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FI L FI L FI L FI L FI L FI L FI L FI L Fil os ofi a 58 1 Capítulo 3 Da � loso� a helenística à � loso� a moderna .. 226 Exercícios Propostos ........................................ 248 Módulo 5 Escolas � losó� cas helenísticas e � loso� a medieval ................ 248 Módulo 6 Caracterização inicial da � loso� a moderna e racionalismo ............................... 253 Gabarito dos Exercícios Propostos................ 258 22 6 M IK KE L S TR OB EC H/ DR EA M ST IM E. CO M / N VN KA RT HI K/ DR EA M ST IM E. CO M / HA YW IR EM ED IA /D RE AM ST IM E. CO M 3 Da filosofia helenística à filosofia moderna 1. As escolas filosóficas helenísticas As últimas décadas do século IV a.C. assinalaram amplas transformações sociais, políticas e culturais no antigo mun- do grego. Um acontecimento simbolicamente expressivo foi a supressão das cidades helênicas independentes, efetivada no ano de 338, sob o jugo do domínio macedônico. Com a con- solidação do império de Alexandre Magno, geograficamente estendido sobre diferentes sociedades da Antiguidade, a Gré- cia, antes caracterizada como um conjunto de comunidades cívicas autônomas, converteu-se em território pertencente a um poder central exercido sobre civilizações diversas. A pólis, essencialmente constituída pela cidadania, dei- xou de ser a medida da vida humana para os gregos. Os cida- dãos, antes politicamente articulados em relações participa- tivas, transformaram-se em súditos, submetidos a decisões impostas pelo núcleo do poder imperial. O poder político verti- calizou-se ou, em termos incisivos, verificou-se o desapareci- mento da política, entendida, em sua acepção originariamente helênica, como esfera cívica de igualdade entre os cidadãos. Eliminaram-se as assembleias como espaços deliberativos de diálogos, debates e conflitos, protagonizados pela cidadania. Sob o ponto de vista cultural, os historiadores definem essa etapa como helenismo, constituído pela difusão dos valores gregos nas demais sociedades incorporadas ao poder imperial, bem como pela assimilação, entre os he- lênicos, de princípios culturais das civilizações orientais. CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 22 7 PV 3D -1 8- 30 A cultura helenística exprime uma nova realidade social, em que se interpenetram elementos socioculturais clássicos da Grécia com aspectos socioculturais do Antigo Oriente. Os historiadores da cultura convencionaram designar de helenismo as atividades culturais de- senvolvidas no período transcorrido entre a mor- te de Alexandre Magno, em 323 a.C., e o fim da República Romana, em 31 a.C., quando Augusto (vencedor da batalha de Actium, em 27 a.C.) tor- na-se imperador de Roma. A designação refere-se à presença dominante da língua e da cultura gre- gas em todo o mundo conhecido, numa difusão sem precedentes cuja causa inicial foi a convicção de Alexandre, aluno de Aristóteles, de que, por seu intermédio, a Grécia deveria cumprir uma missão civilizatória sobre todos os povos da Terra. [...] Embora o termo helenismo pareça indicar apenas a hegemonia da cultura grega, na realidade, expri- me a comunicação intensa entre as criações cultu- rais helênicas e as orientais enquanto submetidas e um mesmo e único poder central [...]. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13. Dessa forma, comparativamente às filosofias da época clás- sica, as teses filosóficas helenísticas têm sentido mais cosmo- polita, ultrapassando a tradicional dicotomia da cultura helênica, que divide hierarquicamente a humanidade entre gregos, con- siderados superiores, e bárbaros, classificados como inferiores. Esse viés filosófico cosmopolita é consoante à fragilização das distinções culturais entre diferentes civilizações, agora reunidas sob o mesmo poder administrativo e envolvidas pela chamada cultura helenística. Essas relevantes transformações suscitam modificações de conteúdo no âmbito da especulação filosófica. Afinal, a atividade filosófica grega, de sua origem pré-socrática à sua época clássica, com os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, desenvolve-se no horizonte da cidade-Estado. O surgimento da pesquisa filosófica em torno do cosmos relaciona-se com a instauração das comunidades cívicas na Grécia Antiga, e a projeção das temáticas humanas para o plano principal da filosofia corresponde à ampliação e ao aprofundamento da cidadania, especialmente na democracia ateniense. Assim, a reflexão antropológica das teorias filosóficas clássicas refe- rencia-se nos seres humanos como cidadãos – os sistemas filosóficos de Platão e de Aristóteles, por exemplo, compreen- dem a natureza humana e sua realização ética no universo das relações sociopolíticas. Na dissolução helenística da equação entre humanidade e cidadania, portanto, modifica- ram-se os parâmetros da problematização filosófica. Em um contexto de anulação prática das relações socio- políticas delineadas pela participação cívica, as interrogações filosóficas das escolas de pensamento helenísticas desloca- ram-se do cidadão para o indivíduo, examinando seus recur- sos internos em sua capacidade de neutralizar as hostilida- des do mundo externo, de atingir a felicidade a despeito das adversidades de sua realidade exterior. Com a destituição do valor cívico da humanidade, modificaram-se os referenciais das pesquisas éticas, reduzindo seu teor político e ingressan- do na dimensão subjetiva das individualidades. No lugar do ser humano compreendido primordialmente como cidadão, emergiu o ser humano concebido, sobretudo, como indivíduo. Império Greco-Macedônico Alexandria Alexandria Alexandria Alexandria Alexandria Pasárgada Persépolis Susa Alexandria Alexandria Alexandria Babilônia Alexandria Arion Alexandria Patala Alexandria Samarcanda ÁSIA MENOR SÍRIA FENÍCIA PÉRSIA BACTRIANA SOGDIANA ÍNDIA EGITO MACEDÔNIA Montes CáucasosMar Negro Mar Mediterrâneo M ar Verm elho Mar Egeu Mar Cáspio Ri o I nd o Golfo Pérsico OCEANO ÍNDICO0 300 km N Império de Alexandre As conquistas de Alexandre lançaram as bases da cultura helenística. Em linhas gerais, os sistemas filosóficos helenísticos discriminaram os saberes em áreas rigidamente articuladas: lógica, física e ética. A lógica, sob a perspectiva dessas escolas filosóficas, dedicava-se ao problema do conhecimen- to, estudando as relações entre sensações, raciocínios e retórica na produção de relatos verdadeiros sobre a realidade. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 22 8 PV 3D -1 8- 30 A física versava sobre a totalidade da natureza e o conjunto dos fenômenos naturais, e a ética dedicava-se à busca ra- cional da felicidade pelos seres humanos. No tocante aos estudos físicos, as escolas helenísticas são materialistas, não excedem a natureza em busca de princípios explicativos incorpóreos; a saber, nesses siste- mas filosóficos, não encontramos nenhum conceito reco- nhecidamente metafísico, similar às ideias platônicas ou ao primeiro motor aristotélico. Aspecto igualmente importante para a compreensão da física helenística é a constatação de que o conhecimento da natureza constitui-se como condi- ção necessária para a ética, ou seja, as regras para a vida virtuosa situam-se na racionalidade da natureza: possuem determinação natural. A felicidade, segundo os filósofos he- lenistas, consiste na existência humana em conformidade com a natureza. Em que pesem esses pontos comuns, porém, não se deve reduzir os sistemas explicativos helenísticos a uma concepção filosófica unificada. As diferenças entre cinismo, epicurismo, estoicismo e ceticismo, escolas de pensamen- to do período, são tão significativas quanto os aspectos que as assemelham entre si. A. O cinismo A origem do cinismo precede a época helenística, uma vez que a atitude filosófica cínica foi inaugurada no século V a.C., por Antístenes (444-365 a.C.). Admirador de Sócrates,esse filósofo recolheu a proposta socrática de forma bastan- te singular: renunciou ao modo de vida aristocrático e assu- miu uma existência despojada, contestando abertamente os valores e as práticas sociais. Entretanto foi com seu dis- cípulo, Diógenes de Sínope (404-323 a.C.), que a filosofia cínica tornou--se amplamente conhecida. Acerca de Diógenes, constam algumas narrativas revela- doras do conteúdo do cinismo. Um desses relatos afirma que esse filósofo habitualmente, em plena luz do dia, caminha- va com uma lanterna por regiões movimentadas de Atenas, anunciando estar em busca do verdadeiro homem. Por que Diógenes circulava persistentemente entre diferentes seres humanos, buscando a autêntica humanidade? Quem era, afinal, o homem por ele procurado? Por que nenhum dos in- divíduos encontrados era verdadeiramente um ser humano? Na realidade, essa atitude de Diógenes contém uma de- núncia radical à vida em sociedade. De acordo com seu pon- to de vista, os seres humanos, arrebatados pelos valores, pelas normas e pelos costumes sociais, distanciaram-se de sua natureza propriamente humana. Perguntando pelo genuíno ser humano, o cínico criticava incisivamente o con- junto de convenções sociais que, conforme o seu ponto de vista, contrariam a natureza da humanidade. Não se tratava simplesmente de recusar as instituições vigentes, propon- do sua substituição por outras normas sociais, mas sim de uma absoluta rejeição da artificialidade imanente à vida em sociedade. Diógenes condenou a propriedade privada de bens, a valorização das riquezas materiais, o poder político, as relações familiares, os saberes intelectuais, ou seja, tudo aquilo que, na concepção do cinismo, afasta o ser humano de sua natureza. Exemplar a esse respeito é outro suposto episódio da vida de Diógenes. Consta que o imperador Alexandre Magno rece- beu notícias sobre o extravagante modo de vida desse cínico. Impressionado com as informações, Alexandre solicitou ser conduzido à sua presença e o encontrou descansando sob o sol. Diante dele, colocou-se à disposição para auxiliá- -lo, perguntando sobre o desejo dele e sobre o que poderia lhe oferecer para satisfazê-lo. A resposta de Diógenes ao governante do Império resumiu a atitude filosófica cínica: “Afasta-te do meu sol”. DEDM AZAY/DREAM STIM E.COM As atitudes atribuídas a Diógenes são congruentes com a recusa cínica da artificialidade da vida social. Consta que esse filósofo, coerentemente a seu desapego de bens materiais, morou, durante certo tempo, em um barril. Sob o prisma cínico, as convenções sociais instituem um largo repertório de elementos supérfluos, que, contrariando a natureza humana, inviabilizam a felicidade dos seres huma- nos. O que é, então, a vida humana em conformidade com sua natureza? É o exercício contínuo da liberdade na realização das necessidades puramente animais dos seres humanos. Sendo assim, a autonomia e a felicidade dos seres humanos exigem a eliminação da artificialidade da existência social, reconduzindo a humanidade à sua plena natureza. A etimologia da palavra cinismo revela plenamente a recusa dessa atitude filosófica aos valores fixados pela vida em sociedade. O termo cínico é proveniente do grego kynikos, cujo significado é “como um cão”. Sua utilização na nomeação desses filósofos destaca precisamente o relevo que estes concedem à natureza humana em sua animalidade, no sentido de que o indivíduo poderia levar uma vida sem bens materiais, utilizando, semelhante- mente a um cão, apenas o necessário à sobrevivência. Dessa forma, o cinismo pode ser legitimamente definido como uma atitude anti-intelectual e, em sentido mais abran- gente, como uma filosofia anticultural, à medida que rejeita radicalmente as variadas construções culturais dos seres humanos em sociedade. Por essa razão, muitos historiadores da filosofia não reconhecem o cinismo como uma escola fi- losófica, considerando-o somente como a defesa de um de- terminado modo de vida. Alegam, para tanto, que a filosofia consiste justamente em um gênero cultural caracterizado pela elaboração de sofisticados sistemas teóricos que pre- tendem conhecer intelectualmente a totalidade do real ou, pelo menos, muitos de seus aspectos. Há, ainda, estudiosos que classificam o cinismo como uma corrente realmente filo- sófica, sob a justificativa de que a densidade da crítica social efetuada pelos cínicos implica um significativo leque de pro- blematizações filosóficas. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 22 9 PV 3D -1 8- 30 B. O epicurismo Na periferia de Atenas, por volta do ano 306 a.C., Epicuro de Samos (341-270 a.C.) fundou um centro de reflexões e discussões filosóficas – a Escola do Jardim, onde se desen- volveria o sistema de pensamento epicurista. Sua localização e seu ambiente campestre são indicativos de uma espécie de deslocamento intelectual em razão dos contratempos das relações urbanas, condicionadas pelo poder imperial prevale- cente no mundo grego. Um ponto de partida interessante para o conhecimen- to da filosofia epicurista é o registro de sua tese segundo a qual as falsas crenças são as raízes dos problemas humanos, das perturbações dos indivíduos, algo como uma doença da humanidade, que exige, para sua remoção, a utilização da razão filosófica. A filosofia, para Epicuro, consiste na verdade libertadora, porque proporciona aos seres humanos a correta compreensão da natureza de todos os fenômenos e da na- tureza da própria humanidade, oferecendo, assim, o conheci- mento necessário à felicidade. O conhecimento da natureza, portanto, é precondição para a vida ética. O epicurismo apresenta exemplos sobre como as convicções incorretas produzem inquietude nos seres humanos, principalmente no que tange às equivocadas concepções relativas aos deuses e às projeções cultu- rais acerca da morte. A crença de que os deuses inter- ferem na vida humana infunde temor nos homens, bem como a preocupação com o destino após a morte física constitui-se em fonte de ansiedade. Epicuro, então, con- traria essas noções. O filósofo declara a existência dos deuses, mas nega sua intervenção no mundo da huma- nidade, afirmando que as divindades não se ocupam de questões humanas, uma vez que encontram-se comple- tamente absortas na fruição da sabedoria. No que tange à morte, Epicuro define-a como uma simples desagrega- ção atômica, algo que não deve ser receado, porque não se relaciona com a existência humana, resumindo-se tão somente à privação de sensibilidade. Dessa forma, en- quanto existimos, a morte está ausente e, quando ela es- tiver presente, nós não existiremos, ou seja, existência e morte jamais coincidem no tempo. Para o epicurismo, as sensações são a fonte dos conhe- cimentos verdadeiros, sendo que os juízos da razão devem ser confirmados ou rejeitados pelo testemunho dos sentidos, por evidências empíricas. Uma declaração será verdadeira se receber comprovação empírica, já que a falsidade de uma pro- posição será revelada em sua incompatibilidade com o que é recolhido no campo das experiências, quando é contrariada pelas observações efetuadas no domínio das sensações. O que é recepcionado com nossos sentidos pelas expe- riências transforma-se em representações no pensamento, as quais são nomeadas como antecipações ou prenoções (prolepses). Uma antecipação define-se como uma ideia genérica, extraída de uma situação pretérita, que dispensa a presença imediata do objeto para que ele seja pensado, algo que possibilita a previsão conceitual de suas características diante da hipótese do aparecimento futuro de tal fenômeno. O conceito epicurista de prenoção explica como o conhecimen- to, apesar de sua origem no plano sensível, supera a esfera imediatamente empírica e se consuma no nível discursivo. Essa conceituação, que identifica a memória e o tempo na racionalidade da natureza, situa-se no centro da teoria ética do epicurismo. Em sua física, Epicuro recorreu aopensamento pré-so- crático, apropriando-se do atomismo de Demócrito de Abdera (460-370 a.C.), com sua tese acerca da eternidade da tota- lidade, da matéria eterna, constituída essencialmente por átomos invisíveis que se deslocam no espaço e se com- binam na formação de todos os seres existentes. Epicuro, contudo, modificou o atomismo pré-socrático com a introdu- ção dos conceitos de peso e de desvio – este último, como veremos, decisivo na elaboração de sua filosofia moral. A noção de que os átomos possuem peso implica uma concepção de deslocamento distinta daquela formulada por Demócrito. Para esse filósofo, os movimentos originais dos átomos são multidirecionais, quer dizer, eles deslocam- -se pelo vazio em múltiplas e variadas direções e desses des- locamentos resultam encontros entre átomos que se combi- nam na geração da realidade cósmica. Epicuro, por seu turno, descarta a multidirecionalidade dos movimentos dos áto- mos, concluindo que eles, por serem naturalmente dotados de peso, projetam-se descendentemente pelo vazio, em um movimento de queda em linha reta. Nessa perspectiva, o movimento dos átomos tem a mes- ma direção e o mesmo sentido para todos eles, isto é, os áto- mos deslocam-se em linhas paralelas, o que impõe a seguinte questão ao epicurismo: como é possível a ocorrência de en- contros entre os átomos? Ocorre que os átomos deslocam-se sempre verticalmente para baixo, jamais se articulam uns com os outros e, sem tais arranjos, não teríamos uma expli- cação razoável para o surgimento do mundo, dos astros, dos seres vivos, dos seres humanos, enfim de tudo o que existe e cuja existência é atestada pelos nossos sentidos. Assim, procurando justificar racionalmente a efetivida- de do mundo, o epicurismo acrescenta o conceito de desvio (clinâmen), de acordo com o qual os átomos desviam-se ligei- ramente de suas trajetórias mecanicamente estabelecidas, produzindo, então, variadas colisões, cujo resultado é a compo- sição do cosmos e da totalidade de seus seres. Se essa noção de desvio é imprescindível para a física epicurista, não menos importante é para sua filosofia moral, delineando a liberdade humana perante as determinações do mundo. Na correspon- dência entre os mecanismos da humanidade e os mecanismos da natureza humana, a concepção de desvio fundamenta a possibilidade de os seres humanos resistirem à fatalidade, afir- mando sua liberdade interior diante das adversidades da reali- dade exterior. Mesmo perante circunstâncias claramente hos- tis, os seres humanos são livres para conquistar a felicidade. Em que consiste a felicidade para o epicurismo? Essa in- terrogação recebe explanação específica de Epicuro em seu texto intitulado Carta sobre a felicidade. A teoria ética epicu- rista define-se pelo hedonismo, pela valorização do prazer, entendido como princípio e fim da vida feliz. Tal observação, entretanto, não deve levar à conclusão de que essa escola fi- losófica preconiza a adesão indiscriminada a todas as formas de prazer. Há prazeres superficiais que, escolhidos com base em concepções desvirtuadas da realidade, derivam em dis- túrbios e afastam os seres humanos da verdadeira felicidade. