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ANTROPOLOGIA SOCIOLOGIA EDUCAÇÃODA E GRAZIELLA ROLLEMBERG G R A Z IE LLA R O LLE M B E R G A N TR O P O LO G IA E SO C IO LO G IA D A E D U C A Ç Ã O ISBN 978-65-5821-114-3 9 786558 211143 Código Logístico I000510 Antropologia e Sociologia da Educação Graziella Rollemberg IESDE BRASIL 2022 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2022 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: askproject/envato elements CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R656a Rollemberg, Graziella Antropologia e sociologia da educação / Graziella Rollemberg. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2022. 150 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-114-3 1. Antropologia educacional. 2. Sociologia educacional. 3. Cultura. 4. Abordagem interdisciplinar do conhecimento na educação. I. Título. 22-75824 CDD: 306.43 CDU: 316.74:37 Graziella Rollemberg Mestre em Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal de Sergipe (IFS). Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Norte do Paraná (Unopar). Licenciada em Sociologia pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi). Bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente e coordenadora editorial de coleções didáticas e paradidáticas para Ensino Fundamental e Ensino Médio. Autora de obras didáticas para Educação Básica e Educação Superior e de obras paradidáticas para Educação Básica das redes pública e privada há 25 anos. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Introdução ao pensamento antropológico 9 1.1 Natureza e cultura 9 1.2 Alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural 14 1.3 O pensamento antropológico 20 2 Antropologia, educação e sociedade 28 2.1 Indivíduo, cultura e sociedade 28 2.2 Socialização, cultura e educação 35 3 Antropologia da Educação e formação docente 48 3.1 Antropologia Educacional 48 3.2 A educação como prática simbólica 51 3.3 Pesquisa em Antropologia da Educação 62 4 Introdução à sociologia 71 4.1 A sociologia: surgimento, objetos e métodos 71 4.2 Indivíduo, vida social e categorias sociológicas 75 4.3 Componentes da vida social 85 5 Educação, sociedade e poder 97 5.1 Instituições educativas 97 5.2 Processos educativos e reprodução social 103 5.3 Estado, ideologia e educação 111 6 Sociologia da Educação e formação docente 123 6.1 A construção social da escola 123 6.2 A construção social do docente 130 6.3 A cultura digital e as novas relações com o saber 135 Resolução das atividades 145 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Este livro tem como objetivo proporcionar um panorama geral sobre a antropologia e a sociologia, duas áreas das ciências sociais que contribuem muito para os estudos na área da educação, tanto sob o ponto de vista teórico e de pesquisa quanto das práticas pedagógicas, visando promover a compreensão das bases teórico-metodológicas do que chamamos de Antropologia da Educação e de Sociologia da Educação. Nos três primeiros capítulos, abordaremos as especificidades da antropologia enquanto ciência humana, por meio da oposição natureza x cultura, e compreenderemos as principais tendências da Antropologia Contemporânea, analisando as origens da antropologia e o seu desenvolvimento. Conheceremos, ainda, os conceitos de alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural, bem como as suas aplicações às realidades culturais e à vida cotidiana. Também exploraremos a investigação antropológica das diversas culturas humanas, as suas manifestações simbólicas e materiais, os seus nexos e as suas práticas, as relações que se estabelecem entre diferentes culturas e os processos culturais e educacionais que se desenvolvem dentro e fora da escola, os quais podem e devem ser analisados mediante o olhar antropológico, este que traz abordagens úteis às reflexões sobre os contextos e as relações de aprendizagem. Ao longo dos três primeiros capítulos, você perceberá que a antropologia pode ser usada como uma das ciências de apoio aos estudos voltados à educação e à formação dos indivíduos, no sentido de analisar os universos culturais que integram tanto a instituição escolar como os contextos informais de educação. Além disso, compreenderá a relevância da análise sistemática dos processos de socialização na constituição do indivíduo e como dimensão importante de quaisquer processos educativos. APRESENTAÇÃOVídeo 8 Antropologia e Sociologia da Educação Nos três últimos capítulos da obra, conheceremos como se deram o surgimento da sociologia e o seu desenvolvimento, por meio das principais linhas teóricas e de seus autores, compreenderemos quais são os objetos e os métodos de estudo dessa área do conhecimento e entenderemos vários de seus principais conceitos e categorias – indivíduo, sociedade, grupos sociais, estrutura social e estratificação, entre outros. Entenderemos, também, como a sociologia aplicou sua análise aos fenômenos ligados aos processos educacionais, contribuindo para a construção da Sociologia da Educação. Ainda, compreenderemos a origem, o desenvolvimento e as contribuições da Sociologia da Educação, que busca empreender uma visão sociológica sobre os processos educativos e tem a importante tarefa de fundamentar várias outras disciplinas, tanto as integrantes dos cursos de Pedagogia quanto as que fazem parte das pós-graduações ligadas à área educacional, promovendo a compreensão da realidade educacional brasileira. Nesse sentido, abordaremos as origens e o funcionamento das instituições educativas no Brasil e os processos educativos formais e informais, para analisar o papel social da escola, considerando-a não só como lócus de reprodução social, mas também de transformação social. Da mesma forma, para compreender as relações entre educação, Estado e poder, veremos as políticas educacionais, as teorias e as práticas pedagógicas sob a perspectiva sociológica. Finalmente, analisaremos as contribuições da Sociologia da Educação para a formação e a prática docente, além do modo como ela pode subsidiar a reflexão do professor sobre os seus próprios saberes, a sua trajetória como profissional e as suas práticas no cotidiano escolar, auxiliando-o a analisar de maneira crítica suas concepções de mundo e de ensino e a transformar suas práticas, no sentido de promover uma formação para a cidadania plena para seus estudantes e de imbuir suas ações e relações no contexto escolar de um caráter crítico, humano e emancipador. Com isso, evita-se a reprodução mecânica e pouco consciente de concepções e práticas incorporadas durante sua trajetória, as quais, por vezes, não refletem verdadeiramente seu posicionamento docente. Introdução ao pensamento antropológico 9 1 Introdução ao pensamento antropológico Neste capítulo, vamos entender as especificidadesda antropologia enquanto ciência humana por meio da oposição natureza x cultura e compreender as principais tendências da antropologia contemporâ- nea analisando as suas origens e seu desenvolvimento. Conheceremos também os conceitos de alteridade, etnocentrismo e relativismo cultu- ral e suas aplicações às realidades culturais e à vida cotidiana. A antropologia é uma ciência humana dedicada a investigar as di- versas culturas humanas, suas manifestações simbólicas e materiais, seus nexos e práticas, e as relações que se estabelecem entre diferen- tes culturas. Os processos culturais e educacionais que se desenvolvem dentro e fora da escola podem e devem ser analisados por meio do olhar an- tropológico, que traz abordagens úteis às reflexões sobre os contextos e as relações de aprendizagem, e uma das discussões fundamentais para a delimitação da antropologia como área do conhecimento espe- cífica é a oposição entre natureza e cultura. 1.1 Natureza e cultura Vídeo Para iniciar a discussão sobre as categorias de natureza e de cul- tura e sua importância para a consolidação do pensamento antro- pológico, vamos analisar uma situação histórica. Imagine esta cena (que ocorreu de verdade): no século XVI, o rei da França na época, Carlos IX, acompanhado de parte de sua corte, em Rouen, teve um encontro com um chefe Tupinambá e dois guerreiros dessa tribo, levados do Brasil para a Europa para que seus “hábitos estranhos” fossem conhecidos pela realeza. Entender as especifici- dades da antropologia enquanto ciência humana por meio da oposição natureza x cultura. Objetivo de aprendizagem Entre os cortesãos do rei estava o filósofo Michel de Montaigne, autor importante para a antropologia 1 . Ele relatou a situação em sua obra Ensaios, informando aos leitores que, nesse encontro de culturas, os “selvagens” ficaram tão admirados quanto os nobres, e perceberam, ao observar a sociedade francesa, que havia pessoas bem alimentadas, que pareciam usufruir de todas as comodidades da vida – como era o caso dos cortesãos –, enquanto outras, de aparência miserável, magros em virtude da fome e das privações, mendigavam à porta dos privilegiados que tudo tinham. O mesmo encontro foi relatado de maneira bem diferente pelo conquistador Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571): Só havia gente selvagem, afastados de toda cultura e hu- manidade; diferenciados de nós pelos costumes e regras de vida, sem religião, sem conhecimento nenhum do que seja honra e a virtude; incapazes de distinguir o justo do injusto; tanto que me veio a dúvida se tínhamos encontrado feras revestidas de aparência humana. (SAMESHIMA, 2004, p. 7) Esses dois relatos indicam as duas visões opostas que permearam o encontro dos europeus com os povos da América. Uma delas é a visão colonizadora do conquistador, favorável à exploração das rique- zas naturais do território recém encontrado. Uma visão etnocêntrica que considerava a Europa como civilização superior aos “selvagens”, o que dava aos colonizadores o direito de subjugá-los e explorá-los. A outra era a visão expressa por Montaigne, que defendia que o certo e o errado seriam conceitos relativos, a depender do contexto cultu- ral, e que, por isso, o encontro entre culturas tão diferentes poderia promover um maior conhecimento sobre a espécie humana e sobre a própria civilização europeia. As ciências naturais, como a físi- ca, a química, a biologia, a geologia, entre muitas outras, ocupam-se do estudo da natureza e seus fe- nômenos, e a antropologia, uma ciência humana, tem como objeto Antropologia significa literalmente estudo do homem, estudo do ser humano. 1 Para saber mais sobre a história do encontro de Carlos IX, acompanhado de parte de sua corte, em Paris, com um chefe Tupi- nambá e dois guerreiros dessa tribo, acesse o link e leia essa história e muito mais sobre o tema Natu- reza x cultura no texto. Disponível em: https://super.abril. com.br/historia/o-pensamento- selvagem-de-levi-strauss/. Acesso em: 21 out. 2021. Dica Mulher indígena Pataxo com criança no colo durante jogos indígenas na aldeia Coroa Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália – Bahia, 2009. Jo a So uz a/ Sh ut te rs to ck 1010 Antropologia e Sociologia da EducaçãoAntropologia e Sociologia da Educação Introdução ao pensamento antropológico 11 sv ic /S hu tte rs to ck de estudo a cultura, que define a própria área do conhecimento antropológico. O pensamento antropológico clássico é caracteriza- do pela separação entre natureza e cultura, como duas categorias opostas, mas também complementares. Outras oposições complementares também estão entre as re- flexões da antropologia, como ambiente e civilização, animal e hu- mano, entre outras, que estão no centro do debate sobre o que torna o ser humano especificamente humano, ou seja, o que é próprio apenas dos seres humanos. Seriam elementos instintivos, naturais do ser humano, ou características do ambiente em que o indivíduo se insere, elementos sociais e culturais, que tornam alguém humano? A oposição entre natural ou “selvagem” e civilizado é antiga, não só na antropologia, mas, antes disso, na filosofia e demais áreas do conhecimento que buscam compreender os seres humanos e sua vida em sociedade; desde os filósofos chamados de contratua- listas, como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Thomas Hobbes (1588-1679), ainda no século XVIII, que discutem a oposição entre natureza e cultura. A teoria do contratualismo propunha a existên- cia de um tipo de acordo ou contrato social entre os indivíduos que tirava o ser humano de seu estado de natureza e o inseria em um estado de convivência com outros seres humanos em sociedade, em um movimento de superação da condição “selvagem” e funda- ção da civilização. Para esses autores, é a partir desse momento que é criado o Estado, com a função de garantir a continuidade do contrato social. A libertação da natureza é a con- dição essencial da formação da visão moderna de indivíduo, que enfatiza as faculdades racionais do ser hu- mano como meio de superar o mun- do natural, “selvagem” ou limitado, e alcançar o patamar da cultura, da sociedade civilizada, do desenvolvi- mento e do “progresso”. O debate natureza x cultura foi materializado Recorte de um selo postal impresso em Cuba, que representa o encontro de Cristóvão Colombo com os nativos no Novo Mundo (1942). 12 Antropologia e Sociologia da Educação em torno de alguns casos clássicos de seres humanos que foram criados apartados da sociedade, em ambientes naturais isolados, como florestas. Tais casos eram chamados de crianças selvagens e dominaram a imprensa e o imaginário coletivo por bastante tempo. Um dos mais famosos é o do menino Victor de Aveyron, um meni- no que foi encontrado, em 1798, vivendo sozinho em uma floresta após anos de isolamento social. Ele foi levado à “civilização” e tratado por um conhecido médico francês da época. Naquele tempo, a discussão sobre a visão inatista – que afirma que o conhecimento é inato, já nasce com o ser humano – e a ambientalista – que defende que o conhecimento é adquirido por meio das experiências no meio em que a pessoa está inserida – estava a pleno vapor na Europa, e o caso do “menino selvagem” parecia não ser explicável pelas ideias predominantes no debate científico. Os inatistas argumentavam que Victor era naturalmente sem inteli- gência, que tinha nascido assim, e os ambientalistas afirmavam que sua condição intelectual era reduzida por falta de estímulos adequa- dos do ambiente onde tinha vivido. Em 1969, no filme O Garoto Selvagem, de François Truffaut (1932-1984), a história de Victor de Aveyron foi narrada com base no livro The wild boy, found in the woods near Aveyron, do psiquiatra Jean Itard (1774-1838), que acompanhou o menino após o resgate. O tema da adaptação social ou socialização é recorrente na obra desse famoso cineasta francês, que se preocupava em analisar a possível “naturezahumana intocada”, à qual se referia Rousseau, que poderia estar presente em crianças como Victor de Aveyron. O caso de Victor marcou a história polêmica sobre as relações entre natureza e cultura. Outros casos semelhantes foram relata- dos, como o do biólogo Carl von Linnéc, mais conhecido como Lineu (1707-1778), criador da classificação das espécies, e o do médico ale- mão Elias Rudolf Camerarius (1641-1695), os dois registraram casos de resgate de crianças sem contato com seres humanos, como o de Figura 1 Retrato de Victor de Aveyron O que você acha que acontece com uma crian- ça que é criada desde o nascimento sem contato com seres humanos, totalmente isolada da sociedade? Para refletir Victor de Aveyron, o “menino selvagem”. França, final do século XVIII. Veja um trecho do filme O garoto selvagem no link a seguir: Disponível: https://www.youtube. com/watch?v=b5CKltq3Uf4. Acesso em: 26 nov. 2021. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=b5CKltq3Uf4 https://www.youtube.com/watch?v=b5CKltq3Uf4 Ra wp ixe l/S hu tte rs to ck Jean de Liége (1361-1382), o menino-urso da Lituânia (1657); o de Hesse (com variação entre 1544 e 1744), o menino-lobo (1872), que inspirou a história de Mogli; o da garota de Kranenburg (1717); o do menino-bezerro de Bamberg (século XVIII); o da menina selvagem de Champagne (1731), e o de Peter (1724), o Selvagem, da cidade de Hanover. As “crianças selvagens” apresentavam semelhanças entre si: não falavam, andavam do mesmo modo que os animais quadrúpedes, e manifestavam vários comportamentos próximos aos de animais selvagens. Cientistas que estudaram tais casos apontaram que as crianças teriam deficiências cognitivas e motoras, o que justificaria a causa desses comportamentos. Mas para antropólogos, sociólogos e teóricos da educação, a ex- plicação estaria na ausência de socialização primária, o que teria impossibilitado a aquisição de linguagem e outras aprendizagens socioculturais. Na maioria das vezes, as crianças inseridas no con- vívio social não conseguiam adquirir padrões de linguagem ou de comportamento compatíveis com o esperado de crianças da mes- ma faixa etária que tinham sido criadas em sociedade. Os antropólogos, em geral, afirmam que o que diferencia os seres humanos dos demais seres vivos é a cultura, a capacidade de produzir conhecimentos e tradições que são transmitidos entre gerações. Um elemento cultural fundamental é a linguagem. Vimos que uma das características comuns às crianças “selvagens”, que não passaram pelos processos de socialização e não participaram ativamente de uma cultura humana, é não terem aprendido nenhu- ma linguagem verbal, não se comunicarem verbalmente usando códigos de uma língua, tal como as crianças criadas na “civilização” fazem desde pequenas, pois estas, ao contrário daquelas que foram isoladas do con- vívio em sociedade, apren- dem por meio da família e da escola a língua usada na comunidade em que vivem. Rousseau defendia que o ser humano é natural- mente bom, e que, em “estado de natureza”, isolado da sociedade, ele poderia viver em liberdade e felicidade ple- nas, na inocência e sem capacidade de cometer nenhuma maldade. Esse conceito é chamado de o bom selvagem e foi ins- pirado em uma expressão criada por Michel de Montaigne (1533-1592). Saiba mais Assista ao filme O enigma de Kaspar Hauser que con- ta a história real de um adolescente de 15 anos encontrado na Alemanha, na cidade de Nuremberg, em 1928. Ele tinha vivido desde o nascimento sem nenhum contato humano, isolado em um porão. Kaspar não sabia falar, não andava e não parecia apresentar comportamen- tos humanos. Direção: Werner Herzog. Alemanha: Versátil Home Vídeo, 1974. Filme Introdução ao pensamento antropológicoIntrodução ao pensamento antropológico 1313 14 Antropologia e Sociologia da Educação 1.2 Alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural Vídeo No texto de abertura deste capítulo, vimos o relato sobre um en- contro entre o rei e alguns nobres da corte francesa do século XVI e um chefe e guerreiros indígenas de um povo originário do Brasil, os Tupinambás, que viviam em um vasto território, que hoje correspon- de a grande parte do sudeste brasileiro, e foram praticamente exter- minados pelos conquistadores portugueses. Vamos relembrar alguns trechos do texto: Os dois relatos indicam as duas visões opostas que permearam o encontro dos europeus com os povos da América. Uma delas é a visão colonizadora do conquistador, favorável à exploração das riquezas naturais do território recém encontrado. Uma visão etnocêntrica que considerava a Europa como civilização superior aos “selvagens”, o que dava aos colonizadores o direito de subjugá-los e explorá-los. A outra era a visão expressa por Montaigne, que defendia que o certo e o errado seriam conceitos relativos, a depender do contexto cultural, e que, por isso, o encontro entre culturas tão diferentes poderia promover um maior conhecimento sobre a espécie humana e sobre a própria civilização europeia. A experiência do encontro entre culturas, entre o “eu” e o “ou- tro”, pode ser expressa pela noção de alteridade, que se refere à condição de ser um outro, um diferente, distante, um forasteiro ou, como no encontro narrado no texto, um exótico alter, que em latim significa outro. Note que costuma haver confusão entre o conceito de alteridade e o de empatia. São conceitos complementares, mas não idênticos. Empatia é a capacidade de se sensibilizar com a condição do outro, colocar-se em seu lugar, tentar ajudá-lo ou confortá-lo de algum modo. Para exercer empatia, é necessário antes se movimentar na alteridade, ou seja, estar aberto a conhecer o diferente de si mesmo e a relativizar a própria visão de mundo. Vejamos um resumo dos dois conceitos: Compreender con- ceitos centrais para a antropologia, como alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural. Objetivo de aprendizagem Introdução ao pensamento antropológico 15 Empatia Alteridade Capacidade de se sensibilizar com a condição do outro, de se colocar em seu lugar, de tentar ajudá-lo ou confortá- lo de algum modo. Estar aberto a conhecer o diferente de si mesmo e relativizar a própria visão de mundo. Andr ew Kr as ov itc kii /S hu tte rs to ck Nos primórdios dos estudos antropológicos, os pesquisadores se dedicavam a investigar a alteridade distante, isto é, grupos humanos, comunidades ou sociedades que viviam em localidades remotas ou bastante afastadas da Europa, cujos habitantes eram chamados de bár- baros ou de primitivos, tais como os indígenas brasileiros pareciam aos colonizadores europeus. A vivência da alteridade costuma promover a percepção das dife- renças e do diferente, levando à relativização do que é familiar, conhe- cido ou natural, ou seja, permitindo que se perceba que o que parece familiar e conhecido para nós, parece diferente ou estranho para o outro, e vice-versa, e que tais percepções são relativas a cada ponto de vista, não sendo verdades absolutas. Os comportamentos, regras, crenças etc. que nos parecem tão naturais e familiares podem passar a ser questionados se nos deparamos com a alteridade, com as diferen- tes práticas e tradições do outro. Podemos perceber, nos trechos citados, duas visões: a do conquis- tador europeu e a de Montaigne, que, na verdade, é considerado um dos precursores do pensamento antropológico – apesar de a antropo- logia ainda não existir como campo autônomo de conhecimento até meados do século XIX –, pois ele se interessava por compreender cultu- ras de outros povos. A visão do conquistador representa o pensamento colonizador predominante na Europa naquela época, que considerava os indígenas como “selvagens”, pois tinham outros costumes, outra lín- gua, outras crenças e tradições, outros valores, e uma visão de mundo totalmente diferente da dos povos europeus. Esse pensamento, que valoriza apenas a própria cultura e desvalori- za a dos outros,e que se julga superior ao de outros povos, aos quais, por isso, teria o “direito” de subjugar, tratar como inferior, explorar, escravizar ou até exterminar, é chamado de etnocentrismo. Por outro 16 Antropologia e Sociologia da Educação lado, Montaigne tem uma postura nada etnocêntrica, pois não conside- ra que uma cultura seja superior a outra, ou a única “correta”, ou que um povo seja o “civilizado” e o outro seja o “selvagem”, o que demons- tra uma posição relativista, buscando conhecer outras culturas, pro- curando a experiência da alteridade e objetivando, no limite, conhecer melhor a própria cultura e a humanidade como um todo. Figura 2 Representação cultural dos Tupinambás Indígenas Tupinambás em um ritual. Observados por Hans Staden durante sua viagem ao Brasil em 1552. Gravura de Theodore de Bry, 1631. O etnocentrismo é uma visão de mundo que afirma que o grupo ao qual nós pertencemos é considerado como o centro de tudo e parâ- metro para o resto do mundo, ou seja, tudo é visto e filtrado com base em nossos próprios valores, e os outros são percebidos com base em nossos próprios modelos sobre o que é a vida, sobre como as pessoas devem pensar, agir, acreditar etc. Podemos dizer que o etnocentrismo é um fenômeno que se origina devido a uma enorme dificuldade em conceber e conviver com a diferença, gerando estranhamento, reações hostis e conflito. Ele agrega, portanto, aspectos racionais e emocionais simultaneamente, e não se manifestou apenas no passado, em deter- W ik im ed ia /C om m on s Introdução ao pensamento antropológico 17 minados momentos históricos, mas se expressou ao longo da história humana, incluindo os tempos atuais. Assim como no caso do encontro entre a corte francesa e os in- dígenas brasileiros, o etnocentrismo se manifesta em experiências de choque cultural, isto é, o impacto gerado quando representantes de culturas muito diferentes entre si se encontram, quando há o choque entre o “eu” e o “outro”, totalmente diferente de mim. O choque cultural surge justamente com a identificação das diferen- ças, consideradas intransponíveis, e com a falta de compreensão das lógicas, das motivações e dos modos de ser e de estar no mundo do outro grupo. Esse choque leva a não compreensão/aceitação e à desva- lorização do outro, que estaria supostamente “errado”, seria “primitivo” ou “atrasado”, no seu modo de ser e de viver, confirmando a valoriza- ção do próprio grupo como o único “correto” e “civilizado”, superior a todos os outros grupos, que seriam os “selvagens”, os “bárbaros” etc. Ser etnocêntrico não é uma característica exclusiva de determina- da sociedade, não são apenas os europeus colonizadores os únicos etnocêntricos da história. A postura, a visão de mundo e as atitudes etnocêntricas estão presentes em muitas sociedades na atualidade, in- cluindo a brasileira. Por exemplo, podemos identificar componentes de etnocentrismo na violência contra o outro, que não existe apenas contra os povos in- dígenas e comunidades tradicionais, mas também se revela nas intera- ções com grupos considerados “diferentes”, com culturas percebidas como “erradas”, seja sob aspecto dos padrões morais ou religiosos do grupo etnocêntrico, como é o caso muitas vezes do não reconhecimen- to da identidade e da violência que marcam o tratamento dos grupos LGBTQIA+, seja sob aspecto da desvalorização cultural e étnica dos gru- pos não brancos por parte de grupos brancos. O etnocentrismo se manifesta no cotidiano das sociedades e regula parte das relações socioculturais. Se de início os antropólogos busca- vam uma alteridade distante, aos poucos foram se voltando para uma alteridade mais próxima e começaram a realizar pesquisas em socie- dades conhecidas, ou mesmo na própria sociedade, o que aponta um movimento feito pelo pensamento antropológico contemporâneo de buscar estranhar o que é familiar, natural ou conhecido e de conceber o diferente, o estranho, como algo natural. Para o antropólogo brasileiro 18 Antropologia e Sociologia da Educação Roberto DaMatta (1936-), o antropólogo deve transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico, em uma experiência de alteridade que relativize os conteúdos culturais e, em seguida, sob um olhar antropo- lógico sobre a própria cultura, que desnaturalize sua realidade. Outra noção relacionada ao debate sobre as culturas que temos es- tudado até aqui é o relativismo cultural, proposto como teoria pela primeira vez no século XIX pelo antropólogo Franz Boas (1858-1942), um pioneiro da antropologia moderna. Boas defendia que não existem verdades culturais, pois não existem padrões para medir o comporta- mento humano e compará-lo a outro. Cada cultura mede e julga a si mesma. Meneses, um cientista social brasileiro contemporâneo, afir- ma, no mesmo sentido que Boas, que a base do interesse da antropo- logia pela diversidade de povos e culturas é o relativismo cultural: é o relativismo cultural que considera, como sociedades alterna- tivas e culturas tão válidas quanto as nossas, esses povos cuja própria existência questiona nossa maneira de ser, quebrando o monopólio, que comumente nos atribuímos, da autêntica rea- lização da humanidade no planeta. [...] Enquanto o etnocentris- mo é um preconceito, e suas derivações doutrinárias (racismo, evolucionismo cultural etc.) são ideologias (consciência falsa e falsa ciência), o relativismo cultural pertence à esfera da ciência. (MENESES, 2020, p. 6) Meneses (2020, p. 6) afirma que a noção de relativismo cultural en- volve três significados: “Todo e qualquer elemento de uma cultura é relativo aos elementos que compõem aquela cultura e só tem sentido em função do conjunto, sendo sua validade dependente do contexto em que está inserido, de sua posição em meio a outros níveis e elementos da cultura da qual faz parte.” “Percepção de que as culturas são relativas, isto é, não há cultura – nem elemento dela – que tenha caráter absoluto, perfeito. Não existe, portanto, um padrão único para julgar de antemão o certo e o errado entre as culturas, pois cada uma traz em si seu padrão de medida.” “Relativismo cultural remete à ideia de que as culturas são equivalentes e, logo, não se pode criar uma escala em que a cada cultura seja atribuída uma ‘nota’, de acordo com o critério de ‘mais ou menos perfeita’.” 1º1º 2º2º 3º3º aS ha til ov /S hu tte rs to ck Introdução ao pensamento antropológico 19 O autor destaca, entretanto, que o relativismo não é só uma “sus- pensão de juízo”, já que não se consegue aplicar nenhum critério de- cisivo para classificar as culturas; o relativismo afirma positivamente que uma cultura é tão válida como qualquer outra, por ser uma ex- periência diversa que o ser social faz de sua humanidade. Para ele, as repercussões da aplicação da noção de relativismo cultural à pesquisa são várias: • Respeito sincero pela cultura e sociedade dos outros povos. • Cuidado extremo com a objetividade. • Cuidado com cada traço cultural sendo estudado em seu contexto. • Recusa de interferir e de modificar costumes e tradições de um povo. Sob perspectiva diferente, vários autores das ciências humanas em geral e, em especial, da antropologia criticam o uso irrestrito do concei- to de relativismo cultural, contrapondo-o à natureza universalista dos direitos humanos, por exemplo. Nesse sentido, algumas práticas cultu- rais tradicionais, como o infanticídio entre alguns grupos indígenas bra- sileiros e a mutilação genital em algumas regiões da África e do Oriente Médio, são alvo de debates que envolvem, de um lado, as noções de relativismo cultural e, de outro, os direitos humanos universais. Vamos nos aprofundar um pouco sobre um dos exemplos apre- sentados anteriormente. A antropóloga Marianna Assunção Fi- gueiredo Holanda, que estuda o tema do infanticídio indígena no Brasil, aponta que “esse é um dos pontos centrais do es- tudo: o que nós, brancos, entendemos como sendo vida ehumano é diferente da percepção dos índios. Um bebê in- dígena, quando nasce, não é considerado uma pessoa – ele vai adquirindo pessoalidade ao longo da vida e das relações sociais que estabelece” (ESTUDO CONTESTA..., 2009). Sob uma visão relativista, que procura compreender essa prá- tica cultural em seu contexto e sob a lógica das crenças e dos costumes desses grupos indígenas (que representam uma parte bem pequena dos povos originários do Brasil), a partir dos significados que dão a suas ações, leva-se em conta que, nessas tribos, as crianças que não são percebidas como adequadas aos padrões aceitáveis pela comunidade não poderão Você pensa que todas as práticas culturais devem ser sempre respeitadas ou há algumas delas que violam os direitos humanos e, por isso, precisariam ser confrontadas? Teln ov O leks ii/S hu tte rs to ck 20 Antropologia e Sociologia da Educação ser inseridas no grupo e não serão socializadas pela coletividade, o que significa, muitas vezes, que não poderão ser mantidas vivas. Os mitos que regem essas ações são muito presentes na cultura des- ses grupos indígenas e trazem a crença de que, por exemplo, crianças de- ficientes significam maldição ou castigo àquela tribo. Além disso, há ainda os motivos práticos, relacionados à necessidade de que as crianças se tor- nem adultos úteis ao grupo, capazes de caçar, pescar etc. Por outro lado, sob a perspectiva dos direitos humanos, considera-se que, apesar de a cultura ser um elemento essencial de construção da iden- tidade humana e dos valores fundamentais, é crucial proteger os direitos humanos mais básicos, como o direito à vida, independentemente das di- ferenças culturais, e garantir um padrão ético mínimo universal. O debate entre essas duas vertentes de pensamento está longe de ter- minar. A visão relativista considera que a perspectiva universalista dos di- reitos humanos seria uma imposição de determinados valores e padrões ocidentais específicos a todas as culturas do mundo, elegendo um código de ética específico como aplicável a todos os grupos humanos, desconsi- derando suas especificidades culturais, suas tradições, crenças etc. Já a visão universalista vê no relativismo cultural uma aceitação conformada de que toda e qualquer prática cultural deve ser respeita- da sem questionamentos, como se as diferenças culturais validassem completamente qualquer crença, valor ou prática cultural, independen- temente de suas consequências éticas. 1.3 O pensamento antropológico Vídeo Para compreender o pensamento antropológico, vamos conhecer um pouco sobre o surgimento e o desenvolvimento da antropologia e sobre os caminhos que essa área do conhecimento tem traçado, sob alguns aspectos, desde a modernidade até a contemporaneidade. No contexto de expansão marítima das nações europeias, da explo- ração colonial e dos relatos dos viajantes europeus à América, e sob a necessidade de justificar a conquista dos territórios e a exploração dos povos lá encontrados pela necessidade de “humanizar os selvagens”, surgem as primeiras teorias que buscam explicar as diferenças cultu- Introdução ao pensamento antropológico 21 rais entre os povos, além disso já vimos que as concepções europeias nessa época eram etnocêntricas e consideravam inferiores as culturas dos povos indígenas. 1.3.1 Origens da antropologia Nesses primórdios da antropologia, a busca por compreender as diferenças étnicas culturais recentemente encontradas levou a concep- ções como o determinismo geográfico e o determinismo biológico. Os teóricos do determinismo geográfico defendiam que as especificida- des do ambiente em que um povo vivia determinavam a sua cultura. Essa seria a razão de existirem culturas diferentes: ambientes diferen- tes, com climas, solos e vegetação diferentes. Já os teóricos do deter- minismo biológico afirmavam que existiam diferenças fundamentais entre as “raças” que determinariam o comportamento de brancos, in- dígenas, negros etc. Esse modelo biológico determinista influenciou o surgimento das doutrinas raciais. Com a publicação da obra A Origem das Espécies, de Charles Darwin (1809-1882), surge a teoria evolucionista, que acabou por inspirar a an- tropologia física ou biológica, que utilizava o modelo determinista bio- lógico como base e afirmava que os comportamentos humanos, suas características intelectuais etc. eram transmitidas de maneira hereditá- ria e aplicava técnicas de medida de tamanhos e proporções de pessoas provenientes de diferentes “raças” e relacionavam tais medidas, como as do crânio e outras partes do corpo, a determinadas características. Ancorada no debate evolucionista, a antropologia do século XIX con- solidou o darwinismo social, ligado a uma análise biológica do ser humano, e não a uma análise cultural e social, to- mando a sociedade europeia como o auge da evolução humana, a “civilização”, e as sociedades aborígines e indígenas como etapas “primitivas” do ser humano. Figura 3 Craniometria A craniometria era uma técnica usada pelos teóricos do determinismo biológico para, por meio de dados referentes aos crânios de diferentes “raças” de pessoas, determinar a inteligência, considerada como relacionada ao tamanho do cérebro e aos detalhes na formação do crânio. Conhecer os princípios do pensamento antropológi- cos e seu desenvolvimen- to teórico. Objetivo de aprendizagem As teorias advindas do determinismo biológico, que originaram uma classificação das raças em superiores e inferiores, influenciaram a teoria da Eugenia, uma teoria profundamente racista e discriminatória que pro- punha a limpeza étnica com vistas ao “branquea- mento” das populações. Essa teoria foi uma das bases do Nazismo e influenciou a formação do Movimento Eugenista Brasileiro, que pretendia acabar com a miscigena- ção racial no país e coibir o aumento da população não branca, por meio da seleção de imigrantes e de esterilização em massa, por exemplo. Curiosidade W ik im ed ia /C om m on s 22 Antropologia e Sociologia da Educação O darwinismo social foi usado como justificativa para a dominação de outros povos por parte dos europeus. A partir da segunda metade do século XIX, com o avanço da indus- trialização e as transformações nas sociedades europeias, começam a surgir na antropologia teóricos que propunham conceitos e métodos realmente próprios à disciplina e alinhados a uma ciência do ser huma- no. Nessa época surgiram os estudos de três autores clássicos da área que representam essa tendência científica do pensamento antropo- lógico: Lewis Henry Morgan (1818-1881), Edward Burnett Tylor (1832- 1917) e James George Frazer (1854-1941). Tais autores fazem parte do chamado evolucionismo cultural, que defendia que a evolução das so- ciedades, o progresso e o desenvolvimento técnico eram as referências para analisar as diferenças culturais entre os povos. Para Morgan, a observação das sociedades primitivas, que estariam em níveis evolutivos inferiores à civilização e identificando as etapas e conquistas tecnológicas de tais povos, como a descoberta do fogo, o processo de fixação no território etc., permitiria reconstruir a história dos seres humanos. Já Tylor foi o responsável por propor o primeiro conceito de cultura no contexto da antropologia: “cultura ou civiliza- ção, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade” (TYLOR apud CASTRO, 2005, p. 69). Esse autor propunha que o trabalho do antropólogo era o de ca- talogar os artigos culturais, tal qual um botânico faria. Ele também acreditava que as diferenças nos costumes, manifestações artísticas, conjuntos de regras e crenças dos povos se originavam de diferentes estágios evolutivos – que se ligam ao progresso tecnológico “mais evo- luído” e “menos evoluído”, e não a raças ou característicasbiológicas. Frazer, por sua vez, delimitou o escopo da antropologia social, que teria como objeto de estudo exclusivamente as origens da humanida- de, as chamadas na época sociedades primitivas, com desenvolvimento primário, e não envolveria o estudo das “sociedades civilizadas”. Esse escopo foi bastante ampliado mais à frente, por antropólogos do início do século XX, que, ao contrário dos evolucionistas, chamados de pes- quisadores de gabinete, por produzirem suas análises fechados em suas Introdução ao pensamento antropológico 23 salas, sem ir a campo, e usando dados recolhidos por outras pessoas, faziam pesquisa de campo e coletavam dados pessoalmente. 