Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ANTROPOLOGIA SOCIOLOGIA EDUCAÇÃODA E GRAZIELLA ROLLEMBERG G R A Z IE LLA R O LLE M B E R G A N TR O P O LO G IA E SO C IO LO G IA D A E D U C A Ç Ã O ISBN 978-65-5821-114-3 9 786558 211143 Código Logístico I000510 Antropologia e Sociologia da Educação Graziella Rollemberg IESDE BRASIL 2022 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2022 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: askproject/envato elements CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R656a Rollemberg, Graziella Antropologia e sociologia da educação / Graziella Rollemberg. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2022. 150 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-114-3 1. Antropologia educacional. 2. Sociologia educacional. 3. Cultura. 4. Abordagem interdisciplinar do conhecimento na educação. I. Título. 22-75824 CDD: 306.43 CDU: 316.74:37 Graziella Rollemberg Mestre em Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal de Sergipe (IFS). Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Norte do Paraná (Unopar). Licenciada em Sociologia pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi). Bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente e coordenadora editorial de coleções didáticas e paradidáticas para Ensino Fundamental e Ensino Médio. Autora de obras didáticas para Educação Básica e Educação Superior e de obras paradidáticas para Educação Básica das redes pública e privada há 25 anos. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Introdução ao pensamento antropológico 9 1.1 Natureza e cultura 9 1.2 Alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural 14 1.3 O pensamento antropológico 20 2 Antropologia, educação e sociedade 28 2.1 Indivíduo, cultura e sociedade 28 2.2 Socialização, cultura e educação 35 3 Antropologia da Educação e formação docente 48 3.1 Antropologia Educacional 48 3.2 A educação como prática simbólica 51 3.3 Pesquisa em Antropologia da Educação 62 4 Introdução à sociologia 71 4.1 A sociologia: surgimento, objetos e métodos 71 4.2 Indivíduo, vida social e categorias sociológicas 75 4.3 Componentes da vida social 85 5 Educação, sociedade e poder 97 5.1 Instituições educativas 97 5.2 Processos educativos e reprodução social 103 5.3 Estado, ideologia e educação 111 6 Sociologia da Educação e formação docente 123 6.1 A construção social da escola 123 6.2 A construção social do docente 130 6.3 A cultura digital e as novas relações com o saber 135 Resolução das atividades 145 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Este livro tem como objetivo proporcionar um panorama geral sobre a antropologia e a sociologia, duas áreas das ciências sociais que contribuem muito para os estudos na área da educação, tanto sob o ponto de vista teórico e de pesquisa quanto das práticas pedagógicas, visando promover a compreensão das bases teórico-metodológicas do que chamamos de Antropologia da Educação e de Sociologia da Educação. Nos três primeiros capítulos, abordaremos as especificidades da antropologia enquanto ciência humana, por meio da oposição natureza x cultura, e compreenderemos as principais tendências da Antropologia Contemporânea, analisando as origens da antropologia e o seu desenvolvimento. Conheceremos, ainda, os conceitos de alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural, bem como as suas aplicações às realidades culturais e à vida cotidiana. Também exploraremos a investigação antropológica das diversas culturas humanas, as suas manifestações simbólicas e materiais, os seus nexos e as suas práticas, as relações que se estabelecem entre diferentes culturas e os processos culturais e educacionais que se desenvolvem dentro e fora da escola, os quais podem e devem ser analisados mediante o olhar antropológico, este que traz abordagens úteis às reflexões sobre os contextos e as relações de aprendizagem. Ao longo dos três primeiros capítulos, você perceberá que a antropologia pode ser usada como uma das ciências de apoio aos estudos voltados à educação e à formação dos indivíduos, no sentido de analisar os universos culturais que integram tanto a instituição escolar como os contextos informais de educação. Além disso, compreenderá a relevância da análise sistemática dos processos de socialização na constituição do indivíduo e como dimensão importante de quaisquer processos educativos. APRESENTAÇÃOVídeo 8 Antropologia e Sociologia da Educação Nos três últimos capítulos da obra, conheceremos como se deram o surgimento da sociologia e o seu desenvolvimento, por meio das principais linhas teóricas e de seus autores, compreenderemos quais são os objetos e os métodos de estudo dessa área do conhecimento e entenderemos vários de seus principais conceitos e categorias – indivíduo, sociedade, grupos sociais, estrutura social e estratificação, entre outros. Entenderemos, também, como a sociologia aplicou sua análise aos fenômenos ligados aos processos educacionais, contribuindo para a construção da Sociologia da Educação. Ainda, compreenderemos a origem, o desenvolvimento e as contribuições da Sociologia da Educação, que busca empreender uma visão sociológica sobre os processos educativos e tem a importante tarefa de fundamentar várias outras disciplinas, tanto as integrantes dos cursos de Pedagogia quanto as que fazem parte das pós-graduações ligadas à área educacional, promovendo a compreensão da realidade educacional brasileira. Nesse sentido, abordaremos as origens e o funcionamento das instituições educativas no Brasil e os processos educativos formais e informais, para analisar o papel social da escola, considerando-a não só como lócus de reprodução social, mas também de transformação social. Da mesma forma, para compreender as relações entre educação, Estado e poder, veremos as políticas educacionais, as teorias e as práticas pedagógicas sob a perspectiva sociológica. Finalmente, analisaremos as contribuições da Sociologia da Educação para a formação e a prática docente, além do modo como ela pode subsidiar a reflexão do professor sobre os seus próprios saberes, a sua trajetória como profissional e as suas práticas no cotidiano escolar, auxiliando-o a analisar de maneira crítica suas concepções de mundo e de ensino e a transformar suas práticas, no sentido de promover uma formação para a cidadania plena para seus estudantes e de imbuir suas ações e relações no contexto escolar de um caráter crítico, humano e emancipador. Com isso, evita-se a reprodução mecânica e pouco consciente de concepções e práticas incorporadas durante sua trajetória, as quais, por vezes, não refletem verdadeiramente seu posicionamento docente. Introdução ao pensamento antropológico 9 1 Introdução ao pensamento antropológico Neste capítulo, vamos entender as especificidadesda antropologia enquanto ciência humana por meio da oposição natureza x cultura e compreender as principais tendências da antropologia contemporâ- nea analisando as suas origens e seu desenvolvimento. Conheceremos também os conceitos de alteridade, etnocentrismo e relativismo cultu- ral e suas aplicações às realidades culturais e à vida cotidiana. A antropologia é uma ciência humana dedicada a investigar as di- versas culturas humanas, suas manifestações simbólicas e materiais, seus nexos e práticas, e as relações que se estabelecem entre diferen- tes culturas. Os processos culturais e educacionais que se desenvolvem dentro e fora da escola podem e devem ser analisados por meio do olhar an- tropológico, que traz abordagens úteis às reflexões sobre os contextos e as relações de aprendizagem, e uma das discussões fundamentais para a delimitação da antropologia como área do conhecimento espe- cífica é a oposição entre natureza e cultura. 1.1 Natureza e cultura Vídeo Para iniciar a discussão sobre as categorias de natureza e de cul- tura e sua importância para a consolidação do pensamento antro- pológico, vamos analisar uma situação histórica. Imagine esta cena (que ocorreu de verdade): no século XVI, o rei da França na época, Carlos IX, acompanhado de parte de sua corte, em Rouen, teve um encontro com um chefe Tupinambá e dois guerreiros dessa tribo, levados do Brasil para a Europa para que seus “hábitos estranhos” fossem conhecidos pela realeza. Entender as especifici- dades da antropologia enquanto ciência humana por meio da oposição natureza x cultura. Objetivo de aprendizagem Entre os cortesãos do rei estava o filósofo Michel de Montaigne, autor importante para a antropologia 1 . Ele relatou a situação em sua obra Ensaios, informando aos leitores que, nesse encontro de culturas, os “selvagens” ficaram tão admirados quanto os nobres, e perceberam, ao observar a sociedade francesa, que havia pessoas bem alimentadas, que pareciam usufruir de todas as comodidades da vida – como era o caso dos cortesãos –, enquanto outras, de aparência miserável, magros em virtude da fome e das privações, mendigavam à porta dos privilegiados que tudo tinham. O mesmo encontro foi relatado de maneira bem diferente pelo conquistador Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571): Só havia gente selvagem, afastados de toda cultura e hu- manidade; diferenciados de nós pelos costumes e regras de vida, sem religião, sem conhecimento nenhum do que seja honra e a virtude; incapazes de distinguir o justo do injusto; tanto que me veio a dúvida se tínhamos encontrado feras revestidas de aparência humana. (SAMESHIMA, 2004, p. 7) Esses dois relatos indicam as duas visões opostas que permearam o encontro dos europeus com os povos da América. Uma delas é a visão colonizadora do conquistador, favorável à exploração das rique- zas naturais do território recém encontrado. Uma visão etnocêntrica que considerava a Europa como civilização superior aos “selvagens”, o que dava aos colonizadores o direito de subjugá-los e explorá-los. A outra era a visão expressa por Montaigne, que defendia que o certo e o errado seriam conceitos relativos, a depender do contexto cultu- ral, e que, por isso, o encontro entre culturas tão diferentes poderia promover um maior conhecimento sobre a espécie humana e sobre a própria civilização europeia. As ciências naturais, como a físi- ca, a química, a biologia, a geologia, entre muitas outras, ocupam-se do estudo da natureza e seus fe- nômenos, e a antropologia, uma ciência humana, tem como objeto Antropologia significa literalmente estudo do homem, estudo do ser humano. 