a décima semana, tendo a disposição da gestante saúde de qualidade. A maioria dos países com proibição absoluta do aborto estão situados na América Latina, região que concentra também o maior número de gravidezes não planejadas no mundo, Centenra (2017. p.1) menciona que “segundo a ONU, a cada ano centenas de milhares 18 de mulheres abortam de forma clandestina, e as complicações decorrentes dessas intervenções representam uma das principais causas de mortalidade materna”. No continente, apenas 4 países permitem que seja interrompida a gestação sem apresentar justificativas, até a 12ª semana, quais sejam o Uruguai, Cuba, Porto Rico e a Guiana, bem como a Cidade do México. Grande parte dos países possui as mesmas três exceções que a legislação brasileira, quais sejam, quando a gravidez colocar em risco a saúde da mulher, se decorrer de estupro ou se o feto for inviável fora do útero. Além disso, estes países também possuem em comum grande presença religiosa, conforme Freitas(2016. p. 3): Embora a influência religiosa seja um fator comum a todos os países latino- americanos em que o aborto é restrito, essa também é uma característica de vários países europeus em que o procedimento é completamente descriminalizado. [...] Os países da América Latina têm em comum, além da religião, uma escassez de mulheres no Executivo e no Legislativo - tanto para fazer leis sensíveis às questões relacionadas a mulheres quanto para garantir que elas sejam cumpridas. Na região, apenas 25% dos cargos legislativos são ocupados por mulheres Portanto, nota-se que a forte presença da religião não é o único fator que influencia na proibição da interrupção voluntária da gestação nos países da América Latina, mas também a escassa representatividade feminina nas esferas políticas responsáveis pela tomada das decisões e fiscalização dos direitos conferidos às mulheres. 2.3 Os movimentos sociais na luta pela legalização Não há que se falar sobre aborto sem mencionar a visão dos movimentos sociais a respeito do tema, importantes atuantes nas lutas pela regulamentação e legalização da interrupção voluntária da gestação. O chamado movimento “pró-escolha” luta pelo direito da mulher de escolha entre ter ou não o filho, antagonizado pelo movimento “pró-vida”, o qual se coloca contrário a descriminalização do aborto. Tais movimentos são perfeitamente definidos e explicados por Sagan (1997. p. 121): Na caracterização mais simples, um adepto do "pró-escolha" sustentaria que a decisão de abortar uma gravidez deve ser tomada apenas pela mulher; o Estado não tem o direito de interferir. E um adepto do "pró- vida" afirmaria que, desde o momento da concepção, o embrião ou feto está vivo; que essa vida nos impõe a obrigação moral de preservá-lo; e que o aborto equivale a um homicídio. Os dois nomes - pró-escolha e pró-vida - foram escolhidos com vistas a influenciar aqueles que ainda não se decidiram: poucas pessoas desejam ser contadas entre aqueles que são contra a liberdade de escolha ou aqueles que se opõem à vida. 19 Portanto, denota-se que o movimento pró-escolha não é pró-aborto, mas apenas a favor da liberdade para as mulheres escolherem o destino do próprio corpo. Tal qual o que se evidencia por Boiteux (2016. p.1), a qual menciona que o movimento defende que “a proibição do aborto é uma política de controle social da mulher que tem por objetivo retirar dela o domínio sobre seu próprio corpo”. Em 1971 os movimentos sociais tiveram grande impacto na legalização do aborto na França. Tendo como uma das principais ativistas a figura de Beuvoir que manifestou-se na revista francesa Le Nouvel Observateur (traduzido aqui para português), acompanhe-se (BEUVOIR. 1971. p. 1): Um milhão de mulheres abortam todos os anos na França. Elas abortam em condição arriscada por causa da clandestinidade a que são condenadas, ainda que essa operação, se praticada sob supervisão médica, seja muito simples. Silenciamos sobre esses milhões de mulheres. Declaro ser uma delas. Declaro ter abortado. Da mesma maneira que demandamos acesso livre aos métodos contraceptivos, nós pedimos o aborto livre. Tal declaração evidencia que não é de hoje que as mulheres lutam pelo direito de escolher se querem, ou não, levar adiante a gravidez. Nesta mesma seara afirma Reis (1994. p.5): Os movimentos feministas [...] foram decisivos para a legalização do aborto da França, o serão no Brasil, pois a moderna mulher brasileira também não mais aceita ocupar uma posição subalterna, depender do homem, obedecê-lo como a criança obedece a seus pais (como era obrigatório na França sob o império do Código de Napoleão que decretava "o dever de obediência ao marido"), nem muito menos admite sujeitar-se aos rigores de uma lei obsoleta e injusta. Isto posto, pode-se afirmar que, ao longo do tempo, com o maior acesso a informação, mais mulheres brasileiras tomarão posicionamento diante deste impasse, ao adquirirem a consciência de sua igualdade perante o