1.3.2 A antropologia moderna As teorias do evolucionismo cultural passaram a ser refutadas a partir dos estudos difusionistas, que apontavam outra explicação para as diferenças culturais entre os povos: sua distribuição geográfica e a migração de traços culturais de um povo para outro. Para eles, cada cultura era um caleidoscópio de traços culturais com diferentes origens e trajetórias históricas. As trocas culturais permitiriam casos como o das sociedades que tinham, por exemplo, tecnologias muito básicas, mas um sistema de crenças complexo, invalidando a noção de que haveria uma ho- mogeneidade nos elementos culturais determinados por um estágio de desenvolvimento. Influenciado por essas ideias, Franz Boas cons- trói um pensamento antropológico crítico ao caráter etnocentrista do evolucionismo cultural, fazendo nascer a antropologia moderna (DURAN; DURAN, 2020, p. 34). Boas não concordava com o pressuposto evolucionista de que a semelhança dos elementos culturais de povos que viviam em regiões distantes umas das outras seria a evidência de que a mente do ser hu- mano funcionaria exatamente do mesmo modo em todos os lugares e de que sociedades no mesmo “estágio de desenvolvimento” se com- portariam de maneira idêntica. O que ele acreditava era que os contatos entre as culturas, como as migrações, proporcionariam diferentes desenvolvimentos históricos em cada local e os mesmos eventos ou fenômenos poderiam se de- senvolver de maneira totalmente diferente em cada cultura, cada uma com suas particularidades. Em 1896, Franz Boas publica a obra As li- mitações do método comparativo em antropologia, desmontando a tese das diferenças biológicas entre povos primitivos e civilizados, e defen- de que as diferenças entre as sociedades são culturais, não raciais. Na década de 1930, o autor publica obras que complementam essa teoria. Durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, sob influência das ideias de Franz Boas, intelectuais brasileiros, como Gilberto Freyre (1900-1987), confrontaram as teorias raciais, denun- ciaram as péssimas condições da saúde pública para as populações 24 Antropologia e Sociologia da Educação negras no Brasil e destacaram as contribuições dos africanos na forma- ção social e cultural brasileira. Leia o artigo Eugenia no Brasil: reflexões sobre raça, miscigenação e Direitos Humanos para a educação científica e entenda como incorporar o tema da eugenia no contexto da educação científica escolar. Acesso em: 21 out. 2021. https://www.16snhct.sbhc.org.br/resources/anais/8/1534354260_ARQUIVO_AndersonRicardoCarlos_ trabalhocompleto.pdf Artigo A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi um marco em relação à reflexão intelectual sobre o determinismo biológico/racial no mundo após a tragédia humanitária representada pelo Holocausto (1941-1945), que culminou no extermínio de milhões de judeus, além de ciganos, ne- gros e outros grupos considerados “inferiores” pelos nazistas. Poucos anos após seu término, na década de 1950, a UNESCO reuniu intelec- tuais de várias partes do mundo para produzir uma declaração sobre o tema raça, no sentido de recusar qualquer tipo de determinismo ou classificação racial. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908- 2009) integrou a força-tarefa da declaração e publicou pouco depois sua célebre obra Raça e História, de cunho antirracista. Recuando um pouco ao início do século XX, vamos encontrar um outro aspecto do desenvolvimento da antropologia, no campo meto- dológico, quando a observação direta dos grupos humanos passa a ter grande importância para a produção do conhecimento antropológico, e a pesquisa do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) foi determinante para essa nova perspectiva. Em sua clássica obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922, Malinowski reúne as diretrizes metodológicas para a pesquisa antro- pológica que se tornariam o “manual” de investigação de campo dos futuros antropólogos: afastamento da própria cultura, aproximação do nativo do grupo pesquisado, vivência da cultura do outro, postura re- lativista, evitando o etnocentrismo. Essas diretrizes constituem o cha- mado método etnográfico, cuja base é a “observação participante”, uma técnica de interação entre o pesquisador e a cultura pesquisada. O desenvolvimento da antropologia moderna foi marcado por duas perspectivas teóricas bastante distintas, a da chamada antropologia so- cial, desenvolvida na Inglaterra e na França, e da qual já conhecemos O livro Pequeno manual antirracista, da filósofa e ativista Djamila Ribeiro, apresenta caminhos de reflexão para quem dese- ja ter uma nova percep- ção sobre discriminações com base no racismo estrutural e assumir a responsabilidade pela transformação do estado das coisas. RIBEIRO, D. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2019. Livro Introdução ao pensamento antropológico 25 vários teóricos, e a antropologia cultural, ligada aos antropólogos esta- dunidenses, como Talcott Parsons (1902-1979). Foi Parsons quem delimitou, em meados do século XX, como ob- jeto da antropologia, enquanto campo científico autônomo, a cultura, legando os sistemas social, político e econômico para os sociólogos. O antropólogo considerava que os estudos antropológicos deveriam se voltar para a análise dos comportamentos dos indivíduos, pois estes refletiriam as culturas nas quais estavam inseridos. Tanto a antropologia social quanto a antropologia cultural se dedi- cam ao mesmo objeto e aplicam o método etnográfico para investigá-lo, mas, na antropologia social, a ênfase estaria na análise e comparação de sistemas de relações sociais, e na antropologia cultural, estaria na análise a partir da compreensão de comportamentos dos integrantes de um grupo determinado da sociedade. Essa diferença não faz mais sentido atualmente e parece reducio- nista, pois os objetos de pesquisa são fenômenos socioculturais varia- dos, complexos, que demandam olhares transdisciplinares, recorrendo muitas vezes ao arcabouço teórico-metodológico de outras áreas. De modo resumido, podemos verificar os seguintes marcos na an- tropologia ao longo do tempo: Figura 3 Linha do tempo sobre o desenvolvimento da antropologia 1922 Método etnográfico, de Bronisław Malinowski 1929 Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia: intelectuais brasileiros, como Gilberto Freyre, confrontam as teorias raciais. 1930 Franz Boas desmonta a tese das diferenças biológicas entre povos primitivos e civilizados. 1939-1945 Segunda Guerra Mundial é um marco em relação à reflexão intelectual sobre o determinismo biológico/racial. 1950 UNESCO produz uma declaração antirracista. Gr af V is he nk a/ Sh ut te rs to ck Fonte: Elaborada pela autora. 26 Antropologia e Sociologia da Educação Atualmente a delimitação da antropologia como área autônoma passa pelo modo como são articuladas as dimensões da teoria e da prática, com a pesquisa de campo iluminando conceitos teóricos, e pelo desenho metodológico, quase sempre qualitativo e etnográfico. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante muito tempo a antropologia se voltou para os povos que eram chamados de primitivos, estudando o que era distante ou “exótico”, mas atualmente esse campo se dedica a estudar as mais diferentes culturas e experiênciasde alteridade, incluindo inúmeros grupos integrantes das sociedades complexas – que possuem suas próprias culturas – e os mais diferentes fenômenos sociais, como sociabilidades urbanas, relações in- terétnicas, dinâmicas entre comunidades e meio ambiente, gênero e se- xualidade, globalização e consumo, processos educativos, entre muitos outros objetos. A aplicação de conceitos e métodos da antropologia aos processos educativos pode contribuir tanto para o ensino de conteúdos específicos relacionados às ciências humanas quanto para a abordagem de temas transversais e saberes e práticas ligadas à formação do cidadão, com o desenvolvimento de conceitos como cultura, etnocentrismo, alteridade e relativismo cultural. ATIVIDADES Atividade 1 O que os casos das crianças selvagens nos revelam sobre o peso das culturas humanas e das relações sociais na construção do que chamamos de indivíduo? Atividade 2 Partindo do pressuposto de que os valores se originam das con- cepções de mundo e essas concepções variam conforme cada cultura, como se poderia estabelecer valores universais? Introdução ao pensamento antropológico 27 Atividade 3 Por que não é viável aplicar as ideias evolucionistas de Darwin, concebidas no contexto das ciências naturais, às análises sociais e culturais? REFERÊNCIAS AMARAL, S. P.; MIRANDA, C. O pensamento selvagem de Lèvi-Strauss. Superinteressante, 31 ago. 2003. Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/o-pensamento-selvagem-de- levi-strauss/. Acesso em: 21 out. 2021. CASTRO, C. (org.). Evolucionismo cultural/textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 223-224. DURAN, M. R. C.; DURAN, M. R. C. Dividir o pão: a cultura entre a História e a Antropologia. Revista Relegens Thréskeia, UFPR, v. 9, n. 1, p. 34, 2020. ESTUDO CONTESTA criminalização do infanticídio indígena. UnB Ciência, 2009. Disponível em: https://unbciencia.unb.br/humanidades/50-antropologia/340-estudo-contesta- criminalizacao-do-infanticidio-indigena. Acesso em: 26 nov. 2021. HOLANDA, M. A. F. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Ciências Sociais; Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. Disponível em: https://www. repositorio.unb.br/handle/10482/5515. Acesso em: 8 nov. 2021. MENESES, P. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista Gestão e Políticas Públicas, v. 10, n. 1, p. 1-10, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ rgpp/article/view/183491/170496. Acesso em: 8 nov. 2021. SAMESHIMA, M. C. A. As cartas da França Antártica. Revista Intellectus, v. 2, p. 1-8, 2004. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5860312.pdf. Acesso em: 26 nov. 2021. https://unbciencia.unb.br/humanidades/50-antropologia/340-estudo-contesta-criminalizacao-do-infanticidio-indigena https://unbciencia.unb.br/humanidades/50-antropologia/340-estudo-contesta-criminalizacao-do-infanticidio-indigena 28 Antropologia e Sociologia da Educação 2 Antropologia, educação e sociedade A antropologia pode ser usada como uma das ciências de apoio aos estudos voltados para a educação e a formação dos indivíduos, no sentido de analisar os universos culturais que integram tanto a instituição esco- lar quanto contextos informais de educação. A análise das relações entre indivíduo, cultura e sociedade, bem como da socialização de crianças e jo- vens sob a perspectiva antropológica, pode ser bastante útil para analisar os contextos e os processos de ensino e aprendizagem. Podemos considerar que uma questão antropológica fundamental da educação é o modo como o processo de constituição do indivíduo é ana- lisado, que varia conforme o processo de socialização pelo qual ele passa, posto que a escola é uma das mais importantes instâncias de socialização. A depender da perspectiva teórica adotada, tal análise produzirá resulta- dos diferentes. Neste capítulo, vamos abordar tais perspectivas, buscando compreendê-las. 2.1 Indivíduo, cultura e sociedade Vídeo Os conceitos de indivíduo, de cultura e de sociedade são complexos e polissêmicos, isto é, assumem variados sentidos de- pendendo da área do conhecimento e da linha teórica pelas quais estão sendo utilizados. Para a antropologia, o indivíduo é tratado so- bretudo em suas relações com a cultura e com os processos sociais que permitem a aquisição dos elementos culturais do seu grupo, tornando-o parte da sociedade, ao que chamamos de socialização. A cultura, sob a perspectiva antropológica, reúne um amplo com- plexo de costumes, crenças, valores e tradições de um grupo huma- no que envolve desde a linguagem, a religião, os hábitos, as normas e as leis até hierarquias, relacionamentos, sistemas de parentesco, noções de espaço e tempo, noção de certo e errado, práticas sociais, Compreender os con- ceitos de indivíduo e de cultura para a antropolo- gia e analisar as relações desses conceitos com a vida em sociedade. Objetivo de aprendizagem Li gh ts pr in g/ Sh ut te rs to ck ritos, mitos, conhecimentos, saberes e visão de mundo, incluindo aspectos materiais e simbólicos. Então, temos a seguinte relação: Figura 1 Cultura na perspectiva antropológica Fi re of he ar t/ Sh ut te rs to ck Costumes Valores Crenças Tradições Cultura A educação escolar está imersa na cultura de uma sociedade, e uma de suas funções é garantir a transmissão de elementos culturais, como linguagem, conhecimentos, regras e saberes. Há certo consenso, na área da antropologia, de que o conceito de cultura não admite uma definição fechada, assim como o conceito de indivíduo, que pode se referir à identidade sob determinada perspectiva antropológica e ao agente social sob determinada visão sociológica. Embora a aprendizagem faça parte de todas as cul- turas humanas, a relação ensino-aprendizagem, do modo como é considerada na sociedade moderna, com uma separação e especialização relativas ao indivíduo que ensina e ao indivíduo que aprende, não é universal. A noção própria de indivíduo é também uma noção moderna, construída histó- rica e socialmente ao longo da modernidade, na qual o ser humano adquiriu centralidade na visão de mundo predominante. Influenciadas pelo movimento iluminista, as sociedades ociden- tais passaram por profundas transforma- ções, que modificaram também as relações que as pessoas mantinham entre si. Várias delas se relacionavam ao prota- gonismo que passou a ser dado ao indivíduo na sociedade. A palavra indivíduo, em latim individuus, quer dizer “não dividido”, indivisível, e Antropologia, educação e sociedadeAntropologia, educação e sociedade 2929 30 Antropologia e Sociologia da Educação aparece em registros do século XVII se referindo ao ser humano isolado, singular. Mas, independentemente do período, não há como conceber o indivíduo desligado da sociedade em que ele vive, de suas relações com seu grupo social, da cultura, das dinâmicas e relações sociais que caracterizam a sociedade de seu tempo. A antropologia tem abordagens específicas sobre o indivíduo e suas relações com a cultura e com a sociedade, e, para compreendê-las e poder aplicá-las à análise dos processos educacionais, é preciso conhe- cer um pouco melhor as origens e o desenvolvimento do pensamento antropológico. 2.1.1 Abordagens antropológicas As ciências humanas como um todo têm como objeto de estudo os seres humanos e suas relações entre si e com o ambiente em que vivem sob os mais diversos aspectos – culturais, sociais, psicológicos, econômicos, educacionais etc. O indivíduo, as diferentes culturas hu- manas e as relações entre indivíduo e sociedade são os focos de inte- resse dessa grande área do conhecimento e são objetos de estudo das ciências sociais (sociologia, antropologia e ciência política). A antropologia especificamente estuda o ser humano, sobretudo sob seus aspectos culturais, mas também sociais e até biológicos, dedi- cando-se,em uma acepção ampla, ao conhecimento sobre a diversida- de cultural, buscando compreender o que somos, enquanto indivíduos imersos em uma cultura e vivendo em sociedade, com base no reflexo que nos é devolvido pelo “outro”. O pensamento antropológico é um modo de reconhecer as fronteiras dos diversos mundos sociais e cul- turais, abrindo passagens entre eles e alargando nosso conhecimento sobre os outros e sobre nós mesmos. Para obtermos um panorama resumido dessa área do conhecimen- to, é interessante saber que a antropologia é estruturada em campos ou ramos do conhecimento que definem seus objetos e abordagens específicas de estudo. As classificações, no entanto, variam de acordo com a época e a perspectiva teórica. A classificação por áreas consi- derada pelo Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) é a seguinte: Tr iff /S hu tte rs to ck aS ha til ov /S hu tte rs to ck m sp oi nt / Sh ut te rs to ck da vo od a/ Sh ut te rs to ck Bo yk o. Pi ct ur es / Sh ut te rs to ck Si m ak ov a M ar iia Sh ut te rs to ck Antropologia física ou biológica Antropologia social Antropologia cultural Arqueologia Pouco influente na tradição intelectual brasileira, dedica-se ao estudo dos aspectos biológicos e genéticos do ser humano e tem sua origem marcada pelas teorias raciais sobre miscigenação, biotipologia e eugenia, hoje bastante ultrapassadas. É uma das bases da medicina legal e da antropologia jurídica, bastante desenvolvida nos EUA, por exemplo. Pesquisa sobretudo as organizações e relações sociais e políticas, os sistemas de parentesco e as instituições sociais. Em suas origens, definiu os fenômenos sociais como objetos de investigação socioantropológica. Estuda sistemas simbólicos (religião, comportamentos etc.) e temas relacionados às diversas culturas, incluindo os pertencentes às culturas das sociedades complexas, como antropologia da arte, da ciência e da tecnologia, das relações de gênero, da etnicidade e racismo, etnologia indígena etc. Investiga os vestígios materiais que revelam as condições de existência dos grupos humanos, do passado remoto, já desaparecidos ou recentes, tais como objetos, estruturas arquitetônicas, pinturas etc. Podem ser aplicados, ainda, os termos antropologia, etnologia e etnografia para nomear diferentes níveis de análise ou diferentes tradi- ções acadêmicas. Segundo Lévi-Strauss (1970, p. 377): a etnografia se refere aos primeiros estágios da pesquisa, nos quais são realizados a observação e a descrição, o trabalho de campo. a etnologia seria uma etapa inicial em direção à síntese. a antropologia seria a segunda e última etapa da síntese, feita com base nas conclusões da etnografia e da etnologia. Há, no entanto, quem se refira à etnologia como sinônimo de antro- pologia cultural, e à etnografia como um método específico de pesquisa. O pensamento e os estudos antropológicos têm origem muito antes da institucionalização do campo da antropologia como área do conhe- cimento e objeto de ensino, o que só ocorreu a partir do século XIX. Muito antes disso, já no século XVI, os relatos de viagens de viajantes, Antropologia, educação e sociedadeAntropologia, educação e sociedade 3131 32 Antropologia e Sociologia da Educação missionários, exploradores, mercadores, oficiais militares e administra- dores coloniais já traziam descrições dos diferentes povos descobertos nos “novos” territórios conquistados e explorados durante a expansão marítima e comercial europeia. As características naturais dos territórios e seus ambientes apare- ciam em minuciosas descrições da fauna, da flora, do solo, dos rios etc., assim como costumes, aparência, hábitos, crenças e organização dos povos nativos de tais territórios também eram relatados. São dessa época (século XVI) os primeiros relatos dos encontros entre culturas e as reflexões sobre alteridade na relação com o outro, por exemplo a: “Carta do Descobrimento”, de Pero Vaz de Caminha (c. 1450-1500). “Viagem à Terra do Brasil”, do missionário francês Jean de Léry (c. 1534-1611). “Duas viagens ao Brasil”, do viajante e mercenário alemão Hans Staden (c. 1525-1576). “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, do pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848), no século XIX, em sua viagem in- tegrando a Missão Artística Francesa. A partir do século XIX, o campo da antropologia começa a se insti- tucionalizar com trabalhos de sistematização do conhecimento reco- lhidos até ali sobre os chamados, naquela época, de povos primitivos. No início desse período, os antropólogos produziam seus conceitos e teorias fechados em seus gabinetes com base em estudos dos ma- teriais recolhidos pelos viajantes, não realizando eles mesmos ne- nhum estudo de campo. Uma das correntes de pensamento dessa época era chamada de escola do evolucionismo social, cujos expoentes eram: Herbert Spencer (1820-1903), Edward B. Tylor (1832-1917), Lewis Morgan (1818-1881) e James Frazer (1854-1941). Ela defendia a ideia de uma evolução das so- ciedades, das mais “primitivas” para as mais “civilizadas”, e investigava as origens humanas, sob a perspectiva diacrônica (da evolução ao lon- go do tempo), voltando-se aos estudos dos temas parentesco, religião e organização social. Nesse contexto, gradativamente os antropólogos passaram do con- ceito de raça para o de cultura. São expoentes do evolucionismo social: Spencer, Tylor, Morgan e Frazer. Hans Staden é o premiado drama biográfico baseado na obra de Hans Staden, Duas viagens ao Brasil. Narra a história do via- jante e sua captura pelos Tupinambá. Hans Staden. Direção: Luiz Alberto Pereira. Lapfilme do Brasil: Brasil/ Portugal, 2000. Filme Antropologia, educação e sociedade 33 Ainda no século XIX, desenvolveu-se outra corrente de pensamento bastante influente nos primórdios da antropologia, a escola sociológica francesa, que delimitou como objetos de pesquisa socioantropológica os fenômenos sociais (dando origem à linha teórica mais tarde ligada à área de antropologia social), além de se preocupar com a definição de regras para o método de estudo dos fenômenos da sociedade. Os temas de estudo dessa tendência eram as representações cole- tivas, as noções de solidariedade orgânica e mecânica que manteriam a coesão social nas sociedades – conceitos de Émile Durkheim (1858- 1917) – e as formas primitivas de classificação das sociedades, como o totemismo, buscando esclarecer o chamado fato social total nas so- ciedades (conceito de Marcel Mauss (1872-1950) que reuniria aspectos biológicos, psicológicos, sociológicos, políticos, econômicos, religiosos etc.), fenômenos da troca e da reciprocidade, base da vida social. Nos anos 1920, a escola funcionalista predominou no pensamen- to antropológico. Ela usava um modelo de etnografia clássica, o qual procurava empreender estudos descritivos das diversas culturas e et- nias humanas, produzidos com base em estudos de campo realizados sob a perspectiva da observação participante (técnica de pesquisa e co- leta de dados em que o pesquisador não só observa, mas compartilha o cotidiano da comunidade estudada). Os temas de investigação do funcionalismo eram a cultura enquanto totalidade e as instituições sociais e suas funções na manutenção da tota- lidade cultural, sob a perspectiva das dinâmicas entre a dimensão diacrô- nica e a dimensão sincrônica, que estuda um fenômeno em um momento específico. Os principais antropólogos funcionalistas foram: Bronislaw Malinowski (1884-1942), Radcliffe Brown (1881-1955), Evans-Pritchard (1902-1973), Raymond Firth (1901-2002), Max Gluckman (1911-1975), Victor Witter Turner Glasgow (1920-1983) e Edmund Leach (1910-1989). Na década de 1930, nos Estados Unidos, surge o culturalismo, ten- dência antropológica que privilegiava o método comparativo nos es- tudos culturais e que buscava leis no desenvolvimentodas culturas. Essa tendência foi uma das bases da área de antropologia cultural e se dedicava ao estudo das relações entre cultura e personalidade, preocupando-se em estabelecer e identificar padrões culturais ou es- tilos de cultura. Os principais antropólogos dessa corrente de pensa- mento foram Franz Boas, Margaret Mead (1901-1978) e Ruth Benedict (1887-1948). Para Durkheim, a so- ciedade está acima e é exterior aos indivíduos, perpetuando-se por meio de normas, convenções sociais e valores que con- tribuem para estabelecer uma sensação de coleti- vidade e são transmitidos às novas gerações por meio das instituições, como a família e a escola. Para ele, a socialização faz parte de um processo coercitivo da sociedade para garantir a perpe- tuação de seus valores e regras. Importante totemismo: sistema de classificação, presente em várias sociedades, que busca preservar a complementaridade entre natureza e cultura, sepa- rando os seres humanos da natureza (conside- rando-os na esfera da cultura) e simultaneamen- te identificando-os com elementos da natureza, como animais. Glossário 34 Antropologia e Sociologia da Educação Nos anos 1940, emerge, na França, o estruturalismo, que se inte- ressa por investigar as regras estruturantes das culturas, que estariam na mente humana. Os temas de pesquisa dessa tendência teórica fo- ram propostos essencialmente por Lévi-Strauss e abordavam os prin- cípios de organização da mente humana, como os pares de oposição e códigos binários e a reciprocidade (a oposição natureza e cultura, a teoria do parentesco, a lógica do mito e a classificação primitiva). Para Lévi-Strauss não existiriam civilizações “primitivas” ou civilizações “evo- luídas”, mas sim respostas diferentes a problemas fundamentalmente idênticos. Na década de 1960, a antropologia interpretativa, também chama- da de simbólica, se estabelece como corrente de pensamento. Essa tendência, inspirada na hermenêutica filosófica, compreende a cul- tura como hierarquia de significados e propõe que se empreenda uma densa descrição interpretativa das culturas, ao invés de buscar identi- ficar leis gerais, buscando compreender a leitura que os nativos fazem de sua própria cultura. O principal autor dessa corrente é o antropólogo estaduni- dense Clifford Geertz (1926-2006). Sua obra A interpretação das culturas, em que privilegiava a análise da prática simbólica, é re- ferenciada até hoje por autores mais recentes. Geertz considera- va que a cultura humana é como um conjunto de textos a serem “lidos” e propunha que o objeto da antropologia é descobrir, em cada formação cultural, quem as pessoas acham que são, o que elas fazem e quais motivos elas acham ser os que as levam a fazer o que fazem. Para Geertz, cultura é um padrão de signi- ficados transmitidos historicamente e incorporados em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpe- tuam-se, desenvolvem seu conhecimento sobre a vida e definem sua atitude em relação a ela (KUPER, 2002, p. 132). A partir dos anos 1980, surge a antropologia crítica, ou pós-moderna, que critica os paradigmas da etnografia clássica, pon- do em debate a suposta autoridade etnográfica do antropólogo e os recursos retórico-textuais das etnografias clássicas, e mesmo das con- temporâneas. Essa tendência problematiza e politiza a relação entre observador e observado na pesquisa antropológica, e seu interesse te- mático recai sobre a cultura enquanto processo polissêmico, que tem hermenêutica filosófica: abordagem interpretativa da filosofia aplicável tanto à compreensão de textos quanto ao universo práti- co do mundo, das ações e da existência humana. A hermenêutica cultural, desenvolvida na antro- pologia, tem origem na hermenêutica filosófica. Glossário O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss em evento da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU), em 2005. UN ES CO /M ic he l R av as sa rd Antropologia, educação e sociedade 35 na etnografia a possibilidade de representar de modo multifacetado e plural tal multiplicidade de significados culturais. São expoentes dessa vertente antropólogos como James Clifford (1945-), James Boon (1946-) e Paul Rabinow (1944-2021). No contexto da antropologia contemporânea, os debates sobre cul- tura, identidades e suas dinâmicas têm se ampliado e incorporado diá- logos mediados pelas novas formas culturais tecidas entre os âmbitos global e local. Edward Hall (1914-2009) já afirmava há alguns anos que: a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos con- frontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2006, p. 13) Recentemente, no cenário das discussões sobre identidades, conso- lidam-se os estudos sobre identidades étnico-raciais, que estão no bojo dos estudos sobre africanidades e sobre legado africano, sob o olhar da população negra e influenciados por uma nova vertente teórica que perpassa as ciências humanas como um todo, os chamados estudos decoloniais 1 . Os estudos decoloniais questionam as narrativas alinhadas à configuração eurocêntrica do mundo, que se fundamenta histo- ricamente no processo de colonização da América. Produzem, assim, novas leituras de processos e problemáticas histórico- -sociais, culturais, artísti- cas etc., dando visibilidade a narrativas, práticas e autorias sob a perspectiva da América-Latina. 1 2.2 Socialização, cultura e educação Vídeo Ouvimos muito a palavra socialização no contexto escolar, sobre- tudo em relação a processos educacionais na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, mas, assim como os conceitos de indivíduo, de cultura e de sociedade, o conceito de socialização é bastante complexo e varia conforme as perspectivas de cada área do conhecimento, tendências teóricas que tomamos como referência, o tempo histórico e espaço considerados. A antropologia, a sociologia, a psicologia e a pedagogia são algumas das áreas que tratam do conceito de socialização, cada qual com sua abordagem. Em cada uma delas, esse termo é tomado de um modo, conforme cada autor ou movimento teórico. Veremos, nesta seção, o conceito de socialização sob várias perspectivas para compreendê-lo e para identificar suas aplicações no contexto educacional. Compreender as relações entre processos de socialização, cultura e pro- cessos educativos. Objetivo de aprendizagem 36 Antropologia e Sociologia da Educação M on ke y B us si ne ss Im ag es /S hu tte rs to ck Você já sabe, por exemplo, que a aquisição da cultura do grupo social ao qual uma criança pertence é realizada por meio das re- lações que a criança tem, desde o seu nascimento, com os outros seres humanos com os quais convive. Se a criança for isolada da sociedade durante toda a infância e não mantiver contato com seres humanos, ela não adquirirá elementos culturais essenciais, como a linguagem, e não aprenderá com os familiares e outros adultos pró- ximos os costumes, os valores, as regras e as crenças específicos da comunidade. Para além desses casos excepcionais, todos nós nas- cemos em uma determinada estrutura social, que existe objetiva- mente antes de nascermos, e passamos a conviver com indivíduos que já vivem nela. São eles os responsáveis por nossa socialização, começando pelos familiares e, depois, pelos educadores. No momento em que a família introduz a criança ao ambiente em que vive, ela faz isso de acordo com determinadas “lentes” ou “fil- tros”, tais como a classe social à qual pertence ou seus hábitos pró- prios enquanto família. Com essas lentes, a criança começa a ver o mundo e a si mesma nesse mundo social, isto é, esses aspectos irão condicionar e modelar as experiências sociais da criança. Perceba que esseprocesso não se refere apenas à educação intelectual ou cognitiva, mas também a uma educação cultural, social e emocional da criança. É nesse cenário que a criança constitui sua personalida- de e sua identidade, assimilando condutas e adotando determina- dos papéis sociais. A socialização, no entanto, não ocorre apenas durante a infância, mas por meio de processos ao longo de toda a vida dos indivíduos, constituindo-os como seres sociais. Ela pode apresentar as seguin- tes visões, de acordo com a área de estudo: A palavra socialização faz parte do universo docente, principalmente entre educadores da Educação Infantil e das Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Antropologia, educação e sociedade 37 Áreas de estudo Antropologia Sociologia Pedagogia Psicologia Processos de socialização São vistos frequentemente sob a perspectiva da oposição entre natureza e cultura. Se detém nas perspectivas sociais, de aquisição e adaptação aos padrões sociais de cada grupo. Privilegia os aspectos educacionais da socialização, sobretudo os processos formais desenvolvidos pela escola. Busca entender as relações entre a socialização e a construção da personalidade e dos comportamentos individuais. De outro modo, se analisarmos sob o viés das tendências teórico-metodológicas, a socialização pode ser concebida com base em teorias mais deterministas, como o funcionalismo, o behavioris- mo, o estruturalismo, a sociologia de Durkheim e as teorias psicana- líticas de Sigmund Freud (1856-1939); ou sob pontos de vista mais dialéticos e flexíveis, como o interacionismo simbólico, o interacio- nismo social de Lev Vygotsky (1896-1934) e o construtivismo de Jean Piaget (1896-1980); e com base em conceitos como o de habitus, pro- posto pelo sociólogo contemporâneo Pierre Bourdieu (1930-2002), e o de ação comunicativa, elaborado pelo sociólogo Jürgen Habermas, ligado à Escola de Frankfurt. Basicamente, tais teorias encaram a socialização de dois modos: como a imposição de normas e valores sociais ao indivíduo (visão determinista) ou como processo de construção da identidade indivi- dual e coletiva por meio de múltiplas e plurais “negociações” com o meio social (visão dialética). Sob a visão dialética considera-se, além de outros aspectos, que a socialização integra duas dinâmicas si- multâneas: a ação da sociedade sobre os indivíduos e a apropriação 38 Antropologia e Sociologia da Educação ou internalização do universo social por parte dos indivíduos. Sob a perspectiva da socialização na infância, esse processo dialético é reconhecível tanto na família quanto na escola. A socialização é um processo de coerção da sociedade sobre o indivíduo para modelá-lo conforme os valores e costumes sociais. A socialização é um processo dinâmico de “mão dupla”, em que a sociedade age sobre o indivíduo e este também se apropria do universo social, produzindo assim a sociedade. aS ha til ov /S hu tte rs to ckTeorias Teorias deterministasdeterministas Teorias Teorias dialéticasdialéticas Para analisar as diferenças entre o prisma das teorias clássicas (mais deterministas) sobre a socialização e as teorias mais dialéticas sobre o conceito, devemos considerar que, com as transformações nas sociedades, transformam-se também o conceito de socialização e as instâncias ou instituições socializadoras. As transformações na instituição da família, por exemplo, são bastante marcantes nesse contexto, assim como as mudanças em relação à posição social da mulher e o reconhecimento da criança e do adolescente como ca- tegorias sociais específicas, além das transformações na educação. Tais mudanças, aliadas ao cenário mais amplo das transforma- ções trazidas pela consolidação do capitalismo, resultaram em no- vas interpretações do que sejam os processos de socialização e de como, quando e por meio de quais instâncias ocorrem. Os processos de socialização ocorrem em todas as sociedades, mas o modo pelo qual as instâncias ocorrem varia histórica e culturalmente. Uma das perspectivas clássicas da socialização, sob uma con- cepção determinista, vem da sociologia e foi proposta por um dos fundadores dessa área do conhecimento, Émile Durkheim. Para o sociólogo, o indivíduo é socializado por meio de múltiplas influên- cias da sociedade, a qual pretende, com tal processo, manter o con- senso, a coesão social 2 , que tornaria viável a vida em sociedade. Coesão social, segundo Durkheim, é o conjunto de noções, crenças, tradi- ções, opiniões coletivas, normas e regras aceitas por todos os membros da sociedade. 2 To m st e1 80 8/ W ik im ed ia C om m on s. Durkheim afirmava que a educação é a ação exercida pelas gera- ções adultas sobre as gerações que ainda não estão amadurecidas para a vida social, ou seja, a educação seria uma socialização metó- dica das novas gerações, no sentido de preservar e fortalecer a inte- gração social por meio da construção do “ser social”, um sistema de ideias, sentimentos e hábitos que expressam nos indivíduos a cons- ciência coletiva do(s) grupo(s) a que pertence(m) (DURKHEIM, 1958). Essa visão, no entanto, está longe de ser a única nas ciências so- ciais, como a antropologia e a sociologia, ou mesmo na educação. Para vários autores, como Max Weber e Clifford Geertz, a sociedade não é apenas algo exterior, como propõe Durkheim, mas está tam- bém no interior dos indivíduos, fazendo parte deles. 2.2.1 Socialização e interacionismo simbólico Há várias pesquisas antropológicas sobre a perspectiva cultu- ral da socialização, como as da antropóloga cultural estadunidense Margaret Mead sobre os ritos de iniciação e as diferenças de gênero em tribos de Samoa, na Oceania, representando um dos estudos de caso clássicos da antropologia cultural. As pesquisas de Mead, discípula de Franz Boas, foram desenvol- vidas nos anos 1930 e revelaram, com base na investigação da cul- tura samoana, bastante diferente da ocidental, que não existiriam personalidades femininas e masculinas naturais, como se concebia na época. Margaret Mead em pesquisa de campo em Samoa. Antropologia, educação e sociedadeAntropologia, educação e sociedade 3939 40 Antropologia e Sociologia da Educação Mead identificou, durante sua pesquisa em várias tribos de Samoa, que as atitudes afetuosas em relação às crianças, típicas dos Arapesh, são nor- mas válidas tanto para os homens quanto para as mulheres dessa tribo, e que os homens assumem comportamentos que seriam caracterizados como femininos nas sociedades ocidentais. De maneira análoga, na tribo Mundugumor, a agressividade é a regra para homens e mulheres, e as mu- lheres incorporam comportamentos que chamaríamos de “masculinos” nas sociedades ocidentais. Ela concluiu então que a socialização resulta em tipos sociais adaptados a um contexto social determinado, o que define as estruturas mentais que caracterizam a personalidade e o comportamento dos indivíduos naquela sociedade (MEAD, 2004). Sob essa visão, os comportamentos, tais como os ligados à maternidade e à criação e à educação das crianças, por exemplo, não são resultantes de disposições inatas, ou seja, não nascem com as pes- soas, mas são determinados pela ação da sociedade sobre os indivíduos. Estudo de caso Os estudos de Mead revelaram que os diferentes comporta- mentos de gênero fazem parte dos quadros culturais estabeleci- dos na sociedade e que estes são os definidores dos papéis e dos modelos de comportamentos de homens e mulheres. Esses com- portamentos são ensinados por meio de processos de socialização. Como os quadros culturais variam de sociedade para sociedade, variam também os comportamentos considerados “femininos” ou “masculinos”, o que foi uma grande novidade para o pensamento ocidental, tão marcado pelo etnocentrismo. É preciso considerar, no entanto, que os estudos de caso clás- sicos da antropologia cultural, tais como o de Mead, foram reali- zados em sociedades simples, ou seja, pouco diferenciadas. Nas sociedadescomplexas contemporâneas, nas quais predomi- na o individualismo, podemos identificar uma ação da so- ciedade menos determinante na socialização das novas gerações e na reprodução das estruturas culturais (sim- bólicas) da sociedade. A visão de Margaret Mead se filia à tendência do interacionismo simbólico, que compreende os pro- cessos de construção do ser social sob a perspectiva do indivíduo, e não da sociedade (ao contrário do que propunha Durkheim, por exemplo). Nesse contexto, ela Teti ana Ma slo vsk a/S hu tte rst oc k Antropologia, educação e sociedade 41 propôs a socialização como processo que abrangeria a formação da identidade individual, ou seja, incluindo aspectos antes aborda- dos apenas pela Psicologia. A perspectiva do interacionismo simbólico uniu vários intelec- tuais, entre sociólogos, antropólogos, psicólogos, educadores etc., em torno do que se chamou como Escola de Chicago. Ela conside- rava que a socialização não seria apenas um processo de trans- missão e interiorização da cultura, mas também um processo de formação do ser social, de constituição da identidade pessoal, do “eu”, por meio da interação com o outro, na qual há o reconheci- mento de si mesmo e do outro, a incorporação de papéis sociais e a aprendizagem de modelos de conduta, so- bretudo por meio da linguagem, que pode promover a compreensão sobre o outro. Mead propôs que o jogo, ou a brincadeira, tem grande relevância na socialização das crianças, apontando que durante os primeiros anos da infância a socialização ocorre por meio de pro- cessos de observação e de imitação, ou seja, as crianças aprendem observando e imitando – muitas vezes inconscientemente – os comportamentos dos pais, dos familiares, como quando a criança brinca de “casinha” ou de boneca, imitando os comportamentos coti- dianos dos pais em seu meio social. Em uma segunda etapa da infância, a socialização ocorre por meio, por exemplo, de jogos em equipe, que possuem re- gras definidas que devem ser seguidas pelos jogado- res, tais quais as regras sociais. Nos primeiros anos, portanto, a interação ocorre de modo interpessoal; mais tarde, as condutas passam a ser definidas conforme as expectativas de um outro “genéri- co”, impessoal. Já na adolescência o processo de socialização teria fim, com a apropriação subje- tiva do “espírito da sociedade”, a partir do qual o indivíduo passa a ser reconhecido pelo grupo, identificando-se com os papéis sociais, aprendendo a desempenhá-los em sociedade. Yao inlo ve/ Sh utt ers toc k Ant on Kis hin ski y/S hu tte rst oc k 42 Antropologia e Sociologia da Educação Para a autora, o indivíduo socializado está em tensão constante, sempre pressionado por duas necessidades: An dr ew K ra so vit ck ii/ Sh ut te rs to ck D ra ze n Zi gi c/ Sh ut te rs to ck to m am as o liz zu l/s hu tte rs to ck A conformidade em relação aos padrões do grupo, necessária para que ele seja reconhecido como pertencente à comunidade. A necessidade de expressar sua subjetividade, escolhendo múltiplos papéis. O indivíduo é resultado da sociedade, mas simultaneamente aju- da a criá-la. Portanto, por mais forte que seja a socialização à qual ele se submete, ainda haveria, para Mead, espaço para a criatividade individual. As teorias de Mead sobre os papéis sociais influenciaram diversos antropólogos na concepção de suas teorias, bastante diversas entre si, como a teoria da ação de Talcott Parsons (1902-1979), os estudos sobre representação de Erving Goffman (1922-1982), as vertentes contempo- râneas interacionistas e fenomenologistas (interacionismo simbólico e etnometodologia), influindo também os trabalhos de sociólogos con- temporâneos como Habermas e Peter Berger, do qual trataremos a seguir. 