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 0 PV 3D -1 8- 30 Epicuro distingue o prazer estável dos prazeres que procedem de carências, declarando que estes últimos rela- cionam-se com três tipos de desejos: os naturais e necessá- rios, os naturais e não necessários e os não naturais e não necessários. Desejos naturais e necessários são aqueles vinculados à conservação da vida, como o referente à nu- trição e à proteção diante dos infortúnios climáticos. Natu- rais e não necessários são as variantes supérfluas dos de- sejos naturais e necessários, como a aspiração à refeição sofisticada, à bebida refinada, à vestimenta elegante. Não naturais e não necessários são os desejos completamente artificiais, como a ambição por riquezas, por prestígio social, por conquistas e por poder. De acordo com a tese epicurista para a qual a conduta ética é aquela que preserva o ser humano em sua natureza, os desejos que devem ser contemplados pelos indivíduos são os naturais e necessários. Já os desejos naturais e não necessários exigem um limite racional, porque tendem à imoderação, e o descomedimento é fonte de desconfortos físicos e de inquietações na alma. Já os desejos não natu- rais e não necessários devem ser removidos, uma vez que procedem de falsas opiniões sobre o real, distanciando os seres humanos de sua autêntica humanidade e arrebatan- do-os em um círculo de contínuas perturbações. Nesse sen- tido, por exemplo, quando um ser humano extrai prazer ime- diato da aquisição de bens materiais, ele é acometido pelo receio de perdê-los e não tardará a considerar insuficiente a sua riqueza, lançando-se à busca de outras conquistas, em um ciclo de insatisfações. BU DD A/ DR EA M ST IM E. CO M Segundo o epicurismo, o desejo por riquezas materiais não é natural, por isso a busca por sua satisfação produz perturbações na alma humana. Dessa forma, o prazer estável, diferentemente dos praze- res instáveis, não se realiza na contemplação de carências, mas sim na contenção dos desejos não necessários e na su- pressão dos desejos artificiais. O prazer estável não se move entre sucessivas insatisfações; ele consiste, isto sim, no pra- zer em repouso, atingido mediante a ataraxia, a tranquilidade racionalmente estabelecida, e a aponia, a ausência de dor ou a saudade do corpo. O ser humano que exerce o controle racional dos seus desejos preserva-se em harmonia com a natureza, evitando perturbações em sua alma e situando-se além de eventuais sofrimentos corporais. As condições pertinentes para a conquista e a preserva- ção da autonomia individual são oferecidas pela comunidade de amigos. Nela, os seres humanos elaboram e compartilham o saber filosófico, exercitando a prudência, a justiça, a hones- tidade, ou seja, vivendo em conformidade com a natureza, convivendo virtuosamente. O conhecimento verdadeiro e a remoção de crenças ilu- sórias asseguram a ataraxia. Elas são, porém, suficientes para assegurar a felicidade em situações objetivamente ad- versas, favoráveis ao sofrimento? A resposta do epicurismo a essa pergunta é positiva e, neste momento, o conceito de pro- lepse, a antecipação fundada na memória, assume tonalida- de essencialmente ética. Perante as adversidades do tempo presente, o indivíduo é capaz de se deslocar para o pretérito, recorrendo ao seu acervo pessoal de lembranças felizes e atualizando-as pela via da rememoração, com a qual se des- via da fatalidade: as recordações agradáveis anulam as cir- cunstâncias hostis. Resultado idêntico é proporcionado pelo movimento interior em direção ao futuro, quando o indivíduo projeta-se temporalmente na esperança de uma felicidade que neutralize a dor que o assedia na época presente. C. O estoicismo A escola helenística estoica, inaugurada por Zenão de Cítio (334-262 a.C.), utilizou a metáfora de um pomar para ilustrar sua concepção de organicidade do pensamento filo- sófico. Nessa representação, o muro que circunda o terreno de árvores frutíferas simboliza a lógica, o conjunto de crité- rios e referências que regulam o verdadeiro conhecimento do mundo natural e da humanidade. As árvores simbolizam a física, o saber sobre a natureza, fundamento do saber mo- ral, e os frutos, produzidos e sustentados pelas árvores, são a alegoria da ética, alicerçada na racionalidade da natureza. O nome dessa escola deriva de stoá, palavra grega que é sinônimo de pórtico. Estrangeiro e consequente- mente impedido de adquirir propriedades territoriais em Atenas, Zenão ministra suas aulas sob um pórtico desti- nado ao uso público. Assim, esse filósofo e seus seguido- res tornam-se conhecidos como estoicos. Para o estoicismo, o conhecimento efetiva-se em um iti- nerário que tem seu ponto de partida nas sensações e sua conclusão no assentimento racional, revelandoo mundo como um conjunto perfeitamente ordenado por sucessivas relações de causalidade. A totalidade do real – o mundo, os fenômenos naturais, os acontecimentos humanos – é gover- nada por um princípio divino. O que é esse princípio divino de- finido pelos estoicos? Não se trata de um deus personificado, metafísico e transcendente, criador de um universo exterior a si mesmo; consiste, isto sim, no logos, na razão universal e imanente a tudo o que existe: exprime a convicção estoica de que a realidade é completamente racional. Tal concepção de totalidade plenamente racional impli- ca a noção de providência, a tese segundo a qual a natureza, as formas de vida e os fatos são rigorosamente necessários: LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 1 PV 3D -1 8- 30 destinados a ser como efetivamente são, não poderiam ser diferentes. Pronuncia-se, então, o determinismo do sistema filosófico estoico que explica a realidade como uma longa e complexa conexão de causas e efeitos, no interior da qual não há espaço para episódios fortuitos, acidentais. No horizonte desse determinismo racional, os seres vi- vos tendem naturalmente à sua conservação, apropriando- -se do próprio ser e evitando o que é contrário à vida. Na hu- manidade, a propensão à preservação e à expansão da vida deriva da aproximação entre os seres humanos, na consti- tuição de laços comunitários que garantem sobrevivência e proteção para todas as pessoas. Assegura-se, dessa forma, o bem, que, na perspectiva estoica, é a promoção e a am- pliação do ser, da vida, em conformidade com a providência racional, na mesma medida em que o mal reside naquilo que é contrário à razão. A racionalidade do todo exprime-se claramente na huma- nidade, com sua capacidade de utilização decidida da razão. Em sua condição racional, os seres humanos são natural- mente dispostos à conquista da felicidade, a meta natural da vida. A felicidade, para o estoicismo, requer a eliminação das paixões, tais como a dor, o desejo, o temor e o prazer, e a aceitação serena do destino. Diante de situações dramáticas, o ser humano virtuoso mantém-se indiferente, não se afetan- do pelas adversidades do mundo, justamente porque sabe que todos os acontecimentos são racionais e necessários: a realidade não poderia ser diferente do que, de fato, é. O sábio, portanto, atinge a felicidade ao se resignar à fatalidade dos fenômenos que não se submetem ao controle humano. Realizadas essas considerações, surge uma grande questão: a filosofia estoica, com sua teoria determinista, comporta a noção de liberdade? Ou os seres humanos se- riam livres em um mundo integralmente determinado, em que os acontecimentos são sempre necessários? Os estoi- cos oferecem solução para essa interrogação, observando que os seres humanos não podem modificar o destino, ape- sar de serem livres para resistir às suas determinações ou para acolhê-las racionalmente. Crisipo de Solis (280-208 a.C.), importante representante do estoicismo, versa sobre essa caracterização da liberdade ao se referir à dupla causalidade, ou melhor, aos conceitos de causalidade externa e de causalidade interna. Recorre, para tanto, ao movimento de objetos, especificamente de um cilindro e de um cone. Um cilindro e um cone movem-se im- pulsionados por uma força exterior, a saber, por uma causali- dade externa, porém as formas de seus movimentos, o giro do cone e a rotação do cilindro são internamente determina- das por suas estruturas, seguem a causalidade interna. Em situação análoga, encontram-se os seres humanos perante a realidade do mundo: recebem os seus fenômenos e, diante deles, comportam-se conforme sua disposição interna, com contestação ou resignação. O ser humano envolvido pelas paixões escolhe a contestação, confundindo, assim, a liber- dade com a ilusão de transformação da fatalidade. A conse- quência dessa atitude é a frustração, porque a realidade não se transforma de acordo com os desejos do indivíduo. O ser humano virtuoso exercita sua liberdade no reconhecimento racional da necessidade do destino, conformando-se, então, com a racionalidade dos acontecimentos do mundo. D. O ceticismo Muitos estudiosos da filosofia identificam o prenúncio do ceticismo entre os sofistas, na época clássica da filoso- fia grega, em especial com as proposições de Górgias de Leontinos (485-380 a.C.), com sua radical negação do ser. Na era helenística, a corrente filosófica cética delimitou-se, iniciando-se com Pirro de Élis (365-270 a.C.) e recebendo sua sistematização com Tímon (360-230 a.C.). Em linhas gerais, o ceticismo caracterizou-se pela desconfiança em relação a conhecimentos presumivelmente universais, questionando a ambição, prevalecente no interior da filo- sofia, de revelar a essência da realidade e de fornecer um universo de valores definitivos para a humanidade. Para o ceticismo, a razão não supera o campo instável dos fenômenos que nos envolvem, não atinge princípios ex- plicativos situados além da experiência, a natureza estável, o ser das coisas. A postura cética descarta, assim, sistemas filosóficos como o platonismo, o aristotelismo, o epicuris- mo e o estoicismo – as diferentes teses filosóficas cujo ponto em comum é a apresentação de supostas verdades universais. Sob o prisma cético, não existem motivos que justifiquem o assentimento à teoria das ideias de Platão, à metafísica de Aristóteles, à física epicurista ou à ética estoi- ca, para citar alguns dos muitos exemplos possíveis. Os cé- ticos, enfim, consideram dogmáticas todas as explicações filosóficas que pretendem apresentar certezas, verdades inquestionáveis sobre o mundo. A tese cética de que não há verdade incide, porém, em uma contradição. Afinal, de acordo com os críticos da pers- pectiva cética, declarar a inexistência da verdade significa, paradoxalmente, atestar que, pelo menos, uma verdade existe: é verdadeira a não existência da verdade. Perante essa objeção, a escola de pensamento cética reelaborou sua concepção, definindo-a nos seguintes termos: é possível ela- borar hipóteses diferentes e contrárias acerca da realidade, mas jamais se tem critérios válidos para atestar a verdade ou a falsidade de uma ou outra afirmação, ou seja, não é legítimo dizer que uma proposição seja verdadeira, tampouco é plau- sível dizer que seja falsa. Essa postura cética referente ao conhecimento desdo- bra-se em apreciações éticas sobre o modo como se deve viver. Para o ceticismo, as inquietações, ansiedades e angús- tias têm suas raízes precisamente nas aspirações às verda- des definitivas e universais. Sendo assim, é imprescindível renunciar à busca de certezas, que nunca são alcançadas, e aceitar a simples realidade dos fenômenos que nos cercam. Em sentido prático, trata-se do entendimento de que os indi- víduos devem se ajustar à cultura, aos hábitos, valores e cos- tumes vigentes em sua sociedade, organizando suas vidas de acordo com as exigências da experiência social. Com esses apontamentos sobre o ceticismo, encerra-se a exposição sobre as escolas filosóficas helenísticas, cuja influência, bem como a da filosofia grega clássica, prolongou- -se cronologicamente à época do domínio imperial romano e, mais do que isso, inscreveu suas marcas na história do pen- samento filosófico. No período do Império Romano, porém, surgiria um elemento que modificaria profundamente a cul- tura ocidental e promoveria a reorientação das especulações filosóficas: o cristianismo. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 2 PV 3D -1 8- 30 01. UEM-PR O Período Helenístico inicia-se com a conquista mace- dônica das cidades-Estado gregas. As correntes filosóficas desse período surgem como tentativas de remediar os so- frimentos da condição humana individual: o epicurismo ensinando que o prazer é o sentido da vida; o estoicismo instruindo a suportar com a mesma firmeza de caráter os acontecimentos bons ou maus; o ceticismo de Pirro orien-tando a suspender os julgamentos sobre os fenômenos. Sobre essas correntes filosóficas, assinale o que for correto. 01. Os estoicos, acreditando na ideia de um cosmo harmonioso governado por uma razão universal, afirmaram que virtuoso e feliz é o homem que vive de acordo com a natureza e a razão. 02. Conforme a moral estoica, nossos juízos e pai- xões dependem de nós e a importância das coi- sas provém da opinião que delas temos. 04. Para o epicurismo, a felicidade é o prazer, mas o verdadeiro prazer é aquele proporcionado pela ausência de sofrimentos do corpo e de perturba- ções da alma. 08. Para Epicuro, não se deve temer a morte, porque nada é para nós enquanto vivemos e, quando ela sobrevém, somos nós que deixamos de ser. 16. O ceticismo de Pirro sustentou que, porque to- das as opiniões são igualmente válidas e nossas sensações não são verdadeiras nem falsas, nada se deve afirmar com certeza, e, da suspensão do juízo, advêm a paz e a tranquilidade da alma. Resolução As afirmações 01 e 02 são verdadeiras, referindo-se corretamente às teses estoicas segundo as quais a reali- dade é governada pela providência imanente da razão e o ser humano deve atingir a indiferença diante das adversi- dades do mundo. As sentenças 04 e 08 mencionam acer- tadamente a noção epicurista de que a felicidade se atin- ge com a ataraxia e a aponia, bem como sua concepção de que existência e morte não se relacionam, razão pela qual a morte não deve ser temida. A 16 é igualmente ver- dadeira, destacando a suspensão do juízo como aspecto central do ponto de vista cético, em sua postura perante o conhecimento e em suas implicações éticas. Soma: 31 (01 + 02 + 04 + 08 + 16) APRENDER SEMPRE 26 2. A filosofia medieval O surgimento e a expansão do cristianismo, ao longo dos últimos séculos da Antiguidade, transformaram substancial- mente o universo cultural das sociedades ocidentais. Insti- tucionalizada na Igreja Católica Apostólica Romana, a religião cristã conformou culturalmente as sociedades medievais europeias, fixando parâmetros que condicionaram os pensa- mentos, as explicações, os sentimentos e as condutas dos seres humanos em suas relações entre si e com o mundo. Do ponto de vista do conhecimento, a cultura cristã instau- rou o problema das relações entre o saber revelado e o saber racional. O cristianismo assentou-se na suposição de verdades divinamente reveladas à humanidade e recepcionadas no pla- no da fé, compondo, assim, um amplo repertório de respostas doutrinárias para antigas interrogações dos seres humanos, versando, entre outras questões, sobre a origem do Universo, a natureza humana e os valores morais. A filosofia legada pelos gregos, por sua vez, caracteriza-se essencialmente como a bus- ca por um conhecimento racionalmente construído, que reivin- dica sua aceitação na demonstração lógica de suas conclusões. Nesse contraste entre o conhecimento revelado do cristianismo e o conhecimento racional da filosofia, emerge o dilema: é pos- sível compatibilizar a sabedoria cristã e a sabedoria filosófica? M IKE EHRM AN/DREAM STIM E.COM A filosofia medieval elaborou-se sob densa ascendência do cristianismo, institucionalizado na Igreja Católica. Se, no início do cristianismo, prevaleceu o desprezo à tradição filosófica grega, o desenvolvimento da cultura cris- tã, contudo, foi assinalado por tentativas de conjugação da crença religiosa com a especulação filosófica. Essa etapa de formação da filosofia cristã é denominada patrística. Condu- zida por representantes do corpo eclesiástico católico, atin- giu sua mais rebuscada expressão intelectual em um autor que exerceu ascendência determinante sobre o pensamento medieval: Aurelius Augustinus (354-430), conhecido como Santo Agostinho ou Agostinho de Hipona. A. A filosofia de Agostinho Agostinho, natural de Tagaste, na Numídia, província africana pertencente ao Império Romano, atual Argélia, teve as primeiras décadas de sua vida pontuadas pelos estudos, pelas atividades de professor, pela adesão aos prazeres mundanos e, sobretudo, por um permanente desconforto existencial. Converteu-se definitivamente ao cristianismo no ano de 482 e, mais tarde, tornou-se bispo na cidade de Hipona – atual Annaba, na Argélia. A partir daí, dividiu-se en- tre as atividades sacerdotais e a reflexão filosófica de orien- tação cristã, registrada em escritos como A cidade de Deus e Confissões. No livro Confissões, Agostinho combina relatos autobio- gráficos, centrados na descrição de seus dramas interiores e em seu itinerário de conversão ao cristianismo, com a ex- planação de conceitos filosóficos inspirados em suas leituras sobre Platão, especificamente em sua apropriação do neopla- tonismo de Plotino (205-270). Nas investigações filosóficas agostinianas, temas nucleares da filosofia grega, como a na- tureza humana, a moral e o conhecimento, são racionalmente examinados em sua confluência com a teologia cristã. Com o intuito de proporcionar a apresentação sumária da filosofia agostiniana, serão percorridas aqui suas pondera- ções acerca da origem do mal, do conhecimento identificado à iluminação divina, da memória, da felicidade e do tempo. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 3 PV 3D -1 8- 30 Qual é a origem do mal? Esse problema filosófico, com no- tória relevância para pressuposição cristã de suprema bondade divina, é analisado por Agostinho em Confissões. A compreen- são da tese agostiniana sobre o mal é favorecida pela menção prévia a uma questão explicitada no mesmo texto: quem é Deus? O filósofo, reconhecendo a dificuldade de responder di- retamente a essa pergunta, principia pela identificação do que não é Deus. O mundo não é Deus, assim como não são Deus os múltiplos seres existentes, o céu, os astros, os rios, as monta- nhas, as paisagens naturais, os animais, os seres humanos. O mundo e sua diversidade são criações divinas e, enquanto tais, possuem um ser relativo, isto é, possuem um ser que lhes é concedido por Deus no ato da criação, mas não são seres ple- nos, posto que não são o próprio Deus. Deus é o ser absoluto, eterno, imutável, onisciente e perfeito. Deus é o bem supremo. A bondade do ser supremo conduz à inferência de que todas as suas criações são necessariamente boas, relativamente boas porque concebidas com a absoluta bondade divina. Com base na observação de que o criador é absolutamente bom e, consequentemente, boas são todas as suas criações, Agostinho declara que não é certo atribuir origem divina ao mal: o mal não é produzido por Deus. Prosseguindo em seu raciocí- nio, o filósofo é logicamente conduzido, então, à constatação de que o mal não existe. Afinal, tudo o que existe é criação di- vina, é bom. Como explicar, portanto, o mal que se observa no mundo? Seria simplesmente uma ilusão? Para entender a tese agostiniana sobre essa questão, é necessário especificar sua consideração de que o mal não existe, acrescentando que não existe como substância, como ser ou, em linguagem propria- mente filosófica, Agostinho não reconhece ontologicamente o mal. Para ele, o mal é o não ser, é o desvio ou a ausência do bem. Permanece, assim, o problema: qual a procedência dessa ausência do bem, o não ser que é nomeado como o mal? Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da von- tade desviada da substância suprema – de Vós, ó Deus – e tendendo para todas as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se le- vanta com intumescência. AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 190. O mal, de acordo com Agostinho, é proveniente do livre-arbí- trio humano. O ser humano, mais elevada das criaturas divinas, é concebido à imagem e semelhança de Deus, dotado de inteligên- cia, memória e vontade. Utilizando sua vontade, o livre-arbítrio concedido pelo Criador, o ser humano escolhe o pecado, proje- tando o amor a si mesmo acima do amor a Deus e desviando-se do bem.Dessa forma, o mal surge como perversão da natureza humana na realização do pecado original, com o qual a humani- dade se desloca de sua originária proximidade com Deus. Nesses termos, Agostinho estabelece o recorte conceitual entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens. As fronteiras entre essas diferentes dimensões não são exatamente físicas, algo como a dimensão divina situada no céu e a dimensão humana localizada na Terra. Trata-se, fundamentalmente, de uma dis- tinção espiritual entre aqueles que amam sobretudo a Deus, constituindo a cidade divina, e aqueles que priorizam a amor a si mesmos, formando a cidade humana. Nessa perspectiva, a Cidade de Deus envolve os seres humanos que, vivendo na Terra, estão predestinados pela graça divina à salvação, pois, se o mal provém do livre-arbítrio, na mesma medida é o livre- -arbítrio a via para a reconciliação com Deus. Entretanto, não são todos os seres humanos destinados ao reencontro com o Criador, mas somente os predestinados, os que são contempla- dos com a graça divina na correção de seu livre-arbítrio, coloca- dos na direção do bem e da felicidade. Para Agostinho, a felicidade é inscrita por Deus na memó- ria dos seres humanos, a qual, aliás, revela a profundidade da vida interior dos homens. Esse filósofo diferencia a memória composta pelas impressões, recolhidas pelas vias sensoriais, da memória intelectual, à qual pertencem os conceitos origina- riamente presentes na alma humana. Pelos nossos sentidos – olfato, tato, paladar, visão, audição –, recepcionamos impres- sões de objetos externos – qualidades como sons, formas, cores –, e não os objetos em sua essência. Já a memória inte- lectual não deriva dos sentidos, porque seu fundamento não é dado por objetos externos à alma humana, mas repousa, isto sim, em ideias inatas, referindo-se diretamente a realidades não sensíveis e eternas. Dessa natureza são, por exemplo, os conhecimentos matemáticos e morais. Essa concepção de memória intelectual insere-se na tese agostiniana da iluminação divina, inspirada na teoria platônica da reminiscência. Para Platão, o processo de conhecimento é sinônimo de rememoração, uma vez que a alma humana, ante- riormente à sua encarnação, contempla as ideias, os seres em si. Para Agostinho, as verdades eternas são comunicadas por Deus aos seres humanos, introduzidas na memória humana pela luz eterna da razão. Na filosofia de Agostinho, o princípio platônico da reminiscência é reelaborado em consonância com os preceitos do cristianismo. 01. UFU-MG Leia o trecho extraído da obra Confissões. Quem nos mostrará o Bem? Ouçam a nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz do vosso rosto, Senhor. Nós não somos a luz que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por Vós. Para que sejamos luz em Vós os que fomos outrora trevas. AGOSTINHO, Santo. Confissões IX. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 154. (Os Pensadores). Sobre a doutrina da iluminação de Santo Agostinho, marque a alternativa correta. APRENDER SEMPRE 27 LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 4 PV 3D -1 8- 30 a. A irradiação da luz divina faz com que conheçamos imediatamente as verdades eternas em Deus. Essas verdades, necessárias e eternas, não estão no interior do homem, porque seu intelecto é contingente e mutável. b. A irradiação da luz divina atua imediatamente sobre o intelecto humano, deixando-o ativo para o conhecimento das verdades eternas. Essas verdades, necessárias e imutáveis, estão no interior do homem. c. A metáfora da luz significa a ação divina que nos faz recordar as verdades eternas que a alma possuía antes de se unir ao corpo. d. A metáfora da luz significa a ação divina que nos faz recordar as verdades eternas que a alma possuía e que nela permanecem mediante os ciclos da reencarnação. Resolução De acordo com a teoria agostiniana da iluminação divina, as verdades são introduzidas por Deus na alma humana, isto é, encontram-se na interioridade do ser humano. Alternativa correta: B Quanto à felicidade, qual é a natureza do seu pertencimen- to à memória? Agostinho discorre sobre a memória dos afetos, lembranças de situações pretéritas delineadas por comoções como alegria, tristeza e temor, experiências que são absorvi- das pela memória e recordadas na ausência de sua efetiva re- petição. Seria desse tipo a presença da felicidade na memória? É indispensável sublinhar que Agostinho concede extrema importância ao tema da felicidade, à medida que sua explana- ção da interioridade humana, pontualmente sobre a memória, tem o propósito de investigar se é possível o encontro com Deus pelo ser humano interior, pela alma humana. Para esse filósofo, a felicidade consuma-se precisamente no encontro com o ser supremo. Em relação à felicidade, esse pensador medieval distin- gue três estados possíveis: a felicidade efetiva, a esperança e a infelicidade. No primeiro caso, tem-se a felicidade propria- mente dita, como realidade do tempo presente. No segundo, a felicidade diz respeito à expectativa de que se torne real a projeção de um futuro feliz. Por fim, na última situação men- cionada, a felicidade sequer é reconhecida em sua possibili- dade de realização, inexiste a perspectiva de sua efetivação. Esses diferentes estados concernentes à felicidade articu- lam-se em uma unidade: em todos eles, deseja-se a felici- dade. Na felicidade presente, deseja-se preservá-la; na ex- pectativa, deseja-se conquistá-la; e, mesmo na ausência de esperança, deseja-se uma realidade feliz. Observa-se, dessa forma, o amor universal à felicidade, presente em todos os se- res humanos, constatação esta que atesta sua localização na memória, não como lembrança de afetos experimentados de maneira circunstancial, mas como recordação de uma condi- ção original da natureza humana. Neste ponto, Agostinho discrimina conceitualmente a fe- licidade e a alegria. A alegria procede de experiências munda- nas, associando-se à luxúria, ao orgulho, à vaidade: confunde os instáveis prazeres terrenos com bens eternos e verdadeiros. A felicidade – alegria verdadeira – é superior à alegria, porque não deriva de contingências do mundo, sendo introduzida por Deus na alma humana. A felicidade consiste na condição origi- nal da natureza do ser humano, em sua semelhança com o cria- dor, na primazia do amor a Deus. O autêntico restabelecimento da humanidade coincide com a reconciliação do ser humano com Deus, o que exige o êxito da vontade corretamente orienta- da sobre a vontade desviante no interior da alma humana. As explanações sobre a memória e os estados da alma humana diante da felicidade vinculam-se ao conceito de tem- po, tema que é objeto de um capítulo específico no livro Con- fissões. Santo Agostinho examina o tempo em seus vínculos com a eternidade. Deus é eterno e imutável em sua perfeição. Na eternidade divina, não há antes ou depois, passado ou porvir; há exclusivamente o presente perpétuo. O tempo per- tence à criação, quer dizer, surge com a produção divina dos seres mutáveis e corruptíveis. Dessa forma, para a pergunta sobre o que fazia Deus antes da criação, esse filósofo fornece lacônica resposta: nada. Isso porque a questão é inadequada, posto que não há anterioridade à criação divina do mundo, dado que noções temporais como antes e depois são conce- bíveis somente no horizonte das criaturas. Qual a localização, então, do tempo? O que são passado, presente e futuro? Agostinho problematiza o conceito de tem- po, negando a existência objetiva das dimensões temporais pretéritas e futuras. O passado não é uma realidade concreta, posto que não tem atualidade efetiva, referindo-se apenas ao que não é mais. O futuro também é destituído de objetividade, pois remete ao que ainda não é. Mesmo a noção de presente é problemática, porque o presente inserido no plano da tempo- ralidade, diferentemente do presente perpétuo da eternida- de, deixa, de forma contínua, de ser o tempo presente, trans- formando-se naquilo quenão é mais, em pretérito. LEIGH PRATHER/DREAM STIM E.COM O tempo é objeto das reflexões filosóficas de Agostinho. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 5 PV 3D -1 8- 30 Dessa forma, assim como a memória, as ideias eternas e a felicidade, o tempo localiza-se na interioridade humana, na alma do ser humano, como recordação do passado, atenção ao presente e expectativa perante o futuro. Modifica-se com isso a própria terminologia, nomeando-se o pretérito como presente das coisas passadas – a recordação –, o presente como presente das coisas presentes e o futuro como presen- te das coisas futuras – expectativa. B. A filosofia de Tomás de Aquino Se a patrística, com sua expressão sofisticada no pensa- mento de Agostinho de Hipona, configura a filosofia cristã em sua primeira fase, os séculos finais da época medieval são caracterizados pela supremacia da escolástica, termo que denomina os estudos teológicos e filosóficos desenvolvidos nas universidades medievais, em especial a partir da tradu- ção dos textos aristotélicos para o idioma latino. O filósofo Tomás de Aquino (1224-1274) é a principal re- ferência do pensamento escolástico, e seu sistema filosófico, conhecido como tomismo, efetua a apropriação das teses fi- losóficas de Aristóteles pelo cristianismo. De origem familiar nobre, Tomás de Aquino ingressou na ordem religiosa dos dominicanos, desenvolveu seus estudos em Paris e Nápoles e lecionou em diferentes universidades europeias. Suas ativi- dades de pesquisa e magistério proporcionaram a redação de textos importantes, como O ente e a essência, Suma contra os gentios e Suma teológica, que se tornaram clássicos na história da especulação filosófica. Nesses escritos, a tenta- tiva de conjugação da fé cristã com o saber racional, carac- terística da filosofia medieval, adquiriu sua mais completa e explícita elaboração. Na Suma contra os gentios, Tomás diferencia verdades reveladas e verdades racionais. As primeiras procedem dire- tamente da revelação divina e pertencem à dimensão supra- natural da fé e as últimas derivam da racionalidade e são con- quistadas pela aplicação da inteligência humana aos dados recolhidos pelos sentidos. Entre ambas, observa o filósofo, não há conflitos, mas uma convergência na qual a teologia revelada orienta o conhecimento racional. Como era de se esperar, Tomás de Aquino vai sustentar, por várias razões, a subordinação da ciência humana à ciência divina. Em primeiro lu- gar, porque a finalidade suprema do homem é a busca da felicidade na vida futura, o que depen- de da observância de certos preceitos fornecidos pela teologia cristã. Em segundo lugar, porque, como Santo Agostinho já havia preconizado, a filosofia pode auxiliar na compreensão de pas- sagens obscuras das Sagradas Escrituras. Em terceiro lugar, a filosofia pode também auxiliar a fé cristã fornecendo uma explicação racional de teses teológicas, como, por exemplo, a tese da existência de Deus. STORCK, Alfredo. Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 50. De acordo com Tomás de Aquino, as temáticas concer- nentes a Deus, ao mundo e ao ser humano são comuns à teologia e à filosofia, e a atividade filosófica conduz a verda- des que não contrariam os dogmas religiosos, mas são, isto sim, confluentes com os elementos doutrinários do cristia- nismo. Entretanto, diferentemente do saber supranatural, o conhecimento sustentado em um percurso racional oferece o acesso a um conjunto limitado de verdades. Pelo itinerário da razão não é possível, por exemplo, atingir a trindade di- vina – Pai, Filho e Espírito Santo – e a encarnação do verbo divino na pessoa humana de Jesus Cristo. Por outro lado, a investigação filosófica é capaz de comprovar racionalmente a existência de Deus mediante a observação de seus efeitos, os fenômenos físicos do mundo. Tomás de Aquino, portanto, mesmo atribuindo limitações ao conhecimento construído racionalmente, concede eleva- da importância à filosofia, à medida que a pesquisa racional se baseia naquilo que, a despeito da diversidade de crenças, é comum a todos os seres humanos, a saber, a razão. Nesse sentido, dedica-se à demonstração racional acerca de exis- tência de Deus, desenvolvida em sua Suma teológica. No que tange ao conhecimento, Tomás utiliza a metáfora da tábula rasa para se referir à condição inicial da alma huma- na: a mente é como uma página em branco, que se preenche com os conteúdos extraídos do mundo sensível. Os elemen- tos recepcionados pela experiência são transformados em conhecimentos conceituais pelo intelecto agente, com a luz natural da razão. Essa luz natural da razão consiste em uma faculdade natural do intelecto humano, e não em uma espé- cie de iluminação externa e sobrenatural. M OHAM ED OSAM A M OHAM ED ABDEL GHANY/DREAM STIM E.COM Para Tomás de Aquino, a mente humana é como uma página em branco. Nesses termos, compreende-se a tese da existência de Deus, pois se trata de uma inferência obtida pela razão com o exame dos fenômenos da natureza. Em outras palavras, inspecionando racionalmente os efeitos, os fatos do mundo, conclui-se pela existência da causa, Deus. Tomás de Aquino explicita essa tese com a apresentação de argumentos cla- ramente baseados na filosofia aristotélica, constituindo as cinco vias para a prova racional de existência de Deus. A primeira via é o argumento do movimento ou do primeiro motor. Segundo esse raciocínio, tudo o que se move transfor- ma-se na atualização de uma potência, é movido por algo que lhe é exterior. Sendo assim, no horizonte dos fenômenos do LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 6 PV 3D -1 8- 30 mundo, o que se move é conduzido por um movente – o que move algo – e esse movente, por sua vez, é movido por outro movente, em uma longa sucessão de relações. Seria logica- mente possível, então, expandir essa sequência regressiva- mente ao infinito, afirmando que um movente é, ele próprio, sempre movido por algo? A resposta é negativa, pois, para que exista essa complexa série de movimentos, é necessário existir um princípio movente que não seja ele próprio mutável: o primeiro motor imóvel. Esse primeiro motor imóvel é Deus. A segunda via, análoga à primeira, é o argumento da cau- salidade eficiente ou da causa primeira, referenciado nas re- lações de causa e efeito observadas no mundo. Nas relações de causalidade, um efeito é necessariamente antecedido por uma causa, e o que é causa para um efeito é, em igual me- dida, efeito de uma causa anterior. Essa complexidade das relações de causalidade sustenta-se na existência de uma causa primeira, que não é efeito, e da qual decorrem todas as relações de causa e efeito imanentes ao mundo. Essa causa primeira é Deus. A terceira via versa sobre os seres contingentes e o ser necessário. Esse argumento declara que os seres da nature- za são contingentes, isto é, podem ser e podem não ser, algo que é atestado por nossa experiência sobre a geração e a cor- rupção dos seres existentes. Porém, a existência do mundo requer um ser necessário, que jamais transita para o não ser e sem o qual não existiriam os seres contingentes. Esse ser necessário é Deus. Segundo Aquino, ao se admitir que, em algum tempo, nada existiu, deve-se admitir que nada exis- te, porque o nada gera nada. Assim, é necessário e forçoso admitir que há um ser que, por extrapolar a esfera do tempo, sempre existiu, e esse ser é Deus. A quarta via concerne aos graus de perfeição dos seres e ao ser perfeito. De acordo com esse argumento, há diferentes níveis de perfeição nos seres, o que nos permite afirmar, em uma perspectiva comparativa, que existem seres mais perfei- tos e seres menos perfeitos. Constata-se, assim, uma grada- ção de perfeição que procede de um parâmetro de absoluta perfeição, remetendo ao ser perfeito. Esse ser perfeito é Deus. Por fim, a quinta via caracteriza-se pelo sentido teleoló- gico, segundo o qual todosos seres do mundo possuem uma finalidade, sendo que até mesmo os seres incapazes de co- nhecimento agem conforme um fim que lhes é inerente, em sintonia com a ordem do Universo. Esse Universo rigidamente ordenado, em que todas as coisas são direcionadas a um fim, revela o governo de uma inteligência ordenadora. Essa inteli- gência ordenadora é Deus. 01. UFU-MG O texto que se segue refere-se às vias da prova da existência de Deus. As cinco vias consistem em cinco grandes linhas de argumentação por meio das quais se pode provar a existência de Deus. Sua importância reside sobretudo em que supõe a possibilidade de se chegar no entendi- mento de Deus, ainda que de forma parcial e indireta, a partir da consideração do mundo natural, do cosmo, entendido como criação divina. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 67. Com base no texto, marque a alternativa correta. a. As cinco vias são argumentos diretos e evidentes da existência de Deus. b. Tomás de Aquino formula as cinco vias da prova da existência de Deus, utilizando, sistematicamente, as passa- gens bíblicas para fundamentar seus argumentos. c. As cinco vias partem de afirmações gerais e racionais sobre a existência de Deus, para chegar a conclusões sobre as coisas sensíveis, particulares e verificáveis sobre o mundo natural. d. Tomás de Aquino formula as argumentações que provam a existência de Deus sob a influência do pensamento de Aris- tóteles, recorrendo não à Bíblia, mas, sobretudo, à metafísica do filósofo grego. Resolução Tomás de Aquino utiliza conceitos da filosofia aristotélica para demonstrar racionalmente a existência de Deus, com base na observação de seus efeitos no mundo. Deve-se observar que a utilização de conceitos da metafísica aristotélica não significa que o ponto de partida de Aquino, nessa tarefa, seja metafísico: é pela observação dos fenômenos físicos, efeitos, que esse filósofo pretende comprovar a existência de Deus. Alternativa correta: D APRENDER SEMPRE 28 A reflexão de Tomás de Aquino sobre a essência e a exis- tência conclui esta apresentação de seu pensamento. Para o filósofo, a essência diz respeito ao que algo é, possui dimen- são conceitual. Descrever a essência de alguma coisa, dizer o que é, não significa, contudo, declarar que, de fato, ela existe, pois a essência se diferencia da existência. Um exemplo sim- ples é imaginar a seguinte pergunta: o que é um ser humano completamente generoso? Se for apresentada uma resposta satisfatória, será possí- vel conhecer a essência de um ser humano completamente generoso. Ainda assim, pode-se acrescentar essa indagação: existe, realmente, um ser humano completamente genero- so? A constatação da essência de algo não oferece garantia quanto à sua existência. Tomás de Aquino não apenas destacou essa diferença en- tre essência e existência, como afirmou ainda que a essência LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 7 PV 3D -1 8- 30 precede a existência. Os seres contingenciais – o Universo, a natureza, os astros, os seres vivos – são originariamente es- sências presentes na vontade de Deus, que recebem sua exis- tência no ato da criação divina. E com relação a Deus? Seria correto dizer que a essência de Deus precede sua existência? Não, pois Deus não é um ser criado. É o ser necessário, perfeito e criador do mundo. Em Deus, a essência coincide com a exis- tência, ou melhor, Deus é pura existência. C. A polêmica dos universais A apresentação de algumas das teses de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino evidencia a persistência da prática fi- losófica em um universo cultural cristão. Ainda que condiciona- dos pelos fundamentos doutrinários do cristianismo, os temas referentes ao mundo e ao ser humano permanecem em sua condição de objetos de problematizações filosóficas. A filosofia resiste em sua natureza de atividade mobilizada por debates ra- cionais. Exemplar a esse respeito é a polêmica dos universais, intensificada com o surgimento das universidades medievais. Trata-se de uma discussão que se inicia na antiga filosofia grega e que envolve as articulações entre pensamento, lingua- gem e ser. A polêmica dos universais examina as relações con- ceituais entre os termos que designam uma multiplicidade de individualidades e essas individualidades em si mesmas. Quan- do, por exemplo, aplica-se a expressão “humanidade”, a inten- ção é referir-se a um conceito universal, portador de um núcleo comum a todos os seres humanos singulares ou, apenas para citar mais um exemplo, ao se usar a palavra árvore, muitas ve- zes, recorre-se a uma palavra que reúne as incontáveis árvores efetivamente existentes na natureza. A questão, então, é esta: esses termos são conceitos com realidade objetiva ou são sim- ples nomeações desprovidas de conteúdos reais? Em torno desse problema, desenvolvem-se, na filosofia medieval, três concepções: o realismo, o nominalismo e o realismo moderado. O realismo, cujo principal expoente é Guilherme de Champeaux (1070-1121), compreende os conceitos como realidades objetivas, originariamente situadas além das indi- vidualidades concretas, indivíduos estes que, aliás, seriam reproduções singulares de uma conceituação universal. Se- gundo esse ponto de vista, a humanidade – para retomar um dos exemplos escolhidos – é um conceito real e os seres hu- manos singulares são realizações específicas dessa realidade conceitual. Em sentido oposto, o nominalismo, que tem Ros- celin de Compiègne (1050-1125) entre seus representantes, entende que os termos universais são somente palavras sem conteúdo real, que não se referem com pertinência à realidade, pois o que realmente existe são as individualidades que efeti- vamente se observam no mundo. Sob essa ótica, humanidade é somente um termo convencional, destituído de relações ver- dadeiras com a realidade objetiva, porque o que, de fato, existe são os múltiplos seres humanos em sua vida concreta. O realismo moderado, defendido por Pedro Abelardo (1079-1142), é uma tese intermediária, segundo a qual as individualidades são compostos inseparáveis. Os elementos que formam os indivíduos, suas características universais e suas características singulares, não são objetivamente disso- ciáveis; eles existem concretamente nas composições indivi- duais. Entretanto, esses diferentes elementos são discernidos pelo intelecto humano que, mediante o procedimento da abs- tração, identifica os aspectos comuns das individualidades, os quais consistem, assim, em conceitos universais. 3. Caracterização inicial da filosofia moderna O que é a filosofia moderna? Uma interrogação dessa natu- reza não é satisfatoriamente equacionada por uma resposta di- reta e imediata, exigindo, isto sim, uma explanação mais longa, com o propósito de reconstituir os caminhos e as característi- cas que delimitam esse período do pensamento filosófico. A di- visão da história da filosofia em diferentes etapas é um proce- dimento didático utilizado pelos historiadores, com a intenção de destacar as modificações da atividade filosófica no curso do tempo e os traços minimamente comuns aos pensadores de épocas determinadas. Para tanto, consideram não apenas a história da filosofia, mas também as suas relações e corres- pondências com as transformações culturais, econômicas e políticas das sociedades humanas. Ao demarcarem um perío- do da filosofia, esses estudiosos não apresentam um panora- ma homogêneo, uma unidade teórica entre os vários autores, mas sim um núcleo comum de temas, reflexões e debates, no interior do qual se desenvolvem as controvérsias filosóficas. Dessa forma, mesmo reconhecendo a pertinência da per- gunta pela definição da filosofia moderna, é preciso resistir à inclinação de respondê-la imediatamente. É mais apropriado assumi-la como ponto de partida para a gradual identificação dos aspectos que contribuem para sua formação, das suas articulações com o universomais amplo da cultura, dos seus temas centrais e das suas principais tendências teóricas. A. Transformações socioculturais e filosofia moderna Alguns livros de história da filosofia registram o início pleno da filosofia moderna com o francês René Descartes (1596-1650) e sua conclusão com os textos do alemão Imma- nuel Kant (1724-1804). Ainda que as obras desses filósofos representem, respectivamente, o marco inaugural e a consu- mação do pensamento filosófico moderno, não são referên- cias temporais e conceituais rígidas. Muitos escritos filosófi- cos anteriores aos textos de Descartes distanciaram-se dos padrões filosóficos medievais e anunciaram reflexões tipica- mente modernas. Da mesma forma, estudos de filósofos pos- teriores a Kant prosseguem no âmbito da filosofia moderna. Assim, registra-se também a tendência de fixação dos limites cronológicos da filosofia moderna entre os séculos XV e XIX. O surgimento e a formação da filosofia moderna situam-se em um contexto histórico de profundas transformações das so- ciedades europeias, cujas origens localizam-se ainda na Baixa Idade Média (séculos XI a XV), com o Renascimento Comercial e o Renascimento Urbano, fenômenos socioeconômicos que, paulatinamente, desestruturaram os tradicionais vínculos feu- dais e proporcionaram relações sociais que, no curso do tempo, configurariam a modernidade. No plano sociocultural, foram de- cisivos os acontecimentos dos séculos XV, XVI e XVII, tais como o Renascimento Cultural, as Reformas Religiosas, a formação dos Estados Nacionais europeus e a Revolução Científica. As Reformas Religiosas do século XVI – luterana, calvinista e anglicana – removeram o monopólio institucional do catoli- cismo sobre o cristianismo na Europa Ocidental, instaurando uma pluralidade religiosa cristã de notável repercussão no campo da cultura. Na esfera política, a considerável fragmen- tação territorial do poder, característica da época medieval, foi substituída pela unificação do poder em bases nacionais e sob a forma do absolutismo monárquico. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 8 PV 3D -1 8- 30 O estabelecimento de novas religiões cristãs, com o con- sequente pluralismo do cristianismo, convergiu com a diver- sidade de discursos filosóficos na cultura moderna, à medida que tanto as concepções religiosas quanto as especulações filosóficas não se circunscreviam mais ao domínio absoluto do pensamento católico. Não se trata de afirmar uma relação de causa e efeito nem de dizer que as Reformas Religiosas são a causa da dissociação entre as teorias filosóficas e a doutrina católica, tampouco de sugerir que as novas religiões sejam um efeito das nascentes teses filosóficas modernas. Estamos re- gistrando, isto sim, um ponto de convergência e de influências recíprocas entre ambas: o pluralismo de ideias desafiando o tradicional domínio católico no plano sociocultural europeu. Já a formação dos Modernos Estados Nacionais europeus ensejou a retomada da política como problema filosófico rele- vante. Uma das questões centrais na filosofia clássica grega, a temática política praticamente desapareceu das escolas fi- losóficas helenísticas, passando a ocupar posição secundária na filosofia medieval. Ressurgiria como tema nuclear do pensa- mento filosófico na cultura moderna. Referência inaugural da filosofia política moderna, o livro O príncipe, do florentino Nico- lau Maquiavel (1469-1527), refletiu sobre as dificuldades de se promover a unificação política italiana e, sobretudo, iniciou uma forma original de pesquisa política, centrada no exercício do poder como virtude própria da política – e não na concepção da política como atividade dirigida à realização do bem comum. Em seu chamado realismo político, Maquiavel separou a ética do cristianismo, compreendendo a política como esfera exte- rior aos princípios morais vigentes nas demais relações sociais. Nas especulações políticas da filosofia moderna, pro- jetaram-se as teorias contratualistas de Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), assentadas na tese de que a socie- dade política é uma construção artificial da humanidade para superar uma original condição de natureza da humanidade. A filosofia de Hobbes implicava a defesa do Estado absolutista, di- ferenciando-se, contudo, das teorias que procuraram legitimar o poder absoluto dos monarcas, em sua suposta descendência divina, como representantes diretos de Deus em seus respecti- vos reinos. Hobbes confeccionou sua concepção de legitimida- de do poder absoluto do Estado com base em sua conceituação da natureza humana. A teoria contratualista de Locke, diferente- mente do ponto de vista filosófico de Hobbes, reconheceu como legítimas apenas as formas de sociedade política que prioriza- vam os direitos individuais e, nesse sentido, contestou o poder absoluto dos monarcas. Jean-Jacques Rousseau, em suas críti- cas à sociedade civilizada, denunciou as desigualdades sociais e propôs, como solução política para os acentuados problemas da civilização, um contrato social fundado na vontade geral. A filosofia política moderna prolongou-se no movimento fi- losófico iluminista do século XVIII, mobilizada pelas discussões acerca de aspectos temáticos como os direitos individuais, a liberdade, as razões das desigualdades sociais, a aspiração à igualdade, as formas de organização política, as relações entre Estado e sociedade, a noção de progresso, entre outras ques- tões sociopolíticas racionalmente examinadas. Quanto ao Renascimento Cultural e à Revolução Científica, estes são temas que merecem uma apresentação um pouco mais detida, uma vez que são densas as suas confluências com a constituição do pensamento filosófico moderno. A denominação Renascimento Cultural, aplicada ao movi- mento expresso nas realizações artísticas, nas modalidades de conhecimento, na filosofia e, em sentido abrangente, à mudança de mentalidade que atinge sua forma explícita no século XVI, indica sua proposta de ruptura com os parâmetros do pensamento medieval: sob o ponto de vista renascentista, a Idade Média consistiu em uma época obscurantista, na qual o poder social católico reprimiu as autênticas elaborações culturais dos seres humanos. Nesse horizonte, compreen- dem-se as características delineadoras do Renascimento, entre as quais destacam-se o antropocentrismo, o racionalis- mo e o naturalismo. Sempre que se evoca o tema do Renasci- mento, a imagem que imediatamente nos vem à mente é a dos grandes artistas plásticos e de suas mais famosas obras, amplamente reprodu- zidas e difundidas até nossos dias, como a Mona Lisa e a Última Ceia de Leonardo da Vinci, o Juízo Final, a Pietá e o Moisés de Michelangelo, assim como as inúmeras e suaves Madonas de Rafael [...]