1 Para saber mais sobre a história do encontro de Carlos IX, acompanhado de parte de sua corte, em Paris, com um chefe Tupi- nambá e dois guerreiros dessa tribo, acesse o link e leia essa história e muito mais sobre o tema Natu- reza x cultura no texto. Disponível em: https://super.abril. com.br/historia/o-pensamento- selvagem-de-levi-strauss/. Acesso em: 21 out. 2021. Dica Mulher indígena Pataxo com criança no colo durante jogos indígenas na aldeia Coroa Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália – Bahia, 2009. Jo a So uz a/ Sh ut te rs to ck 1010 Antropologia e Sociologia da EducaçãoAntropologia e Sociologia da Educação Introdução ao pensamento antropológico 11 sv ic /S hu tte rs to ck de estudo a cultura, que define a própria área do conhecimento antropológico. O pensamento antropológico clássico é caracteriza- do pela separação entre natureza e cultura, como duas categorias opostas, mas também complementares. Outras oposições complementares também estão entre as re- flexões da antropologia, como ambiente e civilização, animal e hu- mano, entre outras, que estão no centro do debate sobre o que torna o ser humano especificamente humano, ou seja, o que é próprio apenas dos seres humanos. Seriam elementos instintivos, naturais do ser humano, ou características do ambiente em que o indivíduo se insere, elementos sociais e culturais, que tornam alguém humano? A oposição entre natural ou “selvagem” e civilizado é antiga, não só na antropologia, mas, antes disso, na filosofia e demais áreas do conhecimento que buscam compreender os seres humanos e sua vida em sociedade; desde os filósofos chamados de contratua- listas, como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Thomas Hobbes (1588-1679), ainda no século XVIII, que discutem a oposição entre natureza e cultura. A teoria do contratualismo propunha a existên- cia de um tipo de acordo ou contrato social entre os indivíduos que tirava o ser humano de seu estado de natureza e o inseria em um estado de convivência com outros seres humanos em sociedade, em um movimento de superação da condição “selvagem” e funda- ção da civilização. Para esses autores, é a partir desse momento que é criado o Estado, com a função de garantir a continuidade do contrato social. A libertação da natureza é a con- dição essencial da formação da visão moderna de indivíduo, que enfatiza as faculdades racionais do ser hu- mano como meio de superar o mun- do natural, “selvagem” ou limitado, e alcançar o patamar da cultura, da sociedade civilizada, do desenvolvi- mento e do “progresso”. O debate natureza x cultura foi materializado Recorte de um selo postal impresso em Cuba, que representa o encontro de Cristóvão Colombo com os nativos no Novo Mundo (1942). 12 Antropologia e Sociologia da Educação em torno de alguns casos clássicos de seres humanos que foram criados apartados da sociedade, em ambientes naturais isolados, como florestas. Tais casos eram chamados de crianças selvagens e dominaram a imprensa e o imaginário coletivo por bastante tempo. Um dos mais famosos é o do menino Victor de Aveyron, um meni- no que foi encontrado, em 1798, vivendo sozinho em uma floresta após anos de isolamento social. Ele foi levado à “civilização” e tratado por um conhecido médico francês da época. Naquele tempo, a discussão sobre a visão inatista – que afirma que o conhecimento é inato, já nasce com o ser humano – e a ambientalista – que defende que o conhecimento é adquirido por meio das experiências no meio em que a pessoa está inserida – estava a pleno vapor na Europa, e o caso do “menino selvagem” parecia não ser explicável pelas ideias predominantes no debate científico. Os inatistas argumentavam que Victor era naturalmente sem inteli- gência, que tinha nascido assim, e os ambientalistas afirmavam que sua condição intelectual era reduzida por falta de estímulos adequa- dos do ambiente onde tinha vivido. Em 1969, no filme O Garoto Selvagem, de François Truffaut (1932-1984), a história de Victor de Aveyron foi narrada com base no livro The wild boy, found in the woods near Aveyron, do psiquiatra Jean Itard (1774-1838), que acompanhou o menino após o resgate. O tema da adaptação social ou socialização é recorrente na obra desse famoso cineasta francês, que se preocupava em analisar a possível “naturezahumana intocada”, à qual se referia Rousseau, que poderia estar presente em crianças como Victor de Aveyron. O caso de Victor marcou a história polêmica sobre as relações entre natureza e cultura. Outros casos semelhantes foram relata- dos, como o do biólogo Carl von Linnéc, mais conhecido como Lineu (1707-1778), criador da classificação das espécies, e o do médico ale- mão Elias Rudolf Camerarius (1641-1695), os dois registraram casos de resgate de crianças sem contato com seres humanos, como o de Figura 1 Retrato de Victor de Aveyron O que você acha que acontece com uma crian- ça que é criada desde o nascimento sem contato com seres humanos, totalmente isolada da sociedade? Para refletir Victor de Aveyron, o “menino selvagem”. França, final do século XVIII. Veja um trecho do filme O garoto selvagem no link a seguir: Disponível: https://www.youtube. com/watch?v=b5CKltq3Uf4. Acesso em: 26 nov. 2021. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=b5CKltq3Uf4 https://www.youtube.com/watch?v=b5CKltq3Uf4 Ra wp ixe l/S hu tte rs to ck Jean de Liége (1361-1382), o menino-urso da Lituânia (1657); o de Hesse (com variação entre 1544 e 1744), o menino-lobo (1872), que inspirou a história de Mogli; o da garota de Kranenburg (1717); o do menino-bezerro de Bamberg (século XVIII); o da menina selvagem de Champagne (1731), e o de Peter (1724), o Selvagem, da cidade de Hanover. As “crianças selvagens” apresentavam semelhanças entre si: não falavam, andavam do mesmo modo que os animais quadrúpedes, e manifestavam vários comportamentos próximos aos de animais selvagens. Cientistas que estudaram tais casos apontaram que as crianças teriam deficiências cognitivas e motoras, o que justificaria a causa desses comportamentos. Mas para antropólogos, sociólogos e teóricos da educação, a ex- plicação estaria na ausência de socialização primária, o que teria impossibilitado a aquisição de linguagem e outras aprendizagens socioculturais. Na maioria das vezes, as crianças inseridas no con- vívio social não conseguiam adquirir padrões de linguagem ou de comportamento compatíveis com o esperado de crianças da mes- ma faixa etária que tinham sido criadas em sociedade. Os antropólogos, em geral, afirmam que o que diferencia os seres humanos dos demais seres vivos é a cultura, a capacidade de produzir conhecimentos e tradições que são transmitidos entre gerações. Um elemento cultural fundamental é a linguagem. Vimos que uma das características comuns às crianças “selvagens”, que não passaram pelos processos de socialização e não participaram ativamente de uma cultura humana, é não terem aprendido nenhu- ma linguagem verbal, não se comunicarem verbalmente usando códigos de uma língua, tal como as crianças criadas na “civilização” fazem desde pequenas, pois estas, ao contrário daquelas que foram isoladas do con- vívio em sociedade, apren- dem por meio da família e da escola a língua usada na comunidade em que vivem. Rousseau defendia que o ser humano é natural- mente bom, e que, em “estado de natureza”, isolado da sociedade, ele poderia viver em liberdade e felicidade ple- nas, na inocência e sem capacidade de cometer nenhuma maldade. Esse conceito é chamado de o bom selvagem e foi ins- pirado em uma expressão criada por Michel de Montaigne (1533-1592). Saiba mais Assista ao filme O enigma de Kaspar Hauser que con- ta a história real de um adolescente de 15 anos encontrado na Alemanha, na cidade de Nuremberg, em 1928. Ele tinha vivido desde o nascimento sem nenhum contato humano, isolado em um porão. Kaspar não sabia falar, não andava e não parecia apresentar comportamen- tos humanos. Direção: Werner Herzog. Alemanha: Versátil Home Vídeo, 1974. Filme Introdução ao pensamento antropológicoIntrodução ao pensamento antropológico 1313 14 Antropologia e Sociologia da Educação 1.2 Alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural Vídeo No texto de abertura deste capítulo, vimos o relato sobre um en- contro entre o rei e alguns nobres da corte francesa do século XVI e um chefe e guerreiros indígenas de um povo originário do Brasil, os Tupinambás, que viviam em um vasto território, que hoje correspon- de a grande parte do sudeste brasileiro, e foram praticamente exter- minados pelos conquistadores portugueses. Vamos relembrar alguns trechos do texto: Os dois relatos indicam as duas visões opostas que permearam o encontro dos europeus com os povos da América. Uma delas é a visão colonizadora do conquistador, favorável à exploração das riquezas naturais do território recém encontrado. Uma visão etnocêntrica que considerava a Europa como civilização superior aos “selvagens”, o que dava aos colonizadores o direito de subjugá-los e explorá-los. A outra era a visão expressa por Montaigne, que defendia que o certo e o errado seriam conceitos relativos, a depender do contexto cultural, e que, por isso, o encontro entre culturas tão diferentes poderia promover um maior conhecimento sobre a espécie humana e sobre a própria civilização europeia. A experiência do encontro entre culturas, entre o “eu” e o “ou- tro”, pode ser expressa pela noção de alteridade, que se refere à condição de ser um outro, um diferente, distante, um forasteiro ou, como no encontro narrado no texto, um exótico alter, que em latim significa outro. Note que costuma haver confusão entre o conceito de alteridade e o de empatia. São conceitos complementares, mas não idênticos. Empatia é a capacidade de se sensibilizar com a condição do outro, colocar-se em seu lugar, tentar ajudá-lo ou confortá-lo de algum modo. Para exercer empatia, é necessário antes se movimentar na alteridade, ou seja, estar aberto a conhecer o diferente de si mesmo e a relativizar a própria visão de mundo. Vejamos um resumo dos dois conceitos: Compreender con- ceitos centrais para a antropologia, como alteridade, etnocentrismo e relativismo cultural. Objetivo de aprendizagem Introdução ao pensamento antropológico 15 Empatia Alteridade Capacidade de se sensibilizar com a condição do outro, de se colocar em seu lugar, de tentar ajudá-lo ou confortá- lo de algum modo. Estar aberto a conhecer o diferente de si mesmo e relativizar a própria visão de mundo. Andr ew Kr as ov itc kii /S hu tte rs to ck Nos primórdios dos estudos antropológicos, os pesquisadores se dedicavam a investigar a alteridade distante, isto é, grupos humanos, comunidades ou sociedades que viviam em localidades remotas ou bastante afastadas da Europa, cujos habitantes eram chamados de bár- baros ou de primitivos, tais como os indígenas brasileiros pareciam aos colonizadores europeus. A vivência da alteridade costuma promover a percepção das dife- renças e do diferente, levando à relativização do que é familiar, conhe- cido ou natural, ou seja, permitindo que se perceba que o que parece familiar e conhecido para nós, parece diferente ou estranho para o outro, e vice-versa, e que tais percepções são relativas a cada ponto de vista, não sendo verdades absolutas. Os comportamentos, regras, crenças etc. que nos parecem tão naturais e familiares podem passar a ser questionados se nos deparamos com a alteridade, com as diferen- tes práticas e tradições do outro. Podemos perceber, nos trechos citados, duas visões: a do conquis- tador europeu e a de Montaigne, que, na verdade, é considerado um dos precursores do pensamento antropológico – apesar de a antropo- logia ainda não existir como campo autônomo de conhecimento até meados do século XIX –, pois ele se interessava por compreender cultu- ras de outros povos. A visão do conquistador representa o pensamento colonizador predominante na Europa naquela época, que considerava os indígenas como “selvagens”, pois tinham outros costumes, outra lín- gua, outras crenças e tradições, outros valores, e uma visão de mundo totalmente diferente da dos povos europeus. Esse pensamento, que valoriza apenas a própria cultura e desvalori- za a dos outros,e que se julga superior ao de outros povos, aos quais, por isso, teria o “direito” de subjugar, tratar como inferior, explorar, escravizar ou até exterminar, é chamado de etnocentrismo. Por outro 16 Antropologia e Sociologia da Educação lado, Montaigne tem uma postura nada etnocêntrica, pois não conside- ra que uma cultura seja superior a outra, ou a única “correta”, ou que um povo seja o “civilizado” e o outro seja o “selvagem”, o que demons- tra uma posição relativista, buscando conhecer outras culturas, pro- curando a experiência da alteridade e objetivando, no limite, conhecer melhor a própria cultura e a humanidade como um todo. Figura 2 Representação cultural dos Tupinambás Indígenas Tupinambás em um ritual. Observados por Hans Staden durante sua viagem ao Brasil em 1552. Gravura de Theodore de Bry, 1631. O etnocentrismo é uma visão de mundo que afirma que o grupo ao qual nós pertencemos é considerado como o centro de tudo e parâ- metro para o resto do mundo, ou seja, tudo é visto e filtrado com base em nossos próprios valores, e os outros são percebidos com base em nossos próprios modelos sobre o que é a vida, sobre como as pessoas devem pensar, agir, acreditar etc. Podemos dizer que o etnocentrismo é um fenômeno que se origina devido a uma enorme dificuldade em conceber e conviver com a diferença, gerando estranhamento, reações hostis e conflito. Ele agrega, portanto, aspectos racionais e emocionais simultaneamente, e não se manifestou apenas no passado, em deter- W ik im ed ia /C om m on s Introdução ao pensamento antropológico 17 minados momentos históricos, mas se expressou ao longo da história humana, incluindo os tempos atuais. Assim como no caso do encontro entre a corte francesa e os in- dígenas brasileiros, o etnocentrismo se manifesta em experiências de choque cultural, isto é, o impacto gerado quando representantes de culturas muito diferentes entre si se encontram, quando há o choque entre o “eu” e o “outro”, totalmente diferente de mim. O choque cultural surge justamente com a identificação das diferen- ças, consideradas intransponíveis, e com a falta de compreensão das lógicas, das motivações e dos modos de ser e de estar no mundo do outro grupo. Esse choque leva a não compreensão/aceitação e à desva- lorização do outro, que estaria supostamente “errado”, seria “primitivo” ou “atrasado”, no seu modo de ser e de viver, confirmando a valoriza- ção do próprio grupo como o único “correto” e “civilizado”, superior a todos os outros grupos, que seriam os “selvagens”, os “bárbaros” etc. Ser etnocêntrico não é uma característica exclusiva de determina- da sociedade, não são apenas os europeus colonizadores os únicos etnocêntricos da história. A postura, a visão de mundo e as atitudes etnocêntricas estão presentes em muitas sociedades na atualidade, in- cluindo a brasileira. Por exemplo, podemos identificar componentes de etnocentrismo na violência contra o outro, que não existe apenas contra os povos in- dígenas e comunidades tradicionais, mas também se revela nas intera- ções com grupos considerados “diferentes”, com culturas percebidas como “erradas”, seja sob aspecto dos padrões morais ou religiosos do grupo etnocêntrico, como é o caso muitas vezes do não reconhecimen- to da identidade e da violência que marcam o tratamento dos grupos LGBTQIA+, seja sob aspecto da desvalorização cultural e étnica dos gru- pos não brancos por parte de grupos brancos. O etnocentrismo se manifesta no cotidiano das sociedades e regula parte das relações socioculturais. Se de início os antropólogos busca- vam uma alteridade distante, aos poucos foram se voltando para uma alteridade mais próxima e começaram a realizar pesquisas em socie- dades conhecidas, ou mesmo na própria sociedade, o que aponta um movimento feito pelo pensamento antropológico contemporâneo de buscar estranhar o que é familiar, natural ou conhecido e de conceber o diferente, o estranho, como algo natural. Para o antropólogo brasileiro 18 Antropologia e Sociologia da Educação Roberto DaMatta (1936-), o antropólogo deve transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico, em uma experiência de alteridade que relativize os conteúdos culturais e, em seguida, sob um olhar antropo- lógico sobre a própria cultura, que desnaturalize sua realidade. Outra noção relacionada ao debate sobre as culturas que temos es- tudado até aqui é o relativismo cultural, proposto como teoria pela primeira vez no século XIX pelo antropólogo Franz Boas (1858-1942), um pioneiro da antropologia moderna. Boas defendia que não existem verdades culturais, pois não existem padrões para medir o comporta- mento humano e compará-lo a outro. Cada cultura mede e julga a si mesma. Meneses, um cientista social brasileiro contemporâneo, afir- ma, no mesmo sentido que Boas, que a base do interesse da antropo- logia pela diversidade de povos e culturas é o relativismo cultural: é o relativismo cultural que considera, como sociedades alterna- tivas e culturas tão válidas quanto as nossas, esses povos cuja própria existência questiona nossa maneira de ser, quebrando o monopólio, que comumente nos atribuímos, da autêntica rea- lização da humanidade no planeta. [...] Enquanto o etnocentris- mo é um preconceito, e suas derivações doutrinárias (racismo, evolucionismo cultural etc.) são ideologias (consciência falsa e falsa ciência), o relativismo cultural pertence à esfera da ciência. (MENESES, 2020, p. 6) Meneses (2020, p. 6) afirma que a noção de relativismo cultural en- volve três significados: “Todo e qualquer elemento de uma cultura é relativo aos elementos que compõem aquela cultura e só tem sentido em função do conjunto, sendo sua validade dependente do contexto em que está inserido, de sua posição em meio a outros níveis e elementos da cultura da qual faz parte.” “Percepção de que as culturas são relativas, isto é, não há cultura – nem elemento dela – que tenha caráter absoluto, perfeito. Não existe, portanto, um padrão único para julgar de antemão o certo e o errado entre as culturas, pois cada uma traz em si seu padrão de medida.” “Relativismo cultural remete à ideia de que as culturas são equivalentes e, logo, não se pode criar uma escala em que a cada cultura seja atribuída uma ‘nota’, de acordo com o critério de ‘mais ou menos perfeita’.” 