2.2.2 Socialização e abordagem fenomenológica Para Berger e Luckmann (2014), o ser humano só existe a partir do momento em que ele é reconhecido como ser humano pelos outros seres humanos, o que explicaria o motivo de pessoas que não tiveram reconhecimento e afeto durante a infância se tornarem desumaniza- das, “selvagens”. O autor defende a importância de estudar não só os Antropologia, educação e sociedade 43 papéis sociais como também os grupos de referência. Para ele, uma criança só adquire respeito por si mesma se for respeitada pelos adul- tos; assim como, se for considerada “problemática” pelos adultos em seu entorno, se tornará efetivamente problemática. Ou seja, para os autores, o ambiente social no qual a criança vive é interiorizado pela criança por meio do processo de socialização (pro- cesso que ocorre também, em menor proporção, com indivíduos adul- tos que adentram um novo grupo social). É mediante o conceito de interiorização que Berger e Luckmann (2014) compreendem a manutenção dos controles sociais externos, pois é por meio da interiorização que a sociedade não apenas man- teria controle sobre as ações dos indivíduos, mas também modelaria suas identidades, pensamentos e sentimentos: “as estruturas sociais se tornam as estruturas de nossa consciência. A sociedade não para na superfície de nossa pele, ela nos penetra tanto quanto ela nos envolve, “[...] é com nossa colaboração que somos jogados no cativeiro” (BER- GER; LUCKMANN, 2014, p. 160). Essa concepção se filia à abordagem da fenomenologia e busca aliar o determinismo de Durkheim ao interacionismo simbólico de Mead. Em uma obra clássica sobre a socialização, A construção social da realidade, Berger e Luckmann (2014) buscam compreender a rela- ção entre indivíduo e sociedade sob perspectiva dialética, propondo a divisão da socialização em dois momentos: socialização primária, que torna o indivíduo um membro da sociedade; e a socialização secun- dária, constituída por uma série de processos contínuos ao longo da vida do indivíduo, por meio dos quais eles interiorizam papéis sociais, normas e representações sociais que lhes possibilitam atuar em cená- rios inéditos. Socialização primárializ an ic e/ sh utte rstock Desenvolvida principalmente por meio de instâncias de socialização como a família e a escola. Durante a infância, o indivíduo não possui ainda um repertório de vivências suficiente para julgar se o que estão lhe ensinando é verdadeiro ou válido. Desse modo, as crianças cos- tumam aceitar o que lhe é transmitido, crendo no que dizem e fazem Você concorda com a ideia de Berger e Luckmann de que a crian- ça só respeita a si mesma se for respeitada pelos adultos em seu entorno? Para refletir 44 Antropologia e Sociologia da Educação os que estão ao seu redor, sem contestá-los, o que é denominado de aprendizagem incondicional ou aprendizagem por imitação. Durante a socialização primária, a tendência é que o mundo apre- sentado à criança pelos adultos, sobretudo familiares, seja o único concebível. Os processos educativos chamados de processos formais acontecem na instância social da escola, e os informais costumam acontecer na família, entre amigos, vizinhos, mas também por meio de agentes ligados à cultura de massas, como a televisão e a internet. O modo particular de assimilação dos hábitos forma as diferentes cul- turas no tempo e no espaço, portanto os indivíduos criados em um contexto cultural e social específico são influenciados pelos hábitos, condutas, valores, crenças, práticas e normas característicos de tal contexto. Socialização secundárializ an ic e/ sh utte rstock Desenvolvida por meio de outras instâncias da sociedade. Para Berger e Luckmann, ocorre na fase adulta, quando os indivíduos têm contato com as instâncias do mundo do trabalho, as religiosas, as re- lacionadas à vizinhança, como associações comunitárias, clubes etc. Nelas, os indivíduos, que já são parte da estrutura social objetiva da so- ciedade, pois já passaram pela socialização primária, passam a apreen- der e incorporar novas práticas sociais, por vezes mais complexas, aprendendo a desempenhar novos papéis na sociedade e garantindosua adequação aos padrões vigentes e inserção social plena. Ao lon- go da socialização secundária os indivíduos percebem, em geral, que o que lhes foi apresentado na infância não é o único mundo existente, e que a realidade social é mais ampla, diversa e complexa. 2.2.3 Outras abordagens sobre socialização Outra abordagem contemporânea importante sobre a socialização é a do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que criou, para entender me- lhor tal processo, o conceito de habitus, um conjunto de princípios ex- plicativos, regras, padrões e modelos estéticos, éticos, morais, sociais que um indivíduo recebe de seus familiares, uma “gramática social” que cada pessoa obtém e reconhece como sua apenas pelo fato de ter nascido e integrar determinada família. Para Bourdieu é o habitus que Ea wp ixe l/S hu tte rs to ck orienta o percurso de cada indivíduo na sociedade, definindo seus gos- tos e seu modo de pensar e de participar socialmente, tendo estreito vínculo com a classe social de origem do indivíduo e de sua família. Em sua obra, escrita em parceria com Jean-Claude Passeron, A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, Pierre Bourdieu aponta que a educação escolar, enquanto processo de so- cialização, não é neutra, nem promove igualdade de oportunidades ou justiça social, mas, na verdade, reproduz as desigualdades, sobretudo de classes, pois transmite apenas determinados conhecimentos, carac- terísticos das classes dominantes, a chamada alta cultura, privilegiando os indivíduos que, por herança cultural, já incorporaram tais conheci- mentos como parte de seu habitus. Na obra, os autores demonstraram como o mecanismo pedagógico das escolas, aplicado ao processo de socialização escolar, privilegiava um conjunto de saberes que dava vantagens aos estudantes com nível socioeconômico maior, que já chegavam ao ambiente escolar com um capital cultural (complexo de conhecimentos e habilidades) que corres- pondia ao que era desenvolvido no currículo. No contexto da cultura digital em que vivemos, autores como François Dubet e Bernard Lahire têm realizado estudos sobre as novas práticas socializadoras e as novas instâncias de socialização, referindo-se aos processos próprios da sociedade atual, um espaço plural, de múltiplas re- ferências culturais e identitárias, que proporciona ao indivíduo tecer um sistema híbrido e complexo de sentidos para a atuação em sociedade. Segundo Lahire, temos testemunhado a emergência de novas prá- ticas e instâncias socializadoras, assim como de no- vas sociabilidades, formas de se relacionar socialmente, ligadas sobretudo à cultura de massas e às novas mídias, que não a família e a escola, que permitem di- ferentes experiências de socialização e contribuem para a construção de indivíduos mais plurais, capazes po- tencialmente de compreender outros modelos de cultura que não os viven- ciados nas comunidades de origem. Antropologia, educação e sociedadeAntropologia, educação e sociedade 4545 46 Antropologia e Sociologia da Educação Tal contexto, segundo Setton (2005), aponta para: [...] uma nova arquitetura das relações sociais, em que as ações educativas não se realizam apenas nos espaços institucionais tradicionais. Ao contrário, essa nova configuração cultural alerta para outras modalidades educativas, circunstanciando a particu- laridade do processo de socialização na contemporaneidade. E é nesse quadro que a nova ordem cultural impõe um impacto ao processo de construção da identidade e da subjetividade do indi- víduo nas formações sociais atuais. [...] as biografias individuais e coletivas contemporâneas, segundo essa perspectiva, não es- tariam mais definidas e traçadas apenas a partir de experiências próximas no tempo e no espaço, transmitidas pelos agentes tra- dicionais da educação. Ao contrário, poderiam ser influenciadas por modelos e referências produzidos e vividos em contextos sociais longínquos e/ou virtuais [...]” (SETTON, 2005, p. 346). Por outro lado, é função social da escola alertar para a acentuação exagerada da dimensão individual, para a personalização radical in- centivada pelo contexto contemporâneo, estimulando os laços sociais e culturais com a coletividade. A escola é uma instância fundamental para a socialização de crianças e adolescentes, e é preciso equilibrar a função socializadora da escola, de estabelecimento de um projeto comum de sociedade, de fomento à criação de vínculos com a comu- nidade e de construção de uma identidade coletiva, com a valorização das identidades individuais, para que os processos de socialização no contexto escolar não tomem um sentido uniformizador ou autoritário, que apague as individualidades e especificidades pessoais. CONSIDERAÇÕES FINAIS As abordagens antropológicas podem contribuir significativamente para analisar os universos culturais que integram tanto a instituição es- colar quanto seus contextos informais de educação e podem apoiar a investigação das relações entre indivíduo, cultura e sociedade, sobretudo no que tange aos processos de socialização de crianças e jovens, dos con- textos e dos processos de ensino e aprendizagem. A análise e a reflexão sobre os processos de socialização e aquisição cultural desenvolvidos por meio da Educação são ferramentas importantes para os educadores. Antropologia, educação e sociedade 47 ATIVIDADES Atividade 1 Quais são as diferenças entre evolucionismo social e funcionalismo? Atividade 2 Com base em sua experiência no contexto escolar, qual visão – determinista ou dialética – você considera predominante nos processos educativos? Atividade 3 De que modo a emergência de novas práticas e instâncias sociali- zadoras pode afetar a educação formal no contexto escolar? REFERÊNCIAS BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. DURKHEIM, E. Education et Sociologie. Paris: PUF, 1958. HALL, S. A identidade cultural da pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2006. KUPER, A. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002. LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. MEAD, M. Moeurs et sexualité en Océanie. Paris: Plon/Pocket, 2004. SETTON, M. G. J. A particularidade do processo de socialização contemporâneo. Tempo Social, v. 17, n. 2, p. 335-350, 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103- 20702005000200015. Acesso em: 10 nov. 2021. 48 Antropologia e Sociologia da Educação 3 Antropologia da Educação e formação docente A cultura e a capacidade de aprendizado ao longo da vida são caracte- rísticas dos seres humanos, e o conteúdo e a forma do que é aprendido dependem da cultura em que o indivíduo está inserido. Talvez more aí uma das intersecções entre a antropologia e a educação. Nesse sentido, o professor Carlos Brandão defende que o que nos torna humanos não é o fato de sermos racionais ou o fato de sermos políticos, mas sim nossa característica de seres aprendentes, ou seja, capazes de aprender (ICICT/ FIOCRUZ, 2019). Isso significa que nossas práticas simbólicas são criadas, aprendidas e transformadas pela comunidade, e são transmitidas de ge- ração em geração. É isso o que nos diferencia dos outros animais, que têm sua aprendizagem limitada pelo instinto e pela programação genética e não contam com a inventividade e a imaginação humanas. Rawpixel.com/Shutterstock É importante compreender os fundamentos antropológicos dos processos educacionais e do trabalho docente. 3.1 Antropologia Educacional Vídeo A Antropologia Educacional está voltada, atualmente, para a análi- se da construção do conhecimento contextualizado socialmente, bus- cando dar conta de sua complexidade e abordando fenômenos como as culturas escolares, a multiculturalidade e a interculturalidade, as diferentes constru- ções identitárias e de subjetividades, os mitos e ritos ligados ao trabalho docente e às relações na comuni- dade escolar, as práticas simbó- licas na escola, a cultura digital,entre outros temas relaciona- dos à diversidade cultural do contexto escolar. Compreender a antropo- logia educacional como perspectiva de análise sobre a educação na qualidade de prática simbólica, em suas dimen- sões culturais e ligadas às práticas docentes. Objetivo de aprendizagem Antropologia da Educação e formação docente 49 3.1.1 Origens da Antropologia Educacional Em meados do século XX, surgiu, na Alemanha, a Antropologia Educacional, que foi nomeada na teoria da área como Antropologia Educacional Alemã, caracterizada como um campo de pesquisa teórica e aplicada da ciência da educação. Na primeira fase, durante as décadas de 1950 e 1960, foram desenvolvidas abordagens ligadas à filosofia, à fenomenologia e pela chamada Antropologia Educacional Integrativa (WULF, 2005). Nessa etapa inicial, essa subárea, bastante recente da antropologia aplicada aos estudos educacionais, estava voltada principalmente para a abordagem da criança sob uma perspectiva herdada da filosofia: a de Homo educandus, isto é, preocupada com a educação da criança e sua vocação. Essa visão desconsiderava os contextos histórico-culturais da criança e focava na dependência dela com relação ao adulto, posiciona- mento teórico que acabava obscurecendo a importância da historicida- de das representações coletivas, as diversas possibilidades de análise das relações entre os seres humanos e os processos educacionais, como os de socialização, e mesmo as dinâmicas no interior do campo educacional e o papel de educadores e educandos nesse contexto. Porém, a vertente da Antropologia Educacional Filosófica não era a única na época. A linha da Antropologia Educacional Fenomenológica voltava-se para a análise dos fenômenos individuais da vida humana, como inconsequência, vergonha, decência, medo, experiência temporal e espacial, segurança, práticas, ambiente educativo etc., no sentido de compreender o ser humano tanto em sua totalidade quanto em suas especificidades. Já a Antropologia Educacional Integrativa dedicou-se a buscar respostas para os problemas de aprendizagem e de linguagem baseando-se em estudos individuais, mas ancorada em proposições teó- ricas bastante abstratas e genéricas sobre o universo educacional. Em uma segunda fase da Antropologia Educacional, que se esten- de da década de 1990 à atualidade e que acompanhou as dinâmicas teórico-metodológicas próprias ao campo dos estudos antropológicos, destacaram-se as vertentes da Antropologia Educacional Histórica e da Antropologia Educacional Histórico-Cultural. Estas eram voltadas para uma pedagogia crítica, fundamentada em paradigmas mais recentes das Ciências Humanas e Sociais, como as abordagens culturais e his- tóricas das diferenças entre os grupos humanos, que podem contri- O filósofo Cristoph Wulf é ligado às linhas da Antropologia Filosófica e Antropologia Histórica nos estudos da Educação de modo mais geral, não necessariamente aplicada ao contexto da escola, mas no livro Antropologia da educação ele relaciona tais linhas à Antropologia da Educação. WULF, C. (Coleção Educação em debate). Campinas: Editora Alínea, 2005. Livro 50 Antropologia e Sociologia da Educação buir para, no contexto da pesquisa educacional, subsidiar uma análise mais sistemática das várias dimensões da formação humana, incluindo a educação formal escolar (conforme apresentado na figura a seguir). Figura 1 Fases da Antropologia Educacional Antropologia Educacional Histórica Antropologia Educacional Histórico- -Cultural 2ª fase (década de 1990 à atualidade) Filosófica Integrativa Fenomenológica 1ª fase (décadas de 1950 e 1960 até anos 1980) Para Wulf (2005), ao relacionar questões educacionais com os di- versos paradigmas antropológicos – evolucionista, filosófico, histórico, cultural etc. –, vislumbra-se novos problemas e novas possibilidades de, na interface entre os campos da antropologia e da educação, inves- tigar temas como educação, aprendizagem, formação humana, ensino, socialização. Para o autor, a pedagogia não deve se limitar a um ponto de vista restrito sobre o ser humano em formação, mas adotar uma abordagem ampla que considere suas múltiplas facetas e potencialida- des, seus contextos sociais e culturais. Ele afirma que todo ator social da educação, seja educador ou ou- tro membro da comunidade escolar, tem suas ações de algum modo condicionadas por saberes antropológicos, conscientes ou não, e que a antropologia da educação deve analisar, organizar, reavaliar e produzir saber por meio das ciências da educação, garantindo a desconstrução dos conceitos da educação sob perspectiva antropológica. Sob outro ponto de vista, Gusmão (2016, p. 48) afirma: A antropologia, como ciência da modernidade, coloca seu aparato teórico construído no passado, com possibilidade de, no presen- te, explicar e compreender os intensos movimentos provocados pela globalização: de um lado, os processos homogeneizantes da ordem social mundial e, de outro, contrariando tal tendência, a Antropologia da Educação e formação docente 51 reivindicação das singularidades, apontando para a constituição da humanidade como una e diversa [...]. Nesse campo de tensão, defende-se que ora a trajetória da antropologia tem sido a de avaliar as diferenças sociais, étnicas e outras com a finalidade de proporcionar alternativas de intervenção sobre a realidade social de modo a não negar as diferenças [...]. No contexto desse debate, a análise das relações existentes entre antropologia, es- tudos culturais e educação apresenta-se como desafio teórico da modernidade e como uma necessidade diante dos princípios e das práticas presentes na articulação entre o campo científico e o processo educativo na sociedade moderna. Hoje, a Antropologia da Educação ou Educacional deixa o interesse na investigação do educando na qualidade de ser humano universal para estudá-lo como ser histórico, inserido em um contexto cultural e social, sob uma perspectiva crítica e reflexiva, a qual busca dar conta da com- plexidade da realidade educacional e de fenômenos próprios da contem- poraneidade que penetram os muros da escola – a diversidade cultural e as novas relações com o saber proporcionadas pelas tecnologias, por exemplo. Nesse cenário, é fundamental compreender os fundamentos antropológicos dos processos educacionais e do trabalho docente e reconhecer as práticas simbólicas e as múltiplas culturas na escola. No artigo Antropologia, estudos culturais e educação: desafios da modernidade, a autora Neusa Maria Mendes Gusmão aborda a questão da diversidade e do contato cultural presentes na realidade social atual e os debates sobre a produção do conhecimento nesse contexto por meio das relações entre antropologia, estudos culturais e educação. Acesso em: 15 dez. 2021. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643455 Artigo 3.2 A educação como prática simbólica Vídeo Aspectos fundamentais para se pensar os processos educativos e o trabalho docente sob perspectiva antropológica são as práticas simbó- licas das comunidades escolares, as culturas escolares e as construções identitárias que atravessam os processos de aprendizagem e de so- cialização desenvolvidos na escola, bem como perpassam as relações que os docentes estabelecem com as instituições nas quais atuam, com seus pares, com os alunos e suas famílias, com seu próprio conheci- mento e com os saberes e práticas culturais locais. Entender as dimensões simbólicas das práticas educativas. Objetivo de aprendizagem 52 Antropologia e Sociologia da Educação A educação, tanto na escola quanto em outros espaços, é tecida por um conjunto de práticas simbólicas inerentes ao ser humano. E como tal, essas práticas também são objeto da antropologia, que pode con- tribuir para sua compreensão mais ampla. Há uma dimensão cultural na organização escolar, assim como em qualquer área ou instituição da vida social. É nessa dimensão quesão realizadas as práticas simbólicas, que precisam ser compreendidas, pois, como quaisquer outros aspectos do imaginário e da cultura, elas influenciam a realidade e as relações sociais e, especificamente nesse caso, intervêm na dinâmica interna da escola, reproduzindo ou trans- formando as práticas sociais correntes. Figura 2 Reunião escolar Ed ua rd o Câ m ar a Li m a/ W ik im ed ia C om m on s Escola estadual de Pernambuco que é adepta da gestão democrática e participativa. Cada instituição escolar tem seus mitos e ritos, que contribuem para a formação das identidades docentes e discentes e fazem parte da cultura escolar. Alguns deles são comuns a determinados tipos de instituição, a épocas ou regiões específicas. As reuniões dos profissio- nais da escola com as famílias dos alunos, que no passado eram cha- madas de reuniões de pais ou reuniões de pais e mestres, são exemplos de rito presente na quase totalidade das instituições escolares, embora em cada uma delas seja organizada e realizada de maneira diferente, assumindo significados diferentes para a comunidade escolar. Em al- gumas, as famílias são convidadas a participar da gestão escolar sob Antropologia da Educação e formação docente 53 perspectivas democráticas; em outras, as reuniões não chegam a cons- tituir um verdadeiro espaço de participação. Mas o que são ritos ou rituais sob a visão antropológica? Sabemos que cada perspectiva teórica, cada autor, compreende de modo diferente esses conceitos, então vamos conhecer as visões de alguns antropólogos sobre mitos e ritos. 3.2.1 Ritos, mitos e identidades docentes Alinhado ao funcionalismo na antropologia, para Malinowski (2018), o ritual desempenha função de integração social, auxiliando na preser- vação da cultura e da sociedade, principalmente em face dos conflitos, mantendo a coesão e o sentido de pertencimento ao coletivo. Figura 3 Bronisław Malinowski Ch ic kS R/ W ik im ed ia C om m on s Malinowski pesquisando os habitantes das Ilhas Trobriand, no Pacífico Ocidental, 1928. A manutenção e reprodução de determinados mitos, ritos e práticas simbólicas muitas vezes permeia os saberes e fazeres docentes e suas relações com os estudantes. Um exemplo de pequenos rituais da exis- tência cotidiana escolar está presente no depoimento de uma profes- sora da Escola Normal Júlia Kubitscheck, no Rio de Janeiro, coletado no contexto de uma pesquisa da área de Antropologia da Educação que investigava a dimensão simbólico-cultural da escola: O ritual de chegar na escola, entrar na coordenação, este ser o ponto de congraçamento, o prédio bonito, o quadro bonito, o quadro de avisos na sala dos professores com as datas dos aniversários… são essas as formas simbólicas que fazem a 54 Antropologia e Sociologia da Educação humanidade. Outros pontos também são significativos – mesi- nha do aluno no pátio, os bancos do pátio, o buraco embaixo da escada que é ponto de encontro das alunas, esses símbolos es- colares são os nossos cantos. Esse contato humano que a gente sente falta é que faz o espírito da escola, a sua estrutura está aí, nas relações que você estabelece. A escola não está só na sala de aula, ela está também nesses pequenos lugares – a busca da qualidade humana que as escolas precisam ter. Esses ritos se- guram o “status quo” do Júlia, baluarte da resistência. - Glaucia, professora. (CHAVES, 2013, p. 26.367) No depoimento, a professora afirma que a escola em que atua é um “baluarte da resistência”, ou seja, representa a tentativa de manuten- ção de certos ritos, mitos e práticas tradicionais das Escolas Normais, no sentido de preservar sua função e relevância social. No depoimento podemos identificar rituais e espaços simbólicos da escola, relaciona- dos a práticas recorrentes de alunos e professores e parte integrante da construção da identidade de docentes e estudantes, que se reco- nhecem como pertencentes a um grupo cultural único, com um status também único, com o qual se identificam. As Escolas Normais surgiram em meados do século XIX, mas se consolidaram como centros formadores para o magistério cerca de um século depois, entrando em declínio a partir da década de 1970, com as modificações na legislação educacional. Uma das mais prestigiadas do país era o Instituto de Educa- ção do Rio de Janeiro. Curiosidade M oa ci r X im en es /W ik im ed ia C om m on s Escola Normal do Piauí no ano de 1912. A placa era um símbolo de prestígio para as formandas e para a escola e reconhecido pela comunidade na época. Figura 4 Placa de colação de grau em magistério Na mesma pesquisa, outros depoimentos apontam para o resgate simbólico de um certo prestígio que as escolas públicas, em especial as Escolas Normais, ti- nham no passado: A escola estadual tinha um certo orgulho e o aluno tinha também, orgulho de ter passado por ela. O ensino público foi se perdendo. A Escola Normal por algum motivo, não sei, man- tém muitos rituais, tenta manter a continuidade desse orgulho. As alunas conservam o seu uni- forme azul e branco, os hinos… tentam, enfim, se agarrar a algum mito. – Lucas, professor. (CHAVES, 2013, p. 26.366) No depoimento podemos perceber que as práticas simbólicas, os rituais (como o uso de uniformes carac- terísticos e o canto de hinos etc.) atualizam os mitos ligados à tradição das Escolas Normais como centros de excelência, aos quais estudantes – sobretudo alu- nas – e professores tinham orgulho de pertencer, e que ajudam a construir sua identidade coletiva. Antropologia da Educação e formação docente 55 Em seu estudo histórico sobre normalistas de uma escola do subúr- bio do Rio de Janeiro, Lima (2015, p. 35) destaca a construção de identi- dade coletiva com base em práticas simbólicas perpetuadas na escola: Como se deu então a construção dessa identidade? [...] os indi- víduos interiorizam o conjunto das trajetórias do grupo, crian- do um referencial próprio relacionado à instituição, ao local, às pessoas que conviveram com eles. Nesse caso, os alunos, como veremos mais adiante, identificaram-se com as suas próprias construções (uniforme, símbolo, postura e comunidade). Lopes (2006) reforça a ideia do prestígio social advindo do capital simbólico atribuído à Escolas Normais no passado: “O mito dos anos dourados do Instituto de educação foi construído a partir da crença no capital simbólico fornecido pela instituição, pois, além do título de reconhecido prestígio, ainda possibilitava o acesso ao ensino superior” (LOPES, 1999). Se pensarmos no “mito” das Escolas Normais como representação de excelência educacional e do acesso ao prestígio social no passado, mas que continua sendo atualizado por ritos e outras práticas simbó- licas em instituições desse tipo ainda em funcionamento, podemos identificar a ideia de Mircea Eliade, um dos mais conhecidos mitólogos, de que a função fundamental do mito é fixar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: alimentação, se- xualidade, trabalho, educação etc. E o ser humano, comportando-se como indivíduo plenamente responsável, imita os gestos exemplares expressos no mito (ELIADE, 1972). Para outro antropólogo, Clifford Geertz, um dos fundadores da An- tropologia Interpretativa, o ritual não tem a mesma natureza do pensa- mento racional, científico, pois constitui-se de ações simbólicas, ligadas ao imaginário, como as expressões artísticas e religiosas. Em sua obra A interpretação das culturas, Geertz defende, para a análise de práti- cas simbólicas, o método etnográfico, de caráter interpretativo, como o mais adequado e destaca que a cultura é um emaranhado de sig- nificados que cada grupo humano tece, portanto apenas a busca dos significados dessa teia é o caminho para compreendê-la. Se pensarmos na teia complexa de significados das práticas simbóli- cas, mitos e ritos característicos de cada contexto escolar, veremos que Geertz pode ter razão quando afirma que, para estudaruma “multipli- cidade de estruturas conceituais complexas, sobrepostas e amarradas 56 Antropologia e Sociologia da Educação que são ao mesmo tempo estranhas, irregulares e inexplícitas” (GEERTZ, 2008, p. 7), é preciso primeiro compreendê-las para depois conseguir explicá-las. Os estudos etnográficos sobre a escola partem, então, da seguinte questão: Qual é a importância e o que está sendo transmitido com uma determinada ação observada na escola (seja um ato isolado ou um ritual recorrente)? Ao interpretar os significados da ação, não se deve reduzi-la a um padrão de comportamento de determinado grupo da escola, mas con- siderá-la parte de uma cultura, buscando compreender o contexto cul- tural da ação como um sistema de significados entrelaçados, uma rede complexa, que, no entanto, pode ser interpretada, ordenada e explica- da e tem um sentido para a vida das pessoas que atuam e se relacio- nam na escola. Nesse sentido, observemos um caso de organização dos espaços escolares como o retratado na imagem a seguir, semelhante ao mo- delo de organização da sala de aula do Grupo Escolar 1 , adotado no Brasil no passado e predominante nos anos escolares que atualmente chamamos de Ensino Fundamental. Figura 5 Exemplo de sala de aula tradicional Ev er et t C ol ec io na /S hu tte rs to ck Grupo Escolar era um modelo de organização escolar resultante da clas- sificação dos estudantes em níveis de conhecimen- to e seu agrupamento em turmas relativamente homogêneas, as classes seriadas. Atualmente, a seriação é feita com base na faixa etária. 1 Nesse modelo, o professor ministrava a aula de cima de uma plataforma em um nível mais alto que as carteiras dos estudantes, tendo uma mesa de trabalho e um quadro de giz, muitas vezes o único recurso didático disponível e usado para que os alunos pudessem copiar conteúdos didáticos. Antropologia da Educação e formação docente 57 A simbologia presente na configuração de sala de aula está ligada a uma suposta superioridade e autoridade do professor em relação aos estudantes, calcada na noção de que o professor é detentor de todo o conhecimento e o aluno nada sabe, sendo o processo educacional cen- trado no professor e no ensino, não na aprendizagem e no estudante. Essa representação do imaginário, predominante na cultura escolar no passado, ainda permanece viva em práticas simbólicas que permeiam os processos educativos atuais e que passam pela transmissão e repro- dução de conhecimentos e pela adoção de metodologias pedagógicas tecnicistas, que se baseiam na aprendizagem mecânica, na memoriza- ção de conteúdo e na centralidade do professor no processo de ensino e aprendizagem. Geertz, em seus estudos antropológicos, sobretudo sobre religiões, estabeleceu um paradigma sobre os símbolos que envolvia dois concei- tos basilares para sua teoria: Teoria de Geertz Ethos Os símbolos/sagrados (imagens sagradas, rituais da liturgia etc. em um contexto religioso, assim como os símbolos ligados a objetos, espaços, rituais e práticas, como uniformes, hinos, rituais de formatura etc.), em um contexto escolar sintetizam o ethos de um grupo, comunidade etc. Visão de mundo A visão de mundo de um grupo ou de uma comunidade ordena a vida e liga o estilo de vida pessoal à visão de mundo coletiva e mais ampla. Para o autor, o sentido de símbolo é “objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como veículo a uma concepção – a con- cepção é o ‘significado do símbolo’” (GEERTZ, 2008, p. 67-68), e os sis- temas de símbolos são chamados de padrões culturais, que oferecem os modelos para os processos sociais e psicológicos que formatam o comportamento coletivo. Sob esse prisma e aplicando as noções de Geertz ao contexto educacional, o complexo de símbolos presente na cultura de uma escola é um modelo da realidade, uma concepção geral de como tudo deve funcionar, mas também um modelo para a realida- de, no sentido de estabelecer padrões de comportamento, disposições mentais dos membros da comunidade escolar. ethos: conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (ins- tituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, ideias ou crenças), característi- cos de uma determinada coletividade, época ou região. Glossário 58 Antropologia e Sociologia da Educação No caso do modelo de sala de aula de Grupo Escolar que vimos anteriormente, mesmo que o modelo de realidade tenha desapareci- do – ou seja, não haja mais um pequeno “palco” elevado na sala para o professor ministrar sua aula –, resta o modelo para a realidade, para formatá-la, perpetuando padrões de comportamento, disposições mentais relacionadas à simbologia do lugar elevado do professor, uma suposta superioridade e centralidade docente no processo de ensino-aprendizagem. 3.2.2 Culturas escolares e diversidade Cultura escolar pode ser compreendida como uma rede de signifi- cados compartilhados pelos atores sociais que se relacionam e atuam na construção do cotidiano escolar. As culturas escolares, com suas facetas – tanto materiais e racionais quanto imateriais, simbólicas –, estão sempre em transformação e transpassam os saberes e fazeres docentes. As escolas têm culturas diversas, a depender do seu contexto local e dos grupos que nela convivem, e a diversidade cultural está pre- sente na maior parte das comunidades escolares. As escolas têm culturas diversas, a depender do seu contexto local e dos grupos que nela convivem. M ie w S/ Sh ut te rs to ck ES B Pr of es si on al /S hu tte rs to ck F el ix L ip ov /S ch ut te rs to ck Go ro de nk of f/ Sh ut te rs to ck Antropologia da Educação e formação docente 59 As culturas escolares têm suas especificidades e, conforme Nóvoa (1991), as sociedades humanas reproduzem as características e as nor- mas culturais da vida coletiva do grupo por meio de uma espécie de impregnação cultural. Confrontado desde o seu nascimento com uma herança cultural e com um universo simbólico preciso, o ser humano procedia à sua integração no grupo com base em trocas e convivências cotidianas, por meio de um “viver com”. A escola, sob essa perspectiva, é um lócus de integração entre os indivíduos, mas também de confron- to entre diferentes universos simbólicos e heranças culturais. No contexto das relações sociais que envolvem estratificação social, cultura, identidade, gênero, entre outros, a diversidade é uma constan- te. A diversidade cultural, especificamente, abrange as variações das práticas e dos comportamentos humanos e vai além dos elementos integrantes da cultura de determinado grupo social. As variações culturais, por sua vez, relacionam-se à construção das diferentes características que compõem as identidades sociais. As dife- renças culturais estão presentes também no cotidiano escolar, mas não apenas nele; estão presentes, ainda, em todos os outros espaços sociais. É preciso refletir sobre o modo como tratamos as diferenças, pois elas interferem nas relações educativas, nas relações de aprendizagem e de socialização, tanto dentro quanto fora das instituições escolares. Assim como na sociedade em geral, a escola é um espaço onde con- vivem diferentes culturas, com diferentes valores, práticas e redes de significados que influenciam o modo como os indivíduos se relacionam no meio escolar. A escola não pode ser refratária aos contextos cultu- rais do seu entorno, nem negar, invalidar ou privilegiar determinadas culturas, identidades e grupos, o que se configura como intolerância, preconceito e discriminação. As diferenças étnico-raciais, de gênero, socioeconômicas, de reli- gião, de orientação sexual, de origem (por exemplo, nacionalidade) e tantas outras trazem questões importantes para o trabalho docente, pois é preciso compreender e respeitar essas diversas identidades e suas relações de pertencimento a diversos contextos culturais externos à escola, incorporando-as à cultura escolar. A educação escolar,por vezes, acaba impregnando-se de noções provenientes do senso comum que classificam determinados grupos, suas características e práticas simbólicas, como “piores” ou “melhores” que outros, “mais aceitáveis” ou “menos aceitáveis”. Essa perspectiva está presente tanto nas relações de conflito na escola quanto em situa- ções nas quais o preconceito e a intolerância relacionados às diferen- ças culturais aparecem de maneira velada. Lembremos que os temas da pluralidade cultural e do respeito às diferenças são reconhecidos e tratados no âmbito da Educação Básica desde a década de 1990, época em que foram lançados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que traziam a necessidade de atender, na escola, ao: conhecimento e à valorização das características étnicas e cultu- rais dos diferentes grupos sociais que convivem no território na- cional, às desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a socieda- de brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal. (BRASIL, 1997, p. 19) Apesar disso, ainda se mantêm na escola e na sociedade represen- tações preconceituosas que, por sua vez, orientam condutas reproduzi- das socialmente, incluindo os comportamentos dos docentes, os quais, por vezes, sem perceber, reproduzem essas representações discrimi- natórias tão naturalizadas, perdendo a oportunidade de ter uma ação educativa em uma situação que expõe as diferenças e desigualdades. Em reforço a essas condutas, temos os discursos daqueles que disse- minam uma interpretação da realidade social e cultural brasileira fun- dada em mitos como o da democracia racial e o da homogeneidade cultural, com a intenção de negar ou diluir as diferenças, escondendo as expressões do racismo, continuamente difusas na sociedade. 