. Isso nos coloca a questão: por que razão o Renascimento implica esse destaque tão grande dado às artes visuais? [...] De fato, as artes plás- ticas acabaram se convertendo num centro de convergência de todas as principais tendências da cultura renascentista. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Atual, 1994. p. 25. Em oposição ao teocentrismo medieval, no qual as inter- pretações acerca do mundo e da humanidade foram regidas pela teologia católica, o antropocentrismo renascentista insta- lou o ser humano no centro de suas reflexões. Essa postura não significa, necessariamente, a negação da crença em Deus, mas o deslocamento da ênfase reflexiva para as possibilidades do ser humano, acompanhada da confiança em sua capacidade de criação e de ação sobre o mundo. De maneira resumida, é correto dizer que a cultura renascentista tendeu à valorização daquilo que de divino existe na humanidade. Essa perspectiva antropocêntrica se expressa nitidamen- te no pensador renascentista Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), que, em seu texto intitulado Discurso sobre a dignidade do homem, afirma que o criador concebeu o ser hu- mano comuma natureza indefinida. Sublinha, desse modo, a humanidade como artífice de si mesma, ou seja, não se fixan- do em uma precisa natureza por Deus, ao ser humano é con- ferida a prerrogativa de construir seu próprio ser em escolhas que podem rebaixá-lo ao nível das bestas ou elevá-lo ao plano celestial. Para Della Mirandola, diferente dos animais, cujo com- portamento é prescrito de forma rígida pela natureza que lhes foi impressa pela providência, o ser humano é um ser ontologi- camente indeterminado, que, portanto, traz em si a presença do divino. Para além do que é puramente dado, não se resume à simples criatura, sendo ele próprio, à semelhança de Deus, um criador, em condições de elaborar sua natureza em consonân- cia com sua vontade. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 9 PV 3D -1 8- 30 O antropocentrismo, então, identifica a humanidade como uma criatura especial no conjunto dos seres vivos, capaz de conhecer racionalmente a realidade e de modificar a nature- za em conformidade com seus interesses. Esse humanismo renascentista intersecciona-se, assim, com o racionalismo e com o naturalismo. O termo racionalismo, neste momento, não deve ser confundido com a postura gnosiológica para a qual os conhecimentos humanos são inatos, baseiam-se em ideias originariamente presentes na mente humana. Nos do- mínios da teoria do conhecimento, a filosofia moderna com- porta também filósofos racionalistas como aqueles segundo os quais os sentidos são a fonte do verdadeiro saber – os empiristas. Ao nomear o racionalismo como um dos traços es- senciais da cultura renascentista, há referência à convicção de que os seres humanos podem conhecer a realidade com o uso de sua intelectualidade, combinando a razão e a observa- ção dos fenômenos, sem recorrer a suposições sobrenaturais. O racionalismo renascentista preconiza a emancipação do saber racional em relação à teologia cristã. O pensamento medieval atribui importância à razão, mas a submete ao pri- mado da fé – as filosofias de Agostinho e de Tomás de Aquino conjugam saber racional e saber revelado sob a primazia deste último. O humanismo renascentista, por seu turno, rei- vindica a completa autonomia da razão em relação aos dog- mas teológicos, entendendo que o conhecimento humano da realidade natural deve se pautar pela observação racional do mundo em si mesmo, com o que se define o elemento natura- lista do Renascimento Cultural. O naturalismo define-se pela valorização do ser humano como ser natural e da própria natureza em sua totalidade, a despeito da existência de princípios sobrenaturais de susten- tação do mundo. No tocante ao saber, o naturalismo caracteri- za-se pelo empenho em revelar as leis que regem os fenôme- nos naturais, em que o conhecimento de suas regras permite à humanidade o desenvolvimento de técnicas que ampliem e intensifiquem o seu domínio sobre a própria natureza. O universo cultural renascentista lança os fundamentos da cultura moderna e, em seu interior, associada às trans- formações socioeconômicas que conduzem a transição das relações feudais para o capitalismo, processa-se a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII. Com ela, surge uma forma de conhecimento que assumiu importância central nas socieda- des humanas: a ciência moderna. B. Revolução Científica e filosofia moderna Da Antiguidade grega aos primeiros tempos da Era Mo- derna, a filosofia consiste na investigação racional dos dife- rentes aspectos da realidade, ou seja, compreende a totali- dade dos chamados saberes científicos. Filosofia e ciência são, então, sinônimos. Essa situação se modifica com a con- solidação da ciência moderna, que, com a definição de seus métodos específicos, diferencia-se da especula ção filosó- fica. Demarcam-se, assim, fronteiras entre o conhecimento filosófico e o conhecimento científico, ao mesmo tempo que se estabelece um permanente diálogo entre filosofia e ciên- cia, extensivo à atualidade. Afinal, o que é a ciência moderna? Comparando o moder- no conhecimento científico com a cultura católica medieval, nota-se a substituição das narrativas teológicas por efetivas pesquisas dos fenômenos naturais. A ciência pretende expli- car a natureza com base em regras encontradas na própria natureza, recusando-se a simplesmente aceitar os dogmas católicos sobre o mundo. Distinguindo-se dos dogmas cris- tãos, o saber científico não se baseia na autoridade religiosa, caracterizando-se pela postura dialógica, ou seja, aberta às divergências e às confrontações de teses, em seu compro- metimento com a busca de um conhecimento alicerçado em evidências que devem ser acolhidas pela razão. ANNA RASPOPOVA/DREAM STIM E.COM As relações entre filosofia e ciência moderna impõem o exame de importantes questões referentes ao conhecimento. Quanto à sua abertura às críticas e à sua proposta de um conhecimento racionalmente examinado, a ciência moderna identifica-se com a filosofia. Afinal, essas são características essenciais da filosofia, desde suas origens gregas. Entre- tanto, diferentemente da filosofia, a ciência moderna possui caráter mais prático, o que significa dizer que o moderno conhecimento científico possui, em comparação com o viés contemplativo da filosofia, uma dimensão, sobretudo, prática. A indicação de dois aspectos é suficiente para entender essa afirmação. De forma distinta da ciência antiga e medie- val, ou melhor, da filosofia, a ciência moderna desenvolve suas teorias amparada em observações sistemáticas dos fenômenos, com a realização de experimentações, mensu- rações e repetições de situações. Isso não quer dizer que a filosofia recuse a observação dos fatos do mundo. Basta re- cordar as incontáveis observações de Aristóteles acerca dos eventos naturais e dos seres vivos para constatar que essa é também uma preocupação da pesquisa filosófica. O que a ciência moderna efetua é a observação sistemática, metódi- ca e experimental com a qual se processa o teste empírico de suas hipóteses: a busca de conhecimentos justificados em demonstrações práticas. O viés prático da ciência moderna evidencia-se ainda em sua associação com a ambição humana de interferir nos processos naturais, transformando a natureza em benefício da humanidade, isto é, reivindicando a utilização do conhe- cimento da natureza para o desenvolvimento de tecnologias que contemplem as ambições humanas. Na ciência tradicio- nal – a filosofia pré-socrática, por exemplo –, a tentativa de conhecer o Universo e a natureza não se vincula a nenhum projeto de domínio humano sobre o meio natural. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 0 PV 3D -1 8- 30 As relações entre ciência moderna e controle humano sobre a natureza desenvolvem-se no interior de um comple- xo processo histórico, muitas vezes resumido, na linguagem socioeconômica, como a transição do feudalismo para o ca- pitalismo. É interessante também registrar que os seus des- dobramentos históricos são, na atualidade, bastante discu- tíveis, como os desequilíbrios ambientais contemporâneos, para mencionar apenas um exemplo a esse respeito. Dessa forma, nota-se que entre a ciência antiga e a ciência moderna não há simplesmente uma relação de con- tinuidade. É certo que ambas se delineiam como pesquisas racionais da natureza e que muitos estudiosos identificam na ciência antiga o ponto de partida da ciência moderna. Po- rém, o conhecimento científico moderno constitui-se com uma metodologia original, que conjuga o exame racional dos fenômenos com práticas de experimentação e de verificação empírica de hipóteses. Além disso, desenvolve-se em um ho- rizonte cultural orientado pela pretensão humana de interferir sistematicamente nos processos naturais. Entre os protagonistas dessa Revolução Científica, des- taca-se o italiano Galileu Galilei (1564-1642). Professor e pesquisador extremamente dedicado, Galileu notabilizou-se por algumas iniciativas que desafiaram preconceitosde sua época e anunciaram a moderna atitude científica. Observando os movimentos de um candelabro na Cate- dral de Pisa, Galileu concluiu que o tempo de suas oscilações relacionava-se com o seu tamanho, questionando, então, a tradicional tese aristotélica segundo a qual a velocidade de queda de um corpo depende diretamente de seu peso – cor- pos mais pesados caem mais rapidamente. Assim, Galileu realizou um experimento em que procedeu ao deslizamento de diferentes esferas em um plano inclinado, com o propósito de provar que as quedas dos corpos, independentemente de seus pesos, possuem a mesma velocidade, desde que não sofram a interferência de nenhuma variável. Comprometido com as investigações experimentais, Gali- leu aperfeiçoou um instrumento de procedência holandesa, a luneta, com o qual empreendeu importantes descobertas no campo da astronomia. Com suas observações astronômicas, esse físico moderno refutou aspectos da cosmologia aristo- télica e do geocentrismo ptolomaico, inferindo que os corpos celestes não eram esferas perfeitas e que os planetas movi- mentavam-se em torno do Sol. No âmbito do saber filosófico, mediante suas práticas ex- perimentais e suas reflexões teóricas, Galileu consolidou os fundamentos da ciência moderna e difundiu conceitos que penetraram nas práticas científicas, tais como a noção de me- canicismo. Em seus estudos sobre a mecânica do Universo, delimitou a compreensão dos fenômenos naturais pelas leis do movimento e do repouso de partículas dotadas de gran- deza e de figura, em um complexo de relações causais que exprimiu a natureza em linguagem matemática. A consolidação da ciência moderna, porém, enfrentou consideráveis resistências do pensamento dogmático e, nes- se sentido, é exemplar o processo inquisitorial enfrentado por Galileu Galilei. Suas explicações acerca do Universo contraria- ram concepções tradicionalmente defendidas pelo catolicis- mo. Galileu foi, por isso, submetido a um rigoroso julgamento pelo Tribunal da Inquisição, que se decidiu pela heresia de suas proposições e condenou-o a renegar publicamente suas teses cosmológicas. A Revolução Científica moderna tem seu ponto de partida na obra de Nicolau Copérnico, Sobre a revolução dos orbes celestes (1543), em que este defende matematicamente [...] um modelo de cosmo em que o Sol é o centro (sistema he- liocêntrico) e a Terra, apenas mais um astro gi- rando em torno do Sol, rompendo, desse modo, com o sistema geocêntrico formulado no século II por Cláudio Ptolomeu [...] MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 154. Apesar dessa resistência cultural pautada pela herança medieval, a ciência moderna adquiriu crescente prestígio social, sedimentando-se como método legítimo de conhe- cimento do mundo e das leis naturais. No interior da cultura moderna, desenvolveram-se, então, as chamadas ciências da natureza, como a física, a biologia e a química. Tempos de- pois, na Era Contemporânea, as pretensões do conhecimento científico expandiram-se sobre os temas da sociedade, da cultura e do ser humano, delineando-se as ciências humanas e sociais, tais como a sociologia e a antropologia. Teria o surgimento da ciência moderna repercutido na filosofia? A instauração do moderno conhecimento científico produziu, inegavelmente, profundo impacto sobre a filosofia. Se, anteriormente à emergência dessa forma de saber, a es- peculação filosófica compreendia a totalidade dos saberes racionais, a ciência moderna exigiu a redefinição das tarefas da atividade filosófica. Desde então, as relações entre filoso- fia e ciência são tecidas por múltiplos e, muitas vezes, contro- versos diálogos. O exame dessas relações será feito em um capítulo especificamente direcionado a essa temática. Em um primeiro momento, interessa assinalar que a ciên- cia moderna e a filosofia moderna desenvolveram-se em um mesmo contexto sócio-histórico, a formação da cultura moder- na, no qual se influenciaram mutuamente. Elucidativas a esse respeito são as posturas filosóficas do francês René Descartes e do britânico Francis Bacon, expoentes iniciais da moderna filosofia. Preocupado em identificar as regras adequadas à condução do pensamento às ideias claras e distintas, ou seja, à verdade, Descartes foi incisivo ao afirmar que devemos nos libertar de nossas prenoções culturais para atingir certezas que ofereçam conhecimentos realmente úteis à humanidade, quer dizer, os conhecimentos científicos. Francis Bacon (1561-1626) foi ainda mais veemente, associando o saber ao poder, isto é, concebendo o saber como instrumento imprescindível à domi- nação dos seres humanos sobre a natureza e dedicando suas reflexões filosóficas à tentativa de definir uma metodologia per- tinente à aquisição de saberes verdadeiramente científicos. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 1 PV 3D -1 8- 30 01. UEM-PR Francis Bacon (1561-1626), com o seu lema “saber é poder”, critica a base metafísica da fí- sica grega e medieval e realça o papel histórico da ciência e do saber instrumental, capaz de dominar a natureza. Rejeita as concepções tra- dicionais de pensadores ‘sempre prontos para tagarelar’, mas que “são incapazes de gerar, pois a sua sabedoria é farta de palavras, mas estéril em obras”. Novum organum, Livro I, LXXI. In: ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando. São Paulo: Moderna, 2009. p. 68. Sobre o pensamento de F. Bacon, assinale o que for correto. 01. Enquanto na Idade Média o saber contemplativo era privilegiado em detrimento da prática, F. Bacon valorizava a técnica de experimentação empírica. 02. O conhecimento dos estados da matéria possibi- lita o controle sobre os fenômenos da natureza, como controlar a evaporação, por exemplo. 04. Entre os conhecimentos práticos da filosofia de F. Bacon destaca-se a oratória, arte de utilizar técni- cas de linguagem a fim de persuadir o espectador. 08. Ao defender a alquimia, F. Bacon valoriza as- pectos mágicos da matéria, revelados pela ciência química. 