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2017 AntropologiA SociAl e culturAl Profª Milena Cassal Profª Priscila Farfan Barroso Copyright © UNIASSELVI 2017 Elaboração: Profª Milena Cassal Profª Priscila Farfan Barroso Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 301 B277a Barroso, Priscila Farfan Antropologia social e cultural / Priscila Farfan Barroso; Milena Cassal. Indaial : UNIASSELVI, 2017. 221 p. : il. ISBN 978-85-515-0079-8 1.Sociologia e Antropologia. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. Impresso por: III ApreSentAção Ao iniciar este livro de estudos, convidamos você a mergulhar na história da antropologia e em suas diversas vertentes, buscando conhecer outras formas de perceber os indivíduos em sociedade. A antropologia desvenda os detalhes existentes entre os grupos sociais. A partir da etimologia (origem da palavra) sabemos que ANTHROPOS=HOMEM e LOGIA= ESTUDO. Ou seja, antropologia é o estudo do homem. Mas por que devemos estudar o homem? Já não existem tantas ciências a estudá-lo? Ao estudar antropologia, compreendemos melhor o funcionamento de determinados grupos sociais. Deste modo é mais fácil desconstruir determinadas visões sobre diversos assuntos. A desconstrução de ideias é um dos principais enfoques das ciências sociais, com uma forte contribuição da antropologia, já que a base de muitas de suas pesquisas inicia-se pelo “senso comum” e o “transformam” em outros conceitos, a partir da perspectiva do pesquisado. A antropologia surgiu na segunda metade do século XIX, juntamente com a sociologia, devido a grandes acontecimentos sociais, econômicos e políticos. No decorrer dos séculos, esta ciência se modificou para observar e compreender as mudanças citadas acima. Neste sentido, estudar antropologia é caminhar por várias formas de “ver” o mundo. Este livro de estudos apresenta as concepções da antropologia, assim como sua abordagem na sociedade. Apresenta as especificidades antropológicas, buscando conhecer como é produzido o fazer antropológico a partir das suas diversas correntes teóricas. Na primeira unidade buscamos compreender a origem da antropologia, assim como seus métodos, e iniciamos nossa caminhada pela antropologia cultural e social. Continuamente, na Unidade 2, verificamos os principais teóricos e suas abordagens dentro deste campo de estudo, e ao chegarmos à Unidade 3 trabalharemos com temas que permeiam o fazer do professor na área das ciências sociais: antropologia e educação. Neste livro de estudos avaliamos que seria importante trabalhar com um contexto dinâmico, com uma linguagem voltada para o cotidiano do aluno, fazendo com que ele tenha mais facilidade na compreensão dos conceitos apresentados, realizando de forma mais integrada os exercícios propostos neste livro. Seja bem-vindo, acadêmico, ao universo da Antropologia Social e Cultura! Profª Milena Cassal Profª Priscila Farfan Barroso IV UNI Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. 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UNI V VI VII Sumário UNIDADE 1 - INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA ... 1 TÓPICO 1 - CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA .......................... 3 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 3 2 COMO SURGEM OS ESTUDOS DO HOMEM ............................................................................. 4 3 O QUE É ETNOCENTRISMO? ........................................................................................................ 11 4 IDEOLOGIAS ETNOCÊNTRICAS .................................................................................................. 14 5 O DISTANCIAMENTO, O ESTRANHAMENTO E A ALTERIDADE ..................................... 16 6 A XENOFOBIA E SUA LIGAÇÃO COM O ETNOCENTRISMO ............................................. 17 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 18 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 22 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 23 TÓPICO 2 - O QUE É ANTROPOLOGIA? ........................................................................................ 25 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 25 2 CAMPOS INICIAIS DA ANTROPOLOGIA ................................................................................. 26 3 A ANTROPOLOGIA COMO CIÊNCIA NO BRASIL .................................................................. 29 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 33 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 36 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 37 TÓPICO 3 - METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA .................................................................. 39 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 39 2 OBJETOS DE ESTUDO DA ANTROPOLOGIA ........................................................................... 39 3 O OLHARDO PESQUISADOR ....................................................................................................... 43 4 O OUVIR DO PESQUISADOR ........................................................................................................ 44 5 O ESCREVER DO PESQUISADOR ................................................................................................. 45 6 A ESCRITA ANTROPOLÓGICA E A CONSTRUÇÃO DE “PERFIS” SOCIAIS ................... 45 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 49 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 53 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 54 UNIDADE 2 - PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA ...................... 57 TÓPICO 1 - A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO ............................. 59 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 59 2 EVOLUCIONISMO SOCIAL E MATERIALISMO CULTURAL ............................................... 59 2.1 MORGAN E A SOCIEDADE ANTIGA ....................................................................................... 60 2.2 TYLOR E A CIÊNCIA DA CULTURA ......................................................................................... 61 2.3 FRAZER E A ANTROPOLOGIA SOCIAL ................................................................................. 62 2.4 PARTICULARISMO HISTÓRICO E CULTURAL .................................................................... 64 2.5 MÉTODO ETNOGRÁFICO E A ESCRITA .................................................................................. 67 2.6 FUNÇÃO, ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ............................................................ 70 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 74 VIII RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 79 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 80 TÓPICO 2 - PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA ........................ 81 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 81 2 A ESCOLA FRANCESA ...................................................................................................................... 81 2.1 REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E FORMAS PRIMITIVAS DE CLASSIFICAÇÃO ......... 82 2.2 PENSAMENTO SELVAGEM E ESTRUTURALISMO ............................................................... 86 3 A ESCOLA AMERICANA ................................................................................................................... 90 3.1 CULTURA, PERSONALIDADE E GÊNERO .............................................................................. 91 3.2 INTERPRETATIVISMO E DESCRIÇÃO DENSA ....................................................................... 96 4 A ESCOLA BRITÂNICA ................................................................................................................. 100 4.1 PROCESSO RITUAL E OS DRAMAS SOCIAIS ....................................................................... 100 4.2 PUREZA E SIMBOLISMO ........................................................................................................... 103 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 106 RESUMO DO TÓPICO 2 ..................................................................................................................... 110 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 111 TÓPICO 3 - INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA ...................... 113 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 113 2 CULTURA COMO INVENÇÃO ..................................................................................................... 113 2.1 AUTORIDADE DO ETNÓGRAFO E POSSIBILIDADE DE ESCRITAS ............................... 116 2.2 GRANDES RUPTURAS E NOVOS QUESTIONAMENTOS .................................................. 