6060 Antropologia e Sociologia da EducaçãoAntropologia e Sociologia da Educação ni m ito /S hu tte rs to ck Antropologia da Educação e formação docenteAntropologia da Educação e formação docente 6161 Ra wp ixe l.c om /S hu tte rs to ck que outros, “mais aceitáveis” ou “menos aceitáveis”. Essa perspectiva está presente tanto nas relações de conflito na escola quanto em situa- ções nas quais o preconceito e a intolerância relacionados às diferen- ças culturais aparecem de maneira velada. Lembremos que os temas da pluralidade cultural e do respeito às diferenças são reconhecidos e tratados no âmbito da Educação Básica desde a década de 1990, época em que foram lançados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que traziam a necessidade de atender, na escola, ao: conhecimento e à valorização das características étnicas e cultu- rais dos diferentes grupos sociais que convivem no território na- cional, às desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a socieda- de brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal. (BRASIL, 1997, p. 19) Apesar disso, ainda se mantêm na escola e na sociedade represen- tações preconceituosas que, por sua vez, orientam condutas reproduzi- das socialmente, incluindo os comportamentos dos docentes, os quais, por vezes, sem perceber, reproduzem essas representações discrimi- natórias tão naturalizadas, perdendo a oportunidade de ter uma ação educativa em uma situação que expõe as diferenças e desigualdades. Em reforço a essas condutas, temos os discursos daqueles que disse- minam uma interpretação da realidade social e cultural brasileira fun- dada em mitos como o da democracia racial e o da homogeneidade cultural, com a intenção de negar ou diluir as diferenças, escondendo as expressões do racismo, continuamente difusas na sociedade. 6060 Antropologia e Sociologia da EducaçãoAntropologia e Sociologia da Educação ni m ito /S hu tte rs to ck Na escola, e sobretudo na atuação docente, esses mitos acabam fortalecendo as mentalidades e atitudes que buscam se eximir de reali- zar uma intervenção educativa em situações cotidianas de intolerância e desrespeito à diversidade, seja por receio de “levantar polêmicas” na escola ou porque os educadores se percebem sem preparo ou recursos adequados para enfrentar situações de discriminação e preconceito. Em uma perspectiva mais ampla da Educação, temos uma visão tra- dicional, histórica, do que se espera previamente como “desempenho escolar médio” dos estudantes, tanto com relação ao conteúdo escolar quanto ao comportamento, o que dificulta a flexibilidade no que se refe- re às diferenças e desigualdades culturais no contexto escolar. Embora frequentemente se defenda na escola, por meio do discurso formal, o multiculturalismo e o interculturalismo, o respeito e a tolerância às diver- sas culturas, as práticas cotidianas às vezes apontam para outra direção. Uma postura de reconhecimento e respeito à diversidade cultural depende de se evitar a perspectiva etnocêntrica – que considera os va- lores, as características, crenças e práticas do próprio grupo como o único válido ou correto – e passa pela compreensão e aplicação prática das noções ligadas, por exemplo, ao multiculturalismo, que é centra- do na necessidade de garantir o reconhecimento das diferenças que existem entre as pessoas e os grupos sociais, assegurando a represen- tação das culturas minoritárias e suas especificidades; bem como ao interculturalismo, que tenta promover a interação de culturas diversas, reconhecendo e compreendendo também a própria cultura, que se en- riquece por meio do diálogo com outras. Uma postura de reconhecimento e respeito à diversidade cultural depende de se evitar a perspectiva etnocêntrica. 62 Antropologia e Sociologia da Educação Uma formação educacional voltada para o respeito pleno à diver- sidade cultural dentro e fora da escola precisa atribuir novos significa- dos ao outro, novas formas de estabelecer relações harmoniosas, sem pré-julgamentos, discriminação, exclusão e violência. A violência sim- bólica na escola é um dos temas conhecidos da pesquisa antropológica e sociológica no contexto escolar, e foi estudada por Pierre Bourdieu, que apontou, com base em pesquisas de campo, que os professores, inconscientemente, valorizam os estudantes que seguem o que é espe- rado por eles, os valores, os padrões de comportamento e as normas da escola, pressupondo determinados conhecimentos e competên- cias aceitos como “naturais”, mas que, na verdade, foram adquiridos na esfera familiar e social da criança, em seus contextos culturais de aprendizagem, pois são característicos de determinados grupos so- ciais e culturais. Isso faz com que os comportamentos dos outros estudantes sejam tomados como inadequados, errados, não esperados, problemáticos, sem que se perceba que esses estudantes não trazem o capital sim- bólico valorizado pela escola porque têm uma origem familiar ligada a outra cultura, a outros valores e comportamentos. Para Bourdieu (2015), trata-se de uma agressão simbólica legitimada cotidianamente na escola e que acaba sendo reprodutora do privilégio de determinadas classes sociais, da sua cultura e das suas práticas sim- bólicas, excluindo os demais estudantes. Para, de maneira consciente, evitar essa reprodução, os educadores precisam buscar uma postura democrática e aberta, evitando julgar o que é diferente de si mesmo com base nas lentes dos seus próprios padrões, valores e crenças, valorizando os contextos culturais, as identidades e as subjetividades dos estudantes e incluindo-os não só nos processos de ensino-aprendizagem, mas na cultura escolar, que deve ser construída coletivamente por meio de um diálogo verdadeiro e uma troca enriquecedora entre diversidades. 3.3 Pesquisa em Antropologia da Educação Vídeo Até o fim da década de 1970, as pesquisas sobre a escola e a sala de aula objetivavam registrar e analisar os comportamentos de docentes e discentesem contextos de interação, utilizando bases teórico-meto- dológicas ligadas à psicologia, sobretudo à linha behaviorista (compor- tamental). Esses estudos, nomeados à época de análises de interação, Sugerimos que você assista ao filme francês Entre os muros da escola, de 2008, adaptação do livro de mesmo nome e que mostra situações de sala de aula bastante alusivas a vários dos temas tratados nesta seção, como a diversida- de cultural na escola e os diferentes contextos de aprendizagem dos estudantes, as práticas simbólicas na escola e as identidades docentes muitas vezes marcadas pela violência simbólica. Direção: Laurent Cantet. França: Haut et Court, 2008. Filme Antropologia da Educação e formação docente 63 preocupavam-se com as relações entre professores e estudantes e com aspectos da formação docente. Entre 1970 e 1980, surgiram críticas a esse tipo de estudo no meio acadêmico (DELAMONT; HAMILTON, 1976). Elas alegavam que a me- todologia dessas pesquisas reduzia os comportamentos em sala de aula a unidades que pudessem ser quantificadas, tabuladas e medi- das, e acabavam não contribuindo em nada para a compreensão dos processos de ensino-aprendizagem ou para a análise do contexto es- colar. Isso porque os instrumentos desse tipo de pesquisa desconsi- deram completamente os contextos espacial e temporal em que os comportamentos se davam e apenas registravam o que era observa- do “objetivamente” (por exemplo: “3 alunos abandonaram a escola”; “o professor chamou a atenção de um aluno 2 vezes” etc.), sempre se guiando por categorias preestabelecidas, o que empobrecia bastante a interpretação da realidade complexa da sala de aula. As críticas apontavam ainda que, no esforço de recolher grande vo- lume de dados para que se pudesse fazer uma análise estatística, os comportamentos eram “rotulados” e categorizados artificialmente (por exemplo, com “comportamentos cognitivos” separados de “comporta- mentos afetivos”, separação que não ocorre na realidade das relações na escola) e passavam a representar unidades mensuráveis sem muito significado. Em resumo, os números valiam mais do que a interpreta- ção do conteúdo das interações. Po p- Th ai la nd /S hu tte rs to ck Um dos objetos de pesquisa mais estudados na educação é a evasão escolar. Ter uma visão geral sobre as abordagens, os métodos e as técnicas predominantes na pes- quisa em Antropologia da Educação. Objetivo de aprendizagem 64 Antropologia e Sociologia da Educação Com base nessas críticas, fortaleceu-se a ideia de que os métodos e as abordagens da antropologia poderiam ser mais adequados e úteis para os estudos da realidade escolar, já que todas as interações que acontecem em sala são perpassadas por múltiplos significados, os quais precisam ser interpretados pelo pesquisador na sua complexi- dade e fazem sentido naquele determinado universo cultural, universo esse que precisa ser compreendido pelo pesquisador. Para isso, o método etnográfico 2 parece bastante adequado, pois é de natureza qualitativa e usa a observação participante, em que o pesquisador observa as dinâmicas e situações na escola – seu campo de pesquisa –, faz registros de campo com o que observou e, com suas impressões, realiza entrevistas, analisa documentos da escola (escritos, visuais, sonoros etc.) na busca por compreender os significados que o próprio grupo estudado dá às suas interações, práticas, entre outros. A intenção, portanto, não é descrever minuciosamente, quantificar ou generalizar resultados, mas compreender determinada cultura – no caso, a escolar. São dessa mesma época os estudos sobre evasão escolar, que con- sideravam esse fenômeno sob duas perspectivas diferentes: causado por fracasso individual dos estudantes, por fatores liga- dos às suas incapacidades, falta de motivação pessoal etc.; ocasionado pelo sistema socioeconômico, que selecionaria alu- nos vindos de contextos culturais privilegiados, ignorando os provenientes de contextos culturais de aprendizagem caracteri- zados por “privação cultural” – falta de acesso a qualquer estímu- lo cognitivo ou socioemocional. Mais tarde, os estudos sobre evasão escolar passaram a considerar uma outra causa: o fracasso da escola em facilitar o processo de aprendizagem a todos os alunos, em suas necessidades e especificidades. Com o passar do tempo, a abordagem etnográfica foi gradativa- mente sendo mais e mais aplicada aos estudos da área da educação, incluindo a área de avaliação curricular, na qual originou a chamada abordagem iluminativa, de caráter socioantropológico e propondo que se considerem os contextos específicos das práticas escolares, as di- mensões culturais, sociais e institucionais, bem como as concepções de todos os envolvidos na conjuntura avaliada. O método etnográfico costuma utilizar a obser- vação participante, que é uma técnica de pesquisa antropológica realizada por meio da inserção do pesquisador no interior do grupo observado, no sentido de tornar-se parte dele e interagir por muito tempo com os sujeitos do grupo, compartilhando do seu cotidiano e tentando entender o significado da visão de mundo do grupo. 2 Antropologia da Educação e formação docente 65 A partir da década de 1980, os estudos etnográficos em educação tornaram-se presentes nas pesquisas acadêmicas, que se voltavam para a descrição das atividades e vivências em sala de aula, para as relações cotidianas estabelecidas entre professores e estudantes e para as repre- sentações dos atores sociais que interagem na comunidade escolar. Se precisarmos sintetizar em uma expressão o objetivo da pesqui- sa etnográfica em educação, poderíamos usar “compreender de den- tro” (ESTEBAN, 2010, p. 163-164) os fenômenos educacionais, ou seja, entendê-los com base no que os próprios atores participantes das si- tuações e interações ocorridas na escola percebem sobre elas, do signi- ficado que eles atribuem ao que ocorre na realidade escolar ou da sala de aula, permitindo um conhecimento mais profundo e mais realista dos fenômenos educacionais e viabilizando decisões e intervenções no contexto escolar. É preciso destacar, porém, que a etnografia, quando aplicada à edu- cação, não é exatamente a mesma aplicada aos estudos antropológi- cos, como alertam Lüdke e Meda (1986). Os autores esclarecem que, quando transferida para a área da Educação, a etnografia passou por adaptações aos novos objetos. Enquanto nas pesquisas da área de an- tropologia a preocupação é a descrição da cultura de um grupo social, o interesse primordial dos pesquisadores em educação é o processo educativo, o que torna desnecessário algo crucial nos estudos antro- pológicos: permanecer por longo tempo em campo, em contato com a outra cultura. Tais pesquisas, quando no âmbito educacional, são do tipo etnográfico, e não efetivamente etnográficas, podendo ser reco- nhecidas quando, ao se verificarem os resultados da pesquisa, é possí- vel interpretar o que ocorre no grupo estudado tal qual as pessoas do próprio grupo fariam. É interessante ressaltar, ainda, que o termo etnografia, a descrição cultural, tem dois sentidos possíveis no contexto da antropologia: o pri- meiro ligado às técnicas de coleta de dados sobre práticas, crenças, valores, hábitos e comportamentos de um grupo social; e o segundo significando o relato (escrito) resultante da aplicação dessas técnicas de pesquisa. Borges e Castro, em seu artigo A Etnografia da escola (2019), des- tacam que, para Hall (1997), a escola é um lócus de convergência de discursos da vida social, funcionando como instituição cultural e, sob a 66 Antropologia e Sociologia da Educação uma perspectiva pós-colonial, instituição de dimensões culturais interli- gadas – globalização, transformações da vida local e cotidiana, relação entre identidades e subjetividades –, e é também o lugar de um conhe- cimento sui generis, que não se confunde com nenhum outro (BORGES; CASTRO, 2019, p. 407). Os autores complementamsua perspectiva sobre a dimensão cultural do conhecimento escolar: trata-se de um conhecimento selecionado a partir de uma cul- tura social mais ampla, que passa por um processo de trans- posição didática, ao mesmo tempo que é disciplinarizado; e, também, podemos entender que se constitui no embate com os demais saberes sociais, diferenciando-se dos mesmos. Em sín- tese, o conhecimento escolar define-se em relação aos demais saberes sociais, seja o conhecimento científico, o conhecimento cotidiano ou os saberes populares. No sentido de aprofundar a compreensão da contribuição da etno- grafia para o estudo crítico dos fenômenos que ocorrem no contexto escolar, os autores destacam, ainda, a perspectiva de André (1995, p. 41): (o uso da etnografia possibilita ao pesquisador) entender como se processam os mecanismos de dominação e de resistência, de opressão e de contestação ao mesmo tempo em que são veicu- lados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores, crenças, modos de ver e de sentir a realidade e o mundo. Além das dimensões levantadas por Borges e Castro (2019), mais recentemente têm emergido questões críticas relacionadas a outros aspectos, por exemplo, o binômio conhecimento/poder, centrado em questões como: Quem produz o conhecimento? Com quais intenções? Atendendo a quais interesses ou finalidades? Para ser usado de qual modo? Assim como questões ligadas à contestação do mito da neutralida- de do pesquisador, que, na realidade, não tem como ser neutro porque carrega em si sua história, seu contexto social e cultural, seus valores e crenças, entre outros aspectos, e acaba imprimindo traços desses fil- tros com que enxerga o mundo em sua pesquisa. Antropologia da Educação e formação docente 67 Outra tendência mais recente das pesquisas etnográficas na escola é a redução da distância entre pesquisador e pesquisados, na busca por estabelecer uma dinâmica colaborativa e um diálogo livre entre as duas partes da pesquisa, fugindo das relações de poder tradicional, o que representa uma postura essencial para a transformação da escola em um espaço emancipador. É importante ressaltar, também, a aten- ção que se dá atualmente ao modo como os resultados das pesquisas poderão impactar positivamente ou ser de algum modo úteis para o grupo pesquisado. Erickson (1993) sinaliza quatro tendências que ganharam força nas últimas décadas na etnografia em Educação: tornar mais explícitas as fontes ou os pontos de apoio das interpretações; usar a microetnografia; envolver cada vez mais o professor no processo de pesquisa; utilizar arquivos interativos em uma rede de comunicação e de troca de informações por computador. Em resumo, a primeira tendência refere-se a tornar o material coletado nos estudos etnográficos o mais público possível. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio da inserção de descrições minucio- sas (vinhetas narrativas) dos lugares, das pessoas e das situações ob- servadas, incluindo falas e ações dos envolvidos, além de entrevistas, depoimentos e diversos documentos explicando quais foram os dados coletados em campo e quais foram as interpretações ou opiniões do pesquisador, esclarecendo onde, como e quando cada conjunto de da- dos foi coletado. Pode-se, ainda, dar acesso à diversidade de impres- sões coletadas, revelando todo o protocolo de produção do relatório etnográfico e justificando todas as escolhas teórico-metodológicas fei- tas ao longo da pesquisa. O uso da microetnografia ou da microanálise, citadas como uma segunda tendência, relaciona-se ao uso do vídeo como fonte primária, que muda o foco da pesquisa de “o que ocorre” para “como ocorre”. O relatório etnográfico passa a ser, então, uma transcrição do vídeo (ape- sar de o próprio vídeo poder se constituir em relatório da pesquisa), bem como sua análise e interpretação, que serão tornadas públicas. Somadas às anotações de campo, as interpretações sobre o vídeo po- dem tornar as análises mais consistentes. 68 Antropologia e Sociologia da Educação Como terceira tendência, é apontada a crescente aproximação do pesquisador (sujeito da pesquisa) com o grupo pesquisado (obje- to da pesquisa). Nesse movimento de aproximação, podem ser incluí- dos vários tipos de pesquisa-ação sobre a sala de aula e o trabalho docente, organizadas de diversas formas, por exemplo: planejamento e condução da pesquisa são responsabilidade de um pesquisador e o professor-observador atua como colaborador; o professor realiza a pesquisa sobre sua própria prática, com ou sem assessoria de um pes- quisador mais experiente (orientador). Finalmente, a quarta tendência está ligada à produção de registros interativos divulgados via redes sociais digitais. Esses registros conteriam materiais – muitas vezes também obtidos via internet – como relatos de experiências, materiais e sequências didáticas, relatos de casos e inova- ções desenvolvidas em contexto escolar, entre outros, promovendo o compartilhamento em rede e a troca de experiências docentes. Pudemos perceber que as contribuições da etnografia são bastante efetivas para o conhecimento da escola com base em suas dinâmicas e referências culturais, seus atores e as relações que estabelecem entre si, suas práticas e seus saberes, ajudando a apurar não só o olhar do pesquisador como também do educador para as questões que tecem o universo escolar e para a escola na qualidade de instituição cultural. CONSIDERAÇÕES FINAIS No cenário das transformações na sociedade contemporânea e da re- levância do tema da diversidade cultural, a análise antropológica tem se tornado cada vez mais importante, contribuindo para os debates sobre a função social da escola, que, por um lado, sofre as exigências de uma so- ciedade orientada pelas demandas do sistema capitalista ligadas à forma- ção das novas gerações para o mercado de trabalho, e, por outro, precisa assumir a função de formação crítica dos estudantes para sua inserção na vida social de modo a contribuir para a transformação da realidade social, perpassada por desigualdades. Apesar da falta de acesso a condições dignas de vida, trabalho e edu- cação a que tantos brasileiros estão sujeitos, acompanhamos na história recente uma gradativa ampliação do acesso à educação que levou ao in- gresso, na escola, de novos grupos culturais, antes sem acesso à educação formal, impulsionando a diversidade étnica, cultural, religiosa, de orien- tação sexual, socioeconômica etc. no cotidiano escolar. Isso demanda o Antropologia da Educação e formação docente 69 estabelecimento do diálogo entre diferenças, o qual pode se dar sob uma abordagem integradora entre a educação e a antropologia, em um duplo movimento que leva conceitos e práticas dos dois campos em considera- ção para a construção de uma escola inclusiva. ATIVIDADES Vídeo Atividade 1 Segundo Gusmão, quais são as contribuições da antropologia para os estudos da área educacional? Vídeo Atividade 2 De que modo as práticas simbólicas na escola se relacionam à construção das identidades docentes e discentes? Vídeo Atividade 3 Explique o que é etnografia e pesquisa etnográfica na educação. REFERÊNCIAS ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995. BORGES, L. P. C.; CASTRO, P. A. A etnografia da escola: entrelaçando vozes, culturas, sujeitos, conhecimentos e culturas. Periferia, v. 11, n. 2, p. 404-423, 2019. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/5521/552159358002/html/. Acesso em: 15 dez. 2021. BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2015. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro101.pdf. Acesso em: 15 dez. 2021. CHAVES, I. M. B. Tradição e rituais numa escola de formação de professor: práticas simbólicas organizadoras do espaço-tempo dos grupos. In: 11º EDUCERE – CONGRESSONACIONAL DE EDUCAÇÃO. Anais [...] Curitiba: PUCPR, set. 2013. 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Compreenderemos, também, como a sociologia aplicou sua análise aos fenômenos ligados aos processos educacionais, contribuindo para a constru- ção da sociologia da educação. 4.1 A sociologia: surgimento, objetos e métodos Vídeo A partir de quando a sociedade passou a ser vista como um im- portante objeto de análise, que demanda abordagens e métodos pró- prios? Quando e de que modo surgiu a sociologia na qualidade de área do conhecimento? Como foram se construindo os métodos de análise dos fenômenos sociais? Essas e outras questões são essenciais para começar a compreender o que é a sociologia no contexto das ciências humanas e sociais, quais são os objetos de estudo dessa área, de que modo as visões nela desenvolvidas contribuem para a compreensão do ser humano como ser social e, especificamente, para o entendimento dos processos educacionais e das relações sociais na escola. 4.1.1 O surgimento da sociologia como ciência A sociologia surge no século XIX, principalmente com a necessidade de explicar as novas dinâmicas sociais advindas das profundas trans- formações que as sociedades sofreram após a chamada Era das Revolu- ções, sobretudo da Revolução Industrial, que modificou os processos produtivos e as relações de trabalho e, com elas, todo o conjunto das relações sociais. Isso impulsionou o crescimento urbano e modificou os estilos de vida, alterando a estrutura e a estratificação social e trans- formando vários outros aspectos da sociedade que a sociologia, como área autônoma de conhecimento, dispôs-se a explicar. Entender o surgimento, o desenvolvimento, os objetos e os métodos da Sociologia. Objetivo de aprendizagem 72 Antropologia e Sociologia da Educação Figura 1 A indústria no século XIX M ar zo lin o/ Sh ut te rs to ck Ilustração da produção de ferro na fundição de La Houilles, França: linha de laminadores movida por roda hidráulica. Autor não identificado, publicado em Magasin Pittoresque, Paris, 1850. Para compreender melhor esse contexto, vamos, em primeiro lugar, estabelecer um panorama sobre as transformações histórico-sociais das sociedades ocidentais, que forjaram as condições da emergência da sociologia como ciência. Se buscarmos os antecedentes da socio- logia mais recuados no tempo, identificaremos a influência das ideias do movimento iluminista nas sociedades europeias e gradativamente em todo o Ocidente, gerando profundas transformações na visão de mundo dos indivíduos e nas relações sociais que mantinham entre si. Nesse período, uma mudança marcante relaciona-se ao protagonis- mo que passou a ser dado ao indivíduo na sociedade. Isso se deu com base na noção de antropocentrismo, de centralidade do ser humano em todos os processos da vida e da sociedade, em oposição ao teo- centrismo (centralidade de Deus) que predominava na Idade Média. A ideia de que os indivíduos podem controlar eventos e possuem o poder de agir e decidir sobre suas vidas, além da visão racional e científica do mundo e dos seus fenômenos, produziu novas formas de organização social e mudou para sempre a maneira como os indivíduos analisavam e explicavam tanto os fenômenos naturais quanto os sociais. Nesse cenário, a Revolução Francesa, ocorrida na França no fim do século XVIII (1789 a 1799), e a Revolução Industrial, em curso na Inglaterra entre 1760 e 1840, são importantes marcos que influencia- ram o princípio do pensamento sociológico na Europa, a qual passava Introdução à sociologia 73 por grandes transformações advindas dos processos de industrializa- ção e da urbanização acelerada das sociedades, que já funcionavam sob os princípios capitalistas. No contexto de valorização do pensamen- to e das ações do indivíduo, a burguesia, classe que crescia e ganhava relevância no período, defendia a liberdade política e econômica, bem como a possibilidade de ascender social e economicamente, construin- do de modo autônomo seus percursos na vida. No período, tradições, costumes, práticas e relações sociais e de trabalho se modificavam rapidamente. O modo de vida das popula- ções estava cada vez mais atrelado ao trabalho industrial e à preca- riedade das grandes cidades, que cresciam desordenadamente, sem infraestrutura, gerando pobreza e problemas sociais. As máquinas, de início movidas a vapor, aceleravam e ampliavam enormemente a produção nas fábricas, nas quais centenas de operários trabalhavam por cerca de 16 horas por dia; no entanto, as mudanças nos processos produtivos geravam também desemprego, pois substituíam a função de muitos trabalhadores. As condições de trabalho e a remuneração eram péssimas, sem ne- nhuma garantia, apoio ou benefício aos trabalhadores. As cidades “in- chavam” e aumentavam fenômenos como a miséria, a fome, a violência e a criminalidade, as grandes epidemias, formando um panorama deso- lador para a maior parte da população; apenas a elite socioeconômica ligada à indústria colhia bons frutos das transformações da sociedade. Segundo o sociólogo brasileiro Otavio Ianni (1926-2004), é nesse período que emergem mais abertamente as forças sociais, as confi- gurações de vida, as originalidades e os impasses da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista (IANNI, 1989). Para o autor: A sociologianão nasce no nada. Surge em um dado momento da história do Mundo Moderno. Mais precisamente, em mea- dos do século XIX, quando ele está em franco desenvolvimen- to, realizando-se. Essa é uma época em que já se revelam mais abertamente as forças sociais, as configurações de vida, as ori- ginalidades e os impasses da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista. Os personagens mais característicos estão ganhando seus perfis e movimentos: grupos, classes, mo- vimentos sociais e partidos políticos; burgueses, operários, cam- poneses, intelectuais, artistas e políticos; mercado, mercadoria, capital, tecnologia, força de trabalho, lucro, acumulação de capi- tal e mais-valia; sociedade, estado e nação; divisão internacional O filme francês “Germi- nal” baseado no romance homônimo de Émile Zola (1840-1902), autor da escola literária do Naturalismo, aborda as consequências da Revolução Industrial para a sociedade francesa no século XIX, as relações de trabalho e as lutas de classe que emergiam com o modo de produção ca- pitalista. O filme revela as condições desumanas de trabalho dos carvoeiros nas minas francesas e seu duro cotidiano. Direção: Claude Berri. Itália; França; Bélgica: Renn Productions, France 2 Cinéma, DD Productions, 1993. Filme 74 Antropologia e Sociologia da Educação do trabalho e colonialismo; revolução e contrarrevolução. [...] É claro que se podem reconhecer antecedentes ou prenúncios da sociologia em ideias, filosofias e correntes de pensamento de ou- tras épocas. [...] se constata que os antecessores realmente es- tavam buscando compreender as manifestações iniciais, menos desenvolvidas, mas já assinaladas, do Mundo Moderno. É possí- vel dizer que a sociologia é uma espécie de fruto muito peculiar desse Mundo. (IANNI, 1989, p. 7-8) Diante de mudanças tão profundas, a sociologia surge com a inten- ção de buscar compreender a nova organização da sociedade, suas di- nâmicas e as novas relações que se estabeleciam entre indivíduos e grupos sociais. O termo sociologia foi cunhado e usado pela primeira vez em 1838, por Auguste Comte (1798-1857). O autor defendia que se unissem ciências que, até aquela época, tratavam do ser humano – como psicologia, economia e história – em uma área do conhecimento apenas, que se chamaria sociologia. No entanto, a disciplina só se estruturou e consolidou como área autô- noma do conhecimento algum tempo depois, com os livros pioneiros de três autores cujas principais obras foram publicadas entre a segunda me- tade do século XIX e o início do século XX: o francês Émile Durkheim (1858- 1917) e os alemães Karl Marx (1818-1853) e Max Weber (1864-1920), que se esforçaram não só para analisar e explicar a sociedade em que viviam, mas também para delimitar os objetos de estudo dessa nova área, suas teorias e seus métodos de investigação social. Esses autores elegeram a análise dos fenômenos sociais caracte- rísticos da sociedade contemporânea 1 como o objeto principal da sociologia e perceberam que o novo processo produtivo capitalista, ao substituir o trabalho realizado em pequenos grupos e famílias em oficinas pelo trabalho realizado por grandes massas de operários em grandes fábricas mecanizadas, substituía também os laços sociais por relações de trabalho rígidas e impessoais, bem como impunham igual- mente a todos os trabalhadores a alta carga horária e o ritmo acelera- do de trabalho na busca de ampliar a produção e os lucros. Vimos que a sociologia, em sua origem, tentava explicar as contradi- ções da sociedade capitalista, mas, assim como as sociedades se trans- formam e muitas vezes ficam mais complexas, a sociologia também se transformou e ampliou muito sua gama de abordagens teóricas e metodológicas visando explicar cada realidade social, o que no âmbi- Considera-se que a Idade Contemporânea é o período que se inicia com a Revolução Francesa, em 1789, e se estende até a atualidade. Esse é um período de grandes transformações nas sociedades. 1 to sociológico implica necessariamente em posicionamentos políticos. Podemos dizer que não existe uma linha sociológica única que consiga explicar completamente a realidade social. Por que a Sociologia surgiu, como ciência autônoma, apenas no século XIX? Para refletir 4.2 Indivíduo, vida social e categorias sociológicas Vídeo As abordagens de Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, cha- mados de autores clássicos, possuem muitas diferenças teóricas e me- todológicas entre si, mas fundamentaram igualmente a sociologia e influenciam o trabalho dos sociólogos contemporâneos. Estes, mesmo que críticos às visões de um ou outro desses clássicos, ainda se referem aos seus conceitos fundadores na sociologia e os veem referência teó- rica da área até a atualidade. Cada uma dessas vertentes da sociologia vê o indivíduo e a vida social a seu modo, e cada autor elaborou seus próprios conceitos para explicar as relações entre indivíduo e sociedade. Vamos conhe- cer melhor a abordagem de cada um deles e suas contribuições para a sociologia e para a sociologia da educação. 4.2.1 Os conceitos de Durkheim Na visão de Durkheim, a sociedade está sempre acima dos indiví- duos e é exterior a eles, ou seja, os indivíduos não têm o poder de intervir ou modificar efetivamente a sociedade, que já existe sob deter- minada forma quando eles nascem e perpetua-se após sua morte por meio de normas, regras, leis, convenções sociais e valores morais que juntos estabelecem um sentido de coletividade do qual todos os indi- víduos participam. Esses elementos são transmitidos de geração em geração pelas instituições – como a família e a escola – por meio dos processos de socialização. Compreender os conceitos e as categorias que, sob perspectiva sociológica, conformam a ação dos indivíduos em sociedade: indivíduo, sociedade, fatos sociais, coerção social, ações sociais, papéis sociais; status e posição social, classes sociais. Objetivo de aprendizagem Li gh ts pr in g/ Sh ut te rs to ck Introdução à sociologiaIntrodução à sociologia 7575 76 Antropologia e Sociologia da Educação Figura 2 Fotografia de Durkheim M . A rm an do /W ik im ed ia C om m on s Para o autor, a sociologia é o estudo dos “fatos sociais”. Mas o que são fatos sociais? Durkheim elaborou o conceito de fatos sociais com base nas sociedades: são todas as ações coletivas instituídas social- mente e consolidadas em normas regulares na sociedade. Para o so- ciólogo, os fatos sociais são exteriores ao indivíduo, independem da sua vontade; são eles que formam a consciência moral que se traduz em hábitos, condutas, modos de agir e de pensar que compõem o com- portamento e as ações dos indivíduos em sociedade. Para Durkheim, os indivíduos surgem da sociedade, e não o contrário. Sob perspectiva metodológica, Durkheim propunha que os fatos sociais devem ser tratados como “coisas”, isto é, de modo objetivo e neutro, de maneira semelhante ao estudo que cientistas das áreas de biologia, química, entre outras, faziam sobre os fenômenos naturais. Para ele, os fatos sociais devem ser encarados como fatos previamente dados na sociedade e que não podem ser transformados pelo desejo de um ou outro indivíduo; são expressos concretamente nas normas, regras, convenções sociais e hábitos arraigados em uma sociedade e exercem coerção sobre os indivíduos, pressionando-os a agir de de- terminado modo – aquele que é aceitável socialmente em determinada sociedade e época. Alguns exemplos de fatos sociais nas sociedades são as relações de parentesco, os dogmas religiosos, o uso de vestimentas, as regras jurídi- cas e morais, a organização política, o sistema financeiro e a língua oficial. Perceba que, na teoria de Durkheim, há uma relação estreita entre os fatos Introdução à sociologia 77 sociais e as regras morais de uma sociedade. O autor via a socieda- de como um tecido, uma trama, cujos fios eram os vínculos morais entre os seres humanos, e esses vínculos,segundo Durkheim, precisavam ser mantidos para evitar que a sociedade se desintegrasse; também conside- rava a educação uma das principais formas de manutenção dessa integra- ção, de preservação da estabilidade e da ordem social. A visão de Durkheim é classificada como funcionalista, um tipo de abordagem que busca explicar a sociedade, as ações coletivas e indivi- duais por meio das funções que essas ações exercem no todo social. Sob a perspectiva funcionalista – que se desenvolveu também em outras ciências humanas, como a antropologia e a psicologia –, a sociedade é comparada a um organismo formado por órgãos interdependentes, mas que têm funções específicas para o funcionamento e a estabilidade do sistema. Ao considerar a sociedade como um sistema, o autor prioriza a ideia de integração social, que, para ele, desenvolvia-se por meio solidariedade social. O sociólogo classifica os tipos de solidariedade existentes entre os in- divíduos e os relaciona ao grau de desenvolvimento das sociedades das quais eles fazem parte, demonstrando que elas se organizam de modo a manter o consenso entre as pessoas, o que seria a base para a convi- vência social ou comunitária. O tipo de solidariedade que mantém esse consenso, porém, é diferente em cada sociedade. Durkheim aponta que, nas sociedades antigas e medievais, a solida- riedade que ligava os indivíduos uns aos outros era do tipo “mecânica”, baseada na relação de semelhança entre as pessoas, e que o tipo de so- lidariedade presente nas sociedades modernas é outro, o que ele chama de “orgânica”, baseada nas diferenças e desigualdades complementares entre os indivíduos, que foram se consolidando nas sociedades modernas e são predominantes nas sociedades contemporâneas. Quadro 1 Tipos de solidariedade social segundo Durkheim Tipo de solidariedade Período histórico Características Mecânica Sociedades antigas e medie- vais Baseada na relação de seme- lhança entre os indivíduos Orgânica Sociedades modernas e contemporâneas Baseada nas diferenças e de- sigualdades complementares entre os indivíduos Fonte: Elaborado pela autora com base em Durkheim, 2007. 78 Antropologia e Sociologia da Educação Para Durkheim, nas sociedades modernas, os vínculos entre os in- divíduos passaram gradativamente a se transformar em consequência da crescente divisão social do trabalho, que segmentava cada vez mais a sociedade em diferentes grupos. O autor considerava que, com a con- solidação do sistema capitalista e a complexificação cada vez maior da divisão do trabalho, os laços de solidariedade social foram se afrouxan- do, as funções de cada indivíduo ou grupo passaram a ser deixadas de lado, as sociedades tornaram-se mais individualistas e menos ordena- das, o sentimento de coletividade se enfraqueceu, gerando a desinte- gração do sistema, que ele chama de estado de “anomia”. 