16. Em sua obra filosófica mais importante, A poética da natureza, F. Bacon descreve o modo pelo qual a mão de Deus permanece ativa sobre os fenô- menos da natureza. Resolução As afirmações 01 e 02 são verdadeiras, pois mencio- nam corretamente a atitude de Bacon ante o conhecimen- to e a ciência. As sentenças 04, 08 e 16 não correspon- dem a noções presentes na filosofia de Bacon. Resposta: 3 (1+2) APRENDER SEMPRE 29 Registra-se neste ponto, portanto, o entusiasmo filosófi- co pelo conhecimento científico, otimismo este que persistiu no horizonte do movimento filosófico iluminista, no cenário cultural europeu do século XVIII. C. O movimento filosófico iluminista A filosofia iluminista, situada no espectro da cultura filosófica moderna, não consiste propriamente em uma es- cola de pensamento filosófico, já que a expressão “escola filosófica”, em seu significado rigoroso, designa um grupo de intelectuais que efetuam suas pesquisas no interior de um corpo comum de ideias, uma teoria aceita por todos os seus participantes. O Iluminismo, portanto, não se caracte- riza pela existência de uma substancial unidade teórica e conceitual entre os seus representantes, e sim por sua defi- nição como movimento filosófico. Antes de discorrer sobre os principais aspectos desse mo- vimento, é interessante acompanhar a exposição do filósofo Immanuel Kant em seu ensaio intitulado Resposta à pergunta: que é esclarecimento?, no qual pretende fornecer uma defini- ção direta e sucinta do Iluminismo – o título original do texto contém a palavra alemã Aukflärung, que pode ser traduzida para a língua portuguesa por esclarecimento ou Iluminismo. Kant definiu o Iluminismo como um movimento de supe- ração da menoridade intelectual do ser humano. O que é, para esse filósofo, a menoridade intelectual do ser humano? É a recusa do ser humano em utilizar autonomamente sua razão para decidir os rumosde sua vida, usar sua racionalidade para conduzir a si mesmo, ou seja, mantendo-se na menoridade, o ser humano orienta suas condutas por preceitos externos, ordens emanadas por outros mediante uma tradição social- mente instituída. Aquele que se mantém nessa condição de dependência, prossegue o filósofo, é responsável por sua menoridade intelectual, preservando a ausência de coragem para assumir seu destino, para servir-se do seu próprio enten- dimento para direcionar sua vida. Kant declarou que essa menoridade intelectual é uma afronta ao direito natural da humanidade à sua autonomia e realização racional, para a qual é necessário um ambiente so- ciocultural de liberdade, que propicie o uso público da razão pelos seres humanos. Afirmou ainda que, a sua época, o século XVIII, era o tempo em que estava em curso o esclarecimento ou Iluminismo, a conquista da maioridade pelos seres humanos. Foi o tempo em que a humanidade pretendeu romper com a menoridade, emancipando-se e lançando-se à liberdade com a afirmação de sua racionalidade na esfera das relações sociais. NICKU/DREAM STIM E.COM Immanuel Kant definiu o Iluminismo como a conquista da maioridade intelectual pelos seres humanos. Essa conceituação kantiana do Iluminismo indica os princípios orientadores desse movimento filosófico. A postu- ra filosófica iluminista fundamentou-se na confiança de que somente os conhecimentos racionalmente justificados eram LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 2 PV 3D -1 8- 30 efetivamente válidos, proporcionando a autonomia humana e eliminando as explicações metafísicas, os dogmas das reli- giões, os preconceitos morais e o autoritarismo político. Nes- ses termos, entende-se porque a razão iluminista contestou todas as formas de autoridade que não fossem embasadas na própria razão, como o poder exercido por instituições religiosas e o Absolutismo dos monarcas europeus. Em uma expressão: o Iluminismo reivindicou a completa substituição da autoridade da tradição pela autoridade da razão. Na cultura filosófica iluminista do século XVIII, predomi- nou a recusa às explicações metafísicas precisamente por- que estas pretendiam conhecer o que estava além da expe- riência, resultando em discursos cujos conteúdos não eram passíveis de confirmação pela observação dos fenômenos do mundo – teses sobre uma causa primeira de tudo o que existe ou sobre a natureza de um ser divino são exemplos de teorias metafísicas. Da mesma forma, o Iluminismo mostrou-se refratário às instituições religiosas, uma vez que suas doutrinas impediam o uso crítico da razão e tratavam de temas que não estavam sujeitos à observação empírica. Nesse sentido, é importante destacar que mesmo os filósofos deístas, os iluministas que, pelo exame das relações da natureza, atribuíam a origem do Universo a uma inteligência ordenadora, limitaram-se a afir- mar a existência de Deus, sem se excederem com conside- rações sobre a supranaturalidade. Muitos dos valores morais tradicionais foram desprezados pelos iluministas precisa- mente porque derivavam de concepções culturais preconcei- tuosas, quer dizer, o movimento iluminista aspirava à cons- trução de vínculos de moralidade verdadeiramente justos e racionais. Por fim, o poder absolutista dos reis, vigente na Europa da Idade Moderna, foi questionado por contrariar a li- berdade natural dos seres humanos, devendo, de acordo com a perspectiva iluminista, ser substituído por formas racionais de organização do Estado. Essas ponderações revelam o entendimento dos limites e das possibilidades da razão pela filosofia iluminista. De modo geral, os iluministas admitiam como autênticos apenas os sa- beres legitimados pela razão, mas consideravam que a razão não era capaz de conhecer o que ultrapassa a experiência. Um exemplo histórico ajuda a compreender essa postura iluminis- ta: a identificação da lei da gravidade pelo cientista inglês Isaac Newton (1643-1727). A observação sistemática dos fenômenos da natureza oferece a constatação racional da gravitação uni- versal dos corpos e a identificação desse mecanismo natural. Entretanto, a razão não esclarece quanto ao motivo pelo qual existe a lei da gravidade, não atinge o seu porquê. Assim, se- gundo a tendência predominante na filosofia iluminista, a razão limita-se ao que é comprovável pela experiência. Delimitando o saber racional em sua conjugação com o que é observável nos eventos do mundo, o Iluminismo concebeu as fronteiras do conhecimento nos termos da ciência moderna e entendeu que a razão é capaz de se pronunciar com legitimidade sobre todos os fenômenos da vida, inclusive sobre as relações sociais e culturais dos seres humanos, configurando, dessa for- ma, uma atitude filosófica que estimulou a expansão do conhe- cimento científico para os temas de vida em sociedade. No hori- zonte do movimento filosófico iluminista, surgiriam as ciências sociais, por exemplo a sociologia e a antropologia, no século XIX. A elaboração da Enciclopédia, iniciativa lidera- da por Denis Diderot (1713-1784) e Jean D’Alembert (1717-1783) na França, centro do movimento filosófico iluminista, exprime nitidamente o projeto iluminista de expansão do saber racional sobre os diversos aspectos da realidade. Contando com a colaboração de diferentes pensadores, como Voltaire (1694-1778) e Rousseau, in- clui verbetes sobre os mais distintos temas, como políti- ca, ciências naturais e artes manuais. O movimento iluminista associou o desenvolvimento científico com o progresso da humanidade. O que é a noção de progresso? Esse conceito refere-se à convicção de que o conhecimento racional produz o aprimoramento das condi- ções materiais e espirituais de vida dos seres humanos em sociedade, conduzindo a humanidade para uma forma supe- rior de organização sociopolítica. Se o Iluminismo defendeu o respeito à divergência de ideias e a aceitação racional da diversidade cultural dos povos, também orientou-se pela pressuposição de que a história humana, identificada com o curso do progresso, destinava-se à efetivação de uma civi- lização universal, racionalmente arquitetada, para a qual se inclinavam todas as sociedades humanas. Esse otimismo iluminista, entretanto, seria desafiado pelos acontecimentos históricos dos séculos XIX e XX, sendo criticamente examina- do na filosofia contemporânea. 4. Racionalismo e inatismo: a filosofia de René Descartes O projeto filosófico clássico, delineado, predominante- mente, por seu compromisso com a conquista da verdade, estimula a reflexão sobre o próprio conhecimento. O desen- volvimento da atividade filosófica, com a multiplicação de teorias explicativas da realidade, suscita, paulatinamente, a formação de um largo repertório de questões sobre o conhe- cimento. Afinal, o que é o conhecimento? O que distingue o falso saber do verdadeiro saber? Há limites para o conheci- mento humano? Problemas dessa natureza emergiram na filosofia antiga e pontuaram com igual intensidade o pensamento medieval, contudo é na cultura moderna que as interrogações a respei- to do conhecimento são transferidas, definitivamente, para o núcleo da especulação racional. Verifica-se, então, a plena delimitação da teoria do conhecimento ou gnosiologia como uma das áreas centrais da investigação filosófica. Entre os temas gnosiológicos sistematicamente exami- nados pelos filósofos modernos, está a indagação sobre a origem, a base do conhecimento humano: o conhecimento inicia-se pelas informações que recolhemos com os sen- tidos ou tem na razão o seu autêntico ponto de partida? Quando se entende que as experiências sensoriais – o que se vê, ouve e toca – são o princípio do saber – em que as sensações oferecem o fundamento de ideias pertinentes sobre o mundo –, tem-se uma concepção empirista do co- nhecimento. Quando se entende que a razão ou a mente LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 3 PV 3D -1 8- 30 humana, independentementedo que recepcionamos pelos sentidos, é o lugar em que começa o saber, ou seja, conten- do originariamente as ideias verdadeiras, tem-se uma con- cepção racionalista do conhecimento. Teses racionalistas e teses empiristas são detalhada- mente elaboradas na filosofia moderna. René Descartes e Gottfried Leibniz são exemplos de modernos pensadores ra- cionalistas. Francis Bacon, John Locke e David Hume são al- guns dos expoentes do empirismo. No século XVIII, Immanuel Kant, com sua filosofia crítica, procura superar os impasses entre empirismo e racionalismo. Neste capítulo, trataremos, inicialmente, da filosofia ra- cionalista de René Descartes. Posteriormente, contemplare- mos o empirismo moderno, com a explanação das perspec- tivas gnosiológicas de John Locke e de David Hume. Por fim, apresentaremos o criticismo do filósofo Immanuel Kant. A. René Descartes: a busca por ideias claras e distintas O francês René Descartes (1596-1650), convencional- mente identificado como o fundador da filosofia moderna, re- cebe sua educação formal no conceituado colégio jesuíta de La Flèche. Em sua juventude, desloca-se para a Holanda, alis- tando-se no exército de Maurício de Nassau e participando de expedições que lhe proporcionam contatos com culturas diversas. Essas experiências repercutem de forma decisiva na trajetória desse pensador que, em 1620, renuncia às suas pretensões militares e escolhe a dedicação exclusiva às pes- quisas filosóficas e científicas. GE OR GI OS K OL LI DA S/ DR EA M ST IM E As reflexões filosóficas do francês René Descartes, com suas teses racionalistas, influenciam profundamente a história da filosofia moderna. Os estudos realizados no colégio de La Flèche causam profunda decepção em Descartes. Apesar da gratidão e ad- miração por seus mestres, o filósofo declara seu desconten- tamento com o conteúdo do ensino ministrado pela referida instituição escolar ou, para ser mais exato, com a autoridade concedida à cultura letrada. Observa a orientação dogmática de supostos conhecimentos amparados na tradição erudita, quer dizer, contesta a transmissão de um patrimônio literário e filosófico que não é submetido ao exame crítico. Descartes não nega a sofisticação que essa erudição representa para o pensamento humano, tampouco a qua- lidade discursiva de sua literatura, mas questiona o seu va- lor gnosiológico: essa tradição literária e filosófica forma um catálogo de saberes verdadeiros sobre o mundo e os seres humanos? A resposta do filósofo é negativa, argumentando que os textos clássicos não estabelecem critérios efetiva- mente rigorosos e válidos para a diferenciação entre o falso e o verdadeiro, não exprimem conhecimentos autênticos e úteis para a humanidade. Tais conhecimentos, então, encontram-se no amplo universo da variedade cultural das sociedades humanas? Descartes é incisivo ao registrar que o caminho para a ver- dade não é dado pelas diferentes culturas, registrando que a própria diversidade cultural expressa uma multiplicidade de valores, práticas e conceitos distintos e, muitas vezes, di- vergentes entre os grupos sociais, acrescentando que esses conjuntos socioculturais são fixados por costumes e tradi- ções que não são referências racionais para a verdade. Nota-se, assim, que a preocupação fundamental da fi- losofia cartesiana é a definição de um método seguro para a obtenção de conhecimentos verdadeiros e indiscutíveis, pois, segundo seu prisma filosófico, o conhecimento não está disponível nos escritos da tradição ou no interior da diversida- de cultural humana, sendo, isto sim, uma realização acessível pela correta e metódica condução do pensamento. O bom senso, de acordo com Descartes, encontra-se igualmente distribuído entre os seres humanos, de maneira que todos são capacitados a atingir, mediante seus próprios esforços racionais, o conhecimento, desde que procedam com regras pertinentes a esse objetivo. Nesse sentido, o pro- jeto filosófico cartesiano, explicitado em textos como Discur- so do método, Meditações metafísicas e Regras para a dire- ção do espírito, tem a finalidade de determinar o método de pensamento adequado para a discriminação entre o falso e o verdadeiro, viabilizando a construção de um repertório de conhecimentos efetivos para a humanidade. Na busca pelo conhecimento, argumenta esse filósofo, o pensamento corre- tamente utilizado por um único ser humano é mais eficiente do que a totalidade de opiniões culturalmente instituídas. Quais são, enfim, as regras para a condução do pensa- mento? Em seu Discurso do método, Descartes define quatro preceitos para o uso conveniente da razão. São estes os procedimentos de raciocínio necessários para a condução do pensamento à verdade: • Não aceitar como verdadeiro o que não é suficiente- mente conhecido. Trata-se de não admitir como ver- dade algo que não seja evidente, sobre o qual paire alguma dúvida. Dessa forma, ainda que sejam rele- vantes e quantitativamente expressivos os indícios de verdade de uma proposição, basta a existência de uma mínima dúvida para que lhe seja negada a evi- dência, a saber, para que não seja, pelo menos pro- visoriamente, recepcionada como verdadeira. Com isso, evita-se o risco de assumir como verdadeiro o que talvez seja falso. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 4 PV 3D -1 8- 30 • Dividir as dificuldades de um problema em tantas partes quanto possível. Diante de um problema ex- tenso e complexo, é preciso fracioná-lo em partes passíveis de serem, uma a uma, examinadas. Assim, diminui-se o risco de erros e o pensamento avança, gradualmente, para a solução pertinente à complexi- dade da questão proposta. • Partir dos objetos mais simples para os mais com- plexos. O pensamento em busca de uma totalidade deve partir da apreciação de objetos mais simples, de questões cuja solução forneçam lastro para o exame de temas de complexidade mais elevada. A observân- cia dessa regra evita a incursão do pensamento em teses equivocadas sobre a realidade. • Realizar completas revisões em todas as operações do pensamento. A efetuação de revisões pormenori- zadas em todos os procedimentos de raciocínio per- mite a identificação de eventuais falhas e, consequen- temente, a sua correção. Assegura-se, desse modo, o acerto do itinerário cumprido pelo pensamento. O primeiro preceito é exemplarmente desenvolvido por Descartes na quarta parte do Discurso do método, quando o filósofo exercita de forma radical a dúvida em sua bus- ca por ideias claras e distintas. Essa aplicação da dúvida a todos os fatos e afirmações cuja suposta verdade seja, mesmo que minimamente, passível de suspeição é no- meada de ceticismo metodológico. Não significa, é claro, a adoção integral da clássica atitude filosófica cética, para a qual jamais somos capazes de verificar se uma hipóte- se é verdadeira ou falsa, mas sim a aplicação do ceticismo como método: trata-se da ampla e sistemática utilização da dúvida com o propósito de encontrar certezas, proposições indubitáveis e evidentes. AL EX YN DR /D RE AM ST IM E O exercício sistemático e radical da dúvida é aspecto fundamental do método cartesiano de busca pelo conhecimento. Assim, Descartes, raciocinando na primeira pessoa do singular, coloca sob suspeição inicial a totalidade da realida- de externa, a saber, o céu, os astros, as montanhas, os mares, as diferentes paisagens da natureza, os animais, os seres humanos, os seres vivos em geral, enfim, o Universo. Duvida, então, da existência de todos os seres cuja realidade é apa- rentemente indiscutível sob o ponto de vista de percepção de seus sentidos. É como se perguntasse a si mesmo: devo assentir racionalmente com a tese de que o mundo existe simplesmente porque assim indicam os meus sentidos? Afi- nal, a dúvida se estende sobre a própria existência de seus sentidos e de seu corpo. Os textos de Descartes, diferentemente do estilo impessoal prevalecente na tradição filosófica,são pre- dominantemente escritos em primeira pessoa. Esse fato se explica pela preocupação desse filósofo em descrever o trajeto autobiográfico que o conduziu às suas ponde- rações filosóficas e, principalmente, por sua ênfase na metódica utilização do pensamento como caminho para a verdade. Assim, o estilo de sua redação é coerente com sua tese de que o conhecimento não se encontra na tradi- ção literária e cultural, mas sim no eu pensante, no sujei- to humano que raciocina corretamente. Pretendendo justificar a radicalidade de seu procedi- mento cético, o filósofo observa que a percepção da reali- dade externa a si mesmo oferece-lhe elementos que não se diferenciam daqueles que preenchem seus sonhos enquan- to dorme. Portanto, se, da mesma forma que os objetos, os seres e os acontecimentos dos sonhos fossem somente ilu- sões, não seriam igualmente ilusórios todos os fenômenos experimentados quando se está desperto? Sob o preceito de que não é plausível admitir como verdadeiro algo que não é evidente, Descartes recusa-se, em um primeiro momento, a acolher racionalmente a existência do mundo como uma ver- dade. Dessa forma, revela-se ainda sua recusa aos sentidos como fonte de conhecimentos seguros. Mais tarde, muitas experiências anularam, paulatinamente, todos os créditos que eu dera aos sentidos. Já que observei muitas vezes que torres, que, de longe, me pareciam redondas, de perto, pareciam-me quadradas, e que enormes estátuas, erigidas sobre os mais altos cimos des- sas torres, pareciam-me pequenas quando as olhava de baixo; e, desta maneira, em uma infi- nidade de outras ocasiões, encontrei equívocos nos juízos baseados nos sentidos exteriores. DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 318. Os pensadores. Esse exercício radical da dúvida encontra, contudo, um limite, constata algo indubitável, que se apresenta no seguin- te raciocínio: posso, efetivamente, duvidar de toda aparente realidade, inclusive da existência do meu