1º1º 2º2º 3º3º aS ha til ov /S hu tte rs to ck Introdução ao pensamento antropológico 19 O autor destaca, entretanto, que o relativismo não é só uma “sus- pensão de juízo”, já que não se consegue aplicar nenhum critério de- cisivo para classificar as culturas; o relativismo afirma positivamente que uma cultura é tão válida como qualquer outra, por ser uma ex- periência diversa que o ser social faz de sua humanidade. Para ele, as repercussões da aplicação da noção de relativismo cultural à pesquisa são várias: • Respeito sincero pela cultura e sociedade dos outros povos. • Cuidado extremo com a objetividade. • Cuidado com cada traço cultural sendo estudado em seu contexto. • Recusa de interferir e de modificar costumes e tradições de um povo. Sob perspectiva diferente, vários autores das ciências humanas em geral e, em especial, da antropologia criticam o uso irrestrito do concei- to de relativismo cultural, contrapondo-o à natureza universalista dos direitos humanos, por exemplo. Nesse sentido, algumas práticas cultu- rais tradicionais, como o infanticídio entre alguns grupos indígenas bra- sileiros e a mutilação genital em algumas regiões da África e do Oriente Médio, são alvo de debates que envolvem, de um lado, as noções de relativismo cultural e, de outro, os direitos humanos universais. Vamos nos aprofundar um pouco sobre um dos exemplos apre- sentados anteriormente. A antropóloga Marianna Assunção Fi- gueiredo Holanda, que estuda o tema do infanticídio indígena no Brasil, aponta que “esse é um dos pontos centrais do es- tudo: o que nós, brancos, entendemos como sendo vida ehumano é diferente da percepção dos índios. Um bebê in- dígena, quando nasce, não é considerado uma pessoa – ele vai adquirindo pessoalidade ao longo da vida e das relações sociais que estabelece” (ESTUDO CONTESTA..., 2009). Sob uma visão relativista, que procura compreender essa prá- tica cultural em seu contexto e sob a lógica das crenças e dos costumes desses grupos indígenas (que representam uma parte bem pequena dos povos originários do Brasil), a partir dos significados que dão a suas ações, leva-se em conta que, nessas tribos, as crianças que não são percebidas como adequadas aos padrões aceitáveis pela comunidade não poderão Você pensa que todas as práticas culturais devem ser sempre respeitadas ou há algumas delas que violam os direitos humanos e, por isso, precisariam ser confrontadas? Teln ov O leks ii/S hu tte rs to ck 20 Antropologia e Sociologia da Educação ser inseridas no grupo e não serão socializadas pela coletividade, o que significa, muitas vezes, que não poderão ser mantidas vivas. Os mitos que regem essas ações são muito presentes na cultura des- ses grupos indígenas e trazem a crença de que, por exemplo, crianças de- ficientes significam maldição ou castigo àquela tribo. Além disso, há ainda os motivos práticos, relacionados à necessidade de que as crianças se tor- nem adultos úteis ao grupo, capazes de caçar, pescar etc. Por outro lado, sob a perspectiva dos direitos humanos, considera-se que, apesar de a cultura ser um elemento essencial de construção da iden- tidade humana e dos valores fundamentais, é crucial proteger os direitos humanos mais básicos, como o direito à vida, independentemente das di- ferenças culturais, e garantir um padrão ético mínimo universal. O debate entre essas duas vertentes de pensamento está longe de ter- minar. A visão relativista considera que a perspectiva universalista dos di- reitos humanos seria uma imposição de determinados valores e padrões ocidentais específicos a todas as culturas do mundo, elegendo um código de ética específico como aplicável a todos os grupos humanos, desconsi- derando suas especificidades culturais, suas tradições, crenças etc. Já a visão universalista vê no relativismo cultural uma aceitação conformada de que toda e qualquer prática cultural deve ser respeita- da sem questionamentos, como se as diferenças culturais validassem completamente qualquer crença, valor ou prática cultural, independen- temente de suas consequências éticas. 1.3 O pensamento antropológico Vídeo Para compreender o pensamento antropológico, vamos conhecer um pouco sobre o surgimento e o desenvolvimento da antropologia e sobre os caminhos que essa área do conhecimento tem traçado, sob alguns aspectos, desde a modernidade até a contemporaneidade. No contexto de expansão marítima das nações europeias, da explo- ração colonial e dos relatos dos viajantes europeus à América, e sob a necessidade de justificar a conquista dos territórios e a exploração dos povos lá encontrados pela necessidade de “humanizar os selvagens”, surgem as primeiras teorias que buscam explicar as diferenças cultu- Introdução ao pensamento antropológico 21 rais entre os povos, além disso já vimos que as concepções europeias nessa época eram etnocêntricas e consideravam inferiores as culturas dos povos indígenas. 1.3.1 Origens da antropologia Nesses primórdios da antropologia, a busca por compreender as diferenças étnicas culturais recentemente encontradas levou a concep- ções como o determinismo geográfico e o determinismo biológico. Os teóricos do determinismo geográfico defendiam que as especificida- des do ambiente em que um povo vivia determinavam a sua cultura. Essa seria a razão de existirem culturas diferentes: ambientes diferen- tes, com climas, solos e vegetação diferentes. Já os teóricos do deter- minismo biológico afirmavam que existiam diferenças fundamentais entre as “raças” que determinariam o comportamento de brancos, in- dígenas, negros etc. Esse modelo biológico determinista influenciou o surgimento das doutrinas raciais. Com a publicação da obra A Origem das Espécies, de Charles Darwin (1809-1882), surge a teoria evolucionista, que acabou por inspirar a an- tropologia física ou biológica, que utilizava o modelo determinista bio- lógico como base e afirmava que os comportamentos humanos, suas características intelectuais etc. eram transmitidas de maneira hereditá- ria e aplicava técnicas de medida de tamanhos e proporções de pessoas provenientes de diferentes “raças” e relacionavam tais medidas, como as do crânio e outras partes do corpo, a determinadas características. Ancorada no debate evolucionista, a antropologia do século XIX con- solidou o darwinismo social, ligado a uma análise biológica do ser humano, e não a uma análise cultural e social, to- mando a sociedade europeia como o auge da evolução humana, a “civilização”, e as sociedades aborígines e indígenas como etapas “primitivas” do ser humano. Figura 3 Craniometria A craniometria era uma técnica usada pelos teóricos do determinismo biológico para, por meio de dados referentes aos crânios de diferentes “raças” de pessoas, determinar a inteligência, considerada como relacionada ao tamanho do cérebro e aos detalhes na formação do crânio. Conhecer os princípios do pensamento antropológi- cos e seu desenvolvimen- to teórico. Objetivo de aprendizagem As teorias advindas do determinismo biológico, que originaram uma classificação das raças em superiores e inferiores, influenciaram a teoria da Eugenia, uma teoria profundamente racista e discriminatória que pro- punha a limpeza étnica com vistas ao “branquea- mento” das populações. Essa teoria foi uma das bases do Nazismo e influenciou a formação do Movimento Eugenista Brasileiro, que pretendia acabar com a miscigena- ção racial no país e coibir o aumento da população não branca, por meio da seleção de imigrantes e de esterilização em massa, por exemplo. Curiosidade W ik im ed ia /C om m on s 22 Antropologia e Sociologia da Educação O darwinismo social foi usado como justificativa para a dominação de outros povos por parte dos europeus. A partir da segunda metade do século XIX, com o avanço da indus- trialização e as transformações nas sociedades europeias, começam a surgir na antropologia teóricos que propunham conceitos e métodos realmente próprios à disciplina e alinhados a uma ciência do ser huma- no. Nessa época surgiram os estudos de três autores clássicos da área que representam essa tendência científica do pensamento antropo- lógico: Lewis Henry Morgan (1818-1881), Edward Burnett Tylor (1832- 1917) e James George Frazer (1854-1941). Tais autores fazem parte do chamado evolucionismo cultural, que defendia que a evolução das so- ciedades, o progresso e o desenvolvimento técnico eram as referências para analisar as diferenças culturais entre os povos. Para Morgan, a observação das sociedades primitivas, que estariam em níveis evolutivos inferiores à civilização e identificando as etapas e conquistas tecnológicas de tais povos, como a descoberta do fogo, o processo de fixação no território etc., permitiria reconstruir a história dos seres humanos. Já Tylor foi o responsável por propor o primeiro conceito de cultura no contexto da antropologia: “cultura ou civiliza- ção, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade” (TYLOR apud CASTRO, 2005, p. 69). Esse autor propunha que o trabalho do antropólogo era o de ca- talogar os artigos culturais, tal qual um botânico faria. Ele também acreditava que as diferenças nos costumes, manifestações artísticas, conjuntos de regras e crenças dos povos se originavam de diferentes estágios evolutivos – que se ligam ao progresso tecnológico “mais evo- luído” e “menos evoluído”, e não a raças ou característicasbiológicas. Frazer, por sua vez, delimitou o escopo da antropologia social, que teria como objeto de estudo exclusivamente as origens da humanida- de, as chamadas na época sociedades primitivas, com desenvolvimento primário, e não envolveria o estudo das “sociedades civilizadas”. Esse escopo foi bastante ampliado mais à frente, por antropólogos do início do século XX, que, ao contrário dos evolucionistas, chamados de pes- quisadores de gabinete, por produzirem suas análises fechados em suas Introdução ao pensamento antropológico 23 salas, sem ir a campo, e usando dados recolhidos por outras pessoas, faziam pesquisa de campo e coletavam dados pessoalmente. 