4.2.2 Os conceitos de Karl Marx Karl Marx, diferentemente de Durkheim, defendia que a análise social deve se basear no contexto e nas condições so- ciais dos indivíduos, pois são essas condições que produzem a existência em grupo. Segundo Marx, o ser humano da época pré-histórica, por meio das suas ações e intervenções no meio em que vivia (caça, coleta, criação de artefatos), produzia sua existência no grupo social, e ainda defendia a ideia de que o indivíduo, de modo isolado, só surgiu quando as condições his- tóricas propiciaram as bases da sociedade capitalista, que são o desenvolvimento da divisão social do trabalho e a complexi- ficação dos processos produtivos. Nesse contexto pós-Revolução Industrial, Marx apontou que as fábricas são o lugar em que dois indivíduos diferentes social e economicamente se relacionam: o operário e o patrão, com o operário vendendo sua força de trabalho ao patrão, dono da fá- brica, e este, em troca, pagando um salário ao trabalhador. Essa relação social parece se dar entre iguais, mas ocorre entre desiguais, pois o operário que vende sua mão de obra não pode escolher as suas próprias condições de trabalho; elas são estabelecidas pelo proprietário da fábrica e pelo meio social e tendem a ser relações de exploração do trabalho do operário. Marx demonstrou, então, que essa relação social não é apenas entre dois indivíduos, mas sim entre duas classes sociais: a classe Jo hn J ab ez E dw in M ay al /W ik im ed ia C om m on s Figura 3 Retrato de Karl Marx de 1875 Sua principal obra, O Capital, publicada em três volumes entre 1867 e 1883, faz uma análise do modo de produção capitalista, das suas relações de trabalho e, sobretudo, dos seus conflitos, representados pelo conceito de “luta de classes”. Introdução à sociologia 79 operária e a classe burguesa, que é proprietária dos meios de produ- ção, ou seja, do local, das máquinas e de outros elementos necessá- rios para produzir. As regras dessa relação social, que se baseia na exploração do trabalho, são estabelecidas pela luta que se dá entre as classes – com a intervenção do poder público, das leis e de outras instituições, que tentam reduzir os conflitos –, pois trabalhadores e patrões têm interesses contrários. Na teoria social marxista, portanto, a ênfase da análise social é dada à noção de classe social e ao conceito de luta de classes. Para ele, os seres humanos, na condição de indivíduos, constroem sua própria his- tória, porém não do modo como querem, pois a estrutura de classes condiciona as ações dos indivíduos no mundo. Para Marx, as desigualdades de classe são reproduzidas pelas insti- tuições sociais. Em sua obra, ele abordou uma forma de reprodução das desigualdades de classe que considerava cruel: o trabalho infantil nas fábricas. Leia os trechos apresentados por Marx em sua obra O Capital: À medida que a maquinaria torna a força muscular dispensável, ela se torna o meio de utilizar trabalhadores sem força muscu- lar ou com desenvolvimento corporal imaturo, mas com mem- bros de maior flexibilidade. Por isso o trabalho de mulheres e de crianças foi a primeira palavra de ordem da aplicação capitalista da maquinaria. (MARX, 1984, p. 23) Segundo a lei fabril inglesa, os pais não podem mandar crianças com menos de 14 anos para as fabricas “controladas” sem fazer com que recebam instrução primária. O fabricante é responsável pelo cumprimento da lei. O ensino de fábrica é obrigatório e per- tence às condições de trabalho. (MARX, 1984, p. 86). a devastação intelectual, artificialmente produzida pela transfor- mação de pessoas imaturas em meras máquinas de produção de mais valia [...] obrigou, finalmente, até mesmo o parlamento in- glês a fazer do ensino primário a condição legal para o uso “pro- dutivo” de crianças com menos de 14 anos em todas as indústrias sujeitas as leis fabris. [...] na falta de maquinaria administrativa, que torna esse ensino compulsório novamente em grande parte ilusório, na oposição dos fabricantes até mesmo contra essa lei do ensino e em artimanhas práticas e trapaças para deixarem de cumpri-la. (MARX, 1984, p. 26) 80 Antropologia e Sociologia da Educação O autor deixa claro na obra que, antes da promulgação da lei fabril de 1844, eram bastante comuns os certificados de frequência escolar, cuja mediação era feita pelos industriais de modo a comprovar o “cum- primento” da nova legislação, serem assinados com um “X” pelo profes- sor, pois estes eram analfabetos. Percebe-se, portanto, uma reprodução das desigualdades de classe no âmbito educacional, que “formava” os filhos das classes trabalhado- ras apenas para o trabalho nas fábricas e, não raro, não ensinava a eles nem a leitura e a escrita básicas. Esse tipo de dualidade na educação permanece até a atualidade no Brasil, e podemos observá-la nas dife- renças de condições entre as escolas públicas e privadas. O sistema público de ensino recebe verbas insuficientes do Poder Público, o que afeta a infraestrutura das escolas, assim como a for- mação continuada e a remuneração dos professores. Ele ainda precisa seguir políticaspúblicas que, muitas vezes, excluem os estudantes da aprendizagem de conteúdos mais ligados à análise social crítica e autô- noma, à sua formação como cidadãos conscientes do seu papel social e capazes para intervir na sociedade de modo a transformá-la. Um exemplo do problema da reprodução das desigualdades sociais é encontrado nas reformas do Ensino Médio que excluíram do rol das disciplinas obrigatórias a Sociologia, a Filosofia e outras disciplinas de Ciências Humanas e Arte, e até mesmo as ligadas às Ciências da Na- tureza, empurrando-as para itinerários formativos que supostamente podem ser escolhidos pelos estudantes, mas que, na prática, não serão ofertados pela maior parte das escolas públicas, estando presentes como opção apenas nas escolas privadas, so- bretudo as de elite. As diretrizes para o itinerário formativo téc- nico e profissionalizante também resgatam a visão dual de educação criticada por Marx, rele- gando aos filhos dos trabalhadores uma forma- ção estritamente operacional, mecânica, para atuar no mercado de trabalho, sem desenvolver os conhecimentos e as reflexões amplas sobre sua atuação tanto no mundo do trabalho quan- to na vida social. Sa ng oi ri/ Sh ut te rs to ck Introdução à sociologia 81 4.2.3 Os conceitos de Max Weber Para Weber, o mais importante é compreender o indivíduo e suas ações, ou seja, entender as razões que levam as pessoas a tomar de- terminadas decisões ou agir de determinadas formas na sociedade.. Para Weber, a sociedade não está acima dos indivíduos, como pro- pôs Durkheim, mas é constituída pelo conjunto de ações dos indivíduos que se relacionam entre si. Sua perspectiva de análise sociológica é chamada de sociologia compreensiva, pois não aceita a ideia de que o mundo social seja determinado por sua estrutura econômica – como propunha Marx – e nem crê que os comportamentos dos indivíduos sejam determinados por fatores externos (como Durkheim afirmava). Para Weber, o indivíduo é o elemento central para as transforma- ções sociais, e a sociedade é o resultado das relações entre os indi- víduos; além disso, compreender a sociedade depende da análise do “agir significativo” dos indivíduos, isto é, da compreensão dos motivos que levam os indivíduos a realizar determinadas ações sociais, pois es- sas ações não têm sentido em si: são os indivíduos que atribuem sen- tido às ações uns dos outros. Nesse contexto, os indivíduos passam a ser chamados de agentes. Um dos conceitos fundamentais elaborados por Weber é o de ação social, que é o ato de interagir com os outros indivíduos de modo in- tencional, ou seja, conduzindo-se de determinada forma com base na expectativa de como o outro agirá em resposta. Entretanto, não são to- das as ações que podem ser classificadas como ação social; não são con- sideradas por Weber como ações sociais aquelas individuais orientadas para se obter um determinado resultado, por exemplo: a ação de um motorista quando para o carro ao perceber que há um acidente na pista não é social. Mesmo que outros motoristas também parem no mesmo ponto, a ação do primeiro foi orientada para um determinado resultado, o de evitar envolver-se no acidente, e não pelo comportamento que ele esperava que os demais motoristas que trafegavam na pista tivessem. Por isso, não são sociais também as ações que são condicionadas por um comportamento de grupo, em que o indivíduo age de determinada forma porque todos os demais estão agindo assim. Figura 4 Retrato de Max Weber M . A rm an do /W ik im ed ia C om m on s Criador da chamada Sociologia compreensiva, em 1918. 82 Antropologia e Sociologia da Educação Weber classificou as ações sociais dos indivíduos em quatro tipos: ação tradicional, ação efetiva, ação racional com relação a valores e ação racional com relação a fins. Esses são “tipos ideais”, apenas para fins de análise, pois não aparecem de modo isolado no comportamento das pessoas, que acabam reunindo mais de um desses tipos em suas ações. Quadro 2 Ações sociais segundo Weber Tipo de ação social Características Ação tradicional Baseada em tradições familiares ou culturais de um grupo, em costumes ou hábitos enraizados, e é praticada de modo “automático” pela pessoa. Ação afetiva Motivada por sentimentos (alegria, inveja, tristeza, raiva etc.) e segue o impulso do momento de satisfazer a alguma necessidade emocional da pessoa. Ação racional com relação a valores Baseada em convicções, valores (senso de dever, compaixão, dignidade), pela nobreza de uma causa, não considerando as consequências da ação. Ação racional com relação a afins Motivada por um diagnóstico que a pessoa faz sobre a relação entre os meios que ela irá utilizar (a ação) e os resultados da ação (fins), calculando as consequências de cada conduta antes de agir. Fonte: Elaborado pela autora com base em Weber, 2002. Weber, em oposição a Durkheim, entende que as normas sociais, os costumes em uma sociedade, não são externos ao indivíduo, impostos coercitivamente pelo todo social, mas internalizadas a partir da escolha por agir de determinada forma, adequando-se a cada situação e sem- pre buscando posicionar-se o melhor possível em sociedade. O conceito de classe social não é utilizado por Durkheim para expli- car as divisões na sociedade, mas é usado tanto por Weber quanto por Marx em acepções bastante diferentes. De modo geral, classe social é um grupo social constituído por características que o distinguem dos outros grupos sociais, sejam econômicas, sociais, culturais, políticas, ou outras quaisquer. A ideia de classe social remete a uma hierarquia de Introdução à sociologia 83 posições na estrutura social; a essa hierarquia de posições, de estratos sociais, se dá o nome de estratificação social. Nas sociedades capitalistas, os estratos, ou camadas da sociedade, são chamados de classes sociais, e os indivíduos que ocupam o mesmo estrato – isto é, a mesma classe social – se assemelham sobretudo por fatores econômicos, relacionados às posses e ao acesso ao consumo, que são os fatores enfatizados por Marx ao tratar de classes sociais no capitalismo. Porém, outros aspectos também podem ser o critério de reunião de indivíduos em um estrato social: aqueles ligados ao estilo de vida, ao status e ao prestígio social que eles têm em comum. Esses as- pectos são os destacados por Weber quando o autor aborda as classes sociais na sociedade capitalista. Sob a perspectiva de Max Weber, as desigualdades de poder nas sociedades, bem como as relações de dominação que isso acarreta, são tratadas como algo “natural”, algo que sempre existiu e não pode ser transformado. Isso contraria o que defende Karl Marx, que consi- dera que, a partir do momento em que a classe proletária, dos traba- lhadores, consegue perceber seu papel nas engrenagens capitalistas, percebendo de que modo seu trabalho é explorado e como as desi- gualdades são reproduzidas na sociedade capitalista, desenvolvendo o que o autor chama de consciência de classe, essa classe social pode se organizar politicamente e construir transformações sociais na busca de uma sociedade mais igualitária. Marx considerava que o critério essencial definidor das classes so- ciais como grupos que compõem a estrutura da sociedade capitalista eram os fatores econômicos, e que a desigualdade econômica, rela- cionada às classes sociais, era reproduzida por todas as relações entre as classes, produzindo a estratificação social característica da estrutura social capitalista e se refletindo sobretudo nas relações de trabalho, marcadas pelo conflito e pela exploração de uma classe sobre a outra. Ao contrário, para Weber, a classe social não é definida apenas pelo critério econômico, mas depende também da posição social dos indi- víduos. Para ele, essa posição depende de três aspectos fundamentais: 84 Antropologia e Sociologia da Educação O status que o indivíduo tem na sociedade: A honra,o prestígio que ele carrega A sua a riqueza: Renda, posses, propriedades. O seu poder na sociedade: Influência que ele exerce sobre outros indivíduos e grupos da sociedade. Rv ec to r/ Sh ut te rs to ck O autor não anula a importância dos fatores econômicos e propõe, inclusive, que são os aspectos econômicos os maiores responsáveis por criar uma determinada situação de classe, na qual um dado grupo social pode ser classificado por possuir ou não acesso a bens materiais ou simbólicos. O que Weber defende é que outros fatores são também importantes para situar os indivíduos e grupos na sociedade, além das posses e da renda. Ele dá grande relevância ao status social, descreven- do-o como ligado a uma dimensão subjetiva da vida social, a aspectos simbólicos, culturais, e definindo-o como um critério de posição social que pode ou não atribuir privilégios ao indivíduo. Weber considera a Educação uma ferramenta importante da seleção social por ser ela um dos modos de se alcançar sucesso na sociedade. Gonzalez (2000) destaca, sobre essa perspectiva de Weber, que: a originalidade da relação efetuada pelo autor entre Educação e seleção social deve-se ao fato de ele ter reconhecido que: a) Exis- tem relações associativas nas quais a admissão se dá em virtude de determinadas qualificações específicas dos indivíduos, que são examinadas e precisam do consentimento dos demais mem- bros. Esse processo seletivo nos diversos tipos de associação, inclusive na educação; b) A obtenção de vantagens econômicas leva os indivíduos a limitá-la a um grupo reduzido de pessoas, pois quanto mais reduzido é o grupo de pessoas pertencentes a uma associação que lhes possibilita “legitimações” e “conexões” economicamente aproveitáveis, maior é o prestígio social de seus membros; c) A ação social, quando assume a forma de uma relação associativa, constitui uma “corporação”. A monopoliza- ção de uma “profissão” ocorre a partir de um grupo de pessoas que adquire direitos plenos sobre ela. Os referidos direitos em relação à profissão são adquiridos mediante a preparação de acordo com as normas da profissão, a comprovação da qualifi- cação e a prestação de determinados serviços em determinados períodos de carência. (GONZALEZ, 2000, p. 335) Introdução à sociologia 85 Percebe-se que, para Weber, o conceito de mérito pessoal (que ele chama de qualificações específicas) é um dos determinantes da seleção social operada em várias dimensões da vida social, incluindo a educa- ção. No entanto, apesar de reconhecer os processos que levam os indi- víduos a se fecharem em grupos sociais elitizados no intuito de manter e ampliar vantagens econômicas, ele não estabelece nenhuma relação entre essas vantagens e o acesso à educação na sociedade e, conse- quentemente, a determinadas profissões valorizadas socialmente. 4.3 Componentes da vida social Vídeo Os componentes da vida social, assim como os conceitos e as ca- tegorias sociológicas, não são os mesmos para todas as vertentes da sociologia, e dependem de qual linha teórico-metodológica e de quais autores estão sendo considerados. 4.3.1 Socialização, grupos sociais e instituições sociais A socialização, na qualidade de importante componente da vida so- cial, é abordada na sociologia de modos diferentes, conforme a linha teórica adotada. Sob uma perspectiva weberiana, é um conjunto dinâ- mico de processos por meio do qual o indivíduo internaliza a dimensão coletiva, social, ou seja, é por meio desses processos que os indivíduos aprendem práticas, valores, noções, crenças, costumes e normas culti- vados por uma sociedade e adaptam-se a ela. A socialização primária é desenvolvida principalmente por meio de instâncias de socialização como a família e a escola. Para Weber, os indivíduos, por já compartilharem determinados sentidos, significados e valores, participam de uma vida em sociedade, que, para o autor, pode ser de dois tipos diferentes: a vida comunitária, na qual predomi- nam ações tradicionais e afetivas; e a societária, na qual predominam as ações racionais, principalmente relacionadas a fins. Para ele, um importante componente da vida social são os grupos sociais; a cada tipo de vida e de grupo social corresponde um tipo de socialização que favorece a inserção nesse contexto. Compreender, sob dife- rentes visões, componen- tes da vida social, como socialização, instituições sociais, estrutura social, estratificação social, desigualdades sociais e mobilidade social. Objetivo de aprendizagem 86 Antropologia e Sociologia da Educação Por outro lado, para Durkheim, a socialização é um processo coer- citivo, imposto pelo coletivo ao indivíduo, e ao qual todos os indivíduos são submetidos, mas é preciso destacar que, para ele, isso não tem conotação negativa. O processo de socialização, na visão do autor, ini- cia-se com a educação. Ele afirma que os processos educativos transfor- mam o ser humano em ser social, introduzindo nele as características que permitem que ele viva em sociedade. Os fatos sociais, segundo Durkheim, são difundidos por um com- ponente importante da vida social: as instituições sociais – como a família, a escola, o sistema jurídico, o Estado etc. As instituições exer- cem o papel de controlar e condicionar cada indivíduo a agir de modo a não desagregar a sociedade e nem perturbar a vida coletiva, por meio de códigos e punições para os indivíduos que não agem conforme a sociedade espera. Durkheim propunha que, para que as instituições não se degradas- sem, o que, para ele, causaria a destruição da sociedade, as regras e os costumes teriam de se transformar bem devagar, durante várias gera- ções, jamais de modo individual. A função da instituição social família, para Durkheim, é garantir a preservação do legado dos antepassados e os costumes, valores e regras sociais por meio do processo de sociali- zação das crianças, e a da escola é transmitir de maneira sistematizada essas normas, valores e costumes às próximas gerações. Para Durkheim, a moral é um sistema de regras que se constitui em importante componente social e que deve ser introjetado nas crianças e jovens pela família e pela escola, como ele descreve em O ensino da moral na escola primá- ria. Nessa obra, o autor afirma que, se desejamos nos curar de uma doença ou simplesmente man- ter a saúde, precisamos seguir um conjunto de regras ligadas à higiene e que foram sistematiza- das tecnicamente por profissionais de saúde. Nós apenas obedecemos a essas normas por causa da sua natureza utilitária, ou seja, porque são úteis para que fiquemos saudáveis, bem como porque, com base nas experiências do passado, temos certeza de que elas funcionam, têm valida- Li gh ts pr in g/ Sh ut te rs to ck Introdução à sociologia 87 de e vemos claras vantagens em nos submetermos a elas. E Durkheim (2007, p. 59-75) acrescenta: Em tais circunstâncias a nossa conduta está sempre determina- da por uma causa: um resultado desagradável ao qual iremos nos expor no caso de violação dos princípios; agradável se os seguirmos. [...] Tudo é muito diferente no que concerne às re- gras da moral. Se as violamos, corremos o risco de sermos pos- tos à margem, de quarentena, isolados. [...]. Se a violação é muito forte, a própria sociedade irá nos golpear. [...] Para que a regra [moral] seja obedecida tal como convém [...], nós devemos nos submeter a ela não para evitar penas ou para lograr recompen- sas, mas tão-somente porque a regra ordena, e por respeito à própria regra, porque ela se apresenta a nós como respeitável. [...] devemos cumprir o dever simplesmente porque é dever, por respeito ao dever. As críticas à perspectiva sociológica de Durkheim consideram que sua visão sobre socialização escolar expressa uma postura avessa à consciência individual, um tipo de violência simbólica que, embora não sendo percebido facilmente pelas pessoas, é bastante eficiente. 4.3.2 Estrutura social e estratificação social Em uma sociedadedesigual como a brasileira, é importante analisar as origens históricas, econômicas e culturais da estrutura social sob o prisma das suas relações com as desigualdades sociais e econômi- cas, as étnico-raciais e de gênero, a mobilidade social, a segregação socioespacial, a exclusão social, a desigualdade de oportunidades e de acesso à cidadania e ao consumo. Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), 1% das pessoas mais ricas do mundo detém 40% dos bens do planeta. Uma categoria social importante para se pensar sobre a desigualda- de na sociedade é a estratificação social, definida pelos modos como se opera a divisão de recursos em uma sociedade, o que se reflete em uma distinção hierarquizada na estrutura social e em desigualdade de acesso à renda e às condições de cidadania entre os estratos sociais. Na sociedade capitalista, o que determina essa divisão é a classe social; porém, outras hierarquias sociais contribuem para as desigualdades entre as camadas, como etnia e gênero. 88 Pr az is Im ag es /S hu tte rs to ck Antropologia e Sociologia da EducaçãoAntropologia e Sociologia da Educação Já estrutura social é um conceito sociológico referente às formas de organização das sociedades e suas instituições sociais, assim como aos tipos de relações estabelecidas entre os grupos sociais em uma sociedade. A estrutura social varia historicamente, sob a influência de aspectos econômicos, políticos e culturais, e é internalizada pelos in- divíduos por meio da socialização e das relações sociais que mantêm durante a vida na sociedade, como as de trabalho. É por meio desses processos e relações que os indivíduos apreen- dem seus deveres e direitos na sociedade, os significados que ela atribui a cada papel e posição social em sua estrutura, percebem a dis- tribuição de recursos e de poder na sociedade, as hierarquias e os aces- sos que cada indivíduo e cada grupo social tem, com os privilégios e as exclusões que isso acarreta. É preciso destacar que a estrutura de uma sociedade não é imutável, ela sofre mudanças ao longo da história. Como consequência, existem estruturas sociais diferentes, tanto entre diferentes sociedades na mesma época quanto em uma mesma sociedade em épocas diferentes. As ações dos indivíduos na qualidade de sujeitos da sua história e de construtores do seu meio social im- primem mudanças na sociedade, organizando novas relações entre os grupos sociais e produzindo reestruturação na sociedade. A estrutura social se dá conforme certos arranjos entre diferentes grupos sociais, e os indivíduos que integram esses grupos não têm o mesmo status social, o mesmo acesso a bens e serviços, os mesmos privilégios e nem mesmo os mesmos direitos e deveres de fato, apesar de, por vezes, tais direitos e deveres serem garantidos por lei. Esses grupos desiguais entre si, portanto, distribuem-se na estrutura social em diferentes camadas ou estratos, uns superiores aos outros em re- lação a critérios econômicos, sociais, culturais, relativos a poder, status, reconhecimento, acesso a direitos e ao consumo. Introdução à sociologia 89 A essa divisão da sociedade em diferentes estratos ou camadas, com diferentes dá-se o nome de estratificação social. Para pensar em exemplos de estratificação social, podemos tomar o caso da socie- dade indiana, que tem uma estratificação social muito diversa da bra- sileira e baseada no sistema de castas. Nesse tipo de estratificação social, o nascimento do indivíduo define o estrato social – a casta – em que o indivíduo estará para o resto da sua vida, pois não existe mobi- lidade social na estrutura social indiana, ninguém “sobe” ou “desce” de casta, não existe nenhuma possibilidade de ascensão social, nem por meio do casamento ou de aquisição de riquezas, de bens mate- riais, nem por meio da aquisição de bens simbólicos, culturais ou educacionais. Já na sociedade brasileira, do mesmo modo que no restante das so- ciedades capitalistas, a estratificação social é representada por classes sociais, e é organizada conforme a distribuição de bens materiais e simbólicos, acúmulo de capital e de acordo com uma complexa dinâmica de fatores étnico-cultu- rais, de gênero, políticos, de status social, entre outros. Marx e Weber produziram teorias socio- lógicas clássicas sobre estratificação social. Para Marx, a estratificação social nas socie- dades capitalistas tem base econômica e é re- sultado do modelo de produção capitalista e da sua divisão social do trabalho característica, segundo a qual uma classe social – a burguesia – é dona dos meios de produção, e outra classe – o proletariado – vende sua força de trabalho em troca de um salário que será usado para sua subsistência. A concepção marxista de estratificação social reflete a contradição entre capital e trabalho, típica do modo de produção capitalista. Para o autor, ao contrário do que é proposto por Weber, ocupa- ção, renda, status ou estilo de vida não são os fatores mais impor- tantes para a formação de uma classe social, mas sim os critérios políticos, ideológicos e culturais, junto aos fatores econômicos, es- senciais para a formação das classes sociais. É interessante sinalizar que não foi a sociedade capitalista que inventou a luta de classes – e nem a que acabou com ela –, mas foi sob esse sistema e sob o tipo Ar th im es de /S hu tte rs to ck 90 Antropologia e Sociologia da Educação de estratificação característico do capitalismo que a luta se intensifi- cou, opondo burguesia e proletariado. Segundo Weber, a estratificação social é reflexo essencialmente das relações de poder entre os grupos sociais. Para ele, a distribui- ção do poder dentro de uma comunidade é representada pela divi- são em classes. Ele destacava que existem diferentes tipos de poder, não apenas econômico ou político, que contribuem para as classifi- cações dos grupos sociais. Nas sociedades capitalistas, predominariam os conflitos econômicos entre os grupos sociais. Weber considera a divisão social com base no con- ceito de “situações de classes”, de posições dos indivíduos na hierarquia social, que são definidas pela competição entre eles pelo acesso aos bens materiais e pela aquisição de renda. De acordo com ele, os elementos principais para a formação dos grupos sociais são os econômicos, rela- cionados às oportunidades que os indivíduos têm de acesso ao consumo. O critério principal para definir a situação de classe do indivíduo é o poder aquisitivo e suas fontes – o que combina perfeitamente com a me- todologia de análise social do autor que, como já vimos, é centrada no indivíduo, não incluindo necessariamente uma ação de classe, já que os in- teresses individuais dos que estão na mesma “situação de classe” podem ser diferentes, não resultando em nenhuma ação coletiva, “de classe”. Para Weber, os estamentos não são grupos sociais ligados a um tipo de sociedade do passado, mas sim uma divisão que ocorre no plano social, baseada na diferenciação dos indivíduos entre si segundo a forma de con- sumo de bens, em estilos e modos de vida, assim como as classes corres- ponderiam às formas de produção e aquisição de bens pelos indivíduos. A diferença entre sociedades estamentais e de classes não estaria, então, no tempo histórico, mas no que estrutura as relações de po- der em cada uma delas, nas disputas por “honra social” – que o autor considera que trazem menos mobilidade social – ou nas disputas de mercado, o que não quer dizer que isso não significa que a mudança de classe social seja facilitada, já que as regras de mercado são rígidas. Na visão weberiana, os indivíduos competem entre si por bens materiais e simbólicos (culturais, religiosos etc.), e a capacidade de consumo desses bens é que determina os diferentes estilos de vida característicos de cada estamento. Desse modo, hierarquização ou estratificação social é resultado de diferentes “estilizações da vida”, que conduzem determinados compor-Introdução à sociologia 91 tamentos e representam, em rigor, uma hierarquização social ligada à honra e ao prestígio social (status), na qual estamentos superiores e inferiores correspondem aos que “podem” e aos que “não podem” consumir determinados bens ou viver de determinados modos. Os que podem são positivamente valorizados na sociedade, e os que não podem recebem valor social negativo, o que implica uma rela- ção de dominação, exclusão e eventual conflito entre estamentos. De outra forma, para Pierre Bourdieu, as classes sociais são con- juntos de agentes que ocupam posições semelhantes e que, postos em condições também semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses se- melhantes, logo práticas e tomadas de posições semelhantes na socie- dade (BOURDIEU, 1989, p. 136). Segundo Bourdieu (1989, p. 136), para compreender a categoria classe social na sociedade contemporânea, é preciso romper com a concepção de Marx sobre o tema, pois classe não seria um grupo efe- tivamente real de indivíduos, mas sim um conjunto de relações, e seria necessário romper com o economicismo característico do pensamento marxista – que privilegia as bases materiais e objetivas da sociedade – e privilegiar o espaço multidimensional, as lutas simbólicas que ocorrem nos âmbitos mais diversos da sociedade. Ao considerar o espaço multidimensional, estudos sociológicos con- temporâneos se voltam para as disputas simbólicas que se desenrolam no campo étnico-cultural, no campo das relações de gênero, no cam- po socioespacial urbano, entre outros, que geram desigualdades, se- gregação e exclusão social, aspectos que se refletem na estratificação social, um fenômeno mais complexo e multifacetado, perpassado por diversos marcadores sociais de diferença e povoado por indivíduos que possuem múltiplas fontes de identidade, como as étnicas, culturais, de gênero, religiosas, políticas, de origem, profissionais etc. O artigo Ensaio sobre a teoria das classes sociais em Marx, Weber e Bourdieu, de Rogerio Tineu e escrito para a Revista Aurora, apresenta um debate sobre as concepções dos três autores sobre a categoria classe social na Sociologia. Acesso em: 27 dez. 2021. https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/33734 Artigo https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/33734 92 Antropologia e Sociologia da Educação 4.3.1 Reprodução das desigualdades na escola Na sociologia contemporânea, Bourdieu é um dos que mais aplicou pressupostos do materialismo histórico – nome da vertente teórica fun- dada por Marx – para compreender os processos educacionais e o papel das instituições escolares. O autor, junto a outro sociólogo francês, Jean- -Claude Passeron (1930-), produziu o que podemos chamar de sociologia da educação, que mostra como a escola reproduz as desigualdades de classe por meio do currículo e das normas e convenções escolares. Leia o trecho a seguir, que aborda quais foram os antecedentes so- ciais das formulações de Bourdieu, que confrontam pela primeira vez a visão otimista – inspirada nas teorias de Durkheim – que se tinha da escola como formadora das gerações futuras: Segundo Nogueira e Nogueira (2002), Bourdieu teve o mé- rito de formular, a partir dos anos 1960, uma resposta original, abrangente e bem fundamentada teórica e empiricamente para o problema das desigualdades escolares. Essa resposta tor- nou-se um marco na história não apenas da Sociologia da Edu- cação, mas do pensamento e da prática educacional em todo o mundo. Até meados do século XX, predominava nas Ciências Sociais e mesmo no senso comum uma visão extremamente oti- mista, de inspiração funcionalista, que atribuía à escolarização um papel central no duplo processo de superação do atraso econômico, do autoritarismo e dos privilégios adscritos, associa- dos às sociedades tradicionais, bem como no de construção de uma nova sociedade, justa (meritocrática), moderna (centrada na razão e nos conhecimentos científicos) e democrática (funda- mentada na autonomia individual). Nogueira e Nogueira (2002), em sua análise sobre a Socio- logia da Educação de Bourdieu, acrescentam ainda que, na época, supunha-se que o problema do acesso à educação seria resolvido por meio da escola pública e gratuita, e, assim, garan- tida, em princípio, a igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos. Os indivíduos competiriam dentro do sistema de ensino, em condições iguais, e aqueles que se destacassem por seus dons individuais seriam levados, por uma questão de jus- (Continua) Introdução à sociologia 93 tiça, a avançar em suas carreiras escolares e, posteriormente, a ocupar as posições superiores na hierarquia social. A escola seria, nessa perspectiva, uma instituição neutra, que difundiria um conhecimento racional e objetivo e que selecionaria seus alunos com base em critérios racionais. Os mesmos autores explicam que o que ocorreu nos anos 1960 foi uma crise profunda dessa concepção de escola e uma reinterpretação radical do papel dos sistemas de ensino na so- ciedade. Abandona-se o otimismo das décadas anteriores em favor de uma postura bem mais pessimista. Segundo Nogueira e Nogueira (2002, p. 16-17), essa crise na concepção tradicional de escola se originou de uma reunião de alguns fatores: aS ha til ov /S hu tte rs to ck O primeiro fator está ligado a uma série de pesquisas quantitativas encomendadas no final dos anos 1950 pelos governos da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, que revelaram a grande importância da origem social na definição dos destinos escolares dos estudantes, o que contribuiu para reduzir drasticamente a confiança na pretensa igualdade de oportunidades no contexto escolar. 1° O segundo fator estava ligado ao processo de universalização do ensino ocorrido ao longo dos anos 1960, que acabou gerando uma consequência inesperada: os estudantes, especialmente franceses, oriundos de classes sociais mais baixas e recém-incluídos na educação pública, ressentiram-se contra o que consideraram um sistema educacional elitista e autoritário, que desconsiderava suas especificidades e parecia não contribuir nada para a mobilidade social desses jovens. 2° 94 Antropologia e Sociologia da Educação Bourdieu destacava, na época, que a decepção dessa “geração en- ganada” produziu não só uma forte crítica ao sistema educacional, como desencadeou o movimento contestatório que eclodiu em maio de 1965 na França. Com base nesse cenário, Nogueira e Nogueira (2002, p. 17-18) des- tacam que: Bourdieu oferece-nos um novo modo de interpretação da es- cola e da educação que, pelo menos num primeiro momento, pareceu ser capaz de explicar tudo o que a perspectiva anterior não conseguia. Os dados que apontavam a forte relação entre desempenho escolar e origem social e que, em última instância, negavam o paradigma funcionalista transformam-se nos ele- mentos de sustentação da nova teoria. [...] Onde se via igualdade de oportunidades, meritocracia, justiça social, Bourdieu passa a ver reprodução e legitimação das desigualdades sociais. A educa- ção, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribuído de instância transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm e se legitimam os privilégios sociais. Trata-se, portanto, de uma inversão total de perspectiva. Bourdieu ofere- ce um novo quadro teórico para a análise da educação [...]. Nesse mesmo sentido, Gramsci (1995) critica o caráter de classe da escola burguesa, propondo uma concepção ligada à politecnia e a construção de uma escola não mais dual, com dois tipos diferentes de formação a depender da classe social, mas sim de uma escola unitária, que congregue cultura, humanista e formativa, e desenvolvimento de habilidades laborais, unindo o ensino de capacidades técnicas ao de- senvolvimento de capacidadesde trabalho intelectual. Para Gramsci (1995), uma escola unitária pressupõe novas relações, estas mais igualitárias, entre trabalho intelectual e trabalho manual não só no contexto escolar, mas no mundo do trabalho e em toda a vida social, o que possibilitaria uma sociedade mais justa e menos desi- gual, na qual todos tenham de fato as mesmas oportunidades. CONSIDERAÇÕES FINAIS As diferentes visões teóricas, conceitos e categorias sociológicas con- tribuem para que possamos analisar mais a fundo e explicar melhor as dinâmicas, as relações e o funcionamento da sociedade em que vivemos, compreendendo as classificações e as desigualdades de ordem social, Para compreender a complexidade desses movimentos de 1968, cujo centro se deu na França, mas que atingiu grande parte do Ocidente, e reuniu estudantes e trabalhadores em torno da transformação social e educacional, assista ao vídeo Maio de 68 | O início dos movimentos universitá- rios, do canal Jornalismo TV Cultura. Disponível em: https://youtu. be/PNZRlpeMfFo. Acesso em: 27 dez. 2021. Vídeo https://youtu.be/PNZRlpeMfFo https://youtu.be/PNZRlpeMfFo Introdução à sociologia 95 econômica, política e cultural que perpassam os grupos sociais. Esses conhecimentos podem ser aplicados para a compreensão das institui- ções sociais como a escola e de relações sociais como as educativas, no contexto da educação formal, por exemplo. É importante refletir sobre a escola como espaço social de construção de processos de socialização e de relações sociais entre indivíduos provenientes de diferentes realida- des, que precisam construir juntos, nesse contexto desigual, uma socie- dade mais igualitária e justa para todos. ATIVIDADES Atividade 1 Quais são as principais diferenças entre as visões teóricas de Durkheim, Marx e Weber sobre a sociedade? Atividade 2 Segundo Durkheim, qual é o papel das instituições sociais nos processos de socialização? Atividade 3 Explique as diferenças entre estrutura social e estratificação social. REFERÊNCIAS BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989. DURKHEIM, E. O ensino moral na escola primária. Novos Estudos, v. 1, n. 78, p. 59-75, jul. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/ CJCZJJLWZbP4JKdHBWC9LVd/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 23 dez. 2021. GONZALEZ, W. R. C. Educação e desencantamento do mundo: contribuições de Max Weber para a Sociologia da Educação. 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/handle/11422/6633. Acesso em: 23 dez. 2021. 96 Antropologia e Sociologia da Educação GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinnho. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. IANNI, O. A sociologia e o mundo moderno. Tempo Social, v. 1, n. 1, p. 7-27, 1989. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/83315. Acesso em: 23 dez. 2021. MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 1984. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2547757/mod_resource/content/1/MARX%2C%20 Karl.%20O%20Capital.%20vol%20I.