corpo, porém não posso duvidar do fato de que sou um ser que exercita a dú- vida, que pensa. A utilização metódica da dúvida é incapaz, então, de dissolver a realidade do ser pensante a despeito da LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 5 PV 3D -1 8- 30 existência ou não de seu próprio corpo, isto é, pronuncia-se a evidência do eu pensante. Dessa maneira, Descartes atinge uma ideia clara e distinta, sua certeza fundamental ou o de- nominado primeiro cogito cartesiano, expresso na sentença “Penso, logo existo”. Em seu estudo intitulado Meditações metafísicas, o filó- sofo, conferindo deliberadamente teor ainda mais exagerado ao recurso da dúvida – dúvida hiperbólica –, confecciona a hipótese do gênio maligno. Essa medida é decorrente das ob- jeções que ele formula ao ceticismo praticado no Discurso do método, constatando que a equiparação entre os fenômenos que preenchem os sonhos e os presumíveis dados da realida- de percebida fragiliza-se com a alegação de que os sonhos se inspiram em fatos reais do mundo, tal qual a pintura de uma paisagem baseia-se em paisagens realmente existentes. Segundo essa observação, as imagens dos sonhos asseme- lham-se a elementos, de fato, reais, ou seja, corpos, árvores, edifícios e todas as projeções dos sonhos baseiam-se na efetividade de corpos, árvores, edifícios, de todas as coisas reais. Além disso, ao subtrair esse conjunto de elementos, restarão ainda materiais da percepção que não podem ser decompostos: figura, quantidade, espaço e tempo, aspectos aritméticos e geométricos indissolúveis. Diante dessas restrições, Descartes persiste em seu ce- ticismo metodológico com a inclusão da hipótese do gênio maligno, assim descrita: há um deus do mal exclusivamen- te dedicado a me enganar, fabricando um conjunto plural de ilusões que assumem a aparência de realidade. Um gênio empenhado em fazer com que eu creia na existência do meu corpo, dos múltiplos seres vivos, do mundo, de tudo aquilo que, de fato, não é real. Nessa hipotética situação, portanto, a realidade do mundo é destituída de valor autêntico, restando apenas um ser real, o ser pensante, ludibriado pelo deus do mal. Afinal, apenas um ser que pensa pode ser enganado pelo gênio das ilusões. Reafirma-se, com esse expediente imaginativo, o pri- meiro cogito cartesiano, a constatação indiscutível de que existe um eu pensante, com a qual o filósofo conceitua a essência humana. O ser humano é, essencialmente, uma substância que pensa. É imprescindível notar que essa de- finição de Descartes não é arbitrária, uma vez que decorre precisamente de seu uso metódico da dúvida, que, de início, recusa racionalmente a certeza da totalidade do real, até mesmo de seu corpo humano, exceto a evidência de que há um eu pensante. Pode-se, portanto, negar todos os atributos e as qualidades habitualmente identificadas ao ser huma- no, porém sempre restará um ser que pensa ou, melhor, sua mente. Sob essa perspectiva, como observaremos adiante, esse filósofo declara a separação conceitual entre mente e corpo, o dualismo mente-corpo. B. A existência de Deus e do mundo A filosofia cartesiana se detém em seu primeiro cogito, limitando-se a atestar a realidade da mente humana? E quan- to às substâncias materiais, à realidade extensa e externa ao ser pensante? Sua existência permanece sob dúvidas? A realidade do sujeito pensante é a certeza fundamental da filosofia cartesiana, consistindo no ponto de partida do qual Descartes avança no questionamento racional sobre a existência do mundo. Na perspectiva desse filósofo, só se pode declarar de forma legítima a efetividade dos astros, da natureza, da multiplicidade de seres vivos, enfim a realidade exterior ao pensamento, se sua existência for comprovada pelo intelecto. A filosofia cartesiana avança metodicamente da evidência do eu pensante para a confirmação de sua exte- rioridade, mediada pela convicção racional da existência de um ser perfeito, Deus. Descartes sustenta sua tese sobre o ser superior nas limitações do eu pensante, que, a despeito de sua imperfei- ção e finitude, tem em si as ideias de perfeição e de infinito. A mente humana pensa e duvida, e somente duvida o ser que não tem o conhecimento pleno imediatamente à sua disposi- ção. Sendo assim, essa substância pensante é imperfeita e fi- nita. Qual a proveniência, então, de suas ideias de perfeição e de infinitude? O filósofo pondera que tais noções certamente não têm sua fonte na própria mente humana, imperfeita e fini- ta, sendo procedentes, portanto, de um ser perfeito e infinito, autor de tudo o que existe: Deus. A demonstração intelectual da existência de Deus ampa- ra-se ainda na presença de conceitos matemáticos na mente humana. Descartes concede à matemática o estatuto de pa- radigma da perfeita condução do raciocínio, dada a precisão e justeza lógica de seus procedimentos, e entende que a con- ceituação matemática, justamente por sua exatidão teórica, não pode ser considerada como uma construção sugerida por experiências recolhidas de um presumível mundo objetivo ou como uma produção autônoma do espírito humano. Sob o prisma cartesiano, a perfeição matemática é uma realização da perfeição divina. Prosseguindo em sua argumentação, o filósofo registra que a imperfeição do eu pensante explica os erros humanos na esfera do conhecimento: espécie de termo médio entre o ser perfeito e o não-ser, a humanidade utiliza seu livre-arbí- trio como descompasso entre a vontade e o entendimento, ou seja, frequentemente comete enganos em afirmações nas quais sua vontade se excede sobre seu entendimento. Neste ponto, verifica-se a transição do pensamento car- tesiano para a admissão racional da existência de substân- cias extensas, da realidade física e de seus fenômenos. Esse reconhecimento começa pelo exame da seguinte questão: sob o ponto de vista lógico, como se explica que o ser perfei- to, Deus, seja o autor de uma criatura imperfeita,o ser huma- no? A pergunta é pertinente quanto à aceitação do pressu- posto de que a criação de um ser perfeito é necessariamente perfeita. Nesse sentido, a imperfeição humana, segundo Descartes, justifica-se apenas se for apreciada como parte de uma totalidade perfeita, o conjunto da realização divina, ou seja, o Universo. Assim, aponta-se a certeza da realida- de externa ao eu pensante, indicação esta que é reforçada pela observação de que Deus, criador do ser humano, inclina a humanidade para a convicção de que as coisas materiais, substâncias extensas, existem de fato. A conceituação matemática igualmente concorre para que a realidade do mundo se apresente como uma ideia clara e distinta – verdadeira, portanto, ao espírito humano. Especificamente o conceito matemático de extensão, com suas implicações geométricas, constitui-se em condição de possibilidade da existência do Universo com suas substân- cias materiais, pois substâncias materiais, corpos, são subs- tâncias extensas, delimitadas pela largura, pelo comprimen- to, pela profundidade, isto é, por aspectos pertencentes, em essência, à geometria. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 6 PV 3D -1 8- 30 M AD AR TI ST S/ DR EA M ST IM E Os conhecimentos matemáticos ocupam posição central na teoria filosófica cartesiana. Por fim, a imaginação remete à objetividade do mundo físico. A imaginação é uma forma de pensamento que se diferencia da intelecção, uma vez que esta envolve ideias inatas, enquanto o processo imaginativo atua a partir de elementos recolhidos pelos sentidos, produzindo ideias diretamente referenciadas em obje- tos exteriores. A imaginação é um tipo de pensamento que revela que o ser humano, essencialmente uma substância pensante, existe, de fato, vinculado a um corpo. Além das ideias inatas do ser humano, que expri- mem conhecimentos verdadeiros, Descartes identifica ideias adventícias e ideias fictícias. As ideias adventícias procedem das experiências sensoriais, por isso não são confiáveis para a busca da verdade. As ideias fictícias são produzidas pela imaginação, criando seres fictícios mediante a composição de aspectos das ideias adventí- cias. A imaginação de um cavalo alado é um exemplo de ideia fictícia. C. O dualismo mente-corpo e a subjetividade cartesiana Na exposição sumária do itinerário filosófico de René Descartes, esse filósofo, em seu compromisso com o deli- neamento das regras necessárias para a condução do pen- samento a conhecimentos verdadeiros, coloca em dúvida o conjunto da realidade, restando-lhe, então, apenas uma evi- dência inicial: “Penso, logo existo”. Define-se, assim, a essência humana como substância pensante e inextensa, que, sob o ponto de vista lógico, não necessita de um corpo para existir. Caracteriza-se, dessa forma, a concepção cartesiana que seria objeto de intensos debates na filosofia da mente, área do saber filosófico, aliás, inaugurada pelas reflexões de Descartes: o dualismo mente- -corpo. Essa dualidade consiste na conceituação da mente e do corpo como realidades distintas e separadas. A mente é compreendida como uma substância inextensa, imaterial, cuja essência independe de um suporte objetivo e tangível, de um substrato físico. O corpo, por sua vez, delimita-se como uma substância extensa, material. O ser humano, ser pensante, é essencialmente sua men- te, a despeito de sua corporalidade. Em sua condição de ser pensante, o ser humano, diferentemente dos demais seres vivos e dos artefatos, utiliza, de forma consciente, a lingua- gem, com conhecimento de seus conteúdos semânticos, e é sujeito de ação, escolhendo com liberdade sua conduta. Animais e máquinas não são capazes de desenvolver a lin- guagem, tampouco deliberam os seus comportamentos, efe- tuando apenas operações determinadas por seu organismo ou sua composição mecânica. Dessa forma, de acordo com Descartes, animais e máquinas não são seres dotados de mente, não são seres pensantes. Para esclarecer essa tese, Descartes afirma que, se nos- sos conhecimentos permitissem construir artificialmente um conjunto de órgãos similares aos de determinado animal – exceção feita ao ser humano –, teríamos um artefato me- cânico que reproduziria perfeitamente o comportamento do animal em questão. Em contrapartida, caso gerássemos uma composição de objetos com funções e características análo- gas às dos órgãos do corpo humano, não produziríamos, com isso, a réplica de um ser humano, pois este autômato não se- ria capaz de pensar, de falar e agir de forma livre e consciente. E tal seria o resultado porque um empreendimento dessa na- tureza engendraria somente a cópia do corpo humano, jamais algo semelhante à substância imaterial que caracteriza a hu- manidade, a sua mente. ILEXX/DREAM STIM E De acordo com a concepção filosófica de René Descartes, é impossível a produção de uma máquina similar à mente humana. Com essas considerações, entretanto, não se deve con- cluir que, para Descartes, de fato, há mentes sem corpos. O filósofo declara, isto sim, a possibilidade lógica da existência de mentes sem corpos. Sua definição do ser humano como substância inextensa, o eu unicamente pensante, tem viés metafísico, não se localiza no plano empírico da realidade objetiva. Empiricamente, constata esse filósofo, somos subs- tâncias compostas, sujeitos pensantes e corpóreos, pois existimos na conjugação entre mente e corpo. Na sexta meditação de suas Meditações metafísicas, Descartes problematiza as relações entre mente e corpo, explicando que, objetivamente, não somos mentes que se utilizam de corpos instaladas em recipientes, à maneira de um piloto que dirige um navio. Recorrendo a essa ilustração, o filósofo ressalta que entre o piloto e o navio não há junção ou mistura, distintamente da articulação entre mente e corpo, LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 7 PV 3D -1 8- 30 entrelaçadas no ser humano empírico. Exemplar nesse sentido é a comparação entre uma avaria na embarcação e o ferimento no corpo humano: a primeira não atinge de forma direta o seu comandante, enquanto a segunda é logo recepcionada como dor pela mente do ser humano. Essencialmente um ser pensante e empiricamente existente em uma substância composta, o sujeito humano ocupa posi- ção central nas teses gnosiológicas de Descartes, configurando a moderna subjetividade filosófica. Para esse filósofo, o conhe- cimento encontra-se previamente no ser humano, em ideias inatas, que necessitam do procedimento metódico do pensamento para a sua explicitação. O racionalismo cartesiano atribui primazia ao sujeito no processo de conhecimento da realidade. Uma comparação com outra perspectiva racionalista e inatista ajuda a entender a subjetividade inaugurada pela filo- sofia cartesiana. Na Antiguidade, a filosofia de Platão legitima o conhecimento no pertencimento da faculdade racional dos seres humanos às ideias, definidas como os seres plenos, ou seja, o platonismo não situa o ser humano propriamente como sujeito ou ponto de partida do conhecimento. Diferentemente, Descartes compreende o conhecimento como procedimento do eu pensante, do sujeito humano que tem em si os conteúdos mentais – as ideias – verdadeiros. Nesses termos, sua argumentação sobre a existência do ser perfeito é nuclear em sua teoria filosófica, pois a noção de Deus articula a subjetividade do pensamento e a objetividade do mundo exterior, uma vez que a mente humana é programada pelo criador com ideias que expressam a verdade. A correspondência entre as ideias e a realidade realiza-se sob a primazia do sujeito, que dispõe das ideias em sua mente, ou seja, a verdade é conquistada unicamente pela adequada condução do racio- cínio, sem nenhuma dependência do que é recebido pelas experiências sensoriais. A própria realidade do mundo físico, como examinamos antes, não é assegurada pelos sentidos, apenas sendo reconhecida em sua efetividade mediante pertinentedemonstração intelectual. 01. UFU-MG (adaptado) Leia o texto e as assertivas a seguir. René Descartes (1596-1650) é considerado por muitos “o pai da filosofia moderna”, pois em obras como O discurso sobre o método e Meditações metafísicas colocou em xeque conhecimentos considerados indubitá- veis. Em especial, suas reflexões o levam a questionar o valor epistemológico dos conhecimentos do senso comum, dos argumentos de autoridade e do testemunho dos sentidos. I. Descartes foi um dos filósofos da Era Moderna que valorizou o papel do método no avanço do conhecimento. II. Descartes colocou em dúvida o valor das informações que se obtêm por meio da experiência sensível. III. As teorias de Descartes seguiram o modelo aristotélico de investigação dos fenômenos naturais. Assinale a alternativa correta. a. Apenas I e III são verdadeiras. b. Apenas II e III são verdadeiras. c. Apenas I e II são verdadeiras. d. Apenas I e III são falsas. Resolução São verdadeiras as afirmações I e II, mencionando, respectivamente, a importância que Descartes confere à iden- tificação de um método adequado de condução do pensamento à verdade e sua recusa dos sentidos como fonte de conhecimentos. A afirmação III é falsa, porque não procede a informação de que Descartes não segue a perspectiva aristotélica de pesquisa dos fenômenos naturais. Alternativa correta: C APRENDER SEMPRE 30 LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 8 PV 3D -1 8- 30 Módulo 5 Escolas filosóficas helenísticas e filosofia medieval EXERCÍCIOS PROPOSTOS RO TE IR O DE E ST UD OS Leia com atenção Capítulo 3 – Tópicos 1, 1.A, 1.B, 1.C, 1.D, 2, 2.A, 2.B e 2.C Ex er cí ci os Série branca 81 82 83 87 91 92 93 94 Série amarela 84 86 88 89 95 96 97 98 Série roxa 87 88 89 90 95 98 99 100 Foco Enem 83 85 86 88 93 95 96 98 81. No período filosófico helenístico, desenvolve-se o cinismo, cujo principal expoente é Diógenes de Sínope (404-323 a.C.). Identifique a alternativa que se refere cor- retamente ao cinismo. a. De acordo com o cinismo, o conhecimento metafísi- co oferece as verdadeiras regras para uma conduta moral virtuosa. b. Segundo o cinismo, jamais seremos capazes de veri- ficar a verdade ou a falsidade de uma hipótese sobre a realidade. c. Conforme o cinismo, os gregos são superiores aos demais povos, devido ao desenvolvimento da cul- tura filosófica. d. Para o cinismo, as instituições e os valores so- ciais distanciam os seres humanos de sua verda- deira humanidade. e. Sob a ótica do cinismo, a ética é uma área do saber necessariamente envolvida pelas questões políticas. 82. UEM-PR A filosofia de Epicuro (341 a 240 a.C.) pode ser caracte- rizada por uma filosofia da natureza e uma antropologia ma- terialista; por uma ética fundamentada na amizade e a busca da felicidade nos princípios de autarquia (autonomia e inde- pendência do sujeito) e de ataraxia (serenidade, ausência de perturbação, de inquietação da mente). Sobre a filosofia de Epicuro, assinale o que for correto. 01. A filosofia de Epicuro fundamenta-se no atomismo de Demócrito. Epicuro acredita que a alma huma- na é formada por um agrupamento de átomos que se desagregam depois da morte, mas que não se extinguem, pois são eternos, podendo reagrupar- -se infinitamente. 02. Para Epicuro, a amizade se expressa, sobretudo, por meio do engajamento político como forma de amar todos os homens representados pela pátria. 04. Epicuro, que, assim como seu mestre Demócrito, foi ateu, considera que a crença nos deuses é o resultado da fantasia humana produzida pelo medo da morte. 