118 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 120 RESUMO DO TÓPICO 3 ..................................................................................................................... 123 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 124 UNIDADE 3 - TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL ............................................................................................................................................ 125 TÓPICO 1 - CITAÇÕES ....................................................................................................................... 127 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 127 2 EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA ................................................................................................ 128 3 DESIGUALDADES NA EDUCAÇÃO: UM OLHAR DA ANTROPOLOGIA ...................... 135 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 138 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 143 RESUMO DO TÓPICO 1 ..................................................................................................................... 152 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 153 TÓPICO 2 - DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS ............................................................................... 155 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 155 2 TEMAS DA EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA ......................................................................... 156 2.1 DESIGUALDADE ECONÔMICA ENTRE GÊNEROS ............................................................ 157 2.2 AS RELAÇÕES ÉTNICAS RACIAIS NA EDUCAÇÃO .......................................................... 159 3 GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA SEGUNDO A ANTROPOLOGIA ..................... 173 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 179 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 184 RESUMO DO TÓPICO 2 ..................................................................................................................... 189 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 191 TÓPICO 3 - ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA E REFLEXIVA ....... 193 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................193 IX LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 199 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 205 RESUMO DO TÓPICO 3 ..................................................................................................................... 210 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 211 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 213 X 1 UNIDADE 1 INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • conceituar antropologia, sua origem e métodos; • compreender o significado da antropologia cultural e social. Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles você encontrará dicas, textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior compreensão dos temas a serem abordados. TÓPICO 1 – CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA TÓPICO 2 – O QUE É A ANTROPOLOGIA? TÓPICO 3 – METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 1 INTRODUÇÃO Iniciamos nossa jornada de estudos buscando compreender melhor o significado de antropologia cultural e social, que, no caso, diz respeito a TUDO que constitui uma sociedade, incluindo a nossa: “[...] seus modos de produção econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia, suas criações artísticas” (LAPLANTINE, 2000, p. 19). De acordo com Lévi-Strauss (1974, p. 80), o antropólogo busca compreender aquilo que os homens “não pensam habitualmente em fixar na pedra ou no papel”. Os gestos, as trocas simbólicas, os detalhes do comportamento humano são os objetos do estudo do homem. A antropologia é o estudo das culturas humanas, assim como de um TODO na sua diversidade histórica e geográfica (LAPLANTINE, 2000). A antropologia social trabalha, inicialmente, com os sistemas de pensamento, destaca a coesão das instituições, o caráter integrativo da família, da moral e da religião (DURKHEIM,1979). A antropologia social e cultural tem o mesmo campo de investigação: O social é a totalidade das relações (relações de produção, de exploração, de dominação...), que os grupos mantêm entre si dentro de um mesmo conjunto (etnia, região, nação...) e para com outros conjuntos, também hierarquizados. A cultura, por sua vez, não é nada mais que o próprio social, mas é considerado dessa vez sob o ângulo dos caracteres distintivos que apresentam os comportamentos individuais dos membros desse grupo, bem como suas produções originais (artesanais, artísticas, religiosas...) (LAPLANTINE, 2000, p. 95). Os antropólogos culturais e sociais possuem os mesmos métodos etnográficos, fazem análises comparativas. No ângulo da antropologia social, a comparação é o social como sistema de relações sociais e na antropologia cultural observa-se o social através dos comportamentos particulares dos membros do grupo pesquisado. “Nossas maneiras específicas, enquanto homens e mulheres de uma determinada cultura, de pensar, de encontrar, trabalhar, se distrair, reagir frente aos acontecimentos (por exemplo, o nascimento, a doença, a morte) (LAPLANTINE, 2000, p. 96). UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 4 A partir destes pontos destacamos os seguintes questionamentos: como surge o estudo do homem? O que é antropologia? Qual é o seu método? Verificaremos nas próximas páginas as respostas para estas perguntas, assim como nas unidades seguintes conheceremos seus principais autores e linhas de pensamento teórico. FIGURA 1 - ESTUDO DO HOMEM FONTE: Disponível em: <https://kmarx.files.wordpress.com/2015/10/multicult- stubble-brush.jpg>. Acessado em: 15 out. 2016. 2 COMO SURGEM OS ESTUDOS DO HOMEM A antropologia tem origem na Europa, assim como a sociologia. Na França e em alguns países, muitos cientistas sociais não fazem distinção entre as duas. O surgimento da sociologia e da antropologia deve-se a uma série de mudanças políticas, sociais e econômicas do cenário daquela época. O contato com os novos povos gerou muitos questionamentos, desde o início das grandes navegações nos séculos XIV e XV. Marco Polo (apud LAPLANTINE, 2000, p. 60) fez um dos primeiros questionamentos antropológicos a partir da experiência de estar em contato com novos povos: “Como podem povos tão iguais (física e biologicamente) produzir culturas tão diferentes?” O que você acha, caro acadêmico? Como povos tão iguais desenvolvem culturas tão diferentes? Vivemos em um país com diversas culturas locais riquíssimas, mas fazemos parte da mesma nacionalidade, somos todos brasileiros, no entanto, praticamos ações e visões culturais bastante diferentes dos demais em nosso país. TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 5 Voltamos para as grandes navegações e suas expansões pelos saberes antropológicos. Primeiramente, as sociedades espanhola e portuguesa delegaram à Igreja Católica Romana a função de conhecer e compreender os povos conquistados, através das pesquisas dos jesuítas com os indígenas no processo de catequização. Seus estudos tinham o objetivo de conhecer o povo nativo para “dominá-lo” e colonizá-lo. Como bem sabemos, os indígenas (e depois os africanos escravizados) foram utilizados como mão de obra em muitas terras conquistadas pelos portugueses e espanhóis. Os britânicos, franceses e holandeses utilizaram outra técnica de dominação dos povos nativos, que não estava ligada à religião. Desejavam manipular sua base econômica para a produção comercial, não se interessavam em mudar as leis dos povos ou impor-lhes sua religião, tinham um objetivo: “Conhecer para manter”. A partir desta origem, a antropologia está embasada em três temas: Antropologia pragmática, “conhecer outros povos para explorá-los”, que poderia ser trabalhada no estudo da linha evolucionista na antropologia. Antropologia romântica, que tenta proteger o povo conquistado do contato e absorção pela civilização dominadora. E a antropologia científica, sendo estudada na linha funcionalista e estruturalista – social e cultural. Estas linhas serão estudadas na Unidade 2. A antropologia estuda todas as sociedades humanas, inclusive a nossa sociedade. É recente o estudo das chamadas sociedades complexas, as primeiras pesquisas trataram dos aspectos “tradicionais” das sociedades não tradicionais. Analisavam-se as comunidades camponesas europeias, logo após a atenção foi voltada para grupos marginais e há poucos anos iniciou-se o estudo nas cidades. Anteriormente, a antropologia voltou-se para o estudo das civilizações primitivas, porém seu objeto de pesquisa mudou e, assim, muitas reflexões foram desenvolvidas para que as bases epistemológicas fossem amadurecidas. A profissão de antropólogo e a ciência antropológica surgiram no início do século XX, com os antropólogos Franz Boas (USA) e Bronislaw Malinowski (Inglaterra). A antropologia como ciência contribui com diversas formas de analisar as sociedades, o estranhamento da cultura do outro, o choque cultural a partir do contato com outra cultura e a negação do etnocentrismo são fatores positivos para um olhar diferenciado para o modo de viver em sociedade. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 6 FIGURA 2 - CULTURA OU CULTURAS FONTE: Disponível em: <https://www.kickante.com.br/ campanhas/cultura-box>. Acessoem: 15 out. 2016. A antropologia estuda ou analisa diversas formas de culturas e suas relações com o viver em sociedade. Segundo Giddens (2005), a cultura de uma sociedade compreende tanto aspectos intangíveis – as crenças, as ideias e os valores que a formam –, como também os aspectos tangíveis, ou seja, os objetos, os símbolos ou a tecnologia que expressam este conteúdo. A noção de cultura parece ofertar a resposta mais ampla à questão da diferença entre os povos. De acordo com Cuchê (1999), o homem é essencialmente um ser cultural. “A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna possível a transformação da natureza” (CUCHÉ, 1999, p. 10). No final do século XVIII e no início do século XIX, o termo germânico “Kultur” era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa “Civilization” referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 7 Edward Tylor (1832-1917) (1971, p. 71) no vocábulo inglês “Culture”, que "tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade". Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos (LARAIA, 2005). O conceito de cultura, utilizado atualmente, foi definido pela primeira vez por Tylor. Ele formalizou uma ideia que vinha crescendo na mente humana. A ideia de cultura, com efeito, estava ganhando consistência talvez mesmo antes de John Locke (1632-1704) que, em 1690, ao escrever Ensaio acerca do entendimento humano, procurou demonstrar que a mente humana não é mais do que uma caixa vazia por ocasião do nascimento, dotada apenas da capacidade ilimitada de obter conhecimento, através de um processo que hoje chamamos de endoculturação. Locke (1978) refutou fortemente as ideias correntes na época, de princípios ou verdades inatas impressas hereditariamente na mente humana, ao mesmo tempo em que ensaiou os primeiros passos do relativismo cultural ao afirmar que os homens têm princípios práticos opostos: Quem investigar cuidadosamente a história da humanidade, examinar por toda a parte as várias tribos de homens e com indiferença observar as suas ações, será capaz de convencer- se de que raramente há princípios de moralidade para serem designados, ou regra de virtude para ser considerada... que não seja, em alguma parte ou outra, menosprezado e condenado pela moda geral de todas as sociedades de homens, governadas por opiniões práticas e regras de condutas bem contrárias umas às outras (LOCKE apud LARAIA, 2005, p. 14-15). Mais de um século transcorrido, Kroeber (1950, p. 85) escreveu que "a maior realização da Antropologia na primeira metade do século XX foi a ampliação e a clarificação do conceito de cultura". Porém, as centenas de definições formuladas após Tylor serviram mais para estabelecer uma confusão do que ampliar os limites do conceito. Em 1973, Geertz escreveu que o tema mais importante da moderna teoria antropológica era o de "diminuir a amplitude do conceito e transformá-lo num instrumento mais especializado e mais poderoso teoricamente" (GEERTZ apud CUCHÊ,1999, p. 15). A cultura, segundo Clifford Geertz (1978), é um sistema de teias de significado que foi tecido pelo próprio homem. A cultura não seria uma ciência experimental, mas uma ciência interpretativa à procura de um significado. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 8 FIGURA 3 - O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE CULTURA FONTE: <https://www.google.com.br/search?sa=G&hl=pt&q=co municacion+marketing&tbm=isch&tbs=simg:CAQSkwEJSq74TsQ QGWkahwELEKjU2AQaAAwLELCMpwgaYgpgCAMSKKsUpxSfCrIU- RO3FKUUrBSmCbYU-D35Pcw3mjWZNZkptiebKfMi-ygaMAvBeg6wg7RL jcyqN705jhayOVsx52pspk9V4S_1xa1ApgP3Kg4lY6idFDKSL4oHDyCAED AsQjq7-CBoKCggIARIEwFQNCgw&ved=0ahUKEwj8koPO4cvQAhWBG ZAKHSkLDVgQ2A4IGygB&biw=1366&bih=662#imgdii=YnK1cCmMC_ z0cM%3A%3BYnK1cCmMC_z0cM%3A%3BbtAyr1D_ W7hWOM%3A&imgrc=YnK1cCmMC_z0cM%3A>. Acesso em: 16 out. 2016. A primeira definição de cultura que foi formulada do ponto de vista antropológico, como vimos, pertence a Edward Tylor, no primeiro parágrafo de seu livro Primitive Culture (1871). Tylor (1871) procurou, além disto, demonstrar que cultura pode ser objeto de um estudo sistemático, “pois trata-se de um fenômeno natural que possui causas e regularidades, permitindo um estudo objetivo e uma análise capazes de proporcionar a formulação de leis sobre o processo cultural e a evolução” (TYLOR apud LARAIA, 2005, p. 17). Mais do que preocupado com a diversidade cultural, Tylor preocupava- se com a igualdade existente na humanidade. A diversidade é explicada por ele como o resultado da desigualdade de estágios existentes no processo de evolução. Assim, uma das tarefas da antropologia seria a de "estabelecer, grosso modo, uma escala de civilização", simplesmente colocando as nações europeias em um dos extremos da série e em outro as tribos selvagens, dispondo o resto da humanidade entre dois limites. Mercier (1974) mostra que Tylor pensava as "instituições humanas tão distintamente estratificadas quanto a terra sobre a qual o homem vive. Elas se sucedem em séries substancialmente uniformes por todo o globo, independentemente de raça e linguagem – diferenças essas que são comparativamente superficiais –, mas moduladas por uma natureza humana semelhante, atuando através das condições sucessivamente mutáveis da vida selvagem, bárbara e civilizada" (LARAIA, 2005, p. 18). Para entender Tylor é necessário compreender a época em que ele viveu. O seu livro foi produzido nos anos quando a Europa sofria o impacto da Origem das TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 9 espécies, de Charles Darwin, e a “nascente antropologia foi dominada pela estreita perspectiva do evolucionismo unilinear” (LARAIA, 2005, p. 18) A principal reação ao evolucionismo, então denominado método comparativo, inicia-se com Franz Boas (1858-1949), nascido em Westfália (Alemanha) e inicialmente um estudante de física e geografia em Heidelberg e Bonn. Uma expedição geográfica a Baffin Land (1883-1884), que o “colocou em contato com os esquimós, mudou o curso de sua vida, transformando-o em antropólogo” (LARAIA, 2005, p. 19). São as investigações históricas – reafirma Boas (1986) – o que convém para descobrir a origem deste ou daquele traço cultural e para interpretar a maneira pela qual toma lugar num dado conjunto sociocultural. Em outras palavras, Boas (1986) desenvolveu o particularismo histórico (ou a chamada Escola Cultural Americana), segundo a qual cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou. A partir daí a explicação evolucionista da cultura só tem sentido quando ocorre em termos de uma abordagem multilinear BOAS apud LARAIA, 2005, p. 20). Alfred Kroeber (1950) (1876-1960), antropólogo americano, em seu artigo "O superorgânico", mostrou como a cultura atua sobre o homem, ao mesmo tempo em que se preocupou com a discussão de uma série de pontos controvertidos, pois suas explicações contrariam um conjunto de crenças populares. Demonstrou que graças à cultura, a humanidade distanciou-se do mundo animal. Para ele, o homem passou a ser considerado um ser que está acima de suas limitações orgânicas. A preocupação de Kroeber era evitar a confusão, ainda tão comum, entre o orgânico e o cultural.Não se pode ignorar que o homem, membro proeminente da ordem dos primatas, depende muito de seu equipamento biológico. Para se manter vivo, independentemente do sistema cultural ao qual pertença, ele tem que satisfazer um número determinado de funções vitais, como a alimentação, o sono, a respiração, a atividade sexual etc., mas, embora estas funções sejam comuns a toda humanidade, a maneira de satisfazê-las varia de uma cultura para outra. É esta grande variedade na operação de um número tão pequeno de funções que faz com que o homem seja considerado um ser predominantemente cultural. Os seus comportamentos não são biologicamente determinados. A sua herança genética nada tem a ver com as suas ações e pensamentos, pois todos os seus atos dependem inteiramente de um processo de aprendizado. O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade. De acordo com Laraia (2005), não basta a natureza criar indivíduos altamente inteligentes, isto ela o faz com frequência, mas é necessário que coloque ao alcance desses indivíduos o material que lhes permita exercer a sua criatividade de uma maneira revolucionária. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 10 Resumindo, a contribuição de Kroeber, segundo Laraia (2005) para a ampliação do conceito de cultura pode ser relacionada nos seguintes pontos: 1. A cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do homem e justifica as suas realizações. 2. O homem age de acordo com os seus padrões culturais. Os seus instintos foram parcialmente anulados pelo longo processo evolutivo pelo qual passou. 3. A cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes ecológicos. Em vez de modificar o seu aparato biológico, o homem modifica o seu equipamento superorgânico. 4. Em decorrência da afirmação anterior, o homem foi capaz de romper as barreiras das diferenças ambientais e transformar toda a Terra em seu hábitat. 5. Adquirindo cultura, o homem passou a depender muito mais do aprendizado do que a agir através de atitudes geneticamente determinadas. 6. Como já era do conhecimento da humanidade, desde o Iluminismo, é este processo de aprendizagem (socialização ou endoculturação) que determina o seu comportamento e a sua capacidade artística ou profissional. 7. A cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores. Este processo limita ou estimula a ação criativa do indivíduo. 8. Os gênios são indivíduos altamente inteligentes que têm a oportunidade de utilizar o conhecimento existente ao seu dispor, construído pelos participantes vivos e mortos de seu sistema cultural, e criar um novo objeto ou uma nova técnica. Nesta classificação podem ser incluídos os indivíduos que fizeram as primeiras invenções, tais como o primeiro homem que produziu o fogo através do atrito da madeira seca; ou o primeiro homem que fabricou a primeira máquina capaz de ampliar a força muscular, o arco e a flecha etc. São eles gênios da mesma grandeza de Santos Dumont e Einstein. Sem as suas primeiras invenções ou descobertas, hoje consideradas modestas, não teriam ocorrido as demais. E pior do que isto, talvez nem mesmo a espécie humana teria chegado ao que é hoje. No final do século XIX havia uma ideia de que civilizados eram os europeus e os norte-americanos, e as outras populações eram vistas como menos evoluídas, ou atrasadas. Franz Boas (1986) critica o uso do termo cultura com o sentido de ser mais ou menos civilizado. Para ele a cultura era múltipla, não se tratava de uma cultura, mas sim de várias “culturas”. Ao pensar cultura no “plural” pode- se desconstruir as hierarquias do pensamento colonial e racista da época, assim como analisamos cada cultura em sua perspectiva. Para Franz Boas (1986), os diferentes povos que há no mundo possuem diferentes culturas e entre elas é difícil estabelecer qualquer hierarquia. Em sua pesquisa com povos indígenas do noroeste americano e do Alasca, Boas (1986) verificou que as histórias das comunidades são tão particulares e preenchidas por interesses tão diversos que não há possibilidade de comparação. Para Franz Boas, cultura era um todo integrado, e não um conjunto desagregado de práticas, hábitos, técnicas, relações e pensamentos. Tal integração TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 11 de múltiplos elementos se dá a partir de um princípio compartilhado por todos os indivíduos de uma sociedade específica, assim se criaria a cultura. Por isso seria única e exclusiva de cada sociedade, o que inviabilizaria qualquer comparação. Segundo Boas (1986), qualquer comparação exigiria tanto cuidado e investigação histórica e antropológica que, na prática, seria muito difícil realizar tal ação, porque [...] “a cultura inclui o processo de simbolização, ou seja, de processos de substituição de uma coisa por aquilo que a significa” (SANTOS, 2006, p. 41). Para Santos (1984), a cultura é compreendida como a totalidade de uma dimensão da sociedade. Nos tempos atuais, ela seria algo como o conhecimento num sentido ampliado, ou seriam as maneiras pelas quais a realidade que se conhece é codificada por uma sociedade, através de palavras, ideias, doutrinas. 3 O QUE É ETNOCENTRISMO? Vamos falar um pouco sobre a negação do etnocentrismo e o que isto tem a ver com antropologia e com nossas relações cotidianas. Começaremos com alguns exemplos para a tentativa de compreensão do que é etnocentrismo. Seguimos pela área musical, você gosta de que tipo de música? Você acredita que o estilo musical funk é melhor que a música popular brasileira (MPB)? Ou MPB é melhor que música clássica? De que forma classificamos o que é “melhor” ou “pior” em termos generalizantes? Quem dita as regras, ou normas, do que é bom para cada grupo social, povo ou nação? Questionamentos como estes nos levam a iniciar nossas reflexões a respeito do etnocentrismo, que etimologicamente significa: ETNOS: nação, tribo ou pessoas que vivem juntas, e CENTRISMO: centro. Logo, a ideia de que o grupo está no centro. Assim, as ideias, conceitos, modos de conviver, regramentos sociais, morais, culturais, sexuais, religiosos, ambientais, políticos, são para o grupo o centro de tudo. Ou seja, tais pontos dão-se como o “certo” e o que não se ajusta a isso está “errado”. CUCHÉ (1999) relata que de acordo com o sociólogo americano William G. Sumner (1906), etnocentrismo “é o termo técnico para a visão das coisas segundo a qual nosso próprio grupo é o centro de todas as coisas e todos os outros grupos são medidos e avaliados em relação a ele”. Cada grupo alimenta seu próprio orgulho e vaidade, considera-se superior, exalta suas próprias divindades e olha com desprezo as estrangeiras. Cada grupo pensa que seus próprios costumes (folkways) são os únicos válidos e se ele observa que outros grupos têm outros costumes, encara-os com desdém (SIMON apud CUCHÊ, 1999). Para Rocha (1994), o etnocentrismo pode ser visto por dois planos, o plano intelectual e o plano afetivo. No plano intelectual o etnocentrismo pode UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 12 ser observado como a dificuldade de pensarmos a diferença. Já no plano afetivo, analisamos como sentimentos de estranheza, medo e hostilidade etc. De acordo com Everaldo Rocha (1994), o etnocentrismo mistura estes dois planos, pois eles compõem um fenômeno bastante presente na sociedade e que também é muito encontradoem nosso cotidiano. De certo modo, ao nos depararmos com o “diferente” nos sentimos ameaçados, já que nossa identidade cultural está sendo ferida ou contestada. Existe uma clara distinção entre grupos, o grupo do “EU” e o grupo do “OUTRO”. O choque cultural se dá quando se verificam as formas como o viver de cada grupo se difere e nestes aspectos a diferença sobressai, assim o “EU” determina que sua visão é a única, ou a superior, a correta. Os questionamentos sobre como o grupo do “OUTRO” vive de determinada forma são frequentemente explanados. O grupo do “OUTRO” irá apresentar-se diante do grupo do “EU” como o engraçado, absurdo, anormal etc. O grupo do “EU” trabalha na perspectiva de fortalecimento da identidade, identificando-se como “perfeitos”, “excelentes” ou “ser humano”, e ao “OUTRO” chamam de “macacos da terra” ou “ovos de piolhos” (por exemplo). O grupo do “EU” é visto como “superior” e “civilizado”, seria a sociedade onde existem o saber e o progresso, já a do “OUTRO” seria “atrasada”. Voltando aos estilos musicais, identificamos diversos tipos de músicas, muitas são visualizadas como “boas” ou “ruins”, “decentes” ou “indecentes” e também são caracterizadas conforme sua origem de classe social. Caso venha de classe mais abastada, com grande poder aquisitivo, de um grupo que “aparenta” ter “conhecimento” de música, é vista como músicas “boas”, porém se o estilo musical tem origem de classes mais pobres, em que já se preconiza um estereótipo de “falta de conhecimento”, as músicas já são vistas como “ruins”. Contudo, estamos colocando nestas observações juízos de valores etnocêntricos, pois cada grupo vai compreender que seu estilo musical é melhor, assim, não se consegue desenvolver uma crítica mais qualificada sobre o processo de criação musical e qual sua função nos meios em que é praticado. Segundo Lévi-Strauss (1986), os homens têm dificuldade de encarar a diversidade das culturas como um fenômeno natural. Quando falamos das grandes navegações, iniciamos a construção do conceito de humanidade. Para os povos primitivos, a humanidade acaba em suas fronteiras étnicas ou linguísticas, assim denominam-se “os homens”, “os excelentes” ou “os verdadeiros”, opondo-se aos estrangeiros que não são reconhecidos como humanos completos. Na sociedade greco-romana antiga, todos que não participavam da cultura greco-romana eram “bárbaros”. Na Europa ocidental, os que não pertenciam à civilização ocidental eram “selvagens”. O barbarismo demonstra confusão, desarticulação e desordem (ROCHA,1994). Aqueles que são diferentes do grupo do “EU” – os diversos “OUTROS” deste mundo –, por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos (ROCHA, 1994, p. 15). TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 13 Ser etnocêntrico, pensar de forma etnocêntrica, pode causar formas extremas de intolerância cultural, religiosa, política. A antropologia inicia a ideia de relatividade das culturas e da não hierarquização. Para a antropologia, recomenda-se a aplicação do método da observação participante para escapar do etnocentrismo na pesquisa. Para a antropologia, segundo Rocha (1994), a diferença é a forma como os grupos sociais deram soluções distintas a limites ou problemas existenciais comuns. A diferença não seria uma ameaça ou algo ruim, mas sim uma alternativa, ou uma possibilidade que o “OUTRO” pode abrir para o “EU”. Você já deve ter ouvido falar em noticiários, nas redes sociais e demais meios de comunicação, sobre o grande aumento de casos de xenofobia. Mas, afinal, o que é isso? O que a antropologia tem a ver com este fenômeno social? Xenofobia é o ato de repudiar, hostilizar e/ou odiar estrangeiros, fundamenta-se em fatores sociais, culturais, raciais, religiosos, históricos etc. O termo "xenofobia" é formado por dois termos: “xénos” (estrangeiro, estranho ou diferente) e “phobos” (medo), que corresponde, literalmente, ao medo do diferente. Ao constatarmos que uma cultura se sobrepõe como fator de superioridade a outra, estamos contribuindo com um olhar preconceituoso e xenófobo, produzindo estereótipos que podem violentar uma cultura e um povo de diversas formas. Para contrapor o etnocentrismo existem algumas ideias, e entre elas está a relativização. Mas o que seria a relativização? Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando. Quando o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta, mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferente (ROCHA, 1994, p. 20). A antropologia, ao longo de seus estudos, busca visualizar as diferentes formas, maneiras, resoluções que os indivíduos deram para as situações que se configuravam como limites existenciais. A diferença, para a antropologia, não é ameaça, é alternativa. Segundo Rocha (1994, p. 10), “Ela (diferença) não é uma hostilidade do “outro”, mas uma possibilidade que o “outro” pode abrir para o “eu””. Compreender que a diferença do “EU” em relação ao “OUTRO” pode ser pensada através do olhar da relativização é algo que vem a desconstruir os pensamentos etnocêntricos. As ideologias mais extremas, por exemplo, possuem grande dificuldade de aceitar a relativização, pois são gestadas e mantidas pelo seu UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 14 próprio monólogo, e a relativização descentraliza o pensamento, o que causa uma multiplicidade de pontos de vista, questionamentos e respostas. Franz Boas nos mostra a partir do relativismo que a cultura do homem só poderia ser interpretada na perspectiva de sua cultura local. O outro passou a ser visto na condição de fazedor de cultura e essa cultura entendida a partir do contexto no qual estava inserida. Isto é, análise não acontecia mais em função dos padrões do analista, mas em função dos padrões do próprio pesquisado (MENESES, 2009, p. 51). Sob a perspectiva do etnocentrismo, compreendemos a cultura como algo único, sendo entendida do ponto de vista daquele que está contando a história. Como exemplo, o colonizador insere em suas narrativas suas formas de contar, suas crenças, hábitos, costumes, formas de ver o mundo. Todavia, com o relativismo, ao percebermos a cultura em que o colonizado está inserido, fica mais fácil compreender o ponto de vista deste. 4 IDEOLOGIAS ETNOCÊNTRICAS Ao longo da história, várias ações etnocêntricas foram sendo desenvolvidas em prol da evolução da humanidade. Nas visões etnocêntricas, as relações de poder, superioridade e dominação sempre são estabelecidas. “[...] a negação do “Outro” enquanto tal. E nega-o por senti-lo como uma ameaça à sua própria maneira de ser, e mesmo ao seu ser. E como a melhor defesa é o ataque, pode partir para a eliminação física do Outro (PAULO, 2006, p. 13). Como exemplo histórico destas relações de dominação, relembramos o holocausto judeu, durante a Segunda Guerra Mundial, quando Hitler compreendia que a raça ariana era superior à judaica e outras. Milhares de pessoas foram retiradas de suas casas, cidades, famílias e aprisionadas em campos de concentração, onde eram expostas a trabalhos forçados, experiências médicas e mortas em câmaras de gás. TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARAESTUDO DA ANTROPOLOGIA 15 FIGURA 4 - HOLOCAUSTO JUDEU FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/ search?q=bosnia+kosovo&espv=2&biw=1280&bih=894&source= lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiZqY7v0r_ PAhUJgJAKHWlhB5UQ_AUICCgD#tbm=isch&q=holocausto&imgrc=g0caTTAE0YN5jM%3A>. Acesso em: 4 nov. 2016. Recentemente, Slobodan Milosevic, presidente da Sérvia, liderou uma guerra civil, em que bósnios e kosovares foram dizimados, causando um verdadeiro genocídio. Já citamos aqui também o processo da escravidão dos africanos, nas Américas e Europa, onde os escravizados eram sequestrados de suas regiões na África e, ao chegar nas colônias, eram batizados com nomes cristãos, pois eram considerados seres sem alma, ou seja, inferiores aos colonizadores. Existe uma forma mais sutil de lidar com o outro: mantendo a alteridade, porém esta é pretexto para oprimi-lo. A diferença torna-se título que legitima a dominação e exploração, já que demonstra uma degradação da condição humana; por isso, merece um estatuto de inferioridade e de discriminação. Por exemplo, maior esforço na produção, menor fatia na distribuição, privação do poder decisório; não ter a plenitude dos direitos do cidadão; ser considerado como objeto e não como sujeito da história (PAULO, 2006, p. 13). UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 16 Vejamos alguns exemplos de ideologias etnocêntricas: • Grandes navegações: Supremacia cristã, em que Deus era o único a ser venerado. Durante as expedições ao Novo Mundo, costumes e rituais que não eram cristãos, o demônio era retirado das pessoas pagãs. • Época das luzes: A desqualificação do outro se dá pelo “atraso” em relação à civilização ocidental, devido ao triunfo do racionalismo e do cientificismo. Desejava-se expandir a “cultura” e o progresso sobre os continentes bárbaros. Inúmeras barbáries em prol do progresso foram realizadas, destruições de culturas, pilhagem econômica, opressão política e massacres. • Racismo: Formulado com conceitos científicos, onde a raça branca era superior às demais, que situavam entre os primatas superiores e o homem europeu, onde se entende a Europa como centro (eurocentrismo). Veremos mais sobre racismo na Unidade 3. • Evolucionismo cultural: Prega que o europeu ou o wasp americano ocupe o lugar mais alto da cultura, ou seja, é aquele em que a sociedade e a cultura europeia são as mais evoluídas. A cultura é vista em etapas, todas caminharão para a evolução, que no caso seria a visão europeia de cultura. Deste modo, os “civilizados” controlariam as populações selvagens, bárbaras ou primitivas, até que possam alcançar a evolução cultural ou maturidade cultural, conduzida pelos europeus. 5 O DISTANCIAMENTO, O ESTRANHAMENTO E A ALTERIDADE O antropólogo, ao investir em uma nova pesquisa, desenvolve algumas formas de analisar seus objetivos. Nas primeiras sociedades estudadas houve um contato direto com os nativos, os antropólogos faziam uma espécie de imersão no contexto estudado. Distanciavam-se de suas realidades e aproximavam-se dos locais e pessoas pesquisados, contudo, deveriam fazer o exercício de distanciamento inúmeras vezes para que pudessem analisar, com certa neutralidade, os dados coletados. O estranhamento, a perplexidade ao deparar-se com o não conhecido foi fundamental para o exercício do fazer etnográfico antropológico. Estranhar leva à modificação do “olhar” que temos sob a cultura do outro e também a nossa. “[...] presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa” (LAPLANTINE, 2000, p. 21). Distanciar, estranhar e compreender o outro a partir de suas especificidades, a partir de suas peculiaridades e diferenças, ou seja, exercer a alteridade é o exercício inicial para compreender a antropologia e suas reflexões. A experiência da alteridade pode nos fazer “ver” que não teríamos condições de imaginar, devido a nossa dificuldade em prestar atenção no que é habitual, familiar e cotidiano, e, é claro, o que é evidente. O conhecimento antropológico de nossa cultura perpassa pelo conhecimento de outras culturas, deste modo percebemos que não somos a única cultura que existe, e nem a “mais correta” ou “ética”, nossa cultura pode ser possível entre tantas existentes. TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 17 Gilberto Velho (1987, p. 126), no texto “Observando o familiar”, relata o exercício de estranhar o familiar. O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismo como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente. Praticar o exercício de integração, empatia, talvez possa ajudar neste processo de tornar o desconfortável em “menos desconfortável”, pois acreditamos que ao tornar-se confortável demais, alguns olhares de pesquisadores perdem-se. Para melhor compreender o conceito e desenvolvimento da xenofobia, segue um texto para reflexão. 