%20Boitempo..pdf. Acesso em: 23 dez. 2021. NOGUEIRA, C. M. M.; NOGUEIRA, M. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu: limites e contribuições. Educação & Sociedade, v. 23, n. 78, p. 15-35, 2002. Disponível em: https:// www.scielo.br/j/es/a/wVTm9chcTXY5y7mFRqRJX7m/abstract/?lang=pt#ModalArticles. Acesso em: 23 dez. 2021. WEBER, M. Conceitos básicos da Sociologia. São Paulo: Centauro, 2002. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2547757/mod_resource/content/1/MARX%2C%20Karl.%20O%20Capital.%20vol%20I.%20Boitempo..pdf https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2547757/mod_resource/content/1/MARX%2C%20Karl.%20O%20Capital.%20vol%20I.%20Boitempo..pdf Educação, sociedade e poder 97 5 Educação, sociedade e poder A educação é interdisciplinar por natureza, pois reúne em seu arca- bouço teórico as contribuições de diferentes áreas do conhecimento das ciências humanas e sociais. Anísio Teixeira (1900-1971), educador de referência na história da educação brasileira, afirma que “a Psicologia, a Antropologia e a Sociologia são as principais ciências-fonte da Educação” (TEIXEIRA, 1957, p. 11-12). Nesse cenário, a disciplina de Sociologia da Educação, que busca empreender uma visão sociológica dos processos educativos, tem a im- portante tarefa de fundamentar várias outras disciplinas, tanto as inte- grantes dos cursos de Pedagogia quanto as das pós-graduações ligadas à área educacional, promovendo a compreensão da realidade da edu- cação brasileira. Nesse sentido, neste capítulo, usaremos elementos das ciências humanas, sobretudo da sociologia, para entender as origens e o funcionamento das instituições educativas no Brasil, e os processos educativos formais e informais, para analisar o papel social da escola, considerando-a como lócus não só de reprodução social, mas também de transformação social, e para compreender as relações entre educa- ção, Estado e poder, as políticas educacionais, as teorias e as práticas pedagógicas sob perspectiva sociológica. 5.1 Instituições educativas Vídeo Se por um lado a educação necessita do amparo de outras ciên- cias humanas, como a sociologia, para avançar teórica e metodologi- camente, por outro, é preciso tomar cuidado, no âmbito da pesquisa educacional, da produção conceitual e da reflexão sobre a prática pe- dagógica, para não se basear unicamente em um discurso “dos outros” (CHARLOT, 2006, p. 13), ou seja, de outras áreas do conhecimento. É preciso levar em conta as especificidades do campo educacio- nal, suas dinâmicas, seus objetos de estudo e suas problematizações próprias. As abordagens etnográficas e o uso de estudos de caso são Conhecer a gênese e o funcionamento das insti- tuições educativas. Objetivo de aprendizagem 98 Antropologia e Sociologia da Educação exemplos de aplicações de métodos advin- dos de outras áreas, como a antropologia e a sociologia, que auxiliam a analisar fenôme- nos educacionais e escolares, pois permitem sua compreensão com base em ações dos sujeitos e grupos sociais envolvidos nas di- nâmicas educativas cotidianas, por exemplo, docentes e discentes, e abrem espaço para a investigação das origens e condições da produção, da reprodução de conhecimen- tos, das relações sociais na escola, das inte- rações entre a comunidade escolar e seu entorno social, das dinâmicas das culturas escolares e dos contextos sociais de aprendizagem, sob a perspectiva da multiplicidade de sentidos de saberes, usos e práticas empreendidos na escola (CHERVEL, 1990) e da ação dos indivíduos que vivenciam e produzem a realidade escolar. Antes de analisar os espaços escolares como instâncias educacionais formais e compreender as várias dimensões do papel social da escola, voltaremos um pouco no tempo e conheceremos as origens dos pro- cessos educacionais na sociedade e a gênese histórica das instituições educacionais, compreendendo seu estabelecimento, desenvolvimento e funcionamento na sociedade brasileira sob perspectiva histórica. 5.1.1 Processos educativos formais, informais e não formais Historicamente os processos educativos iniciaram-se de modo es- pontâneo e informal, no cotidiano familiar e da comunidade, envol- vendo todos os tipos de aprendizagens de conhecimentos úteis, como os ligados a atividades domésticas, produtivas, morais etc. Gradativamente a educação foi sendo delimitada pelo conjunto de aprendizagens essenciais para a melhor socialização primária da criança, centradas na sistematização, reprodução e perpetuação dos conhecimentos socialmente produzidos e pelas regras da sociedade, e passou a ser transmitida de modo formal por instituições criadas espe- cificamente para isso: as escolas, que eram inicialmente lugares de sis- tematização e reprodução de conhecimentos, destinados à educação formal, organizada e reguladade modo rígido. Figura 1 Exemplo de sala de aula do século XXI Sl ob od an D im itr ov /W iki m ed ia C om m on s Figura 2 Retrato de Paulo Freire em 1977 ro do lfo _s an to s/ Sh ut te rs to ck Educação, sociedade e poder 99 Geralmente o parâmetro usado para classificar o tipo de educação – formal, informal e não formal – é o espaço escolar. Segundo Marandino, Selles e Ferreira (2009, p. 133), “as ações educativas escolares seriam formais, e aquelas realizadas fora da escola não formais e informais”. A socióloga brasileira Maria da Glória Marcondes Gohn (1947-) aponta que os resultados esperados para cada tipo de educação são bastante diferentes. As expectativas para a educação formal, desenvolvida em instituições escolares, giram em torno da aprendizagem formal e da obtenção de títulos; os resultados da educação informal são percebi- dos no contexto do senso comum, e os da educação não formal são percebidos como parte de vários processos (GOHN, 2006). Um exemplo de educação não formal são os “círculos de cultura” do modelo freiriano, por meio dos quais os indivíduos debatem sua realidade e, mais do que aprender a ler palavras, aprendem a ler o mundo com base em seu próprio contexto social. No quadro a seguir há as características de cada tipo de processo educacional. Quadro 1 Educação formal, informal e não formal Tipos Locais Características Objetivos Educação formal su m be ra rto /S hu tte rs to ck Escolas Institucionalizadas e desenvolvi- das com base em regras e con- teúdo previamente definidos, organizam-se por idade e nível de conhecimento. Ensino de conteúdos historica- mente sistematizados para prepa- rar cidadãos ativos na sociedade. Educação informal 5W S tu di o/ Sh ut te rs to ck Família, comunida- de, grupos de ami- gos e mídias Processos permanentes e não or- ganizados de aprendizagens. Socialização dos indivíduos para a formação de hábitos e atitudes adequados socialmente. Educação não formal Cu be 29 /S hu tte rs to ck Museus, centros cul- turais, associações, ONGs e outros es- paços coletivos Aprendizagens obtidas no compar- tilhamento de experiências e ações coletivas no cotidiano, mobilizando as subjetividades e contribuindo para a formação identitária. Proporcionar aos indivíduos co- nhecimentos sobre o mundo, so- bre si próprios e sobre as relações sociais que estabelecem com ou- tros indivíduos. Fonte: Elaborado pela autora com base em Salles; Ferreira, 2009; Gohn, 2006. Percebemos que esses tipos de educação não substituem um ao outro, pois são complementares e articulam as diversas esferas sociais. senso comum: conheci- mento empírico, adquirido nas interações e experiên- cias cotidianas, que não traduz um conhecimento generalizável para o todo da realidade social. Glossário 100 Antropologia e Sociologia da Educação Figura 3 Escola do século XIX Fonte: RODRIGUES, J. W. Pateo do colégio. 1858. Óleo sobre tela. 100 x 66 cm. Museu Paulista, São Paulo. Na linha do tempo a seguir você pode conhecer melhor os processos pelos quais o sistema educacional brasileiro passou ao longo da história. 5.1.2 Origens e funcionamento das instituições educativas no Brasil No Brasil, as primeiras escolas foram fundadas pelos jesuítas du- rante o período colonial e tinham forte influência da religião católica. Entre meados dos séculos XVI e XVIII, as instituições jesuítas foram, na prática, as únicas escolas do país. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, esse quadro parecia fadado a se transformar, entre- tanto, as modificações só começaram, timidamente, a partir de 1808, com a vinda da família real e a subsequente criação de instituições culturais, científicas e de Ensino Técnico e dos primeiros cursos de Ensino Superior, como medicina, no Rio de Janeiro e na Bahia. Vamos conhecer melhor quais foram as permanências e transformações no sistema educacional escolar brasileiro. Quando, como e por que teria sido “inventada” a escola que conhecemos atualmente? O que se es- perava dessas instituições quando foram criadas? Será que a sociedade mantém até a atualidade as mesmas expectativas com relação à escola? Para refletir Educação, sociedade e poder 101 1549 Fundação da primeira escola primária no Brasil, em Salvador, pelo Padre jesuíta Manoel da Nóbrega, para catequização de indígenas. 1824 a 1827 O governo brasileiro, já independente de Portugal, assegurou legalmente a instrução primária a todos os cidadãos e determinou a criação de escolas desse nível em todas as cidades e vilarejos. Década de 1930 O movimento de renovação da educação conquistou reformas educacionais, como a Escola Primária Integral e o Ensino Médio e Superior voltado para o espírito científico. Surgiram as primeiras universidades e o governo federal passou a ditar as diretrizes educacionais. Década de 1950 Conflitos entre escola pública e escola particular, com lideranças religiosas defendendo a subvenção estatal ao ensino privado e lideranças do ensino público defendendo o papel do Estado na adequação de crianças e jovens à sociedade por meio da escola. Década de 1970 O governo militar implantou uma educação tecnicista, ancorada em diretrizes dos EUA, que aprofundou a dualidade da educação oferecida a pobres e ricos: conhecimento para os ricos, acolhimento social e profissionalização mecanicista para os pobres. Década de 1990 A universalização do acesso à escola avançou, mas, em 1996, 8,7 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos ainda estavam fora da escola. Foram adotadas diretrizes como regulação do sistema por meio das avaliações de larga escala, financiamento por meio de fundos e estabelecimento de metas educacionais. 1808 Com a vinda da família real, as primeiras instituições de Ensino Técnico e Superior foram criadas, voltadas para a educação da elite local. 1834 A Educação Básica foi descentralizada e passou a ser responsabilidade das províncias. A maioria da população ainda não tinha acesso às poucas escolas. Década de 1940 O foco estatal passou a ser o Ensino Primário e Secundário, sobretudo os cursos técnicos – industriais e comerciais – que incluíam crianças e jovens pobres nas escolas, mas para o ensino instrumental. Década de 1960 Durante a ditadura civil-militar, ampliou-se a busca das classes médias por acesso ao Ensino Superior, e a classe operária exigiu o Ensino Elementar e Médio para seus filhos. Década de 1980 Em 1980, 7,6 milhões de crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos ainda estavam fora da escola, cerca de 30% da população nessa faixa etária, a maior parte na zona rural. Décadas de 2000 a 2010 Houve uma ampliação do compromisso e das iniciativas do Estado para a melhoria da qualidade da educação, sobretudo na Educação Básica, com programas na área de formação docente, alfabetização, aumento dos programas de livros didáticos e ampliação do tempo de escolaridade. As diretrizes da década anterior foram mantidas e foi ampliada a oferta de vagas no Ensino Médio e Superior. De 2010 à atualidade Adoção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e reorganização do Ensino Médio. Muitos dos programas de avaliação, livros didáticos, bolsas de estudo e compromissos e diretrizes para a ampliação da oferta e qualidade da educação foram, infelizmente, reduzidos ou descontinuados. História da educação escolar no Brasil 102 Antropologia e Sociologia da Educação A longo da história das instituições escolares, que se confunde com a história da própria educação no Brasil, o que vemos é uma constante falta de acesso por grande parte da população e um longo caminho de superação do analfabetismo e da universalização do ensino no país. A democratização ampliou-se muito nas últimas décadas, mas ainda enfrentamos a falta de unidades escolares e de infraestrutura nas que existem, fruto da insuficiência de investimentos, e ainda se luta por en- sino de qualidade para todos.5.1.3 Espaços, rotinas e tempos escolares Se repararmos bem na figura a seguir, veremos que ela tem muitas semelhanças com a foto da sala de aula atual apresentada no início des- te capítulo. A organização do espaço e seus elementos e a disposição das carteiras enfileiradas e voltadas todas para o mesmo lado onde estão o professor e o quadro de giz são os mesmos e revelam, entre outras coi- sas, que pouco mudou no espaço escolar nas últimas décadas. Figura 4 Exemplo de sala de aula da década de 1960 Da vid B uk ac h/ Sh ut te rs to ck Educação, sociedade e poder 103 O sinal que toca a cada troca de turno, entrada e saída de alunos e recreio, marcando a rotina escolar, também é o mesmo som que se ouvia no passado, bem semelhante à sirene das fábricas, indican- do a rotina rígida do trabalho. Muitas práticas simbólicas na escola também permanecem as mesmas, como a predominância das aulas expositivas, das cópias no quadro de giz e da exigência de silêncio e imobilidade dos estudantes, enfileirados uns atrás dos outros, ape- sar das imensas transformações pelas quais a sociedade passou. Por outro lado, há um crescimento nas tentativas de aplicar outras práticas de ensino e aprendizagem, ou ao menos refletir sobre elas. No entanto, apesar das mudanças que testemunhamos, por exemplo, na organização espacial das salas de aula, na maior par- te das vezes, se a disposição das carteiras em círculo, em formato de auditório etc. não vem acompanhada de verdadeiras inovações nas práticas pedagógicas e estratégias didáticas aplicadas na escola, não é raro que vejamos um professor, à frente de uma sala em um formato alternativo, escrevendo no quadro e ditando lições ou mes- mo usando recursos tecnológicos digitais de ponta do mesmo modo como usaria o quadro de giz ou caderno e lápis. Sob a perspectiva sociológica, podemos interpretar o espaço es- colar, seus elementos e sua organização de rotinas como sinais de determinadas ideias pedagógicas e, de maneira mais ampla, como reflexos de certas ideologias. A partir dos anos 1960, surgiram os primeiros movimentos que criticavam a escola como instituição tra- dicional de transmissão de conhecimentos na sociedade. Esses mo- vimentos viam o espaço escolar como instância reprodutora das desigualdades sociais. Alguns grupos colocavam- -se contra a escola como instituição detentora da educação formal e propu- nham o que chamavam de desescolarização, ter- mo criado pelo educador estadunidense John Holt (1923-1985), que defendia que os pais ou tutores as- sumissem a educação de crianças e adolescentes, promovendo sua autono- mia para acessar outras formas de aprendizagem fora do espaço escolar, de modo livre, sem adotar nenhum currículo espe- cífico – o que aproximou esse modelo da educação informal e não formal, mas o diferenciou da educação domiciliar, em que deve ser adotado um currículo preestabeleci- do, representando uma educação formal em casa, porém sem a importante dimensão socializadora da escola. Curiosidade Que relações poderíamos fazer entre o movimento de “desescolarização”, o modelo de educação do- miciliar (do inglês homes- chooling) e as propostas do movimento brasileiro Escola sem Partido? Para refletir 5.2 Processos educativos e reprodução social Vídeo Se refletirmos sobre a história das instituições escolares no Brasil, e mesmo em outras partes do mundo, veremos que aspectos ligados à função social da escola, importantes no passado, ainda podem, mui- tas vezes, estar presentes na atualidade. A função de socializar, no sentido de adequar, ajustar e “formatar” crianças e jovens às regras e convenções da sociedade, ainda se mantém bastante presente no pensar e no agir tanto de docentes e gestores escolares quanto das famílias dos estudantes e mesmo, em certos aspectos, das políticas públicas para educação. Por outro lado, está presente outra noção de socialização escolar, que leva em conta a necessidade de desenvolver habilidades socioe- mocionais em crianças e adolescentes e repará-los para as relações sociais que vivenciarão ao longo de suas vidas, promovendo a com- preensão de seu lugar no mundo e suas potencialidades para a vida social. Sob outro aspecto, também se constitui como uma permanência no tempo a dualidade educacional que permeia as escolas brasilei- ras, a qual abarca: Escola pública Escola privada Ensino propedêutico 1 Ensino Técnico Formação instrumental para o trabalho Formação para ingresso no Ensino Superior Escola para pobres Escola para ricos Nesse sentido, o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) traz teorias interessantes para a compreensão mais ampla dos fenômenos esco- lares com base na ação dos sujeitos envolvidos com as dinâmicas das instituições e sob uma perspectiva capaz de apreender a heterogenei- dade e a pluralidade da realidade escolar. Bourdieu pode contribuir, no contexto de sua teoria da reprodu- ção, com os conceitos de habitus e campo, os quais auxiliam a aná- lise das dimensões sociais dos processos educativos, em especial os que se dão no interior da escola, considerando as dinâmicas e práti- cas individuais e sociais, assim como abarcando as relações, as ten- sões e os conflitos que atravessam esse cenário e dão sentido às ações, representações e apropria- ções dos sujeitos no espaço social escolar, na busca da articulação entre as práticas dos indivíduos e o mundo social. O sociólogo, ainda na década de 1960, trouxe uma visão sociológica ino- vadora do sistema escolar e dos pro- cessos educativos. Na visão do autor, a sociedade é um espaço social tecido de Compreender os processos educativos formais e informais e a escola como reprodutores das relações sociais. Objetivo de aprendizagem De modo geral, é o ensino de disciplinas introdutó- rias ao conhecimento de várias áreas, sobretudo as ligadas às Ciências Hu- manas e Sociais. Porém, quando usado em oposi- ção ao ensino técnico, o termo indica a formação mais ampla e humana dos estudantes, de modo a prepará-los não só para o Ensino Superior, mas para a atuação cidadã plena em sociedade. 1 wa ve br ea km ed ia /S hu tte rs to ck 104104 Antropologia e Sociologia da EducaçãoAntropologia e Sociologia da Educação Educação, sociedade e poder 105 relações objetivas entre as pessoas, e as ações concretas dos indiví- duos, ou dos agentes, são o resultado de disposições sociais aprendi- das no meio social de origem de cada um, especialmente na família e na escola. Desse modo, o agente é sempre constituído de tendências ou con- formações que ele incorporou e que determinam crenças, gostos e mo- dos de pensar, agir e sentir. Até as formas de falar e se movimentar seriam definidas por essas disposições adquiridas no próprio grupo social. Bourdieu, no contexto dos movimentos teórico-metodológicos da sociologia contemporânea, posicionava-se criticamente com relação ao estruturalismo 2 O estruturalismo na sociologia está ligado à vi- são de que os fenômenos sociais são fruto das es- truturas sociais – ou seja, os sistemas de relações sociais que subsidiam a vida social dos indivíduos –, à noção de que uma mesma estrutura pode gerar formas sociais e culturais diferentes, a depender da sociedade, e à ideia de que quando uma estrutura social é modificada todas as outras também são. 2, que retirava das ações individuais qualquer tipo de influência na sociedade e atribuía toda a lógica social às estruturas. O autor considerava a ação dos indivíduos tão importante quanto as eventuais estruturas preestabelecidas na sociedade. Por meio do conceito de habitus, Bourdieu atribui ao indivíduo, a quem ele chama de agente (justamente pela sua característica de agir socialmente), a faculdade de intervir concretamente nas situações so- ciais, mesmo tendo suas ações limitadas de vários modos pelas pró- prias situações, relações ou estruturas predefinidas na sociedade. Ele afirma, portanto, existir certa dinâmica entre a autonomiade ação do indivíduo e tudo o que está estabelecido na sociedade, como as hierar- quias sociais, econômicas e políticas, as relações de dominação, outras relações sociais etc. Bourdieu propõe, ainda, que as ações dos agentes sociais seriam condicionadas pela própria situação social do indivíduo, por sua classe social, seu meio cultural de origem e sua história individual e familiar. A esse conjunto de condicionamentos o autor dá o nome de habitus. Para ele, as pessoas tendem “a reproduzir a lógica objetiva dos condicio- namentos, mas introduzindo neles uma transformação” (BOURDIEU, 1983, p. 105), ou seja, o habitus não determinaria totalmente a vida social dos indivíduos, pois eles teriam algum poder de intervir e trans- formar sua realidade social. Com relação ao contexto da educação escolar, Bourdieu (1983) trata de um tema importante: a violência simbólica. Segundo o autor, ela se dá por meio da imposição de valores, normas e códigos simbólicos característicos de uma classe social sobre as demais. Para ele, a escola seria uma instância social na qual, por meio dos códigos de classe, a 106 Antropologia e Sociologia da Educação cultura da classe dominante e da elite da sociedade é passada para as classes dominadas, ou seja, que estão em um estrato mais baixo da hierarquia social e econômica. Mas como isso é realizado? Para o sociólogo, esse processo é implementado por meio da escolha das abordagens e dos conteúdos a serem ensinados na escola, isto é, dos currículos escolares, que definem o que será estudado e de qual modo. Outro conceito central da teoria de Bourdieu é o de campo, que o autor define como um espaço social estruturado no qual há uma disputa de forças em condição de desigualdade entre dominantes e dominados (BOURDIEU, 1983). Essa disputa objetiva a conservação ou transformação das posições no campo, sendo que elas expressam a força que cada indivíduo possui ou não no campo. Sob essa perspectiva, os grupos sociais interagem em um mundo próprio, com regras também próprias, as quais são internalizadas pe- los integrantes do campo por meio da socialização, mas também agem tendo em vista um cenário mais amplo, o qual Bourdieu denomina de mundo global. Para ele, é preciso também considerar os fatores exter- nos ao campo, como as relações entre um campo e outro, entre o cam- po educacional e o político ou o jurídico, por exemplo, em face de um contexto de mundo global representado pela sociedade brasileira ou mesmo pela sociedade mundial. Precisamos destacar, porém, que as disputas no inte- rior de cada campo não são de natureza exclusivamen- te econômica, relacionadas ao poder material, pois esse não é o único fator decisivo para condicionar as forças no interior do campo; outro nesse con- texto é o poder simbólico. Nesse ponto, trazemos novamente o conceito de violência simbólica, usado por Bourdieu para explicar que toda a pro- dução simbólica na sociedade – cultural, intelectual, educacional, artística etc. – tem sentido determinado e não é arbitrária. A produção simbólica legitima as forças do- minantes nos campos na vida social e ex- prime gostos e estilos de vida de classe, ae lit ta /S hu tte rs to ck Educação, sociedade e poder 107 produzindo distinção social. Assim, a luta simbólica entre classes so- ciais não se revela nas desigualdades materiais, relacionadas ao poder de consumo e à falta ou não de dinheiro, mas sim na maneira como o dinheiro é usado, no tipo de consumo e no capital cultural 3 Refere-se não só à apro- priação de capacidades cognitivas, mas também à posse de bens materiais e simbólicos – como diplomas, certificados, tí- tulos etc. – que garantem privilégios aos indivíduos que os possuem. Apesar de parecer “natural”, ou “inato”, o capital cultural é fruto de processos sócio-históricos de repro- dução de desigualdades e legitima continuamente na sociedade as vanta- gens sociais adquiridas como herança das gera- ções anteriores. 3 de cada classe, que é substrato das desigualdades sociais. Nesse cenário, segundo Bourdieu (1983), o Estado tem papel im- portante, pois é a instituição social determinante para a construção da realidade social, já que controla os instrumentos e as regras de produção e reprodução social e impõe as categorias e classificações usadas na sociedade, as quais acabam sendo percebidas como na- turais pelos indivíduos. Lembra-se de quando tratamos da organização espacial, das práticas simbólicas, das regras e das rotinas da escola? Para Bourdieu (1983), esses elementos também expressam uma ideolo- gia de classe e são capazes de contribuir para a reprodução das de- sigualdades de classe na escola. O sociólogo defende que as normas e hierarquias presentes nas instituições escolares, por mais naturalizadas que estejam no pensa- mento e na conduta de estudantes, docentes e funcionários e por mais adequadas e úteis que pareçam, não se constituindo alvo constante de problematizações por parte da comunidade escolar, por exemplo, ain- da assim representam uma imposição dos indivíduos que ocupam os cargos de autoridade, de gestão dentro da instituição, frequentemente oriundos das classes dominantes ou ao menos seguidores dos códigos das classes dominantes, que lhes deram acesso a essas posições hie- rárquicas (e ao grau de instrução necessário aos cargos). O que Bourdieu levanta é: por que apenas parte dos indivíduos domina os códigos da cultura dominante quando esses códigos de- veriam ser acessíveis a todos por meio de uma educação universal e, mais ainda, por que valores, normas, práticas e códigos pertencen- tes às culturas de outras classes sociais que não a dominante são desvalorizados socialmente e parecem não “merecer” sua integra- ção aos currículos das escolas públicas, sendo também transmitidos por meio dos processos educativos formais? Segundo Bourdieu e Passeron (2010), sob o disfarce da “neutrali- dade” dos conteúdos curriculares, o que ocorre é a reprodução das 108 Antropologia e Sociologia da Educação desigualdades no interior da escola, pois não há nada de neutro ou aleatório no que é selecionado como “correto” e “culto”, conhecimento “verdadeiro”. Esses processos são ideológicos e atendem aos interesses da classe dominante de perpetuar as desigualdades sociais e, com ela, econômicas e de poder, usando a desculpa das diferenças culturais. Percebemos que não se trata aqui de transmitir, em vez disso, erros conceituais ou pseudociência; trata-se de não legitimar di- ferenças sociais por meio das diferenças culturais de origem dos estudantes, desvalorizando saberes populares, valores e práticas tradicionais ou ancestrais das comunidades etc., que fazem parte da construção da identidade social desses estudantes, e garantindo a todo custo, por meio do sistema escolar, a conservação cultural e social que favorece apenas as elites. Os processos de legitimação da “alta cultura” ou “cultura padrão”, no entanto, não costumam ser percebidos como de dominação e reprodu- ção social pelos indivíduos envolvidos, que incorporam passivamente o que ensinam e o que é ensinado, e juntam esses elementos à con- tínua formação de seu habitus (por meio das interações sociais) que, por sua vez, influencia costumes, comportamentos e cultura. É nesse ponto que Bourdieu chama a atenção para um fenômeno frequente: o conflito entre os componentes do habitus do indivíduo advindos da so- cialização nos meios familiar, comunitário ou religioso e os elementos transmitidos na educação escolar, que impõem a cultura dominante. Bourdieu é pioneiro, junto a Jean-Claude Passeron (1930-), da crítica à visão da escola como acesso privilegiado para a ascensão social, po- sição explicitada na obra A reprodução social: elementos para uma teoria do sistema de ensino, de 1974. Nela, os autores demonstram que a cren- ça comum de que as desvantagens econômicas podem ser plenamente superadas pelo “esforço individual”, pelo mérito pessoal e pela dedica-ção do estudante não passa de um mito, pois a escola é uma instituição de reprodução das desigualdades sociais. Os autores não ignoram as possibilidades de ascensão social via instrução escolar, nem a relevância de políticas educacionais que se empenham na redução das desigualdades, porém não veem nesses aspectos uma possibilidade de anular o caráter reprodutor das desi- gualdades da instituição escolar. Educação, sociedade e poder 109 Segundo os sociólogos Bourdieu e Passeron (2010), a avaliação es- colar não está limitada ao processo de examinar a aprendizagem dos estudantes, mas se constitui também em processo de julgamento cultural, moral e estético, estendendo-se à avaliação constante do modo de se comportar, fa- lar, escrever e relacionar-se dos estudantes, em um processo cujos parâmetros são a cultura da classe dominante, mesmo que não sejam reconhecidos “conscientemen- te” pelos docentes e gestores escolares. Nesse contexto, apontam Bourdieu e Passeron (2010), o capital cultural da elite, o entendimento trazido de casa sobre o fun- cionamento do sistema escolar e do que nele é valorizado – que se liga ao capital cultural e à presença da família na educação escolar –, o prestígio social herdado da família e, por fim, as posses materiais e o poder de compra definem decisivamente não só a avaliação dos estudantes, mas também sua trajetória escolar como um todo. As pesquisas desenvolvidas por Bourdieu e Passeron desvelam, por- tanto, as dinâmicas de reprodução escolar das desigualdades sociais, mostrando o quanto o conceito de meritocracia nos contextos educa- cional e social pode ser enganador e apontando como o fator de heran- ça familiar, de modo amplo, é essencial para analisar o desempenho escolar dos estudantes e suas chances de ascensão social e inserção na sociedade e no mundo do trabalho. Pesquisas recentes no contexto brasileiro têm comprovado que as teorias de Bourdieu sobre o caráter determinante do capital cultural familiar sobre o desempenho escolar continuam bastante úteis para a análise da educação escolar. A pesquisa publicada por Campos (2020) na revista científica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia, que investigou em que medida o capital cultural familiar é importante para o de- senvolvimento do estudante, revela que as diferenças de desempenho escolar continuam sendo favoráveis aos alunos detentores de uma situação positiva de capital cultural familiar e recomenda que as políticas públicas considerem a relevância desses achados na formulação de seus programas. O fracasso e o sucesso escolar dependem exclu- sivamente do estudante? Qual é o peso dos fatores socioculturais nesses fe- nômenos? De que modo esses fatores são incor- porados aos processos avaliativos da escola? Para refletir Figura 5 Reprodução das desigual- dades na escola Um exemplo de reprodução das desigualdades na escola são os processos de avaliação escolar, que muitas vezes não levam em conta os contextos sociais de aprendizagem dos alunos. Sy da P ro du ct io ns /S hu tte rs to ck 110 Antropologia e Sociologia da Educação Outra pesquisa feita por Silva (2020) tem como problema de in- vestigação social as relações entre as práticas culturais familiares e as desigualdades escolares, no sentido de compreender os motivos de sucesso e insucesso escolar e suas ligações com a distribuição desi- gual de capital cultural, partindo da hipótese, comprovada por meio da pesquisa, de que o impacto da herança cultural familiar, sobretudo a escolaridade da mãe, é decisivo para o desempenho escolar. As teorias de Bourdieu, entretanto, apesar de bastante adotadas até a atualidade, também foram alvo de críticas no contexto da sociologia contemporânea. Essas análises de Bourdieu, centradas no conceito de classe social, têm sido criticadas por, pelo menos, duas razões principais. Em pri- meiro lugar, uma série de pesquisas tem acentuado que a catego- ria classe social não seria suficiente como critério de diferenciação dos grupos familiares segundo suas práticas escolares. Mesmo a divisão em frações de classe [...] seria por demais abrangente para captar certas diferenças entre as famílias. [...] Percheron (1981), [...] através de pesquisa realizada com famílias pertencentes às diversas classes sociais, conclui que certas atitudes em relação à educação dos filhos (valorização da submissão, do esforço ou da autonomia; rigorismo ou liberalismo educacional) variam não tanto em função da classe ou fração de classe, mas sim de ou- tros fatores mais ou menos independentes em relação à divisão em classes: [...] a trajetória ascendente ou descendente do grupo familiar (e não necessariamente da classe), o nível educacional, o meio rural ou urbano e a postura mais ou menos conservadora e religiosa de cada família. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 26) A falta de acesso à escola no Brasil, como vimos, sempre atingiu as crianças e os jovens provenientes de famílias pobres, e não as advin- das de lares ricos. A escola pública, que tem por obrigação oferecer a educação básica a todos os cidadãos, reproduziu ao longo do tempo as desigualdades sociais e econômicas presentes na sociedade, tanto por meio dos currículos e das teorias e práticas pedagógicas adotadas quanto por meio de vários outros fatores, incluindo o pouco investi- mento na qualidade do ensino, na formação dos professores e na in- fraestrutura das escolas públicas. Esses aspectos apontam que as desigualdades de poder – econômi- co e de influência e dominação – na sociedade determinam as ideolo- gias usadas como base da concepção de educação, formação escolar da população, teorias educacionais e, principalmente, políticas públicas educacionais a serem implementadas na sociedade. Educação, sociedade e poder 111 5.3 Estado, ideologia e educação Vídeo Quando tratamos de relações de poder e educação, não estamos necessariamente nos referindo a aspectos político-partidários, mas de políticas de Estado para a educação, suas ideologias e concepções po- líticas, pois são essas que subsidiam as políticas educacionais imple- mentadas no país. No Brasil, no meio educacional, as reivindicações em torno do en- sino público obrigatório, gratuito e de qualidade para todos têm sido uma constante e, mais recentemente, têm se juntado à luta por uma escola inclusiva, que atenda às diferenças sociais e culturais, sob a pers- pectiva de uma formação crítica dos estudantes para a cidadania plena e sua ação transformadora na sociedade. Vimos que a universalização do acesso à escola, bem como a permanência, avançou muito ao longo do tempo, mas ainda não atingiu a totalidade de crianças e jovens. Junto a isso, observamos as lutas pela ampliação da qualidade da educação para todos e um cenário de disputas ideológicas e políti- cas quanto à função social da escola pública. Para Libâneo, Oliveira e Toschi (2012, p. 15): têm-se observado, nas últimas décadas, contradições mal resol- vidas entre quantidade e qualidade em relação ao direito à esco- la, entre aspectos pedagógicos e aspectos socioculturais, e entre uma visão de escola assentada no conhecimento e outra, em suas missões sociais. [...] a circulação de significados muito difu- sos para a expressão qualidade de ensino, seja por razões ideo- lógicas, seja pelo próprio significado que o senso comum atribui ao termo, dependendo do foco de análise pretendido: econômi- co, social, político, pedagógico etc. O próprio campo educacional, nos âmbitos institucional, intelectual e associativo, está longe de obter um consenso mínimo sobre os objetivos e as funções da escola pública na sociedade atual. O educador brasileiro José Carlos Libâneo (1945-) ressalta ainda que é notório o impacto negativo das diretrizes educacionais de orga- nismos internacionais no funcionamento das escolas brasileiras, pois os governos federal e estadual costumam inspirar-se nessas diretri- zes, defendidas, muitasvezes, por organizações brasileiras, para ela- borar os planos de educação, o que gera consequências nas escolas públicas sob vários aspectos: nas políticas de financiamento, nos cur- rículos, nos programas de formação de professores, na organização • Entender e aplicar os conceitos de Estado, ideologia e autonomia ao contexto educacional. • Compreender a escola como aparelho ideoló- gico do Estado e política social pública. • Analisar a influência das ideologias, dos movimen- tos sociais e das teorias nas políticas educacio- nais e no fazer docente. Objetivos de aprendizagem 112 Antropologia e Sociologia da Educação das escolas, nas práticas pedagógicas, nas formas de avaliação etc. Segundo Boom (2004), desenhou-se um novo paradigma educacional, to- mado como mais realista, mas que, na realidade, baseia-se em uma visão eco- nomicista da educação, propondo-a como uma necessidade básica natural dos seres humanos a ser satisfeita pela sociedade, tal como a fome. Boom (2004, p. 227) afirma que, ao apre- sentar a educação desse modo, ela fica: reduzida a uma simples pulsão natural, perdendo seu caráter de acontecimento cultural em que intervém o pensamento, a linguagem, a inteligência, os saberes. A educação deixa de ser, assim, um assunto da cultura para ser um serviço desprovido de política e de história, reduzindo seu papel à aquisição de compe- tências de aprendizagem. O autor chama a atenção para um fenômeno que, muitas vezes, não é percebido pelos educadores: o paradigma educacional predominante no Brasil, que embasa as concepções e políticas educacionais vigen- tes, enquanto privilegia a aprendizagem, sob o argumento de que essa seria a única forma de centrar os processos educativos no estudante, superando as pedagogias tradicionais, acabando por desvalorizar o en- sino e, em consequência, os educadores. Nóvoa (2009) esclarece que, desse modo, não apenas gestores pú- blicos da educação, como também parte dos intelectuais desse campo, acabam por reproduzir os aspectos político-ideológicos de órgãos in- ternacionais, como o Banco Mundial, que recomenda que as escolas de países pobres se concentrem em atender às necessidades mínimas de aprendizagem do alunado e constituam-se em espaços de acolhimento social, sobrepondo os objetivos assistenciais aos de aprendizagem. Libâneo, Oliveira e Toschi (2012) alertam que o antagonismo e a po- larização com relação às visões – sobretudo político-ideológicas – sobre a função da escola circulam no meio educacional há muito tempo e são expressão do caráter dual da escola brasileira que, de um lado, volta-se para o conhecimento, a aprendizagem e as tecnologias, cuja aplicação está destinada aos filhos dos ricos, e, de outro, direciona-se para o acolhimento, a assistência, o apoio e a integração social, des- Os Acordos MEC-USAID foram viabilizados no Brasil por meio da Lei n. 5.540/1968, mas já estavam sendo negocia- dos em segredo desde 1965 entre o Ministério da Educação (MEC) do Brasil e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Inter- nacional (USAID), com o objetivo de implantar reformas educacionais no país de acordo com os padrões desejados pelos EUA para os países da América Latina. A proposta original era a completa privatização das escolas públicas, que não foi efetuada, e as reformas curriculares, que foram realizadas, como a redução de carga horária de disciplinas como História e Geogra- fia, eliminação das disci- plinas de Filosofia, Latim e Educação Política, sob o pretexto de serem obsoletas, e inserção de disciplinas com objetivos moralizadores, como Educação Moral e Cívica. Curiosidade São frequentes os protestos de professores em prol da melhoria da qualidade da educação e das condições de trabalho docente. Es qu er da .N et F lic kr /W iki m ed ia C om m on s Educação, sociedade e poder 113 tinada aos filhos das famílias pobres, que precisariam aprender ape- nas o mínimo necessário (como ler, escrever e executar as quatro operações matemáticas). 