homem, como seres humanos dotados de livre arbítrio e total domínio sobre o próprio corpo. É inegável o fato de que mulheres com melhores condições financeiras conseguem pagar por abortamentos mais seguros, em clinicas nas quais, mesmo que ainda clandestinas, há profissionais qualificados para tal tarefa, equipamentos adequados e acompanhamento médico após o procedimento, neste mesmo sentido aduz Sarmento (2005. p. 51): As gestantes de nível social mais elevado, quando decidem pelo aborto, têm como realizá-lo, apesar da sua ilicitude, com acompanhento médico e em melhores condições de higiene e segurança. Já as mulheres carentes acabam se submetendo a expedientes muito mais precários e perigosos para pôr fim às suas gestações. Por esta razão na luta pró-escolha figuram, também, representantes das camadas mais vulneráveis da sociedade, conforme afirma Werneck (2009. p. 441): 20 Diferentes organizações de mulheres, incluindo as de mulheres negras e suas articulações nacionais, estão envolvidas na luta pelo direito ao aborto no brasil. a partir da defesa da descriminalização, estas organizações reafirmam o posicionamento de que o acesso livre ao abortamento, quando necessário, deve ser um direito de escolha da mulher em nome da autonomia sobre o próprio corpo. Ou seja, a máxima “nossos corpos nos pertencem” está na base da tomada de decisão sobre fecundidade e procriação de cada uma em particular e das mulheres em geral. Tal participação se dá, uma vez que as principais atingidas pela proibição do aborto são justamente mulheres com baixas condições econômicas. Ocorre que de vítimas da desigualdade, tais mulheres passam a criminosas ao interromperem uma gravidez que não teriam condições de levar adiante. Neste mesmo sentido, Ardaillon (1998. p.1) afirma que a criminalização do aborto no Brasil “só estabelece uma ilegalidade para as mulheres pobres, cuja maioria é de raça negra”. Estas afirmações sintetizam o fato de que a proibição do aborto no Brasil acaba servindo como grande meio de segregação, tratando de forma muito desigual os menos favorecidos economicamente. 2.4 A criminalização do aborto como uma questão de saúde pública e a afronta à dignidade da pessoa humana A interrupção voluntária da gestação de forma clandestina e suas sequelas no corpo da mulher, muitas vezes levando a morte, se revela como um grande problema de saúde pública que já não pode mais ser ignorado, merecendo o devido espaço na pauta legislativa e nos meios de comunicação. Estima-se que ocorram mais de um milhão de abortos voluntários por ano no Brasil, sendo esta uma das principais causas de mortes maternas. Hoje no país, são realizadas cerca de 240 mil internações por ano no SUS, para tratamento de mulheres com complicações decorrentes da interrupção induzida da gravidez, o que gera gastos anuais, em média, de 45 milhões de reais (SANTOS. et al. 2013. p. 497-498). Deste modo, deve-se notar que tais gastos vultuosos poderiam ser investidos em políticas públicas de educação sexual e reprodutiva, bem como em clínicas que fornecessem atendimento de qualidade para mulheres que desejassem interromper a gestação, com acompanhamento médico e psicológico, evitando, assim, milhares de mortes. Neste sentido, afirma Santos et. al (2013. p.502): O déficit na qualidade da assistência à saúde sexual e reprodutiva das mulheres, dificuldade de acesso aos serviços de saúde, baixa escolaridade, baixa renda e discriminação étnica são fatores associados à gravidez indesejada que fazem com que várias mulheres busquem práticas clandestinas e/ou inseguras para abortar, em condições sanitárias desfavoráveis. O resultado desta situação revela-se em 21 importante questão de saúde pública, haja vista que no Brasil os índices referentes a este tipo deaborto são considerados elevados. Neste contexto, faz-se necessário que ocorram mais investimentos na investigação de mortes provenientes do aborto ilegal, bem como na identificação dos casos de morbidade grave e fatores associados. Isto posto, é mister repisar que a legalização do procedimento de interrupção da gestação traria um novo enfoque da legislação brasileira sobre tal, conferindo o devido status de um procedimento que deve ser fiscalizado, oferecido de forma gratuita para camadas vulneráveis da sociedade e acompanhado de orientações à gestante, acerca dos riscos e cuidados que devem ser levados em conta. Após apresentadas as mazelas causadas pela proibição da interrupção voluntária da gestação, fica claro que tal visão fere diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como a autonomia reprodutiva, a privacidade e a liberdade das mulheres, prejuízos que poderiam ser evitados. Acompanhe-se a explanação de Sarmento (2005. p.43) sobre o tema: O reconhecimento da dignidade da pessoa humana pressupõe que se respeite a esfera de autodeterminação de cada mulher ou homem, que devem ter o poder de tomar as decisões fundamentais sobre suas próprias vidas e de