1.3.2 A antropologia moderna As teorias do evolucionismo cultural passaram a ser refutadas a partir dos estudos difusionistas, que apontavam outra explicação para as diferenças culturais entre os povos: sua distribuição geográfica e a migração de traços culturais de um povo para outro. Para eles, cada cultura era um caleidoscópio de traços culturais com diferentes origens e trajetórias históricas. As trocas culturais permitiriam casos como o das sociedades que tinham, por exemplo, tecnologias muito básicas, mas um sistema de crenças complexo, invalidando a noção de que haveria uma ho- mogeneidade nos elementos culturais determinados por um estágio de desenvolvimento. Influenciado por essas ideias, Franz Boas cons- trói um pensamento antropológico crítico ao caráter etnocentrista do evolucionismo cultural, fazendo nascer a antropologia moderna (DURAN; DURAN, 2020, p. 34). Boas não concordava com o pressuposto evolucionista de que a semelhança dos elementos culturais de povos que viviam em regiões distantes umas das outras seria a evidência de que a mente do ser hu- mano funcionaria exatamente do mesmo modo em todos os lugares e de que sociedades no mesmo “estágio de desenvolvimento” se com- portariam de maneira idêntica. O que ele acreditava era que os contatos entre as culturas, como as migrações, proporcionariam diferentes desenvolvimentos históricos em cada local e os mesmos eventos ou fenômenos poderiam se de- senvolver de maneira totalmente diferente em cada cultura, cada uma com suas particularidades. Em 1896, Franz Boas publica a obra As li- mitações do método comparativo em antropologia, desmontando a tese das diferenças biológicas entre povos primitivos e civilizados, e defen- de que as diferenças entre as sociedades são culturais, não raciais. Na década de 1930, o autor publica obras que complementam essa teoria. Durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, sob influência das ideias de Franz Boas, intelectuais brasileiros, como Gilberto Freyre (1900-1987), confrontaram as teorias raciais, denun- ciaram as péssimas condições da saúde pública para as populações 24 Antropologia e Sociologia da Educação negras no Brasil e destacaram as contribuições dos africanos na forma- ção social e cultural brasileira. Leia o artigo Eugenia no Brasil: reflexões sobre raça, miscigenação e Direitos Humanos para a educação científica e entenda como incorporar o tema da eugenia no contexto da educação científica escolar. Acesso em: 21 out. 2021. https://www.16snhct.sbhc.org.br/resources/anais/8/1534354260_ARQUIVO_AndersonRicardoCarlos_ trabalhocompleto.pdf Artigo A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi um marco em relação à reflexão intelectual sobre o determinismo biológico/racial no mundo após a tragédia humanitária representada pelo Holocausto (1941-1945), que culminou no extermínio de milhões de judeus, além de ciganos, ne- gros e outros grupos considerados “inferiores” pelos nazistas. Poucos anos após seu término, na década de 1950, a UNESCO reuniu intelec- tuais de várias partes do mundo para produzir uma declaração sobre o tema raça, no sentido de recusar qualquer tipo de determinismo ou classificação racial. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908- 2009) integrou a força-tarefa da declaração e publicou pouco depois sua célebre obra Raça e História, de cunho antirracista. Recuando um pouco ao início do século XX, vamos encontrar um outro aspecto do desenvolvimento da antropologia, no campo meto- dológico, quando a observação direta dos grupos humanos passa a ter grande importância para a produção do conhecimento antropológico, e a pesquisa do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) foi determinante para essa nova perspectiva. Em sua clássica obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922, Malinowski reúne as diretrizes metodológicas para a pesquisa antro- pológica que se tornariam o “manual” de investigação de campo dos futuros antropólogos: afastamento da própria cultura, aproximação do nativo do grupo pesquisado, vivência da cultura do outro, postura re- lativista, evitando o etnocentrismo. Essas diretrizes constituem o cha- mado método etnográfico, cuja base é a “observação participante”, uma técnica de interação entre o pesquisador e a cultura pesquisada. O desenvolvimento da antropologia moderna foi marcado por duas perspectivas teóricas bastante distintas, a da chamada antropologia so- cial, desenvolvida na Inglaterra e na França, e da qual já conhecemos O livro Pequeno manual antirracista, da filósofa e ativista Djamila Ribeiro, apresenta caminhos de reflexão para quem dese- ja ter uma nova percep- ção sobre discriminações com base no racismo estrutural e assumir a responsabilidade pela transformação do estado das coisas. RIBEIRO, D. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2019. Livro Introdução ao pensamento antropológico 25 vários teóricos, e a antropologia cultural, ligada aos antropólogos esta- dunidenses, como Talcott Parsons (1902-1979). Foi Parsons quem delimitou, em meados do século XX, como ob- jeto da antropologia, enquanto campo científico autônomo, a cultura, legando os sistemas social, político e econômico para os sociólogos. O antropólogo considerava que os estudos antropológicos deveriam se voltar para a análise dos comportamentos dos indivíduos, pois estes refletiriam as culturas nas quais estavam inseridos. Tanto a antropologia social quanto a antropologia cultural se dedi- cam ao mesmo objeto e aplicam o método etnográfico para investigá-lo, mas, na antropologia social, a ênfase estaria na análise e comparação de sistemas de relações sociais, e na antropologia cultural, estaria na análise a partir da compreensão de comportamentos dos integrantes de um grupo determinado da sociedade. Essa diferença não faz mais sentido atualmente e parece reducio- nista, pois os objetos de pesquisa são fenômenos socioculturais varia- dos, complexos, que demandam olhares transdisciplinares, recorrendo muitas vezes ao arcabouço teórico-metodológico de outras áreas. De modo resumido, podemos verificar os seguintes marcos na an- tropologia ao longo do tempo: Figura 3 Linha do tempo sobre o desenvolvimento da antropologia 1922 Método etnográfico, de Bronisław Malinowski 1929 Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia: intelectuais brasileiros, como Gilberto Freyre, confrontam as teorias raciais. 1930 Franz Boas desmonta a tese das diferenças biológicas entre povos primitivos e civilizados. 1939-1945 Segunda Guerra Mundial é um marco em relação à reflexão intelectual sobre o determinismo biológico/racial. 1950 UNESCO produz uma declaração antirracista. Gr af V is he nk a/ Sh ut te rs to ck Fonte: Elaborada pela autora. 26 Antropologia e Sociologia da Educação Atualmente a delimitação da antropologia como área autônoma passa pelo modo como são articuladas as dimensões da teoria e da prática, com a pesquisa de campo iluminando conceitos teóricos, e pelo desenho metodológico, quase sempre qualitativo e etnográfico. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante muito tempo a antropologia se voltou para os povos que eram chamados de primitivos, estudando o que era distante ou “exótico”, mas atualmente esse campo se dedica a estudar as mais diferentes culturas e experiênciasde alteridade, incluindo inúmeros grupos integrantes das sociedades complexas – que possuem suas próprias culturas – e os mais diferentes fenômenos sociais, como sociabilidades urbanas, relações in- terétnicas, dinâmicas entre comunidades e meio ambiente, gênero e se- xualidade, globalização e consumo, processos educativos, entre muitos outros objetos. A aplicação de conceitos e métodos da antropologia aos processos educativos pode contribuir tanto para o ensino de conteúdos específicos relacionados às ciências humanas quanto para a abordagem de temas transversais e saberes e práticas ligadas à formação do cidadão, com o desenvolvimento de conceitos como cultura, etnocentrismo, alteridade e relativismo cultural. ATIVIDADES Atividade 1 O que os casos das crianças selvagens nos revelam sobre o peso das culturas humanas e das relações sociais na construção do que chamamos de indivíduo? Atividade 2 Partindo do pressuposto de que os valores se originam das con- cepções de mundo e essas concepções variam conforme cada cultura, como se poderia estabelecer valores universais? Introdução ao pensamento antropológico 27 Atividade 3 Por que não é viável aplicar as ideias evolucionistas de Darwin, concebidas no contexto das ciências naturais, às análises sociais e culturais? REFERÊNCIAS AMARAL, S. P.; MIRANDA, C. O pensamento selvagem de Lèvi-Strauss. Superinteressante, 31 ago. 2003. Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/o-pensamento-selvagem-de- levi-strauss/. Acesso em: 21 out. 2021. CASTRO, C. (org.). Evolucionismo cultural/textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 223-224. DURAN, M. R. C.; DURAN, M. R. C. Dividir o pão: a cultura entre a História e a Antropologia. Revista Relegens Thréskeia, UFPR, v. 9, n. 1, p. 34, 2020. ESTUDO CONTESTA criminalização do infanticídio indígena. UnB Ciência, 2009. Disponível em: https://unbciencia.unb.br/humanidades/50-antropologia/340-estudo-contesta- criminalizacao-do-infanticidio-indigena. Acesso em: 26 nov. 2021. HOLANDA, M. A. F. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Ciências Sociais; Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. Disponível em: https://www. repositorio.unb.br/handle/10482/5515. Acesso em: 8 nov. 2021. MENESES, P. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista Gestão e Políticas Públicas, v. 10, n. 1, p. 1-10, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ rgpp/article/view/183491/170496. Acesso em: 8 nov. 2021. SAMESHIMA, M. C. A. As cartas da França Antártica. Revista Intellectus, v. 2, p. 1-8, 2004. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5860312.pdf. Acesso em: 26 nov. 2021. https://unbciencia.unb.br/humanidades/50-antropologia/340-estudo-contesta-criminalizacao-do-infanticidio-indigena https://unbciencia.unb.br/humanidades/50-antropologia/340-estudo-contesta-criminalizacao-do-infanticidio-indigena 28 Antropologia e Sociologia da Educação 2 Antropologia, educação e sociedade A antropologia pode ser usada como uma das ciências de apoio aos estudos voltados para a educação e a formação dos indivíduos, no sentido de analisar os universos culturais que integram tanto a instituição esco- lar quanto contextos informais de educação. A análise das relações entre indivíduo, cultura e sociedade, bem como da socialização de crianças e jo- vens sob a perspectiva antropológica, pode ser bastante útil para analisar os contextos e os processos de ensino e aprendizagem. Podemos considerar que uma questão antropológica fundamental da educação é o modo como o processo de constituição do indivíduo é ana- lisado, que varia conforme o processo de socialização pelo qual ele passa, posto que a escola é uma das mais importantes instâncias de socialização. A depender da perspectiva teórica adotada, tal análise produzirá resulta- dos diferentes. Neste capítulo, vamos abordar tais perspectivas, buscando compreendê-las. 2.1 Indivíduo, cultura e sociedade Vídeo Os conceitos de indivíduo, de cultura e de sociedade são complexos e polissêmicos, isto é, assumem variados sentidos de- pendendo da área do conhecimento e da linha teórica pelas quais estão sendo utilizados. Para a antropologia, o indivíduo é tratado so- bretudo em suas relações com a cultura e com os processos sociais que permitem a aquisição dos elementos culturais do seu grupo, tornando-o parte da sociedade, ao que chamamos de socialização. A cultura, sob a perspectiva antropológica, reúne um amplo com- plexo de costumes, crenças, valores e tradições de um grupo huma- no que envolve desde a linguagem, a religião, os hábitos, as normas e as leis até hierarquias, relacionamentos, sistemas de parentesco, noções de espaço e tempo, noção de certo e errado, práticas sociais, Compreender os con- ceitos de indivíduo e de cultura para a antropolo- gia e analisar as relações desses conceitos com a vida em sociedade. Objetivo de aprendizagem Li gh ts pr in g/ Sh ut te rs to ck ritos, mitos, conhecimentos, saberes e visão de mundo, incluindo aspectos materiais e simbólicos. Então, temos a seguinte relação: Figura 1 Cultura na perspectiva antropológica Fi re of he ar t/ Sh ut te rs to ck Costumes Valores Crenças Tradições Cultura A educação escolar está imersa na cultura de uma sociedade, e uma de suas funções é garantir a transmissão de elementos culturais, como linguagem, conhecimentos, regras e saberes. Há certo consenso, na área da antropologia, de que o conceito de cultura não admite uma definição fechada, assim como o conceito de indivíduo, que pode se referir à identidade sob determinada perspectiva antropológica e ao agente social sob determinada visão sociológica. Embora a aprendizagem faça parte de todas as cul- turas humanas, a relação ensino-aprendizagem, do modo como é considerada na sociedade moderna, com uma separação e especialização relativas ao indivíduo que ensina e ao indivíduo que aprende, não é universal. A noção própria de indivíduo é também uma noção moderna, construída histó- rica e socialmente ao longo da modernidade, na qual o ser humano adquiriu centralidade na visão de mundo predominante. Influenciadas pelo movimento iluminista, as sociedades ociden- tais passaram por profundas transforma- ções, que modificaram também as relações que as pessoas mantinham entre si. Várias delas se relacionavam ao prota- gonismo que passou a ser dado ao indivíduo na sociedade. A palavra indivíduo, em latim individuus, quer dizer “não dividido”, indivisível, e Antropologia, educação e sociedadeAntropologia, educação e sociedade 2929 30 Antropologia e Sociologia da Educação aparece em registros do século XVII se referindo ao ser humano isolado, singular. Mas, independentemente do período, não há como conceber o indivíduo desligado da sociedade em que ele vive, de suas relações com seu grupo social, da cultura, das dinâmicas e relações sociais que caracterizam a sociedade de seu tempo. A antropologia tem abordagens específicas sobre o indivíduo e suas relações com a cultura e com a sociedade, e, para compreendê-las e poder aplicá-las à análise dos processos educacionais, é preciso conhe- cer um pouco melhor as origens e o desenvolvimento do pensamento antropológico. 2.1.1 Abordagens antropológicas As ciências humanas como um todo têm como objeto de estudo os seres humanos e suas relações entre si e com o ambiente em que vivem sob os mais diversos aspectos – culturais, sociais, psicológicos, econômicos, educacionais etc. O indivíduo, as diferentes culturas hu- manas e as relações entre indivíduo e sociedade são os focos de inte- resse dessa grande área do conhecimento e são objetos de estudo das ciências sociais (sociologia, antropologia e ciência política). A antropologia especificamente estuda o ser humano, sobretudo sob seus aspectos culturais, mas também sociais e até biológicos, dedi- cando-se,em uma acepção ampla, ao conhecimento sobre a diversida- de cultural, buscando compreender o que somos, enquanto indivíduos imersos em uma cultura e vivendo em sociedade, com base no reflexo que nos é devolvido pelo “outro”. O pensamento antropológico é um modo de reconhecer as fronteiras dos diversos mundos sociais e cul- turais, abrindo passagens entre eles e alargando nosso conhecimento sobre os outros e sobre nós mesmos. Para obtermos um panorama resumido dessa área do conhecimen- to, é interessante saber que a antropologia é estruturada em campos ou ramos do conhecimento que definem seus objetos e abordagens específicas de estudo. As classificações, no entanto, variam de acordo com a época e a perspectiva teórica. A classificação por áreas consi- derada pelo Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) é a seguinte: Tr iff /S hu tte rs to ck aS ha til ov /S hu tte rs to ck m sp oi nt / Sh ut te rs to ck da vo od a/ Sh ut te rs to ck Bo yk o. Pi ct ur es / Sh ut te rs to ck Si m ak ov a M ar iia Sh ut te rs to ck Antropologia física ou biológica Antropologia social Antropologia cultural Arqueologia Pouco influente na tradição intelectual brasileira, dedica-se ao estudo dos aspectos biológicos e genéticos do ser humano e tem sua origem marcada pelas teorias raciais sobre miscigenação, biotipologia e eugenia, hoje bastante ultrapassadas. É uma das bases da medicina legal e da antropologia jurídica, bastante desenvolvida nos EUA, por exemplo. Pesquisa sobretudo as organizações e relações sociais e políticas, os sistemas de parentesco e as instituições sociais. Em suas origens, definiu os fenômenos sociais como objetos de investigação socioantropológica. Estuda sistemas simbólicos (religião, comportamentos etc.) e temas relacionados às diversas culturas, incluindo os pertencentes às culturas das sociedades complexas, como antropologia da arte, da ciência e da tecnologia, das relações de gênero, da etnicidade e racismo, etnologia indígena etc. Investiga os vestígios materiais que revelam as condições de existência dos grupos humanos, do passado remoto, já desaparecidos ou recentes, tais como objetos, estruturas arquitetônicas, pinturas etc. Podem ser aplicados, ainda, os termos antropologia, etnologia e etnografia para nomear diferentes níveis de análise ou diferentes tradi- ções acadêmicas. Segundo Lévi-Strauss (1970, p. 377): a etnografia se refere aos primeiros estágios da pesquisa, nos quais são realizados a observação e a descrição, o trabalho de campo. a etnologia seria uma etapa inicial em direção à síntese. a antropologia seria a segunda e última etapa da síntese, feita com base nas conclusões da etnografia e da etnologia. Há, no entanto, quem se refira à etnologia como sinônimo de antro- pologia cultural, e à etnografia como um método específico de pesquisa. O pensamento e os estudos antropológicos têm origem muito antes da institucionalização do campo da antropologia como área do conhe- cimento e objeto de ensino, o que só ocorreu a partir do século XIX. Muito antes disso, já no século XVI, os relatos de viagens de viajantes, Antropologia, educação e sociedadeAntropologia, educação e sociedade 3131 32 Antropologia e Sociologia da Educação missionários, exploradores, mercadores, oficiais militares e administra- dores coloniais já traziam descrições dos diferentes povos descobertos nos “novos” territórios conquistados e explorados durante a expansão marítima e comercial europeia. As características naturais dos territórios e seus ambientes apare- ciam em minuciosas descrições da fauna, da flora, do solo, dos rios etc., assim como costumes, aparência, hábitos, crenças e organização dos povos nativos de tais territórios também eram relatados. São dessa época (século XVI) os primeiros relatos dos encontros entre culturas e as reflexões sobre alteridade na relação com o outro, por exemplo a: “Carta do Descobrimento”, de Pero Vaz de Caminha (c. 1450-1500). “Viagem à Terra do Brasil”, do missionário francês Jean de Léry (c. 1534-1611). “Duas viagens ao