5.3.1 Teorias educativas e políticas educacionais O teórico da educação Demerval Saviani (1943-) propôs uma classifi- cação das teorias educacionais em críticas e não críticas que contribui muito para a análise das diferentes políticas educacionais e movimen- tos de educadores no Brasil. Em sua obra Escola e Democracia, de 1991, classifica e discute as teorias educacionais e suas implicações não só para o ensino, mas também sob aspectos sociopolíticos e os impactos nas políticas educacionais brasileiras. O grupo de teorias não críticas está apresentado no quadro a seguir. Quadro 2 Teorias educacionais não críticas Teorias não críticas Características Abordagem pedagógica Tendência político-ideológica Políticas educacionais no Brasil Pe da go gi a tr ad ic io na l A educação é autôno- ma, não sofre influên- cia do contexto ou de ideologias. É reprodu- tora dos conhecimen- tos acumulados pela humanidade, promo- ve coesão social e evi- ta desvios. Centra os processos educativos no pro- fessor, vendo o aluno como receptor passi- vo do conteúdo trans- mitido. Separa teoria e prática, enfatizando a prática. Tendências conserva- doras e redentoras. Políticas de acesso restri- to à escola e de assisten- cialismo. Predominante até a dé- cada de 1930 no Brasil, porém com influência em décadas posteriores. Pe da go gi a no va Educação é uma fer- ramenta de supera- ção das desigualda- des sociais. Vê a escola como equalizadora social e privilegia o “aprender a aprender”, os métodos e as técnicas, em vez dos conteúdos. Tendências liberais progressistas. Reformas educacionais realizadas após o Movi- mento da Escola Nova no Brasil, entre as déca- das de 1930 e 1960. Pe da go gi a te cn ic is ta A meta da educação é o ensino racional, organizado e operacio- nal para formar indiví- duos “produtivos”. Vê a escola como pre- paração para o mundo do trabalho, enfatiza o “aprender a fazer” e pri- vilegia os recursos e as tecnologias “eficazes”. Neoliberal. Políticas educacionais implantadas no perío- do do Regime Militar no Brasil, nas décadas de 1960 a 1980, que reduziram o ensino de humanidades nos currí- culos e privilegiaram os conhecimentos básicos e o ensino técnico. Fonte: Elaborado pela autora com base em Saviani, 1991. 114 Antropologia e Sociologia da Educação Observamos no quadro que as teorias educacionais não críticas listadas por Saviani são a pedagogia tradicional, a pedagogia nova e a pedagogia tecnicista, todas teorias que veem a educação como uma ferramenta que promove a igualdade social e supera a exclusão ou marginalidade social. A teoria tradicional teve grande influência sobre a organização do sistema de ensino no Brasil e, apesar de ter deixado de ser explícita em documentos oficiais dos programas educacionais após a década de 1930, foi responsável por inspirar uma organização do ensino e do espaço escolar que perdurou por muito tempo nas práticas docentes e deixou marcas até a atualidade. Segundo a teoria tradicional, o ensino é organizado por classes determinadas por faixa etária e capacidades cognitivas, dirigidas por um professor que é o responsável pela transmissão expositiva e sistematizada dos conteúdos pertencentes ao acervo cultural da humanidade aos alunos segundo os princípios do método científico tradicional (indutivo): apresentação, comparação, assimilação, gene- ralização e aplicação. Aos estudantes resta absorver passiva e disci- plinadamente os conteúdos e reproduzi-los fielmente nas tarefas e avaliações (SAVIANI, 1991, p. 57). Perceba que a teoria da pedagogia tradicional tem objetivos con- servadores, ou seja, conservar a estrutura social vigente, atribuindo à escola o papel de corrigir os “desvios” de determinados indivíduos e evitar a marginalidade, vista como fruto de desvio moral pessoal, não de desigualdades sociais e econômicas. A visão da escola como “reden- tora”dos pobres e desvalidos tem raiz na moral cristã que acabava por dar caráter mais de assistencialismo do que de ensino e aprendizagem à escola pública tradicional. O professor como centro do processo edu- cativo eliminava qualquer possibilidade de formação de autonomia e reflexão crítica dos estudantes sobre os conteúdos e a realidade social. Em reação a esse caráter conservador, surge a pedagogia nova, que, apesar de também considerar que a escola tinha a capacidade de equalização social, acusava a escola tradicional de não cumprir com esse papel. Ao contrário da tradicional, ela não tomava os excluídos ou marginalizados da sociedade como ignorantes, mas como “rejeitados”. A escola, portanto, deveria trabalhar na adaptação e aceitação dessas pessoas pela sociedade. Notamos que, da mesma forma que a peda- Educação, sociedade e poder 115 gogia tradicional, a pedagogia nova considerava que o “defeito” estava nos indivíduos excluídos socialmente, e não na estrutura social desigual e na desigualdade de oportunidades da sociedade. A organização e os objetivos do ensino, segundo essa pedagogia, assentavam-se sobre a ideia do professor como um orientador, um incentivador da aprendiza- gem dos alunos, que deveriam, em um ambiente favorável criado pelo docente, cheio de recursos didáticos atraentes, conduzir seu aprendi- zado por iniciativa própria. Sob essa perspectiva, a escola precisava ser um ambiente estimulan- te, dinâmico, colorido e alegre, em oposição ao ambiente sério, rígido, pouco estimulante e monótono que a teoria tradicional tinha imposto. O lema da pedagogia nova, representado pelo movimento da Escola Nova no Brasil, era “aprender a aprender” e inspirava-se nas ideias de autores como Heinrich Pestalozzi (1746-1827), John Dewey (1859-1952), Friedrich Fröebel (1782-1852) e Célestin Freinet (1896-1966). Saviani (1991, p. 22) aponta que a pedagogia nova trouxe mais erros que acertos quando aplicada pelas políticas educacionais no Brasil en- tre as décadas de 1930 e meados da década de 1960: provocando o afrouxamento da disciplina e a despreocupação com a transmissão de conhecimentos, acabou por rebaixar o nível do ensino destinado às camadas populares, as quais muito frequentemente têm na escola o único meio de acesso ao conhe- cimento elaborado. Em contrapartida, a “Escola Nova” aprimorou a qualidade do ensino destinado às elites. Para Saviani, a aplicação prática dessa teoria ampliou as desigual- dades na escola, pois valoriza alguns estudantes em prejuízo de ou- tros, aplicando suas propostas e experimentos a pequenos grupos. Essa crítica de caráter social e político pode ser exemplificada pelo fato de que as escolas ao adotarem métodos ligados à pedagogia nova eram majoritariamente privadas; já em sistemas públicos de en- sino em que a teoria foi aplicada, como é o caso do estado de São Paulo, a diferença era nítida entre escolas chamadas modelo, que recebiam mais investimentos e a maior parte dos alunos vinha das classes médias, e outras da rede, mais escassas, que atendiam aos alunos oriundos de famílias mais pobres e não recebiam os recursos didáticos e outras vantagens. A responsabilidade do Estado sobre a educação de qualidade para todos, como vemos, ainda não era uma garantia viabilizada na prática. 116 Antropologia e Sociologia da Educação Figura 6 Exemplo de atividade da Escola Nova: Cineminha Nos anos 1930 e 1940, os educadores da escola nova defendiam a intensa participação dos alunos nas atividades escolares, por meio do método de projetos e centro de interesses e do trabalho em grupo, como retratado na construção do “cineminha”. Fonte: CRE Mario Covas, 2022. A pedagogia tecnicista, por fim, também é classificada no grupo das teorias não críticas, ou seja, que não fazem críticas à estrutura, à es- tratificação social e às desigualdades na sociedade, nem pretendem transformá-la, apenas “adaptar” os indivíduos por meio da escola. A base filosófica dessa pedagogia, para Saviani (1991), está em conside- rar que os indivíduos são diferentes quanto às suas capacidades, uns com mais e outros com menos capacidade de aprender, e diferentes em seus interesses e ritmos de aprendizagem. A pedagogia tecnicista surge para atender às transformações no sistema capitalista e segue, essencialmente, o modo de produção das fábricas, nas quais o trabalhador tem funções objetivas voltadas para resultados específicos na produção. A reorganização do ensino, rea- lizada por meio da aplicação dessa pedagogia nas políticas públicas educacionais durante o período do Regime Militar no Brasil, passou a valorizar as técnicas, produzidas por especialistas supostamente “neu- tros” ideologicamente – com base na noção da ciência como neutra, livre de condicionantes sociais e econômicos –, que deveriam ser usa- das pelo professor como centro do processo educativo, no qual tanto docente quanto discente eram apenas coadjuvantes. Essa teoria também afirmava o poder da escola como promotora da equalização social: “a educação [contribuirá] [...] para superar o pro- blema da marginalidade na medida em que formar indivíduos eficien- tes, portanto, capazes de darem sua parcela de contribuição para o aumento da produtividade da sociedade. Assim, estará ela cumprindo sua função de equalização social” (SAVIANI, 1991, p. 25). Educação, sociedade e poder 117 A partir da década de 1970 surgem, fora do Brasil, as teorias socio- lógicas da educação que propõem pedagogias críticas chamadas de reprodutivistas, pois consideravam que a escola era uma instância que re- produzia as desigualdades estruturais da sociedade e defendiam que era inviável compreender a educação e os processos educativos sem anali- sar seus condicionantes sociais. Essas teorias chegaram aos poucos no país, mas não tiveram reflexos significativos nas políticas educacionais, apesar de afetarem as práticas pedagógicas com a formação superior dos docentes. Conheça, entre as teorias críticas, as crítico-reprodutivistas apresentadas no quadro a seguir. Quadro 3 Teorias críticas Teorias crítico- -reprodutivistas Características Abordagem pedagógica Tendência político-ideológica Autores Teoria do sistema de ensino como violência simbólica (ou teoria da reprodução social) Escola como repro- dutora de desigual- dades sociais e ideo- logia dominante. O capital cultural das classes dominantes é legitimado na escola. A escola deve ser au- tônoma e os docen- tes, conscientes de seu papel social de formar para a trans- formação social. Tendências críticas ao neoliberalismo e ao capitalismo de matriz marxista. Os sociólogos Bourdieu e Passeron. Teoria da escola como aparelho ideo- lógico de estado A escola é um instru- mento de reprodução das relações de pro- dução capitalistas. A escola não deve se limitar ao ensino de saberes práticos e teóricos necessá- rios ao bom funcio- namento do sistema produtivo, mas sim formar criticamente os cidadãos. Marxismo estrutural. O filósofo Louis Althusser (1918-1990). Teoria da escola dualista A escola está dividi- da em duas grandes redes – burguesa e proletária –, repro- duz a ideologia bur- guesa e prepara o proletariado para o trabalho, sem refle- xão ou crítica. A escola deve ser uma, e não dual, propiciando uma educação ampla e o acesso ao Ensino Su- perior também para os filhos da classe trabalhadora. Tendências de matriz marxista. Os sociólogos Christian Baudelot (1938-) e Roger Establet (1938-). Fonte: Elaborado pela autora com base em Saviani, 1991. 118 Antropologia e Sociologia da Educação Como vimos, a teoria da violência simbólica, de Bourdieu e Passeron, considera que todas as sociedades se estruturam como sistema de relações materiais entre grupos sociais ou classes. Nesse contexto, os sociólogos compreendem o sistema de ensino como um instru- mento de manutenção das relações de dominação presentes no sistema social e caracterizam a ação pedagógica como um meio de legitimara violência simbólica das classes dominantes sobre as dominadas, implementando, por meio da reprodução cultural, a reprodução social. Sob a mesma matriz interpretativa da sociedade, de base mar- xista, o sociólogo Althusser propôs a teoria da escola como apa- relho ideológico de Estado, considerando que essa instituição social é reprodutora das relações de produção capitalista, posto que reproduz o saber das classes dominantes para todas as outras classes sociais por meio da educação de crianças e jovens, perpe- tuando a ideologia da elite por meio da ação do Estado (políticas públicas educacionais) e mantendo os interesses econômicos da burguesia em detrimento dos das classes trabalhadoras, cada vez mais marginalizadas na distribuição de riquezas e conhecimento na sociedade. Outra teoria crítica ligada ao reconhecimento da escola como reprodutora das desigualdades da sociedade, e de base marxista, é a teoria da escola dualista, de Baudelot e Establet, que identificava uma divisão da escola em dois segmentos, os quais corresponde- riam às duas classes sociais principais da sociedade, a burguesia e o proletariado. Para esses autores, que empreenderam pesquisas qualitativas em escolas francesas no início da década de 1970, a es- cola cumpriria apenas duas funções, interessantes à classe domi- nante e ao Estado: formar a força de trabalho e impor a ideologia burguesa aos estudantes provenientes das classes trabalhadoras. Saviani (1991), no entanto, destaca que as teorias críticas não se limitam às teorias crítico-reprodutivistas. Para ele, existem as teorias críticas não reprodutivistas, que consideram a escola como um espaço de lutas e contradições, mas também, ao mesmo tem- po, um espaço de superação de conflitos, que tem a capacidade de exercer um poder real de transformação na sociedade e redução Educação, sociedade e poder 119 das desigualdades, ainda que limitado pelas condições estruturais objetivas dessa mesma sociedade. Segundo o autor, essa vertente teórica vê os processos de ensi- no e aprendizagem como um conjunto de relações dialéticas entre professor e estudante e defende que o docente deve promover a relação do estudante com os conteúdos do ensino de modo dinâ- mico, contextualizado em suas experiências concretas, a fim de formá-lo com uma visão crítica para transformação da realidade social. Saviani afirma que, sob essa concepção, o professor precisa conhecer bem seus objetos de ensino e compreendê-los sob um viés crítico e sob a perspectiva prática, sendo capaz de contribuir para que o estudante reflita sobre suas aprendizagens, seus pró- prios saberes e os conhecimentos que adquire na escola, mas que também possa os transformar em conhecimento vivo e aplicável à vida social, no sentido de transformar sua realidade. Entre as pedagogias críticas não reprodutivistas está a peda- gogia histórico-crítica, proposta de Saviani em sua obra homôni- ma de 1991. Para o autor, as teorias crítico-reprodutivistas foram importantes ao criticar o autoritarismo e o ensino mecanicista e instrumental implantado após a consolidação da teoria tecnicista como base das políticas públicas para a educação no Brasil, po- rém essas teorias teriam se limitado apenas à crítica e à denúncia das injustiças do modelo tecnicista, sem, no entanto, apresentar uma proposta sistematizada de intervenção na realidade escolar, de reorganização dos sistemas de ensino. Com a proposta histórico-crítica, Saviani busca entender o en- sino com base em seu desenvolvimento histórico, sob uma con- cepção claramente ligada ao materialismo histórico e à dialética marxista, que foca a determinação das condições materiais (eco- nômicas) sobre a existência humana, como se vê na sociologia de Karl Marx. A proposta de Saviani para a reorganização dos sistemas de ensino, portanto, parte do abandono da visão crítico-mecanicis- ta das teorias crítico-reprodutivistas e da aderência a uma visão crítico-dialética, buscando promover uma pedagogia e uma esco- la capazes de, efetivamente, transformar a sociedade, em vez de reproduzi-la, em um movimento de superação das desigualdades. 120 Antropologia e Sociologia da Educação CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisando sob perspectiva sociológica, a história das instituições e dos processos educativos, da organização dos sistemas de ensino, das teorias educacionais e de suas relações com as políticas públicas para a educação no Brasil, percebemos que todos esses fenômenos educacionais passaram por transformações que seguem um movi- mento histórico e social, condicionado pelas mudanças na sociedade e no pensamento social e educacional. Esse movimento inicia-se em um contexto histórico em que a con- cepção predominante de educação era a fundada em teorias como a de Émile Durkheim, ou seja, da educação e da instituição escolar como instâncias que promovem a coesão social e a adequação de crianças e jovens às regras da sociedade, por meio da socialização. Essa visão conservadora considera desvios da norma como “defei- tos morais” do indivíduo e é característica da pedagogia tradicional, a qual desconsidera as desigualdades ou ao menos a necessidade de superá-las. O que importa é “enquadrar” os indivíduos, tornando- -os parte de um todo social homogêneo por meio de rígida disciplina escolar. Se imaginarmos um grande salto temporal, até a década de 1970, época de grandes transformações nas sociedades, nos direitos dos grupos sociais, nos comportamentos e nos modos de pensar e estar no mundo, veremos uma guinada no movimento de produção e inter- pretação dos fenômenos educacionais, empreendidos principalmen- te pela sociologia: as teorias críticas da educação, que denunciam a escola não só como alheia às desigualdades sociais, mas reprodutora delas. Sendo a escola uma instituição que, por meio dos processos edu- cativos que legitimam a cultura dominante, mantém a estrutura cultu- ral, social e econômica desigual e injusta na sociedade, ela cria duas escolas: uma para os filhos da elite e outra para os filhos dos traba- lhadores; uma para os conhecimentos e o acesso ao Ensino Superior e outra para a formação mecânica da massa trabalhadora. Com base nessas críticas, vemos surgirem várias outras teorias crí- ticas ao modo como a escola tradicionalmente vem desempenhando seu papel na sociedade e propondo novos caminhos de transforma- ção da instituição e das práticas pedagógicas, apontando a necessi- dade de formar os estudantes para transformar a realidade. Educação, sociedade e poder 121 ATIVIDADES Atividade 1 Os processos de educação informal e não formal podem ocorrer nos mesmos locais? Justifique sua resposta. Atividade 2 Quais são os reais motivos das reformas curriculares implemen- tadas após os acordos MEC-USAID? Atividade 3 Quais são as principais diferenças entre as teorias educacionais crítico-reprodutivistas e a pedagogia histórico-crítica? REFERÊNCIAS BOOM, A. M. De la escuela expansiva a la escuela competitiva: dos modos de modernización en América Latina. Barcelona: Anthropos Editorial; Bogotá: Convenio Andrés Bello, 2004. BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. BOURDIEU, P.; PASSERON, J. 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Acesso em: 12 jan. 2022. 6 Sociologia da Educação e formação docente Uma das grandes contribuições da Sociologia da Educação para a for- mação e a prática docente é o modo como ela pode subsidiar a reflexão do professor sobre seus próprios saberes, sua trajetória como profissional e suas práticas no cotidiano escolar, auxiliando-o a analisar de modo crítico suas concepções de mundo e de ensino e a transformar suas práticas no sentido de promover uma formação para a cidadania plena para seus estudantes e de imbuir suas ações e relações no contexto escolar de um caráter crítico, humano e emancipador. Com isso, evita-se a reprodução mecânica e pouco consciente de concepções e práticas incorporadas du- rante sua trajetória e que, por vezes, não refletem verdadeiramente seu posicionamento docente. Neste capítulo, conheceremos várias dessas contribuições da Sociologia da Educação para o trabalho docente. 6.1 A construção social da escola Vídeo Já vimos que a instituição social “escola”, assim como a educação escolar, surgiu com a função de auxiliar na socialização de crianças e jovens para a vida em sociedade e com o papel de transmitir a eles os conhecimentos sistematizados pela humanidade. Na clássica obra divi- dida em quatro volumes, História mundial da educação (1986), Jean Vial (1909-) e Gaston Mialaret (1918-2016) afirmam que a cultura humana não é hereditária, precisa ser aprendida, e que esse aprendizado não é espontâneo, ou seja, não basta estarmos expostos à cultura de determinada sociedade, por vivermos nela, para aprendê-la. Ev er et t C ol le ct io /S hu tte rs to ck • Compreender a construção social do sistema escolar. • Avaliar o processo de am- pliação dos papéis da esco- la na contemporaneidade. Objetivos de aprendizagem Sociologia da Educação e formação docenteSociologia da Educação e formação docente 123123 124 Antropologia e Sociologia da Educação Os autores destacam que é essencial que haja mecanismos so- ciais específicos para desenvolvermos tal aprendizagem, instituições sociais que se dediquem sistematicamente e com método a esse tipo de instrução, a qual se baseia na transmissão dos conhecimentos ar- mazenados historicamente pela humanidade às próximas gerações. Já sabemos e percebemos que, ao analisar quais conhecimentos são selecionados e de que modo são ensinados na escola, a educação es- colar é influenciada por determinados interesses e ideologias. Um exemplo histórico de tal influência é o que podemos observar ao analisar a sociedade egípcia na Antiguidade. Nessa sociedade, o acesso ao aprendizado da escrita era restrito às Escolas Reais, voltadas para os filhos dos faraós e de outras famílias nobres da corte. Os professo- res eram os escribas mais idosos, profissionais que passavam a vida a serviço dos faraós, registrando feitos históricos, trocas comerciais etc. As Escolas Reais restringiam à elite egípcia o acesso ao conhecimento, mantendo seus privilégios na sociedade e os laços entre seus integran- tes e perpetuando o poder das dinastias faraônicas. Tr iff /S hu tte rs to ck 6.1.1 A ampliação do papel social da escola Para Vial e Mialaret (1986), em um cenário contemporâneo de crescente complexificação das sociedades, ampliação sem precedentes da produção e do acesso a informações e transformações culturais, as instituições sociais como um todo e, particularmente, a instituição es- colar ampliaram seu papel social e sua abrangência. A instrução básica escolar se tornou obrigatória e cada vez mais universal, e, ao mesmo tempo, cresceu a influência difusa de uma multiplicidade de agentes Não só o ensino da escrita, mas também os próprios registros escritos e imagéticos eram utiliza- dos, na sociedade egípcia antiga, para demarcar a sólida hierarquia social e manter o lugar de poder da elite social. As repre- sentações por meio de imagens, por exemplo, deveriam ensinar o res- peito à ordem social, e o aprendizado era realizado por meio de imitação, cópia e repetição. Curiosidade Sociologia da Educação e formação docente 125 que, de um modo ou de outro, empreendem ações educativas sob al- gum aspecto, como é o caso das mídias tradicionais e das mídias digitais. Sl aS la /S hu tte rs to ck Na atualidade, a educação escolar é vista, em geral, como tendo o papel de socialização dos indivíduos, de formação de cidadãos so- cialmente úteis. Esse papel, entretanto, é compartilhado com outras instituições e instâncias sociais que atuam na educação informal e não formal, o que nos leva a refletir sobre o que diferencia a escola na qua- lidade de instituição social. A característica fundamental da escola é a instrução formal, po- rém, com o tempo, ela foi ganhando outras funções, por exemplo, a guarda ou custódia das crianças e dos adolescentes, necessária no contexto das transformações na composição das famílias e de inser- ção de seus integrantes no mercado de trabalho. A educação escolar apresenta algumas características marcantes: ter sua realização em locais fixos e específicos (as escolas) – cuja arquitetura é reconhecida socialmente –, ter horários determinados e seguir programas previa- mente determinados, ser voltada para faixas etárias definidas e limi- tada à infância e adolescência, apresentar métodos e utilizar-se de agentes especializados – os docentes. Essas especificidades da escola remetem à sua dimensão orga- nizacional. Já vimos que a escola como organização especializada e controlada pelo Estado é relativamente recente, pois em sua origem a educação formal era ligada à Igreja. A dimensão organizacional da escola, isto é, a escola como organização, pode ser interpretada sob visões diferentes: Quais seriam, então, as especificidades da esco- la e da educação escolar? O que diferencia a escola das outras instâncias edu- cativas da sociedade? Para refletir 126 Antropologia e Sociologia da Educação Como estabelecimento público ou particular de ensino de conhecimentos científicos, literários, artísticos, profissionais etc., ou seja, uma comunidade educativa, regulamentada pelo Estado, quepromove a formação cultural sistemática e a preparação de crianças e jovens para conviver democraticamente em sociedade na vida adulta e que conta com a contribuição de outras instituições sociais. Como conjunto de professores, alunos e seus pais ou responsáveis que compartilham do mesmo território, de uma herança cultural comum e de dinâmicas próprias ao grupo, encarregados da educação das próximas gerações. 1 2 A grande diferença entre essas duas concepções de escola na qua- lidade de organização é o quanto cada uma considera a instituição es- colar uma organização construída socialmente. Nesse sentido, uma área específica da sociologia, a Sociologia das Organizações Escolares, tem o objetivo de investigar as dinâmicas organizacionais da escola sob uma abordagem diferente das teorias da reprodução social, que, como já vimos, consideram-na instância de reprodução das igualdades sociais. Sob essa perspectiva, a escola é vista como uma organização social cujas ações educativas devem ser controladas socialmente, de modo a redu- zirem seu caráter de reprodução das desigualdades e ampliarem a pro- moção de novas formas de socialização e formação para a inclusão. A concepção organizacional da escola a toma como um sistema de mediação entre grupos sociais. Segundo essa visão, a escola tem: a função mediática ou «simbólica» da escola, enquanto elemento de ligação entre o macrossistema e os diferentes microssistemas, representados pelos vários grupos organizacionais da escola, e a «função generativa» que decorre das suas características de sis- tema aberto, sujeito a diferentes correntes de influências ou po- deres, e que implicam a capacidade de reelaboração e tradução local daquilo que representa o conjunto de influências sobre a escola — os normativos, as culturas e a história de cada lugar. [...] cada estabelecimento tem característica gerais de estrutura e de funcionamento comuns, mas que estas se associam diferente- mente, originando modalidades de funcionamento e característi- cas próprias de cada escola. Estas relacionam-se com o conjunto de valores e de interações constituintes de contextos geradores de experiências de vida, não necessariamente reprodutoras de estratégias individuais e sociais. (CLÍMACO, 1991, p. 90) Sociologia da Educação e formação docente 127 Os “contextos sociais geradores de experiências de vida”, mencio- nados pela autora, não dependem apenas das estruturas organizativas escolares, que em geral são muito semelhantes em todas as escolas, mas de fatores do contexto local, dos princípios e dos objetivos de cada comunidade educativa, das concepções de escola e de educação que subsidiam as práticas pedagógicas e culturais que cada comuni- dade educativa constrói para si. Ou seja: a socialização por meio da educação formal não é a mesma em todas as escolas e depende dos contextos sociais e culturais locais em que as comunidades educa- tivas – os docentes, outros funcionários da escola, os alunos e suas famílias – estão inseridas, como o bairro, o povoado, a cidade etc. Para Moacir Gadotti (1941-), a função social da escola pode ampliar um novo sentido, que abarca seu contexto espacial e social local, por meio do conceito de Cidades Educadoras. Tal conceito apareceu de modo central no primeiro Congresso Internacional das Cidades Educa- doras, no início da década de 1990, em Barcelona (Espanha), quando fo- ram lançados os princípios norteadores para as cidades que têm escolas que se dispõem a serem educadoras. Várias cidades do mundo, inclusive do Brasil, comprometeram-se, na época, a adotar tais princípios e passa- ram a integrar o chamado movimento das Cidades Educadoras, o qual pro- move encontros, congressos e premiações em todo o mundo, apoiando as iniciativas das cidades que aderem aos princípios do movimento. Figura 1 Dia Internacional da Cidade Educadora 2021 Imagem de divulgação das comemorações da 6ª edição do Dia Internacional da Cidade Educadora realizadas em 30 de novembro de 2021 em Almada, Portugal, sob o lema “Não deixar ninguém para trás”. Fonte: AICE, 2021. Gadotti (2006) explica que Cidade Educadora é a cidade considerada espaço de cultura que pode, intencionalmente, educar a escola e todos os cidadãos que frequentam seus espaços – docentes, discentes, fun- 128 Antropologia e Sociologia da Educação cionários, famílias e demais membros da comunidade –, conceituando a escola como um espaço privilegiado de vivência e trocas de saberes e competências. Uma cidade, portanto, educa quando ultrapassa seus papéis tradicionais, como os sociais, os políticos, os econômicos, os de serviço público etc., e se incumbe também de outros papéis ligados à formação para a cidadania, promovendo o protagonismo de todos os indivíduos como cidadãos. O autor ressalta, citando Paulo Freire, que “enquanto educadora, a Cidade é também educanda. Muito de sua tarefa educativa implica a nossa posição política e, obviamente, a maneira como exerçamos o poder na Cidade e o sonho ou a utopia de que embebamos a política, a serviço de que e de quem a fazemos” (FREIRE, 2001, p. 13). Gadotti (2006) esclarece ainda o que seria educar pela e para a cida- dania, princípio que ele defende como fundamental ao papel não só da escola, mas também da cidade como lócus de convivência educativa. Para isso, primeiro o autor aponta as bases do conceito de cidadania como consciência de direitos e deveres e exercício da democracia: “di- reitos civis, como segurança e locomoção; direitos sociais, como tra- balho, salário justo, saúde, educação, habitação etc.; direitos políticos, como liberdade de expressão, de voto, de participação em partidos po- líticos e sindicatos etc.” (GADOTTI, 2006, p. 134). Em seguida, o educador indica, tomando como base a autora es- panhola, Adela Cortina (1947-) (1997), o que seriam as dimensões da cidadania plena, esta que deve ser promovida pelas Cidades Educa- doras (GADOTTI, 2006, p. 134): • cidadania política – direito de participação numa comunidade política; • cidadania social – que compreende a justiça como exigência ética da sociedade de bem viver; • cidadania econômica – participação na gestão e nos lucros da empresa, transformação produtiva com equidade; • cidadania civil – afirmação de valores cívicos como liberdade, igualdade, respeito ativo, solidariedade, diálogo; • cidadania intercultural – afirmação da interculturalidade como projeto ético e político frente ao etnocentrismo. Uma Cidade Educadora, portanto, proporciona a todos as mesmas oportunidades de formação, de desenvolvimento pessoal e de acesso a tudo o que a cidade oferece. Esse conceito ampliado de papel social da Sociologia da Educação e formação docente 129 educação, que ultrapassa os muros da escola e ganha o espaço alarga- do da cidade como espaço de aprendizagens sociais para a cidadania, foi sintetizado no Manifesto das Cidades Educadoras, o qual defende que a satisfação das necessidades de crianças e jovens, no que concerne às competências e funções municipais, depende de: uma oferta de espaços, equipamentos e serviços adequados ao desenvolvimento social, moral e cultural, a serem partilhados com outras gerações. [...] A cidade oferecerá aos pais uma for- mação que lhes permita ajudar os seus filhos a crescer e utilizar a cidade num espírito de respeito mútuo. Todos os habitantes da cidade têm o direito de refletir e participar na criação de progra- mas educativos e culturais e a dispor dos instrumentos [para] [...] descobrir um projeto educativo, na estrutura e na gestão da sua cidade, nos valores que esta fomenta, na qualidade de vida que oferece, nas festas que organiza, nas campanhas que prepara, no interesse que manifesta por eles e na forma de os escutar. (GADOTTI, 2006, p. 134-135) Nesse contexto, outro conceito ganhou força: o da Escola Cidadã, uma escola participativa, aberta e apropriada pela população como parte integrante da cidade e da cidadania. O papel social daEscola Ci- dadã, no contexto de uma cidade que educa, é criar as condições para o exercício pleno da cidadania, por meio da socialização da informa- ção, da discussão, da transparência, gerando uma nova mentalidade, uma nova cultura, com relação ao caráter público do espaço da cidade (GADOTTI, 2006). Nesse sentido, é importante refletirmos sobre o papel do professor em uma escola cidadã e em uma Cidade Educadora. Gadotti nos lembra de modo incisivo, em sua obra A escola na cidade que educa, que a cidade, na contemporaneidade, caracteriza-se por um clima de violência cada vez mais intenso, o que provoca sensações generalizadas de medo e fal- ta de expectativas na população e gera um cenário no qual o professor, que também vivencia esse ambiente e tem poderes limitados, pode agir movido pela esperança da transformação da realidade, em busca do que Freire (2001, p. 30) chamava de um mundo “menos malvado, menos feio, menos autoritário, mais democrático, mais humano”. Para Freire, uma educação sem esperança na mudança não é educação. Acesse o site da Asso- ciação Internacional das Cidades Educadoras e a matéria 5 cidades educa- doras que transformaram suas realidades locais pelo aprendizado e conheça quais são as cidades associadas, suas ações e as conquistas históricas e recentes no contexto do movimento educacional para a cidadania. Disponíveis em: • https://www.edcities.org/pt/ • https://portal.aprendiz.uol. com.br/2015/05/07/5-cidades- educadoras-que-transformaram-suas- realidades-locais-pelo-aprendizado. Acessos em: 1 fev. 2022. Site 130 Antropologia e Sociologia da Educação 6.2 A construção social do docente Vídeo Já sabemos que a socialização é um processo contínuo de formação do indivíduo, que ocorre ao longo de toda a vida e, durante a infância e adolescência, ocorre em boa parte por meio da educação escolar. Se pensarmos, no entanto, não sob o ponto de vista dos estudantes, mas dos docentes, veremos que, antes da formação profissional pela qual os professores passam, ocorrem também processos de socialização dos sujeitos que, mais tarde, exercerão a função docente. Devemos le- var em conta as experiências prévias escolares, familiares e sociais dos professores, suas interações cotidianas com indivíduos e grupos que ajudaram a construir seus saberes – valores, conhecimentos, hábitos, capacidades etc. – e que influenciam não só sua identidade pessoal e social, como sua atuação docente e seu desempenho nos processos educativos escolares. Nesse sentido, a Sociologia da Educação preocu- pou-se em investigar a natureza e a origem dos saberes dos professo- res e de que modo tais saberes integram o trabalho docente. Observemos o quadro a seguir e analisemos o modelo de classi- ficação de saberes docentes nele proposto. Quadro 1 Saberes docentes (continua) Saberes dos professores Fontes sociais de aquisição Modos de integração no trabalho docente Provenientes de experiên- cias pessoais e familiares Ambiente de vida familiar e comunitária, aprendiza- gens informais. História de vida e socializa- ção primária Provenientes de formação escolar anterior Escolas de Ensino Funda- mental e Médio não pro- fissionalizantes. Formação e socialização pré-profissionais Provenientes de forma- ção profissional para o magistério Estabelecimentos de for- mação de professores, como Universidades; es- tágios docentes; formação continuada em serviço. Formação e socialização profissionais Provenientes dos progra- mas e livros didáticos usa- dos no trabalho docente. Programas e recursos di- dáticos aplicados na escola em que atuam (métodos, livros didáticos, projetos). Aplicação de ferramentas e recursos às tarefas do- centes. Provenientes de sua própria experiência na profissão, em sala de aula e na escola Práticas docentes na sala de aula, práticas na escola e experiências dos pares. Práticas do trabalho do- cente e socialização pro- fissional. Fonte: Elaborado pela autora com base em Tardif; Raymond, 2000, p. 215. • Entender as contribui- ções da Sociologia da Educação para a forma- ção docente e o papel social do professor. • Compreender a constru- ção social do professor e de seus saberes. Objetivos de aprendizagem Sociologia da Educação e formação docente 131 Se analisarmos atentamente a proposta classificatória de saberes docentes do Quadro 1, perceberemos que os critérios apresentados nele não estão ligados a conhecimentos pedagógicos, de conteúdo dis- ciplinar, teóricos ou procedimentais, mas se relacionam com os am- bientes nos quais os professores vivenciaram processos educativos e os ambientes organizacionais em que atuam como agentes educativos e obtêm experiência de trabalho. É importante, entretanto, considerarmos os aspectos temporais de tais saberes, pois alguns deles foram adquiridos no passado, du- rante a infância, por exemplo, constituindo-se como experiências fun- dadoras da personalidade do professor, aliando elementos afetivos aos cognitivos e refletindo-se em suas práticas na escola, e outros saberes foram adquiridos em um passado recente ou mesmo no pre- sente, o que poderia facilitar sua mobilização como recurso para a ação docente cotidiana, por exemplo. Tardif e Raymond (2000) apontam que a temporalidade estrutura a memorização de experiências educativas marcantes para a cons- trução do “Eu” profissional e lembram que Berger e Luckman (1980) compreendiam a temporalidade como uma estrutura intrínseca da consciência, impossível de ser modificada, pois uma sequência espe- cífica de experiências de vida de uma pessoa não pode ser invertida, apagada, reiniciada do zero etc. Para Berger e Luckman, a estrutura temporal da consciência proporciona a historicidade que define a situa- ção de uma pessoa em sua vida cotidiana como um todo e lhe permite atribuir muitas vezes, posteriormente, um significado e uma direção à sua própria trajetória de vida, e isso também se aplica ao professor. Os tipos de saberes listados no Quadro 1 são efetivamente os que costumam ser aplicados cotidianamente pelo professor em sala de aula e em suas relações na escola, como seus saberes pessoais, sua formação escolar e profissional, programas e livros didáticos adotados na escola, experiências profissionais prévias e aprendidas com colegas de docência, representando a dimensão social dos saberes docentes construídos com base nas interações sociais do professor: o professor usa como referências seus saberes, localizados temporal e espacial- mente em sua história de vida e trajetória profissional, para legitimar suas ações e escolhas como docente. 