6 A XENOFOBIA E SUA LIGAÇÃO COM O ETNOCENTRISMO Ao decorrer das gerações, alguns grupos étnicos se elevaram em relação a outros menos favorecidos economicamente e tecnologicamente. Com a ascensão e o poder destes grupos, demais etnias e culturas começaram a ser menosprezadas, tornadas como ridículo ou motivo de ódio. Tomando como base a realidade atual mundial, podemos fazer uma analogia e dizer que o povo europeu é um destes membros opressores que se mantém nessa posição etnocentrista. Com vários países europeus possuindo partidos políticos que visam o favorecimento da “população nacional”, começa a ocorrer o surgimento agrupado de xenófobos organizados, na qual por muitas vezes se manifestam contrários, publicamente, acerca de imigrantes ou descendentes desses. (No caso europeu, principalmente muçulmanos). Em um mundo tão moderno como o atual, é incrível ainda ouvir pessoas discutindo sobre superioridade de tal nação tendo como critérios sua cultura, características físicas e afins, já que além de ser uma ação puramente etnocentrista e sem fundamentos, esses comentários “a la Gobineau” muitas vezes servem apenas para que o indivíduo agressor se autoafirme. Mas mesmo assim, é visível que um grande número de pessoas ainda tenha essas atitudes. É interessante notar que a ideia de xenofobia não se restringe apenas para imigrantes, mas também migrantes – pessoas da própria nação. Tomando o Brasil como exemplo, infelizmente é comum encontrar – principalmente por meios digitais como a internet – indivíduos que difamam pessoas de outros estados e regiões, por exemplo, o Acre e todo o Nordeste. No programa Fantástico, exibido pela Rede Globo, em um dos episódios do quadro “Vai fazer o quê?”, foi encenado um ataque xenofóbico entre uma paulista contra uma vendedora de pipoca de origem nordestina com o objetivo de ver a reação UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 18 do público. Eticamente houve pessoas que declararam à paulista sua repulsa pelo que ela fizera. Assim, felizmente mostrando que o xenofobismo não é uma atitude exercida por toda a população. Em contrapartida, um fato real ocorreu em Porto Alegre, RS, o qual teve grande repercussão por causa de um vídeo gravado por um brasileiro agredindo a imagem de imigrantes haitianos que exerciam seus trabalhos em um posto de abastecimento. Perante entrevista para o programa CQC, ao ser questionado pelo repórter, o xenófobo fica sem argumentos para se explicar acerca do que fizera, mostrando incapacidade de sustentar sua defesa. Concluindo, a xenofobia é um grave problema social, que, se analisado, ocorre em maior escala em países desenvolvidos, onde os indivíduos sentem-se ameaçados de certa forma porpovos diferentes. Essa aversão a estrangeiros, contudo, é inexplicável, já que com um mundo globalizado que pertencemos, até mesmo o país onde vive o xenófobo, ao longo dos tempos, recebeu certa influência estrangeira. FONTE: Disponível em: <http://www.geledes.org.br/xenofobia-e-sua-ligacao-com-o- etnocentrismo/#ixzz4EmzKXgNX>. Acesso em: 18 jul.2016. LEITURA COMPLEMENTAR A DIVERSIDADE CULTURAL: ALGUMAS REFLEXÕES Fragmento do texto currículo e diversidade cultural, de Nina Lino Gomes O ser humano se constitui por meio de um processo complexo: somos ao mesmo tempo semelhantes (enquanto gênero humano) e muito diferentes (enquanto forma de realização do humano ao longo da história e da cultura). Podemos dizer que o que nos torna mais semelhantes enquanto gênero humano é o fato de todos apresentarmos diferenças: de gênero, raça/etnia, idades, culturas, experiências, entre outros. E mais: somos desafiados pela própria experiência humana a aprender a conviver com as diferenças. O nosso grande desafio está em desenvolver uma postura ética de não hierarquizar as diferenças e entender que nenhum grupo humano e social é melhor ou pior do que outro. Na realidade, somos diferentes. Ao discutir a diversidade cultural, não podemos nos esquecer de pontuar que ela se dá lado a lado com a construção de processos identitários. Assim como a diversidade, a identidade, enquanto processo, não é inata. Ela se constrói em determinado contexto histórico, social, político e cultural. Jacques d’Adesky (2001, p. 76) destaca que a identidade, para se constituir como realidade, pressupõe uma interação. A ideia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”, é intermediada pelo reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua ação. TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 19 Assim como a diversidade, nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário, ela é negociada durante a vida toda dos sujeitos por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros. Tanto a identidade pessoal quanto a identidade social são formadas em diálogo aberto. Estas dependem de maneira vital das relações dialógicas com os outros. A diversidade cultural varia de contexto para contexto. Nem sempre aquilo que julgamos como diferença social, histórica e culturalmente construída recebe a mesma interpretação nas diferentes sociedades. Além disso, o modo de ser e de interpretar o mundo também é variado e diverso. Por isso, a diversidade precisa ser entendida em uma perspectiva relacional. Ou seja, as características, os atributos ou as formas “inventadas” pela cultura para distinguir tanto o sujeito quanto o grupo a que ele pertence dependem do lugar por eles ocupado na sociedade e da relação que mantêm entre si e com os outros. Não podemos esquecer que essa sociedade é construída em contextos históricos, socioeconômicos e políticos tensos, marcados por processos de colonização e dominação. Estamos, portanto, no terreno das desigualdades, das identidades e das diferenças. Trabalhar com a diversidade na escola não é um apelo romântico do final do século XX e início do século XXI. Na realidade, a cobrança hoje feita em relação à forma como a escola lida com a diversidade no seu cotidiano, no seu currículo, nas suas práticas faz parte de uma história mais ampla. Tem a ver com as estratégias por meio das quais os grupos humanos considerados diferentes passaram cada vez mais a destacar politicamente as suas singularidades, cobrando que as mesmas sejam tratadas de forma justa e igualitária, desmistificando a ideia de inferioridade que paira sobre algumas dessas diferenças socialmente construídas e exigindo que o elogio à diversidade seja mais do que um discurso sobre a variedade do gênero humano. Ora, se a diversidade faz parte do acontecer humano, então a escola, sobretudo a pública, é a instituição social na qual as diferentes presenças se encontram. Então, como essa instituição poderá omitir o debate sobre a diversidade? E como os currículos poderiam deixar de discuti- la? Mas o que entendemos por currículo? Segundo Antonio Flávio B. Moreira e Vera Maria Candau (2006, p. 86), existem várias concepções de currículo, as quais refletem variados posicionamentos, compromissos e pontos de vista teóricos. As discussões sobre currículo incorporam, com maior ou menor ênfase, debates sobre os conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações sociais, os valores e as identidades dos nossos alunos e alunas. Os autores se apoiam em Silva (1999), ao afirmarem que, em resumo, as questões curriculares são marcadas pelas discussões sobre conhecimento, verdade, poder e identidade. Retomo, aqui, uma discussão já realizada em outro texto (GOMES, 2006, p. 31-2). O currículo não está envolvido em um simples processo de transmissão de conhecimentos e conteúdos. Possui um caráter político e histórico e também constitui uma relação social, no sentido de que a produção de conhecimento nele envolvida se realiza por meio de uma relação entre pessoas. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (1995, p. 194), o conhecimento, a cultura e o currículo são produzidos no contexto das relações sociais e de poder. Esquecer esse processo de produção – no qual estão envolvidas as relações desiguais de poder entre grupos sociais – significa reificar o conhecimento e reificar o currículo, UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 20 destacando apenas os seus aspectos de consumo e não de produção. Ainda segundo esse autor, mesmo quando pensamos no currículo como uma coisa, como uma listagem de conteúdos, por exemplo, ele acaba sendo, fundamentalmente, aquilo que fazemos com essa coisa, pois, mesmo uma lista de conteúdos não teria propriamente existência e sentido, se não se fizesse nada com ela. Nesse sentido, o currículo não se restringe apenas a ideias e abstrações, mas a experiências e práticas concretas, construídas por sujeitos concretos, imersos em relações de poder. Currículo pode ser considerado uma atividade produtiva e possui um aspecto político que pode ser visto em dois sentidos: em suas ações (aquilo que fazemos) e em seus efeitos (o que ele nos faz). Também pode ser considerado um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, participa do processo de constituição de sujeitos (e sujeitos também muito particulares). Sendo assim, as narrativas contidas no currículo, explícita ou implicitamente, corporificam noções particulares sobre conhecimento, sobre formas de organização da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais. Elas dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são (SILVA, 1995, p. 195). A produção do conhecimento, assim como sua seleção e legitimação, está transpassada pela diversidade. Não se trata apenas de incluir a diversidade como um tema nos currículos. As reflexões do autor nos sugerem que é preciso ter consciência, enquanto docentes, das marcas da diversidade presentes nas diferentes áreas do conhecimento e no currículo como um todo: ver a diversidade nos processos de produção e de seleção do conhecimento escolar. O autor ainda adverte que as narrativas contidas no currículo trazem embutidas noções sobre quais grupos sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos sociais podem apenas ser representados ou até mesmo serem totalmente excluídos de qualquer representação. Elas, além disso, representam os diferentes grupos sociais de forma diferente: enquanto as formas de vida e a cultura de alguns grupos são valorizadas e instituídas como cânone, as de outros são desvalorizadas eproscritas. Assim, as narrativas do currículo contam histórias que fixam noções particulares de gênero, raça, classe – noções que acabam também nos fixando em posições muito particulares ao longo desses eixos (de autoridade) (SILVA, 1995, p. 195). A perspectiva de currículo acima citada poderá nos ajudar a questionar a noção hegemônica de conhecimento que impera na escola, levando-nos a refletir sobre a tensa e complexa relação entre esta noção e os outros saberes que fazem parte do processo cultural e histórico no qual estamos imersos. Podemos indagar que histórias as narrativas do currículo têm contado sobre as relações raciais, os movimentos do campo, o movimento indígena, o movimento das pessoas com deficiência, a luta dos povos da floresta, as trajetórias dos jovens da periferia, as vivências da infância (principalmente a popular) e a luta das mulheres? São narrativas que fixam os sujeitos e os movimentos sociais em noções estereotipadas ou realizam uma interpretação emancipatória dessas lutas e grupos sociais? Que grupos sociais têm o poder de se representar e quais podem apenas ser representados nos currículos? Que grupos sociais e étnico/raciais têm sido TÓPICO 1 | CONCEITOS INICIAIS PARA ESTUDO DA ANTROPOLOGIA 21 historicamente representados de forma estereotipada e distorcida? Diante das respostas a essas perguntas, só nos resta agir, sair do imobilismo e da inércia e cumprir a nossa função pedagógica diante da diversidade: construir práticas pedagógicas que realmente expressem a riqueza das identidades e da diversidade cultural presente na escola e na sociedade. Dessa forma poderemos avançar na superação de concepções românticas sobre a diversidade cultural presentes nas várias práticas pedagógicas e currículos. DICAS Para um melhor aprendizado, sugerimos que assista ao filme “ELE ESTÁ DE VOLTA” (2015). Na trama baseada no livro Ele Está de Volta, de Timur Vermes, Hitler acorda de um longo sono na Berlim de 2011. Completamente perdido, é confundido com um imitador perfeito, torna-se celebridade instantânea e ganha um programa de televisão! Dirigido por David Wnendt (Feuchtgebiete), o longa tem cenas filmadas com câmeras escondidas durante uma espécie de turnê que a equipe fez com Oliver devidamente caracterizado. Foram nessas interações que as pessoas se mostraram mais simpáticas com o político, o que estarreceu o ator principal. FONTE: Disponível em <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-116517/>. Acesso em: 18 jul. 2016. 22 Neste tópico você viu que: • A antropologia tem origem na Europa. O surgimento da sociologia e da antropologia deve-se a uma série de mudanças políticas, sociais e econômicas do cenário daquela época. • Os três temas da antropologia são: Antropologia pragmática, “conhecer outros povos para explorá-los” (linha evolucionista); Antropologia romântica, que tenta proteger o povo conquistado do contato e absorção pela civilização dominadora; e a antropologia científica, sendo estudada na linha funcionalista e estruturalista – social e cultural. • A cultura, segundo Clifford Geertz, é um sistema de teias de significados que foi tecido pelo próprio homem. A cultura não seria uma ciência experimental, mas uma ciência interpretativa à procura de um significado. • Para Franz Boas, cultura era um todo integrado, e não um conjunto desagregado de práticas, hábitos, técnicas, relações e pensamentos. • Etnocentrismo, segundo Sumner (1906), “é o termo técnico para a visão das coisas segundo a qual nosso próprio grupo é o centro de todas as coisas e todos os outros grupos são medidos e avaliados em relação a ele. • Xenofobia é o ato de repudiar, hostilizar e/ou odiar estrangeiros, fundamenta-se em fatores sociais, culturais, raciais, religiosos, históricos etc. • Quando a cultura se sobrepõe como fator de superioridade a outra, estamos contribuindo para um olhar preconceituoso e xenófobo, produzindo estereótipos que podem violentar uma cultura e um povo de diversas formas. RESUMO DO TÓPICO 1 23 1. Ao ler esta unidade, convidamos você a relacionar exemplos de situações/fatos/ações etnocêntricas e xenofóbicas. Identifique- as também no seu cotidiano. AUTOATIVIDADE 2. Disserte sobre o conceito de cultura a partir da concepção de Franz Boas e Tylor. 24 25 TÓPICO 2 O QUE É ANTROPOLOGIA? UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Muito frequentemente surge o questionamento acerca do que é a antropologia, e logo surge no imaginário algo bem primário, como a imagem de uma pessoa vestida com roupas estilo safári ou como Indiana Jones. Primeira informação a se saber sobre antropologia é: NÃO! Escavadores de túmulos ou cavadores da arca perdida, assim como paleontólogos ou arqueólogos, não são ANTROPÓLOGOS! De acordo com Rafael José dos Santos (2005, p. 17), no livro Antropologia para quem não vai ser antropólogo, a antropologia é: Antropologia pode ser pensada como um conjunto de teorias (nem sempre concordantes) e diferentes métodos e técnicas de pesquisa que buscam explicar, compreender ou interpretar as mais diversas práticas dos homens e mulheres em sociedade. Para que estas teorias sejam desenvolvidas, os antropólogos realizam pesquisas de campo onde, através da participação direta com seus “objetos” de pesquisa, retiram dados para que possam ser analisados e refletidos, surgindo assim novas teorias antropológicas. De acordo com Hoebel e Frost (apud MARCONI; PRESOTTO, 2010), antropologia é uma ciência da humanidade e da cultura. Seria uma ciência superior social e comportamental, em sua relação com as artes, é também uma disciplina humanística, devido ao fato do antropólogo comunicar os modos de viver de povos ou grupos sociais específicos. Para responder ao que é o homem, ou os seres humanos, a antropologia ramifica-se em algumas dimensões: a biológica, com a antropologia física; a dimensão sociocultural, com a antropologia social e/ ou cultural, e a dimensão filosófica, com a antropologia filosófica. É uma ciência polarizadora, e necessita da colaboração de outras áreas do saber, porém mantém sua essência, seu foco é o estudo do homem e da cultura. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 26 FIGURA 5 - O QUE É ANTROPOLOGIA? FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/ search?q=antropologia&espv= 2&biw=1280&bih=899&site=webhp&source=lnms&tbm =isch&sa=X&ved=0ahUKEwiQhfLs0YTLAhUHFZAKHR62AAoQ_ AUIBigB>. Acesso em: 10 fev. 2016. 