Brasil”, do viajante e mercenário alemão Hans Staden (c. 1525-1576). “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, do pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848), no século XIX, em sua viagem in- tegrando a Missão Artística Francesa. A partir do século XIX, o campo da antropologia começa a se insti- tucionalizar com trabalhos de sistematização do conhecimento reco- lhidos até ali sobre os chamados, naquela época, de povos primitivos. No início desse período, os antropólogos produziam seus conceitos e teorias fechados em seus gabinetes com base em estudos dos ma- teriais recolhidos pelos viajantes, não realizando eles mesmos ne- nhum estudo de campo. Uma das correntes de pensamento dessa época era chamada de escola do evolucionismo social, cujos expoentes eram: Herbert Spencer (1820-1903), Edward B. Tylor (1832-1917), Lewis Morgan (1818-1881) e James Frazer (1854-1941). Ela defendia a ideia de uma evolução das so- ciedades, das mais “primitivas” para as mais “civilizadas”, e investigava as origens humanas, sob a perspectiva diacrônica (da evolução ao lon- go do tempo), voltando-se aos estudos dos temas parentesco, religião e organização social. Nesse contexto, gradativamente os antropólogos passaram do con- ceito de raça para o de cultura. São expoentes do evolucionismo social: Spencer, Tylor, Morgan e Frazer. Hans Staden é o premiado drama biográfico baseado na obra de Hans Staden, Duas viagens ao Brasil. Narra a história do via- jante e sua captura pelos Tupinambá. Hans Staden. Direção: Luiz Alberto Pereira. Lapfilme do Brasil: Brasil/ Portugal, 2000. Filme Antropologia, educação e sociedade 33 Ainda no século XIX, desenvolveu-se outra corrente de pensamento bastante influente nos primórdios da antropologia, a escola sociológica francesa, que delimitou como objetos de pesquisa socioantropológica os fenômenos sociais (dando origem à linha teórica mais tarde ligada à área de antropologia social), além de se preocupar com a definição de regras para o método de estudo dos fenômenos da sociedade. Os temas de estudo dessa tendência eram as representações cole- tivas, as noções de solidariedade orgânica e mecânica que manteriam a coesão social nas sociedades – conceitos de Émile Durkheim (1858- 1917) – e as formas primitivas de classificação das sociedades, como o totemismo, buscando esclarecer o chamado fato social total nas so- ciedades (conceito de Marcel Mauss (1872-1950) que reuniria aspectos biológicos, psicológicos, sociológicos, políticos, econômicos, religiosos etc.), fenômenos da troca e da reciprocidade, base da vida social. Nos anos 1920, a escola funcionalista predominou no pensamen- to antropológico. Ela usava um modelo de etnografia clássica, o qual procurava empreender estudos descritivos das diversas culturas e et- nias humanas, produzidos com base em estudos de campo realizados sob a perspectiva da observação participante (técnica de pesquisa e co- leta de dados em que o pesquisador não só observa, mas compartilha o cotidiano da comunidade estudada). Os temas de investigação do funcionalismo eram a cultura enquanto totalidade e as instituições sociais e suas funções na manutenção da tota- lidade cultural, sob a perspectiva das dinâmicas entre a dimensão diacrô- nica e a dimensão sincrônica, que estuda um fenômeno em um momento específico. Os principais antropólogos funcionalistas foram: Bronislaw Malinowski (1884-1942), Radcliffe Brown (1881-1955), Evans-Pritchard (1902-1973), Raymond Firth (1901-2002), Max Gluckman (1911-1975), Victor Witter Turner Glasgow (1920-1983) e Edmund Leach (1910-1989). Na década de 1930, nos Estados Unidos, surge o culturalismo, ten- dência antropológica que privilegiava o método comparativo nos es- tudos culturais e que buscava leis no desenvolvimentodas culturas. Essa tendência foi uma das bases da área de antropologia cultural e se dedicava ao estudo das relações entre cultura e personalidade, preocupando-se em estabelecer e identificar padrões culturais ou es- tilos de cultura. Os principais antropólogos dessa corrente de pensa- mento foram Franz Boas, Margaret Mead (1901-1978) e Ruth Benedict (1887-1948). Para Durkheim, a so- ciedade está acima e é exterior aos indivíduos, perpetuando-se por meio de normas, convenções sociais e valores que con- tribuem para estabelecer uma sensação de coleti- vidade e são transmitidos às novas gerações por meio das instituições, como a família e a escola. Para ele, a socialização faz parte de um processo coercitivo da sociedade para garantir a perpe- tuação de seus valores e regras. Importante totemismo: sistema de classificação, presente em várias sociedades, que busca preservar a complementaridade entre natureza e cultura, sepa- rando os seres humanos da natureza (conside- rando-os na esfera da cultura) e simultaneamen- te identificando-os com elementos da natureza, como animais. Glossário 34 Antropologia e Sociologia da Educação Nos anos 1940, emerge, na França, o estruturalismo, que se inte- ressa por investigar as regras estruturantes das culturas, que estariam na mente humana. Os temas de pesquisa dessa tendência teórica fo- ram propostos essencialmente por Lévi-Strauss e abordavam os prin- cípios de organização da mente humana, como os pares de oposição e códigos binários e a reciprocidade (a oposição natureza e cultura, a teoria do parentesco, a lógica do mito e a classificação primitiva). Para Lévi-Strauss não existiriam civilizações “primitivas” ou civilizações “evo- luídas”, mas sim respostas diferentes a problemas fundamentalmente idênticos. Na década de 1960, a antropologia interpretativa, também chama- da de simbólica, se estabelece como corrente de pensamento. Essa tendência, inspirada na hermenêutica filosófica, compreende a cul- tura como hierarquia de significados e propõe que se empreenda uma densa descrição interpretativa das culturas, ao invés de buscar identi- ficar leis gerais, buscando compreender a leitura que os nativos fazem de sua própria cultura. O principal autor dessa corrente é o antropólogo estaduni- dense Clifford Geertz (1926-2006). Sua obra A interpretação das culturas, em que privilegiava a análise da prática simbólica, é re- ferenciada até hoje por autores mais recentes. Geertz considera- va que a cultura humana é como um conjunto de textos a serem “lidos” e propunha que o objeto da antropologia é descobrir, em cada formação cultural, quem as pessoas acham que são, o que elas fazem e quais motivos elas acham ser os que as levam a fazer o que fazem. Para Geertz, cultura é um padrão de signi- ficados transmitidos historicamente e incorporados em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpe- tuam-se, desenvolvem seu conhecimento sobre a vida e definem sua atitude em relação a ela (KUPER, 2002, p. 132). A partir dos anos 1980, surge a antropologia crítica, ou pós-moderna, que critica os paradigmas da etnografia clássica, pon- do em debate a suposta autoridade etnográfica do antropólogo e os recursos retórico-textuais das etnografias clássicas, e mesmo das con- temporâneas. Essa tendência problematiza e politiza a relação entre observador e observado na pesquisa antropológica, e seu interesse te- mático recai sobre a cultura enquanto processo polissêmico, que tem hermenêutica filosófica: abordagem interpretativa da filosofia aplicável tanto à compreensão de textos quanto ao universo práti- co do mundo, das ações e da existência humana. A hermenêutica cultural, desenvolvida na antro- pologia, tem origem na hermenêutica filosófica. Glossário O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss em evento da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU), em 2005. UN ES CO /M ic he l R av as sa rd Antropologia, educação e sociedade 35 na etnografia a possibilidade de representar de modo multifacetado e plural tal multiplicidade de significados culturais. São expoentes dessa vertente antropólogos como James Clifford (1945-), James Boon (1946-) e Paul Rabinow (1944-2021). No contexto da antropologia contemporânea, os debates sobre cul- tura, identidades e suas dinâmicas têm se ampliado e incorporado diá- logos mediados pelas novas formas culturais tecidas entre os âmbitos global e local. Edward Hall (1914-2009) já afirmava há alguns anos que: a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos con- frontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2006, p. 13) Recentemente, no cenário das discussões sobre identidades, conso- lidam-se os estudos sobre identidades étnico-raciais, que estão no bojo dos estudos sobre africanidades e sobre legado africano, sob o olhar da população negra e influenciados por uma nova vertente teórica que perpassa as ciências humanas como um todo, os chamados estudos decoloniais 1 . Os estudos decoloniais questionam as narrativas alinhadas à configuração eurocêntrica do mundo, que se fundamenta histo- ricamente no processo de colonização da América. Produzem, assim, novas leituras de processos e problemáticas histórico- -sociais, culturais, artísti- cas etc., dando visibilidade a narrativas, práticas e autorias sob a perspectiva da América-Latina. 