se comportarem de acordo com elas, sem interferências do Estado ou de terceiros. A matriz desta idéia é a concepção de que cada pessoa humana é um agente moral dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, de traçar planos de vida e de fazer escolhas existenciais, e que deve ter, em princípio, liberdade para guiar-se de acordo com sua vontade. Fica nítido que restringir a autonomia reprodutiva feminina, no momento em que a mulher deseja não ter um filho é interferir diretamente no livre arbítrio da gestante, desrespeitando a mulher como ser humano livre. Sarmento (2005. p.44) prossegue ao discorrer sobre o assunto: [...] uma das escolhas mais importantes na vida de uma mulher é aquela concernente a ter ou não um filho. É desnecessário frisar o impacto que a gestação e, depois, a maternidade, acarretam à vida de cada mulher. A gravidez e a maternidade podem modificar radicalmente o rumo das suas existências. Se, por um lado, podem conferir um novo significado à vida, por outro, podem sepultar projetos e inviabilizar certas escolhas fundamentais. É dentro do corpo das mulheres que os fetos são gestados, e ademais, mesmo com todas as mudanças que o mundo contemporâneo tem vivenciado, é ainda sobre as mães que recai o maior peso na criação dos seus filhos. Por tudo isto, a questão tem intensa conexão com a idéia de autonomia reprodutiva 75, cujo fundamento pode ser encontrado na própria idéia de dignidade humana da mulher (art. 1º, II, CF), bem como nos direitos fundamentais à liberdade e à privacidade (art. 5º, caput e inciso X, CF). Portanto, à luz da Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana figura como princípio basilar, deste modo, se torna evidente que, ao ferir tal princípio, os dispositivos legais que proíbem a interrupção voluntária da gestação estão eivados de inconstitucionalidade, merecendo sua revisão e consequente revogação. 22 Enfim, resta cristalina a ineficácia na proibição do aborto voluntário como forma de coibir que seja realizado tal procedimento, com efeito, pode-se deduzir, inclusive, que na medida que se restringem as liberdades individuais da mulher, ferem-se princípios fundamentais e relega-se milhões de gestantes à procurar por clinicas clandestinas e sujeitar-se a riscos de vida e condições desumanas. Conclusão O presente estudo buscou abordar a criminalização da interrupção voluntária de gestação (aborto) como um antagonista ao direito de liberdade de escolha da mulher sobre seu próprio corpo, no tocante do fato de desejar ter, ou não, um filho em determinado momento da vida. Tal procedimento é proibido no Brasil, verificando-se apenas três hipóteses em que se torna legalizado, quais sejam nas gestações que causa risco de vida à mulher, naquelas decorrentes de estupro e, mais recentemente, em casos de anencefalia do feto, conforme o disposto nos artigos 124 a 126 do Código Penal de 1940. Entretanto, observa-se que tais dispositivos legais se encontram defasados e em descompasso com as visões do mundo atual sobre o tema, uma vez que diversos países já adotam posturas nas quais o aborto é legalizado para gestantes que o queiram realizar, sem necessidade de justificativas ou fatos que condicionem à liberação ou proibição do procedimento, inclusive, diminuindo o número de casos de aborto nestes países. Tal defasagem se torna clara ao trazer à baila os números acerca do procedimento no país, os quais demonstram que, apesar da ilicitude, em nada influencia a legislação no momento que milhões de gestantes decidem realizar o aborto anualmente, uma vez que a execução do ato se dá sob o manto da clandestinidade. Todavia, por se tratar de ato criminoso, a realização do aborto, enquanto procedimento cirúrgico agressivo ao corpo da mulher, muitas vezes se dá por profissionais não qualificados, em ambientes insalubres, sem as mínimas condições sanitárias adequadas, causando grandes sequelas e tornando o aborto uma das maiores causas de mortalidade materna no país. Deste modo, verifica-se que a proibição do aborto voluntário, além de não possuir eficácia ao evitar que tais procedimentos ocorram, acaba por ferir princípios fundamentais elencados na Constituição Federal, quais sejam a dignidade da pessoa humana, o direito a saúde, à proteção contra tortura e tratamentos degradantes, entre outros. Isto posto, conclui-se que, como forma de resolver o problema de saúde pública que é o aborto atualmente, os dispositivos que proíbem o aborto voluntário no Brasil devem ser 23 revogados, uma vez que são inconstitucionais e não estão surtindo a eficácia esperada. Assim, consequentemente, seria necessária a regulamentação do aborto no país, com melhores políticas de educação sexual e reprodutiva e amparo médico e psicológico às gestantes que não desejam, independentemente do motivo, levar adiante a gravidez. Referências ALMEIDA, Rogério Miranda de; RUTHES, Vanessa Roberta Massambani. 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