132 Antropologia e Sociologia da Educação As pesquisas da área de Sociologia da Educação voltadas para o ma- peamento da história de vida dos professores começaram a ser reali- zadas por volta da década de 1980, porém os estudos que investigam especificamente os processos de socialização pré-profissional de do- centes só surgiram em meados da década de 1990, como os de Walter Carter e Kathy Doyle sobre a narrativa pessoal e a história de vida como componentes dos saberes docentes; os de Lessard e Tardif sobre as ex- periências e as interações cotidianas do docente na construção de seus saberes e de sua atuação no ensino; e os de Tardif e Raymond sobre os saberes, o tempo e a aprendizagem do trabalho docente. Em geral, tais estudos apontam que as práticas docentes integram saberes provenientes da socialização prévia dos professores, a que ocorre antes de sua formação profissional para o ensino, sobretudo as oriundas de experiências que marcaram a socialização primária, fami- liar e na comunidade, e as experiências escolares de sua vida estudantil. Essas pesquisas trazem, portanto, a ideia de que os futuros docentes, assim como quaisquer outros indivíduos na vida social, incorporam determinadas crenças, valores, comportamentos, conhecimentos, pro- cedimentos, hábitos, regras, competências etc. ao longo de sua socia- lização, principalmente a primária,e tais aspectos ajudam a estruturar sua personalidade, sua identidade social e cultural e suas relações com as outras pessoas, sendo posteriormente aplicadas e reproduzidas no contexto de suas práticas pedagógicas, em sua atuação docente e em suas relações na escola, especialmente com os estudantes, muitas ve- zes de modo não inteiramente consciente ou reflexivo. Podemos perceber como tais processos se expressam na realidade escolar quando docentes, ao tentarem explicar suas práticas, acabam remetendo-se às práticas de seus próprios professores e de suas ex- periências de aprendizagem de quando eram estudantes mais do que aos conhecimentos teóricos e didáticos formais que obtiveram em sua formação acadêmica, por exemplo. Essa conclusão indica a grande importância de os professores co- nhecerem os estudos de Sociologia da Educação e seus principais pressupostos teóricos e metodológicos para que possam refletir so- bre suas próprias práticas, sobre como foram modeladas ao longo do tempo, e investigar as origens de determinados saberes, concepções, valores e atitudes que moldam sua atuação em sala de aula, conseguin- do analisar criticamente e transformar suas posturas, representações Assista ao documentá- rio francês Ser e Ter, de Nicolas Philibert, lançado em 2002, que mostra um professor de escola rural na França que, próximo de se aposentar, leciona em uma turma multisse- riada aplicando recursos e métodos tradicionais de ensino por meio dos quais foi instruído na infância. Direção: Nicolas Philibert. França: Les Films d’Ici; Canal Plus Image International, 2002. Documentário Sociologia da Educação e formação docente 133 e relações de ensino, no sentido de não apenas reproduzir mecanica- mente suas próprias vivências escolares ou defender de modo acrítico convicções sedimentadas acerca de aspectos fundamentais do traba- lho docente como papel do professor, do perfil dos estudantes, de es- tratégias didáticas, da gestão de sala de aula, de questões disciplinares, de aprendizagem, avaliativas etc. 6.2.1 O papel social do professor Vários autores apontam a natureza política da educação e das prá- ticas educativas. Já vimos que os processos educativos e a instituição social escola estão, como quaisquer outras instâncias da sociedade, impregnadas por ideologias, por interesses, enfim, por dimensões políticas no sentido mais amplo. Paulo Freire, por exemplo, defende que reconhecer a educação como ato político não é suficiente, sendo imprescindível assumir claramente o caráter político da educação, no cotidiano da escola e nas reflexões e ações docentes. Freire (2001) destaca que o professor não tem como identificar os limites à sua prática pedagógica se não consegue enxergar claramente a favor de quem ele exerce suas práticas. O autor esclarece uma ques- tão primordial em tempos de disputas ideológicas em todos os campos sociais como as que vivemos atualmente: acreditar que a educação é neutra é uma falácia, um mito, uma ilusão, uma mentira. Todo e qualquer processo educativo, incluindo o formal realizado prioritariamente pelos docentes no espaço escolar, tem uma inten- ção política, mesmo que esta não seja percebida conscientemente pelo educador. Segundo Zitowski (2006, p. 51): “o educador, ao definir uma determinada metodologia de trabalho, planeja, decide e produz determinados resultados formativos e educacionais que têm conse- quências na vida dos educandos e na sociedade onde educador e educandos se encontram”. Na mesma direção, Freire (2001, p. 39 apud PAULO; TROMBETTA, 2021) afirma que: não sendo neutra, a prática educativa implica opções, rupturas, decisões, estar com e pôr-se contra, a favor de algum sonho e contra outro, a favor de alguém e contra alguém. E é exatamente este imperativo que exige a eticidade do educador e sua neces- sária militância democrática a lhe exigir a vigilância permanente no sentido da coerência entre o discurso e a prática. 134 Antropologia e Sociologia da Educação Freire aponta como característica inerente à educação opressora a tendência a se “disfarçar de neutra, mistificando a realidade e ocultan- do as contradições sociais, de modo a criar uma sensação de que vive- mos em um mundo perfeito” (PAULO; TROMBETTA, 2021, p. 13). Nesse contexto, os educadores que se cobrem do manto apolítico ou neutro, não questionando nem denunciando as desigualdades e as injustiças, acabam por submeter-se ao poder dominante, legitimando-o por meio de sua ação docente, naturalizando a dominação e a opressão e furtan- do-se de exercer um dos papéis sociais mais importantes ao educador, que é, segundo Freire (2001), o de anunciar uma possibilidade de um mundo melhor, de uma realidade mais igualitária. Segundo Guareschi e Biz (2005, p. 30), a educação não pode estar desligada da política, pois educar implica necessariamente perguntar-se pelo tipo de sociedade que desejamos. E isso é um ato político. Se a educação é a “in- serção” das pessoas na sociedade, ela tem que se perguntar: em que tipo de sociedade? Simplesmente nessa que está aí, pelo simples fato de estar aí? Ou a discussão sobre projeto de sociedade também faz parte da educação? Em outras palavras: educar para que sociedade? Para o pensamento freireano, o educador deve ser um humanista, o qual opta conscientemente pelo lado dos oprimidos, lutando por sua libertação e autonomia cotidianamente em seu fazer pedagógico. Edu- car, nesse sentido, é conscientizar, é formar para transformar a socie- dade em um lugar mais justo e democrático. Sob outra perspectiva, a da ampliação e do aprofundamento da compreensão do professor sobre os estudantes como indivíduos também construídos socialmente e detentores de saberes e culturas próprios, a Sociologia da Educação pode contribuir por meio dos es- tudos sobre infância e juventude, os quais trazem discussões sobre questões como: a construção histórico-social da infância e da categoria criança como indivíduo integral e singular; as interações entre a criança e a cultura no espaço escolar; os processos de adaptação, internalização, apropriação e re- produção realizados pelas crianças em meio à socialização em- preendida pela escola; Pa ng ga be an /S hu tte rs to ck Sociologia da Educação e formação docente 135 a juventude, a escola e o mundo do trabalho; os jovens que vivem em condições extremas de pobreza, exclu- são social e vulnerabilidade; a mobilização e a ação política na juventude; os jovens e a violência; a juventude e as dinâmicas midiáticas; os aspectos étnico-raciais na juventude. Outros temas de estudo também podem contribuir para uma com- preensão sociológica e antropológica das crianças e dos jovens imersos em processos educativos tanto escolares quanto não escolares. 6.3 A cultura digital e as novas relações com o saber Vídeo No contexto contemporâneo de ampliação do acesso à internet, a noção de que as mídias – sobretudo as mídias sociais – possibilitam novos modos de percebermos a realidade e de apreendermos, pro- duzirmos e difundirmos informações, funcionando também como instituições de socialização, ganhou forças (BEVORT; BELLONI, 2009). Cresceu também a importância dos estudos relacionados às lógicas próprias ao ciberespaço, especificamente à comunicação via internet e às publicações nas redes sociais sob o ponto de vista de seus impactos na educação (ROLLEMBERG, 2018). No cenário de multiplicidade de fontes a que se têm acesso na internet nem sempre fidedignas e de produção e veiculação de infor- mações, participamos da consolidação de uma nova configuração das relações sociais e comunicacionais, com base na qual tem se acirrado uma “disputa de narrativas” sobre a realidade, tendo como arena pri- vilegiada as redes sociais. 6.3.1 Negacionismo científico e educação escolar A disputa de narrativas revelou-se central na formação da opinião pública e tem ampliado a percepção de que opiniões, emoções e cren- ças pessoais são, paraparte significativa da sociedade, mais relevan- tes do que fatos, dados, conceitos e teorias amplamente aceitas pela Analisar a formação social do discente, sobretudo dos jovens, e suas novas relações com o saber na era da cultura digital: aprendizagem em rede x negacionismos. Objetivo de aprendizagem 136 Antropologia e Sociologia da Educação comunidade científica. Na mesma direção, Gascón (2020) afirma que, em nossa sociedade, muitas pessoas creem que podem basear seu co- nhecimento sobre o mundo não em fatos e evidências, mas sim no que mais lhes convém. O cenário delineado até aqui pode ser sintetizado pelo termo recen- temente cunhado era da pós-verdade, escolhido como palavra do ano em 2016 pelo Dicionário Oxford, em virtude do aumento de seu uso em 2.000% nesse ano. Para Santaella (2018, p. 1), desde que a internet se tornou um ingrediente onipresente em nossas vidas, interação e conexão passaram a assumir o papel principal em todas as cenas [...] Entretanto, tudo isso cobra seu preço [...] No momento, os desafios têm se concentrado nas questões relativas às notícias falsas (fake news), que circulam abusivamente pela internet, e suas relações com as bolhas, tam- bém chamadas de câmaras de eco, ou seja, o ecossistema indi- vidual e coletivo de informação viciada na repetição de crenças inamovíveis. Essas condições acabaram por redundar naquilo que vem sendo chamado de “era da pós-verdade”. As “crenças inamovíveis 1 inamovível: que não pode ser removido. No caso, ideias das quais as pessoas não desistem, que não podem ser elimi- nadas ou transformadas. Glossário ” às quais a autora se refere estão re- lacionadas, muitas vezes, aos campos políticos, sociais e culturais da sociedade, mas mantêm também íntima relação com a crise de confia- bilidade trazida pelo crescimento exponencial da produção e recepção de conteúdos proporcionada pela internet e com a estrutura de “câ- maras de eco” que reverberam informações e interpretações falsas na rede, encontram terreno fértil em outra área, a do conhecimento cientí- fico, resultando no que vem sendo chamado de negacionismo científico, fenômeno gestado na intersecção das esferas da ciência, da tecnologia Ra wp ixe l.c om /S hu tte rs to ck Sociologia da Educação e formação docente 137 e da sociedade. Os reflexos desse cenário nos processos educativos são percebidos com cada vez mais intensidade. Estudos têm sido realizados para investigar o fenômeno do ne- gacionismo científico e seus efeitos na sociedade. Um relatório da organização britânica Wellcome Trust, de 2019, analisou os níveis de compreensão, interesse e confiança na ciência em 140 mil indivíduos de mais de 100 países; no Brasil, 75% dos entrevistados têm maior con- fiança na religião do que na ciência. No mesmo sentido, uma pesquisa da Avaaz – plataforma de mo- bilização on-line – de 2020 apurou que sete em cada dez internautas brasileiros (cerca de 100 milhões de pessoas) acreditam em ao menos uma notícia falsa a respeito da pandemia do coronavírus. Como edu- cadores, em geral, ficamos espantados diante da aderência de muitos de nossos alunos às interpretações e explicações de fatos e fenômenos fundamentadas em notícias falsas de cunho científico, já que, ao me- nos os alunos de Ensino Médio, teriam razoável contato com o conhe- cimento científico ao longo de sua vida escolar. Segundo Lima (2020), o negacionismo científico pretende não só revisar uma descoberta científica, mas negá-la sob o prisma de de- terminados valores, ideologias e crenças pessoais, buscando indicar, com base em uma aparente racionalidade, que a descoberta ou teo- ria científica em questão é falsa. “São apresentados supostos fatos, versões de obras revisadas, gráficos, artigos, no intuito de criar um efeito de algo credível” (LIMA, 2020, p. 389). Entre os discursos predominantes do negacionismo científico estão os relacionados ao movimento antivacina, ao negacionismo climático, à teoria da Terra plana e aos mitos sobre a covid-19. Conforme Kalali (2008, p. 192), “na escola, a evolução das disciplinas, sobretudo da Biologia, tem alterado os currículos, que passaram a in- tegrar aspectos sociais e éticos. Novas confluências entre as disciplinas experimentais tornam-se necessárias. A função cultural de comparti- lhamento de saberes científicos prevalece”. Tal perspectiva sugere que o negacionismo científico, além de cau- sar impactos nas decisões de interesse público, é um desafio aos educa- dores, não devendo ser tomado como restrito às dinâmicas virtuais, às mídias digitais, ou apartado da cultura escolar, mas sim como fator re- levante para a formação integral e crítica dos estudantes, tornando-os Qual seria a explicação para isso? Quais fatores legitimariam, aos olhos dos estudantes, tais explicações falsas? Para refletir 138 Antropologia e Sociologia da Educação capazes de atuar no e sobre o mundo de modo responsável, com pleno conhecimento das implicações éticas, políticas, socioambientais e cul- turais da ciência. Nessa mesma rota, a educação para as mídias já propunha, des- de a década de 1980, que a escola se responsabilizasse por formar os estudantes para a interação midiática, desenvolvendo habilidades de busca autônoma de fontes confiáveis e informações comprovadas e de compreensão crítica das parcialidades e diferentes perspectivas por trás dos conteúdos divulgados na internet. Entretanto, para que isso ocorra, não podemos repetir padrões educacionais tradicionais, pois, se o contexto social passa por uma grande transformação, as práticas educacionais precisariam igualmente se transformar. Se examinarmos o desenvolvimento recente da área do ensino de Ciências, poderemos identificar tais transformações nas práticas educacionais e as novas abordagens teórico-metodológicas que as subsidiaram. A literacia científica, por vezes chamada de alfabetiza- ção científica ou letramento científico, na qualidade de cultura básica de domínio matemático, científico e tecnológico a ser desenvolvida nos estudantes no contexto escolar, constituiu-se como paradigma central da área a partir da década de 1980, dando origem a novas propostas de ensino científico com base na categoria-chave investi- gação (CRAWFORD, 2000). Tais propostas tinham como princípios a ligação entre o cotidiano dos estudantes e o conhecimento científico, assim dando estímulo à atividade experimental, sem desvalorizar a abordagem de conceitos, os quais viabilizavam-se, muitas vezes, por meio da metodologia de “in- vestigação para a mudança conceitual” (inquiry for conceptual change), que valoriza o conhecimento sobre o que os estudantes já sabem e aplicam no cotidiano e encoraja a mobilização deles para a investigação ativa na construção dos conhecimentos científicos (BETH, 1998). Essa perspectiva considera, portanto, que a simples oferta de con- teúdo conceitual de Ciências na escola não garante a produção de conhecimentos científicos por parte dos estudantes, nem assegura a promoção de um saber significativo no campo das Ciências, pois tal sa- ber, na qualidade de uma “forma de relação com o mundo” (CHARLOT, Sociologia da Educação e formação docente 139 2000, p. 81), abrange mais do que a escola e seus “objetos de ensino”, estendendo-se aos espaços não formais de educação, como os virtuais. Na mesma direção, Pigliucci (2020) aponta que nem sempre o conta- to com o conhecimento científico por si só garante a não aderência aos discursos negacionistas presentes nas redes. O autor, tomando como base pesquisas que desenvolveu na Suécia e nos Estados Unidos para investigar as eventuais relações entre o grau de conhecimento em ciên- cia e o ceticismo, afirma que não há correlação entre nível de educação científico e grau de ceticismo com relação às pseudociências, concluindo que possuir alto grau de conhecimento científico não tornaria um indiví- duo automaticamente cético em relação a discursos negacionistas. Esses resultadosnos levam a valorizar as relações entre a ciência e o cotidiano social dos estudantes, permeado pelos discursos negacio- nistas, a compreender suas concepções prévias sobre os fenômenos – construídas não só com base no senso comum e nos saberes popula- res, mas também baseando-se em discursos que circulam socialmente, nas mídias tradicionais e no ciberespaço – e a identificar as relações que tais concepções estabelecem especificamente com os discursos do negacionismo científico, no sentido de propormos caminhos para mediar a transformação de concepções prévias não científicas em co- nhecimento científico significativo. 6.3.2 Desafios da inclusão digital na escola Vimos que o simples acesso a dados e conceitos científicos no contexto escolar não neutraliza os mecanismos que constroem as teorias negacionistas e as notícias falsas às quais os jovens têm aces- so nas mídias digitais e redes sociais midiáticas. Do mesmo modo, a simples oferta de ferramentas tecnológicas não promove a efetiva inclusão digital de discentes – ou mesmo de docentes – e não resolve as questões inerentes ao uso significativo de tais ferramentas para os processos de ensino e aprendizagem. Os recursos tecnológicos digitais permeiam todos os espaços/ tempos em nossa sociedade, trazendo modificações nos mais diver- sos aspectos de nossas vidas, no entanto, não atingem a todos de maneira igualitária. O acesso à internet e aos dispositivos tecnoló- 140 Antropologia e Sociologia da Educação gicos não é uma realidade para todos e, mesmo quando há acesso, faltam as orientações não só de utilização, mas, principalmente, de interpretação adequada das informações a que se têm acesso por meio de tais recursos. De todo modo, estamos assistindo na contemporaneidade uma rápida transformação nos modos de acessar, produzir e divulgar conhecimento e uma modificação nas relações que estabelecemos com o saber, o que surte efeitos importantes sobre as relações que os estudantes estabelecem com o conhecimento escolar. Termos como sociedade do conhecimento, sociedade da informação, sociedade sensoriada, cibervias, entre outros, dizem respeito a novas possibi- lidades de análise dos contextos sociais (WEISS, 2019) e têm o ob- jetivo de nomear as modificações na forma como os indivíduos se relacionam e participam da sociedade, em busca de uma nova prá- tica social (IMBERNON, 2006), e referem-se ao que, de modo amplo, podemos chamar de cultura digital, algo que envolve a todos, não só durante as interações virtuais, mas também nas presenciais. As novas práticas e sociabilidades estão presentes em todas as relações sociais, estamos imersos nessas novas dinâmicas o tempo todo, e já não há como diferenciar dentro e fora da cultura digital. Nesse sentido, não há como “desconectar” os estudantes das redes e mídias digitais apenas proibindo o uso de dispositivos móveis na sala de aula, por exemplo. Eles continuam imersos nessa nova rede de dinâmicas culturais, sociais e de comunicação e exercem o tempo todo seus novos modos de se relacionar, de se comunicar, de enten- der o mundo e de aprender. As lógicas do hiper link, das janelas que se abrem para outros con- teúdos quando estamos lendo algo na internet, o modo ao mesmo tempo objetivo e cheio de referências a fatos atuais, aos “memes”, o impulso de “compartilhar” imediatamente informações, impressões e opiniões, entre outros traços constituintes da cultura digital con- temporânea, atravessam, como uma nova gramática social, as telas de computadores e celulares e se instalam nas relações presenciais que temos com o saber, com a recepção de informações, com a co- municação, com as relações e as práticas sociais. Sociologia da Educação e formação docente 141 Podemos visualizar tais dinâmicas influenciando as interações nas redes sociais com a formação de instituições, movimentos, gru- pos e outros, buscando não só ter espa- ços de fala, mas também promovendo mudanças comportamentais. Nesse cenário, a inclusão di- gital pressupõe, então, uma pro- posta de gestão democrática do conhecimento e uma reflexão so- bre os modos como a educação está incorporando as Tecnologias Digitais de Informação e Comunica- ção (TDIC), demandando alterações nas crenças e concepções do que é a escola (SIBILIA, 2019) e remode- lando a maneira como a difusão do conhecimento tradicionalmente acontece no espaço escolar, sob uma perspectiva de construção de autonomia e emancipação dos estudantes com relação à construção dos conhecimentos (BONILLA; OLIVEIRA, 2011). Recentemente todos nós experienciamos, em virtude da pan- demia da covid-19, uma introdução massiva e acelerada de recur- sos digitais na tentativa de implementar, de modo emergencial, o ensino remoto. O processo, em muitos aspectos, foi impositivo e não contou com planejamento prévio, até mesmo por seu caráter de urgência. Nesse contexto, a reflexão crítica sobre o uso das novas TDIC esteve ausente na maior parte das escolas e no trabalho da maior parte dos docentes que se desdobraram para prosseguir com o ensino sem o apoio, o tempo e o treinamento necessários. Grande parte das estratégias didáticas acabou por fazer uso meramente ins- trumental da linguagem hipermídia, apesar de, por vezes, encoberto por um discurso de “inovação”. Mas como integrarmos de maneira significativa e efetivamente didática a linguagem hipermídia característica das mídias digitais às práticas educativas? E de que modo revestir as estratégias do cará- ter de humanização e emancipação dos sujeitos sociais necessários a uma educação crítica e transformadora? Ro be rt Kn es ch ke /S hu tte rs to ck 142 Antropologia e Sociologia da Educação Alguns caminhos podem estar no uso de metodologias de ensino menos coercitivas, no uso das novas tecnologias como incremento à produtividade pedagógica, bem como na otimização dos processos de aprendizagem. Outras ações também podem ser tomadas como o direcionamento intencional das práticas desenvolvidas em supor- te digital para a promoção da autonomia, do diálogo e da humaniza- ção dos sujeitos sociais; a superação da concepção reducionista de “inclusão” digital – que costuma fixar-se na disponibilização de ferra- mentas e formação para usá-las de modo instrumental e reprodutor de conhecimentos – em direção à concepção de emancipação digital e à conquista da cidadania plena por meio da leitura crítica da socie- dade em que os estudantes vivem e deverão atuar na vida adulta. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos da Sociologia da Educação sobre a construção social da escola e do sistema escolar, sobre a ampliação do papel social da escola na contemporaneidade, assim como os estudos voltados para a construção social do professor, de seus saberes e suas práticas do- centes, e os voltados para a construção social da infância e da juventu- de e questões relativas a esses grupos na sociedade contemporânea, incluindo as pesquisas sobre as novas sociabilidades e novas relações com o saber e com a aprendizagem escolar geradas pela cultura di- gital, podem contribuir muito para a formação docente, promovendo a reflexão sobre sua prática e seu papel social de promoção de uma educação para a cidadania plena. ATIVIDADES Atividade 1 Como seria possível viabilizar o controle social sobre as escolas para reduzir seu caráter de reprodução das desigualdades sociais? Atividade 2 De que modo o conceito de Cidade Educadora amplia o papel social da escola? Sociologia da Educação e formação docente 143 Atividade 3 Quais são os desafios da inclusão digital na escola? O termo inclu- são digital seria o mais adequado no contexto da cultura digital? REFERÊNCIAS AICE. EdCities, 2021. Dia Internacional da Cidade Educadora. Disponível em: https://www. edcities.org/pt/dia-internacional-da-cidade-educadora/. Acesso em: 1 fev. 2022. BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Vozes: Petrópolis, 2014. BEETH, M. Teaching for conceptual change: Using status as ametacognitive tool. Science Education, n. 82, v. 3, 343-354, 1998. BÉVORT, E., BELLONI, M. L. Mídia-educação: conceitos, história e perspectivas. Educ. Soc., Campinas, v. 30, n. 109, p. 1081-1102, set./dez. 2009. BONILLA, M. H. S. Educação e Inclusão digital. GEC – Grupo de Pesquisa, Educação, comunicação e Tecnologias, 2004. Disponível em: http://www.twiki.ufba.br/twiki/bin/view/ GEC/MariaHelenaBonilla. Acesso em: 18 fev. 2022. CHARLOT, B. 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Partindo do pressuposto de que os valores se originam das concepções de mundo, e essas concepções variam conforme cada cultura, como se poderia estabelecer valores universais? Um caminho poderia ser o de buscar estabelecer até que ponto o contato entre as culturas pode ocasionar intromissão e desrespeito aos valores culturais e concepções de mundo próprias de cada cultura e investigar, por outro lado, as possibilidades do diálogo intercultural para chegar, talvez não a valores universais, mas a padrões éticos mínimos aceitáveis por todos. 3. Por que não é viável aplicar as ideias evolucionistas de Darwin, concebidas no contexto das Ciências Naturais, às análises sociais e culturais? A Teoria Evolucionista de Darwin explica a evolução das espécies, diferentes entre si, com base na superioridade das espécies que se adaptam melhor ao ambiente com base em suas características. Os seres humanos são todos da mesma espécie e não faz sentido classificá-los como superiores ou inferiores em razão de suas características, ou mesmo a adaptabilidade a essas ou aquelas condições ambientais. O determinismo da teoria darwinista não pode ser aplicado às complexas sociedades humanas, cada qual com sua cultura, seus valores e visão de mundo, pois cada cultura tem sua lógica, seu caminho, não estão todas “evoluindo” em um mesmo sentido, para chegar em um mesmo patamar ou estado; cada uma se desenvolve em seu sentido e maneira própria. Resolução das atividades 145 2 Antropologia, educação e sociedade 1. Quais são as diferenças entre Evolucionismo Social e Funcionalismo? O Evolucionismo defendia a noção de evolução das sociedades, das mais “primitivas” para as mais “civilizadas”, priorizando o conceito de raça, e investigava as origens humanas a partir dos estudos dos temas: parentesco, religião e organização social. O Funcionalismo não afirmava a evolução das sociedades e usava o conceito de cultura, ao invés do de raça. O método aplicado aos estudos funcionalistas era o da etnografia clássica, que buscava descrever detalhadamente as diversas culturas e etnias humanas. Os temas de investigação do Funcionalismo eram a cultura enquanto totalidade e as instituições sociais e suas funções na manutenção da totalidade cultural. 2. Com base em sua experiência no contexto escolar, qual visão – determinista ou dialética – você considera predominante nos processos educativos? Em geral, apesar de um discurso predominantemente ligado à visão dialética, ainda permanecem presentes nas escolas a visão determinista, sobretudo ligada à aplicação de metodologias tecnicistas. 3. De que modo a emergência de novas práticas e instâncias socializadoras pode afetar a educação formal no contexto escolar? Elas podem apoiar a investigação das relações entre indivíduo, cultura e sociedade, sobretudo no que tange aos processos de socialização de crianças e jovens, dos contextos e dos processos de ensino e aprendizagem. A análise e reflexão sobre os processos de socialização e aquisição cultural desenvolvidos por meio da educação é uma importante ferramenta para os educadores. Os estudantes têm acesso muito mais amplo e cotidiano a outras culturas, a outros padrões sociais, valores e costumes, o que pode influenciar positivamente o enriquecimento dos processos de socialização, que não ocorrem mais apenas na educação formal. Por outro lado, a escola tem a responsabilidade de formar os alunos para se distanciarem de visões etnocêntricas e da intolerância, assim como para desenvolverem capacidades ligadas à análise das informações e conteúdos que lhes chegam por novas instâncias, como as veiculadaspor meios digitais. 146 Antropologia e Sociologia da Educação 3 Antropologia da educação e formação docente 1. Segundo Gusmão, quais são as contribuições da antropologia para os estudos da área educacional? A antropologia pode ajudar a compreender os intensos movimentos provocados pela globalização, que têm efeitos nos processos educacionais. Estabelecer relações entre antropologia, estudos culturais e educação é essencial para analisar e reorientar os princípios e as práticas presentes na interface entre o campo científico e o processo educativo na sociedade. 2. De que modo as práticas simbólicas na escola se relacionam à construção das identidades docentes e discentes? As instituições escolares têm suas práticas simbólicas, tanto gerais quanto específicas de cada escola, bem como mitos e ritos que contribuem para a formação das identidades docentes e discentes e fazem parte da cultura escolar. Os rituais e espaços simbólicos da escola, relacionados a práticas recorrentes de alunos e professores, integram a construção da identidade de docentes e estudantes, que se reconhecem como pertencentes a um grupo cultural único, com um status também único, com o qual se identificam. Nesse sentido, os indivíduos interiorizam o conjunto das trajetórias do grupo, criando um referencial próprio relacionado à instituição, ao local e às pessoas que conviveram com eles. 3. Explique o que é etnografia e pesquisa etnográfica na educação. A etnografia, quando aplicada como método de pesquisa na educação, não pode ser tomada exatamente da mesma forma que é empregada na pesquisa antropológica, na qual são consideradas duas acepções de etnografia: como conjunto de técnicas de coleta de dados sobre práticas, crenças, valores, hábitos e comportamentos de um grupo social, ou, em outro sentido, como relato escrito resultante da aplicação desse conjunto de técnicas. O uso da etnografia possibilita ao pesquisador entender como se processam os mecanismos de dominação e de resistência, de opressão e de contestação, ao mesmo tempo que são veiculados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores, crenças, modos de ver e de sentir a realidade e o mundo, o que pode contribuir bastante para o desenvolvimento de práticas simbólicas no espaço escolar. Resolução das atividades 147 4 Introdução à sociologia 1. Quais são as principais diferenças entre as visões teóricas de Durkheim, Marx e Weber sobre a sociedade? Para Weber, a sociedade não está acima dos indivíduos, como propôs Durkheim, mas é constituída pelo conjunto de ações dos indivíduos que se relacionam entre si. Marx entende que a análise social deve partir do contexto e das condições sociais dos indivíduos, pois são essas condições que fazem com que um grupo exista. Durkheim compreende a sociologia como o estudo dos fatos sociais, já Weber considera que o mais importante é compreender o indivíduo e suas ações, ou seja, entender as razões que levam as pessoas a tomar determinadas decisões ou agir de determinadas formas na sociedade; e, para Marx, de modo diferente, a ênfase da análise social é dada à noção de classe social e ao conceito de luta de classes. 2. Segundo Durkheim, qual é o papel das instituições sociais nos processos de socialização? Os fatos sociais, segundo Durkheim, são difundidos por um componente importante da vida social: as instituições sociais – como a família, a escola, o sistema jurídico, o Estado etc. As instituições exercem o papel de controlar e condicionar cada indivíduo a agir de modo a não desagregar a sociedade e nem perturbar a vida coletiva, por meio de códigos e punições para os indivíduos que não agem conforme a sociedade espera. 3. Explique as diferenças entre estrutura social e estratificação social. Estrutura social é um conceito sociológico referente às formas de organização das sociedades e suas instituições sociais, bem como aos tipos de relações estabelecidas entre os grupos sociais em uma sociedade. Já a estratificação social é definida pelos modos como se opera a divisão de recursos em uma sociedade, o que se reflete em uma distinção hierarquizada na estrutura social e em desigualdade de acesso à renda e às condições de cidadania entre os estratos sociais. 5 Educação, sociedade e poder 1. Os processos de educação informal e não formal podem ocorrer nos mesmos locais? Justifique sua resposta. Sim, podem por vezes ocorrer nos mesmos locais sociais, como espaços da comunidade, porém apresentam naturezas diferentes, 148 Antropologia e Sociologia da Educação pois a educação informal ocorrida na vizinhança e em outros espaços da comunidade se constitui de experiências vividas e saberes populares ou do senso comum adquiridos na interação entre as pessoas próximas, dos mesmos círculos familiares e sociais. Já a educação não formal, ou seja, não guiada por currículos formais como os escolares, ocorre mesmo assim de maneira planejada e em torno de aprendizagens consideradas necessárias ou interessantes, como em visitas guiadas a museus, oficinas oferecidas por ONGs etc. 2. Quais são os reais motivos das reformas curriculares implementadas após os acordos MEC-USAID? Os interesses políticos e econômicos, com base em determinada ideologia – o neoliberalismo –, direcionaram esses acordos, que pretendiam impor uma concepção de educação e uma organização do ensino no Brasil que favorecesse os interesses dos EUA. 3. Quais são as principais diferenças entre as teorias educacionais crítico-reprodutivistas e a pedagogia histórico-crítica? As principais diferenças estão na superação da limitação à crítica da reprodução social das desigualdades e da dualidade educacional operada pela escola como instituição social e a proposição concreta de caminhos para que a escola assuma o papel social de formação para a transformação da realidade social, promovendo uma educação crítica, reflexiva e de intervenção social. 6 Sociologia da Educação e formação docente 1. Como seria possível viabilizar o controle social sobre as escolas para reduzir seu caráter de reprodução das desigualdades sociais? O controle social sobre as escolas não pode ser confundido com o controle estatal, e nem com qualquer tipo de pressão coercitiva que viole o direito de cátedra (ou liberdade acadêmica, é um princípio que assegura a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber) dos educadores ou a autonomia das instituições escolares. O controle social pode ser realizado por meio da gestão democrática das escolas, com a participação da comunidade educativa e da sociedade em geral nas decisões e diretrizes a serem adotadas, de modo a tornar o espaço escolar democrático, inclusivo e igualitário, conforme indicam os documentos oficiais de regulamentação da educação no país. Resolução das atividades 149 2. De que modo o conceito de Cidade Educadora amplia o papel social da escola? Sob a aplicação do conceito de Cidade Educadora, a escola passa a fazer parte de um “entorno educador”, ampliando seu papel social no sentido de se relacionar com a comunidade e com as instituições e os espaços sociais do município em que se situa, tornando-se parte de uma rede educadora em que toda a população se envolve na promoção da educação para a cidadania, para o exercício pleno dos direitos, para a ocupação dos espaços sociais e para a atuação em sociedade. 3. Quais são os desafios da inclusão digital na escola? O termo inclusão digital seria o mais adequado no contexto da cultura digital? A inclusão digital na escola não pode ser vista como simples oferta de ferramentas tecnológicas, pois somente ela não promove a efetiva inclusão digital de discentes – ou mesmo de docentes – e não resolve as questões inerentes ao uso significativo de tais ferramentas para os processos de ensino e aprendizagem. O acesso à internet e aos dispositivos tecnológicos não é uma realidade para todos e, mesmo quando há acesso, faltam orientações não só deutilização, mas, principalmente, de interpretação adequada das informações que se têm acesso por meio desses recursos, e essas orientações fazem parte do papel da escola. Já estamos todos imersos na cultura digital, e a escola precisa apropriar-se das linguagens e lógicas comunicacionais, de produção e divulgação de saberes inerentes ao mundo digital, e aplicá-las ao fazer pedagógico. 150 Antropologia e Sociologia da Educação ANTROPOLOGIA SOCIOLOGIA EDUCAÇÃODA E GRAZIELLA ROLLEMBERG G R A Z IE LLA R O LLE M B E R G A N TR O P O LO G IA E SO C IO LO G IA D A E D U C A Ç Ã O ISBN 978-65-5821-114-3 9 786558 211143 Código Logístico I000510