1 2.2 Socialização, cultura e educação Vídeo Ouvimos muito a palavra socialização no contexto escolar, sobre- tudo em relação a processos educacionais na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, mas, assim como os conceitos de indivíduo, de cultura e de sociedade, o conceito de socialização é bastante complexo e varia conforme as perspectivas de cada área do conhecimento, tendências teóricas que tomamos como referência, o tempo histórico e espaço considerados. A antropologia, a sociologia, a psicologia e a pedagogia são algumas das áreas que tratam do conceito de socialização, cada qual com sua abordagem. Em cada uma delas, esse termo é tomado de um modo, conforme cada autor ou movimento teórico. Veremos, nesta seção, o conceito de socialização sob várias perspectivas para compreendê-lo e para identificar suas aplicações no contexto educacional. Compreender as relações entre processos de socialização, cultura e pro- cessos educativos. Objetivo de aprendizagem 36 Antropologia e Sociologia da Educação M on ke y B us si ne ss Im ag es /S hu tte rs to ck Você já sabe, por exemplo, que a aquisição da cultura do grupo social ao qual uma criança pertence é realizada por meio das re- lações que a criança tem, desde o seu nascimento, com os outros seres humanos com os quais convive. Se a criança for isolada da sociedade durante toda a infância e não mantiver contato com seres humanos, ela não adquirirá elementos culturais essenciais, como a linguagem, e não aprenderá com os familiares e outros adultos pró- ximos os costumes, os valores, as regras e as crenças específicos da comunidade. Para além desses casos excepcionais, todos nós nas- cemos em uma determinada estrutura social, que existe objetiva- mente antes de nascermos, e passamos a conviver com indivíduos que já vivem nela. São eles os responsáveis por nossa socialização, começando pelos familiares e, depois, pelos educadores. No momento em que a família introduz a criança ao ambiente em que vive, ela faz isso de acordo com determinadas “lentes” ou “fil- tros”, tais como a classe social à qual pertence ou seus hábitos pró- prios enquanto família. Com essas lentes, a criança começa a ver o mundo e a si mesma nesse mundo social, isto é, esses aspectos irão condicionar e modelar as experiências sociais da criança. Perceba que esseprocesso não se refere apenas à educação intelectual ou cognitiva, mas também a uma educação cultural, social e emocional da criança. É nesse cenário que a criança constitui sua personalida- de e sua identidade, assimilando condutas e adotando determina- dos papéis sociais. A socialização, no entanto, não ocorre apenas durante a infância, mas por meio de processos ao longo de toda a vida dos indivíduos, constituindo-os como seres sociais. Ela pode apresentar as seguin- tes visões, de acordo com a área de estudo: A palavra socialização faz parte do universo docente, principalmente entre educadores da Educação Infantil e das Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Antropologia, educação e sociedade 37 Áreas de estudo Antropologia Sociologia Pedagogia Psicologia Processos de socialização São vistos frequentemente sob a perspectiva da oposição entre natureza e cultura. Se detém nas perspectivas sociais, de aquisição e adaptação aos padrões sociais de cada grupo. Privilegia os aspectos educacionais da socialização, sobretudo os processos formais desenvolvidos pela escola. Busca entender as relações entre a socialização e a construção da personalidade e dos comportamentos individuais. De outro modo, se analisarmos sob o viés das tendências teórico-metodológicas, a socialização pode ser concebida com base em teorias mais deterministas, como o funcionalismo, o behavioris- mo, o estruturalismo, a sociologia de Durkheim e as teorias psicana- líticas de Sigmund Freud (1856-1939); ou sob pontos de vista mais dialéticos e flexíveis, como o interacionismo simbólico, o interacio- nismo social de Lev Vygotsky (1896-1934) e o construtivismo de Jean Piaget (1896-1980); e com base em conceitos como o de habitus, pro- posto pelo sociólogo contemporâneo Pierre Bourdieu (1930-2002), e o de ação comunicativa, elaborado pelo sociólogo Jürgen Habermas, ligado à Escola de Frankfurt. Basicamente, tais teorias encaram a socialização de dois modos: como a imposição de normas e valores sociais ao indivíduo (visão determinista) ou como processo de construção da identidade indivi- dual e coletiva por meio de múltiplas e plurais “negociações” com o meio social (visão dialética). Sob a visão dialética considera-se, além de outros aspectos, que a socialização integra duas dinâmicas si- multâneas: a ação da sociedade sobre os indivíduos e a apropriação 38 Antropologia e Sociologia da Educação ou internalização do universo social por parte dos indivíduos. Sob a perspectiva da socialização na infância, esse processo dialético é reconhecível tanto na família quanto na escola. A socialização é um processo de coerção da sociedade sobre o indivíduo para modelá-lo conforme os valores e costumes sociais. A socialização é um processo dinâmico de “mão dupla”, em que a sociedade age sobre o indivíduo e este também se apropria do universo social, produzindo assim a sociedade. aS ha til ov /S hu tte rs to ckTeorias Teorias deterministasdeterministas Teorias Teorias dialéticasdialéticas Para analisar as diferenças entre o prisma das teorias clássicas (mais deterministas) sobre a socialização e as teorias mais dialéticas sobre o conceito, devemos considerar que, com as transformações nas sociedades, transformam-se também o conceito de socialização e as instâncias ou instituições socializadoras. As transformações na instituição da família, por exemplo, são bastante marcantes nesse contexto, assim como as mudanças em relação à posição social da mulher e o reconhecimento da criança e do adolescente como ca- tegorias sociais específicas, além das transformações na educação. Tais mudanças, aliadas ao cenário mais amplo das transforma- ções trazidas pela consolidação do capitalismo, resultaram em no- vas interpretações do que sejam os processos de socialização e de como, quando e por meio de quais instâncias ocorrem. Os processos de socialização ocorrem em todas as sociedades, mas o modo pelo qual as instâncias ocorrem varia histórica e culturalmente. Uma das perspectivas clássicas da socialização, sob uma con- cepção determinista, vem da sociologia e foi proposta por um dos fundadores dessa área do conhecimento, Émile Durkheim. Para o sociólogo, o indivíduo é socializado por meio de múltiplas influên- cias da sociedade, a qual pretende, com tal processo, manter o con- senso, a coesão social 2 , que tornaria viável a vida em sociedade. Coesão social, segundo Durkheim, é o conjunto de noções, crenças, tradi- ções, opiniões coletivas, normas e regras aceitas por todos os membros da sociedade. 2 To m st e1 80 8/ W ik im ed ia C om m on s. Durkheim afirmava que a educação é a ação exercida pelas gera- ções adultas sobre as gerações que ainda não estão amadurecidas para a vida social, ou seja, a educação seria uma socialização metó- dica das novas gerações, no sentido de preservar e fortalecer a inte- gração social por meio da construção do “ser social”, um sistema de ideias, sentimentos e hábitos que expressam nos indivíduos a cons- ciência coletiva do(s) grupo(s) a que pertence(m) (DURKHEIM, 1958). Essa visão, no entanto, está longe de ser a única nas ciências so- ciais, como a antropologia e a sociologia, ou mesmo na educação. Para vários autores, como Max Weber e Clifford Geertz, a sociedade não é apenas algo exterior, como propõe Durkheim, mas está tam- bém no interior dos indivíduos, fazendo parte deles. 2.2.1 Socialização e interacionismo simbólico Há várias pesquisas antropológicas sobre a perspectiva cultu- ral da socialização, como as da antropóloga cultural estadunidense Margaret Mead sobre os ritos de iniciação e as diferenças de gênero em tribos de Samoa, na Oceania, representando um dos estudos de caso clássicos da antropologia cultural. As pesquisas de Mead, discípula de Franz Boas, foram desenvol- vidas nos anos 1930 e revelaram, com base na investigação da cul- tura samoana, bastante diferente da ocidental, que não existiriam personalidades femininas e masculinas naturais, como se concebia na época. Margaret Mead em pesquisa de campo em Samoa. Antropologia, educação e sociedadeAntropologia, educação e sociedade 3939 40 Antropologia e Sociologia da Educação Mead identificou, durante sua pesquisa em várias tribos de Samoa, que as atitudes afetuosas em relação às crianças, típicas dos Arapesh, são nor- mas válidas tanto para os homens quanto para as mulheres dessa tribo, e que os homens assumem comportamentos que seriam caracterizados como femininos nas sociedades ocidentais. De maneira análoga, na tribo Mundugumor, a agressividade é a regra para homens e mulheres, e as mu- lheres incorporam comportamentos que chamaríamos de “masculinos” nas sociedades ocidentais. Ela concluiu então que a socialização resulta em tipos sociais adaptados a um contexto social determinado, o que define as estruturas mentais que caracterizam a personalidade e o comportamento dos indivíduos naquela sociedade (MEAD, 2004). Sob essa visão, os comportamentos, tais como os ligados à maternidade e à criação e à educação das crianças, por exemplo, não são resultantes de disposições inatas, ou seja, não nascem com as pes- soas, mas são determinados pela ação da sociedade sobre os indivíduos. Estudo de caso Os estudos de Mead revelaram que os diferentes comporta- mentos de gênero fazem parte dos quadros culturais estabeleci- dos na sociedade e que estes são os definidores dos papéis e dos modelos de comportamentos de homens e mulheres. Esses com- portamentos são ensinados por meio de processos de socialização. Como os quadros culturais variam de sociedade para sociedade, variam também os comportamentos considerados “femininos” ou “masculinos”, o que foi uma grande novidade para o pensamento ocidental, tão marcado pelo etnocentrismo. É preciso considerar, no entanto, que os estudos de caso clás- sicos da antropologia cultural, tais como o de Mead, foram reali- zados em sociedades simples, ou seja, pouco diferenciadas. Nas sociedades
Compartilhar