2 CAMPOS INICIAIS DA ANTROPOLOGIA Durante muito tempo a antropologia foi considerada a história natural física do homem e seu processo evolutivo, no espaço e no tempo. Deste modo, houve uma restrição em seu campo de estudos, o que privilegiaria a antropometria, ciência que trata das mensurações do homem fóssil e dos seres vivos. A antropologia desempenha um papel muito maior no estudo dos seres humanos, definindo, assim, uma ciência que estuda suas produções e seus comportamentos. Enquanto uma espécie (o homem) que se caracteriza pela formação de grupos sociais, agrupamentos de indivíduos que compartilham de uma mesma história e de uma mesma visão de mundo, e que definem regras de comportamento, convivência e sobrevivência. O conjunto dessas regras é o que se convencionou chamar de CULTURA. Então, todo grupo social, ou sociedade, possui uma cultura que, como já foi dito, define a visão que seus indivíduos têm do mundo em que vivem, definindo formas de atuarem sobre ele. Todo grupo social é também um grupo cultural; toda sociedade possui a sua cultura particular (PASSADOR, 2002, p. 1). Preocupa-se em revelar os fatos da natureza e da cultura, interessa-se pelo homem biológico e o ser cultural existente neste homem. Na busca de compreender a existência humana em todos os seus aspectos, no espaço-tempo, identifica também a compreensão dasmanifestações culturais, do comportamento e da vida social. TÓPICO 2 | O QUE É ANTROPOLOGIA? 27 As questões sobre o homem sempre foram frequentes. Este sempre foi objeto de atenções. Alguns homens teóricos “inventaram” modelos elaborados em “casa”. Os famosos antropólogos de gabinete, como bem veremos na Unidade 2. Analisar o homem de forma antropológica se dá através de uma abordagem integrativa, objetivando a observação das inúmeras dimensões do ser humano em seu grupo social. Ao efetivar a coleta de dados e desenvolver formas de investigação, o antropólogo aprende que seu fazer se dá nas correlações que realiza em seus e com seus campos de investigações. Ele não os separa totalmente, a fim de poder visualizar todos os ângulos de seu objeto. Neste sentido, o antropólogo relaciona- se com cinco áreas. Vamos conhecê-las? Antropologia biológica ou física: Tem sua atenção nas relações entre o patrimônio genético e o meio (geográfico, ecológico, social). Esta área atenta para as particularidades morfológicas e fisiológicas ligadas a um meio ambiente, assim como observa a evolução destas particularidades. O antropólogo biologista estará atento aos fatores culturais que influenciam o crescimento e a maturação do indivíduo. Esta área é importante para manter a comunicação entre as ciências biológicas e as ciências humanas. Antropologia pré-histórica: é o estudo do homem através dos vestígios materiais enterrados nos solos. Integra-se à arqueologia, busca reconstituir as sociedades desaparecidas, tanto em suas técnicas e organizações sociais, quanto suas produções culturais e artísticas. Antropologia linguística: É o estudo dos dialetos, e também das novas técnicas modernas de comunicação. O estudo da língua busca compreender como os homens pensam, o que vivem e o que sentem, analisam-se suas categorias psicoativas e psicocognitivas (etnolinguística). “Compreendemos também como os homens expressam o universo e o social” (LAPLANTINE, 2000, p. 18), através do estudo da literatura, com a tradição oral. Assim, compreendemos com a antropologia linguística como são interpretados seu próprio saber e saber-fazer, as chamadas etnociências. Antropologia psicológica: É o estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. Através da análise de comportamentos, conscientes ou inconscientes, dos homens em seus grupos sociais, é que podemos apreender esta totalidade. A dimensão psicológica é absolutamente indissociável do campo da antropologia, ela é parte integrante destes estudos. Antropologia social e cultural: É o estudo que está relacionado a “tudo” que constitui uma sociedade. “Seus modos de produção econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA 28 conhecimentos, suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia, suas criações artísticas” (LAPLANTINE, 2000, p. 19). A antropologia social e cultural procura compreender, de acordo com Levi Strauss, “o que os homens não pensam habitualmente em fixar na pedra ou no papel” (LAPLANTINE, 2000). Os gestos, as trocas simbólicas, os detalhes dos comportamentos, fazem com que a antropologia social e cultural tenha uma abordagem fundamentalmente diferente dos métodos utilizados pelos colegas geógrafos, economistas, juristas, sociólogos, psicólogos etc. Trabalha-se com o estudo de todas as sociedades humanas, das culturas da humanidade em suas diversidades históricas e geográficas. Inicialmente, a antropologia atribuiu como seu objeto de estudo as populações não ocidentais, que seriam as chamadas sociedades primitivas. Com o avanço da evolução social, o universo dos “selvagens” desaparece, assim o antropólogo depara-se com uma crise de identidade: seria o fim da antropologia? Neste momento, o antropólogo reflete sobre seu fazer, retoma seus contatos com as ciências humanas e reencontra a sociologia, a partir da sociologia comparada. Deste modo, busca-se uma nova área de investigação: o camponês, o nativo que estava mais perto do que se imaginara. Ao voltar sua atenção para sua prática, compreende que a especificidade de seu fazer não está apenas no objeto empírico o selvagem, o camponês, mas sim em uma abordagem epistemológica constituinte. A antropologia constitui-se no enfoque que trabalhamos ao efetivar o “estudo do homem inteiro e o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes e todos os seus estados em todas as épocas” (LAPLANTINE, 2000, p. 16). Para aprofundar seus conhecimentos sobre as linhagens antropológicas, segue texto para reflexão, de autoria de Mariza Peirano. LINHAGENS ANTROPOLÓGICAS Mariza G. S. Peirano É sobre a tensão entre o presente teórico e a história da disciplina que a tradição da antropologia se transmite, resultando que, no processo de formação, cada iniciante estabelece sua própria linhagem como inspiração, de acordo com preferências que são teóricas, mas também existenciais, políticas, às vezes, estéticas e mesmo de personalidade. Assim, além dos clássicos Durkheim, Marx e Weber, que ensinarão a postura sociológica, o antropólogo em formação entra em contato com uma verdadeira árvore genealógica de autores consagrados (e outros malditos), na qual construirá uma linhagem específica sem desconhecer a existência de outras. Na antropologia, as linhagens disciplinares são tão importantes que se pode imaginar que, sem elas, o antropólogo não tem lugar na comunidade de especialistas. Mas, como ocorre até nas mais rígidas linhagens TÓPICO 2 | O QUE É ANTROPOLOGIA? 29 africanas, as mudanças são aceitas e, neste caso, vistas como ‘conversão’. Este foi o caso de Marshall Sahlins que, partindo de uma vertente economista- ecológica, se converteu ao estruturalismo, como o atestam as mudanças de Stone age economics (1972) para Cultura e razão prática (1979) ou Ilhas da história (1990). Nesse processo de transição disciplinar, o conhecimento etnográfico a respeito de várias sociedades e culturas se enriquece. Isso significa que um antropólogo bem formado teoricamente é um antropólogo bem informado etnograficamente. Para alguns, este treinamento através da literatura permite que, hoje, o antropólogo prescinda da pesquisa de campo em sociedade desconhecida antes de confrontar a sua própria; para outros, trata-se da surpresa de descobrir-se subitamente com capacidades inesperadas, como a de reconhecer as diferenças estéticas entre uma máscara Iatmul da Nova Guiné, de outra dos Kwakiutl do Noroeste da América do Norte, ou dos Bororo do Brasil Central, através da leitura de Bateson, Boas e Lévi-Strauss. Mas o fato mais marcante talvez seja o seguinte: a transmissão de conhecimento e a formação de novos especialistas através dos processos pelos quais se deu o refinamento de conceitos, mas mantiveram-se os problemas – favorece uma prática na qual os autores nunca são propriamente ultrapassados. Nomes conhecidos, que um dia foram criticados e combatidos, frequentemente são incorporados nas gerações seguintes porque, relidos, revelam riquezas antes desconhecidas. Este mecanismo de incorporação de autores, que marca a disciplina, talvez se explique como um culto a ancestrais: embora raramente se encontre hoje um especialista que se autodefina como um estruturalista stricto senso, também dificilmente um antropólogo deixa de incluir vários dos princípios do estruturalismo na sua prática disciplinar. O mesmo talvez possa ser dito a respeito de todos os fundadores de linhagens, num mecanismo que não respeita fronteiras: aqui no Brasil, Darcy Ribeiro incorporou Herbert Baldus, que foi incorporado, junto com Florestan Fernandes, por Roberto Cardoso de Oliveira, e assim sucessivamente. (O reconhecimento das filiações é, contudo, muito menos explicitado do que no
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