08. Epicuro critica os filósofos que ficavam reclusos no jardim das suas academias e ensinavam apenas para um grupo restrito de discípulos. Acredita que a filosofia deve ser ensinada nas praças públicas. 16. Para Epicuro, não devemos temer a morte, pois, en- quanto vivemos, a morte está ausente e quando ela for presente nós não seremos mais, portanto a vida e a morte não podem encontrar-se. Devemos exorcizar todo temor da morte e sermos capazes de gozar a fi- nitude da nossa vida. 83. C1-H2 De acordo com os céticos, a reforma total da sensi- bilidade é uma terapêutica que cura o homem da agita- ção e perturbação passional. O sábio não é atormenta- do pelo verdadeiro e pelo falso, no conhecimento, nem pelo bom e pelo mau, na ação. Torna-se sereno. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 60. A leitura do texto permite constatar que, para a escola helenística cética, a serenidade humana é atingida mediante a. a rejeição ao otimismo existencial. b. a superação das normas sociais. c. a renúncia à busca de certezas. d. a negação das experiências sensoriais. e. a extinção das relações humanas. 84. Assinale a alternativa que se refere corretamente às es- colas filosóficas helenísticas. a. Com o propósito de restaurar a efetividade da cidada- nia, as escolas helenísticas concedem primazia ao es- tudo das relações políticas, procurando determinar sua legitimidade na conceituação da natureza humana. b. Em relação ao conhecimento da natureza, os estudos físicos das escolas helenísticas têm orientação mate- rialista, negando a existência de princípios metafísi- cos na sustentação do conjunto da realidade. c. As teses éticas das escolas filosóficas helenísticas constituem o fundamento que possibilita identificar as regras lógicas do conhecimento e a essência dos fenômenos naturais que compõem o mundo físico. d. Os sistemas filosóficos das escolas helenísticas res- tabelecem a dicotomia que divide gregos e bárbaros, atribuindo superioridade racional ao ser humano he- lênico e reafirmando a noção de inferioridade natural dos estrangeiros. e. As escolas helenísticas, com suas explicações sobre a natureza, retomam a perspectiva filosófica pré-socrá- tica à medida que fixam o discurso cosmológico como o objetivo principal da tarefa filosófica. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 9 PV 3D -1 8- 30 85. Tomando a medicina por modelo, a filosofia, para Epicuro e seus seguidores, nada tem a ver com mera instrução: vale em função de seus efeitos, é essencialmente atividade curativa e libertadora. Que se constrói em três patamares: a lógica, a física e a ética. Lógica e física estão para a ética como a higie- ne e a medicina estão para a saúde: são meios para alcançar a meta desejada. PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 95. O texto remete diretamente à concepção epicurista de que a. a conduta ética procede do conjunto de valores uni- versais metafísicos. b. o conhecimento da natureza é condição de possibili- dade da vida feliz. c. o prazer natural é uma realidade exclusiva do cidadão na sociedade política. d. a vida humana essencializa-se como preparação espi- ritual para a morte. e. a lógica consiste no princípio criador dos fenômenos da natureza. 86. É nesse contexto que se incluem suas afirmações sobre a inutilidade das matemáticas, da física, da as- tronomia, da música e o absurdo das construções metafísicas, substituindo a mediação conceitual pelo comportamento, o exemplo, a ação. Com Diógenes, de fato, o cinismo tornava-se a mais “anticultural” das filosofias que a Grécia e o Ocidente conheceram. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. v.1. São Paulo: Paulus, 1990, p. 232. O texto apresenta o motivo pelo qual muitos historiadores de filosofia a. reconhecem o cinismo como atitude típica da épo- ca helenística. b. recusam a definição do cinismo como escola filosófica. c. declaram a inferioridade conceitual das filosofias helenísticas. d. observam a plena confluência entre o cinismo e o ceticismo e. rejeitam o valor teórico dos discursos filosóficos anti- metafísicos. 87. UEM-PR Afirma o filósofo Epicuro (séc. III a.C.), conhecido pela de- fesa de uma filosofiahedonista: (...) o prazer é o começo e o fim da vida feliz. É ele que reconhecemos como o bem primitivo e na- tural e é a partir dele que se determinam toda esco- lha e toda recusa e é a ele que retornamos sempre, medindo todos os bens pelo cânon do sentimento. Exatamente porque o prazer é o bem primitivo e na- tural, não escolhemos todo e qualquer prazer; pode- mos mesmo deixar de lado muitos prazeres quando é maior o incômodo que os segue. EPICURO. A vida feliz. In: ARANHA, M. L.; MARTINS, M. P. Temas de filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2005, p. 228. Considerando os conceitos de Epicuro, é correto afirmar que 01. estudar todo dia não é bom porque a falta de prazer anula todo conhecimento adquirido. 02. todas as escolhas são prazerosas porque natural- mente os seres humanos rejeitam toda dor. 04. comer uma refeição nutritiva e saborosa em dema- sia é ruim porque as consequências são danosas ao bem-estar do corpo. 08. a beleza corporal é uma finalidade da vida humana porque o prazer de ser admirado é a maior felicidade para o ser humano. 16. o prazer não é necessariamente felicidade porque ele pode gerar o seu contrário, a dor. 88. C1-H2 Em virtude da concepção de natureza pres- suposta pela ética estoica, temos na verdade um forte determinismo ético, chegando mesmo a ca- racterizar um fatalismo. A noção de necessidade, ou destino, é muito forte no estoicismo; o homem deve resignar-se a aceitar os acontecimentos como predeterminados. Isso não se traduz pela inação; devemos agir de acordo com os preceitos éticos e fazer o que julgamos devido, mas devemos tam- bém aceitar as consequências de nossa ação e o curso inevitável dos acontecimentos. Segundo um exemplo famoso, se vejo alguém se afogando, devo tentar salvá-lo, mas, se não o conseguir, não devo desesperar-me, pois era inevitável. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 92. O texto de Danilo Marcondes registra a tese estoica de que o ser humano virtuoso resigna-se a. à providência. b. à transcendentalidade. c. à maldade. d. à excepcionalidade. e. à tristeza. 89. UEM-PR Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente con- vencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera. Epicuro, Carta sobre a felicidade [a Meneceu]. São Paulo: ed. Unesp, 2002, p. 27. In: COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 97. De acordo com o trecho citado, é correto afirmar que 01. a morte, por ser um estado de ausência de sensação, não é nem boa, nem má. 02. a vida deve ser considerada em função da morte certa. 04. o tolo não espera a morte, mas vive apoiado nas suas sensações e nos seus prazeres. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 25 0 PV 3D -1 8- 30 08. a certeza da morte torna a vida terrível. 16. a espera da morte é um sofrimento tolo para aquele que a espera. 90. No período helenístico da antiga história grega, modifica- se significativamente a atividade filosófica. Identifique as di- ferenças básicas entre a filosofia desenvolvida pelas escolas helenísticas e a filosofia clássica grega. 91. UEM-PR Vi claramente que todas as coisas boas podem, entretanto, se corromper, e não se poderiam cor- romper se fossem sumamente boas, nem tampouco se não fossem boas. Se fossem absolutamente boas seriam incorruptíveis, e se não houvesse nada de bom nelas, não poderiam se corromper. [...] Portan- to, todas as coisas que existem são boas, e o Mal que eu procurava não é uma substância, pois se fosse substância seria um bem. Na verdade, ou seria uma substância incorruptível e então seria um grande bem, ou seria corruptível e, neste caso, a menos que fosse boa, não poderia se corromper. Percebi, por- tanto, e isto pareceu-me evidente, que criastes todas as coisas boas e não existe nenhuma substância que Vós [Deus] não criastes. AGOSTINHO. O problema do mal. In: MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2007, p. 63. Com base no exposto, assinale o que for correto. 01. Em todas as coisas existe algum bem. 02. Se tudo que existe foi Deus quem criou, e o mal exis- te, logo Deus criou coisas más. 04. O mal existe no mundo e é um algo, uma substância. 08. Mal e bem, para Agostinho, não são juízos que os ho- mens emitem sobre as coisas. 16. Para Agostinho, é impossível que Deus criasse algo que não fosse bom. 92. UFU-MG Considere o seguinte texto sobre Tomás de Aquino (1226-1274). Fique claro que Tomás não aristoteliza o cristia- nismo, mas cristianiza Aristóteles. Fique claro que ele nunca pensou que, com a razão, se pudesse entender tudo; não, ele continuou acreditando que tudo se compreende pela fé: só quis dizer que a fé não estava em desacordo com a razão e que, portan- to, era possível dar-se ao luxo de raciocinar, saindo do universo da alucinação. ECO, Umberto. Elogio de Santo Tomás de Aquino. In: Viagem na irrealidade cotidiana, p.339. É correto afirmar, segundo esse texto, que a. Tomás de Aquino, com a ajuda da filosofia de Aristóte- les, conseguiu uma prova científica para as certezas da fé, por exemplo, a existência de Deus. b. Tomás de Aquino se empenha em mostrar os erros da filosofia de Aristóteles para mostrar que esta filosofia é incompatível com a doutrina cristã. c. o estudo da filosofia de Aristóteles levou Tomás de Aquino a rejeitar as verdades da fé cristã que não fos- sem compatíveis com a razão natural. d. a atitude de Tomás de Aquino diante da filosofia de Aristóteles é de conciliação desta filosofia com as cer- tezas da fé cristã. 93. C1-H3 Ligado ao problema da criação, Agostinho investi- gou a noção de tempo, revelando grande penetração analítica. O tempo é por ele entendido como constituí- do por momentos diferentes de passado, presente e fu- turo: o que significa descontinuidade e transformação. PESSANHA, José Américo Motta. Vida e obra. In: Santo Agostinho. São Paulo: Nova Cultural, 200, p. 19. Coleção Os Pensadores. Mencionando a reflexão de Agostinho acerca do tempo, o texto indica claramente a. a elaboração de uma especulação filosófica nos limi- tes do cristianismo. b. o desenvolvimento da noção de temporalidade que funda a física moderna. c. a tese gnosiológica de que o conhecimento realiza-se pela iluminação divina. d. a distinção conceitual agostiniana entre a alegria mundana e a felicidade. e. o contraste entre a temporalidade agostiniana e a temporalidade aristotélica. 94. UFU-MG (adaptado) A respeito da questão dos universais na Idade Média, leia o texto abaixo. A tendência no século XI era dizer que os uni- versais têm algum tipo de existência na realidade, fora do pensamento humano. Roscelino foi um dos primeiros pensadores medievais a sustentar que os universais são meras palavras. Pedro Abelardo, utilizando-se de novas teorias lógicas e novos ins- trumentos dialéticos, procurou expor uma solução intermediária, dizendo que os universais não podem ser coisas que existem realmente nem são apenas nomes, mas nomes com um significado, isto é, os universais são conceitos. NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro. O que é filosofia medieval. São Paulo: Brasiliense, 1992. p. 40-42. Adaptado. Marque, para as afirmativas verdadeira (V) ou falsa (F). 1. ( ) A posição de Roscelino ficou conhecida como no- minalismo. 2. ( ) A posição mais representativa no século XI ficou conhecida como nominalismo. 3. ( ) Segundo o realismo, os universais têm algum tipo de existênciana realidade. 4. ( ) A posição de Pedro Abelardo pode ser considerada rigorosamente como realista. 95. Com efeito, há algo, como Deus, cuja essência é seu próprio ser; e, por isso, encontram-se alguns filósofos que dizem que Deus não tem quididade LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 25 1 PV 3D -1 8- 30 ou essência, pois sua essência não é algo de outro que o seu ser. AQUINO, Tomás de. O ente e a essência. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 37. Nesse trecho, do livro O ente e a essência, Tomás de Aqui- no refere-se diretamente à sua tese de que a. Deus é pura existência. b. seres criados efetivamente existem. c. essência distingue-se de existência. d. humanidade é mera palavra. e. bem e mal são antagônicos. 96. O que agora claramente transparece é que nem há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar que os tempos são três: presente, passa- do e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, pre- sente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e es- perança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo, então, três tempos e confesso que são três. AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 327-328. O texto explicita a tese agostiniana de que o passado e o futuro a. não têm atualidade efetiva no mundo exterior à alma humana. b. não se localizam no presente perpétuo da eternidade de Deus. c. não possuem relação com a busca humana pela felicidade. d. não são conceitos passíveis de verdadeira aprecia- ção filosófica. e. não se relacionam com a criação do mundo por Deus. 97. UFU-MG (adaptado) Para responder a questão, leia o seguinte texto. O universal é o conceito, a ideia, a essência co- mum a todas as coisas (por exemplo, o conceito de ser humano). Em outras palavras, pergunta-se se os gêne- ros e as espécies têm existência separada dos objetos sensíveis: as espécies (por exemplo, o cão) ou os gêne- ros (por exemplo, o animal) teriam existência real? Ou seriam apenas ideias na mente ou apenas palavras? ARANHA, M. L. A. & MARTINS, M. H. Filosofando. 3.ed. São Paulo: Moderna, 2003, p. 126. A resposta nominalista à pergunta formulada no texto, sobre os universais, é: a. Segundo os nominalistas, as espécies e gêneros uni- versais são meras palavras que expressam um con- teúdo mental, sem existência real. b. Segundo os nominalistas, os universais são concei- tos, mas têm fundamento na realidade das coisas. c. Segundo os nominalistas, os universais (gêneros e espécies) são entidades realmente existentes no mundo das ideias, sendo as coisas deste mundo me- ras cópias dessas ideias. d. Segundo os nominalistas, os gêneros e as espécies universais existem realmente, mas apenas na mente de Deus. 98. C1-H3 É preciso partir das “verdades racionais”, porque a razão é o que nos une. Escreve Santo Tomás: “É necessário recorrer à razão, à qual todos devem as- sentir.” É sobre essa base que se podem obter os pri- meiros resultados universais, porque racionais, com base nos quais se pode depois construir um discurso de aprofundamento de caráter teológico. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 1990, V. 1, p. 555. Com base na constatação anunciada nesse texto, Tomás de Aquino dedica-se a. à tentativa de negar a existência do mal como substância. b. à tentativa de revelar a precedência da existência so- bre a essência. c. à tentativa de confirmar a equivalência entre platonis- mo e aristotelismo. d. à tentativa de comprovar empiricamente todos os dogmas católicos. e. à tentativa de demonstrar racionalmente a existência de Deus. 99. UEM-PR A filosofia patrística, representada principalmente por Santo Agostinho, inicia-se no séc. I d.C. e termina no séc. VIII d.C., quando teve início a filosofia medieval. Com base nessa afirmação, assinale o que for correto. 01. Um dos motivos pelo qual Santo Agostinho escreve A cidade de Deus foi para eximir o cristianismo, de- pois da tomada de Roma por Alarico, das acusações de ser a causa da decadência do Império Romano. 02. A patrística introduziu, no pensamento filosófico, ideias desconhecidas pelos filósofos greco-romanos, como a ideia de criação do mundo a partir do nada, a escatolo- gia do fim dos tempos e a ressurreição dos mortos. 04. A patrística é um esforço para conciliar o cristianismo com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois acreditava que somente com tal conciliação se- ria possível a conversão dos pagãos. 08. Um dos principais temas da filosofia patrística é o da possibilidade ou impossibilidade de conciliar razão e fé. Santo Agostinho considerava que a razão e a fé são conciliáveis, mas subordinava a razão à fé. 16. A filosofia medieval conserva e discute problemas da patrística e acrescenta outros, como o problema dos universais. A partir do séc. XII, a filosofia medieval passa a ser chamada de escolástica. 100. UFU-MG (adaptado) Leia com a tenção o texto a seguir. Tomás de Aquino (1225-1274) fez intenso uso das obras de Aristóteles e outros autores, recém-introduzi- das na universidade. Essas obras, originalmente escritas em grego ou árabe, representavam, em praticamente LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 25 2 PV 3D -1 8- 30 todos os domínios do saber, um enorme avanço cien- tífico. Aplicando esses novos conhecimentos em suas reflexões teológicas, ele conclui que devemos utilizar a filosofia em auxílio da ciência divina, seja na com- preensão de certas passagens obscuras da Bíblia e dos autores cristãos, seja fornecendo uma explicação racio- nal de certas teses da teologia, como sobre a existência de Deus. Um exemplo famoso desse método é o uso que Tomás de Aquino faz do argumento do "primeiro motor imóvel", encontrado na Física de Aristóteles. a. Segundo Tomás de Aquino, como a filosofia se situa em relação à teologia (ciência divina)? b. Explique o argumento do primeiro motor citado no texto. Veja o gabarito desses exercícios propostos na página 258. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 25 3 PV 3D -1 8- 30 Módulo 6 Caracterização inicial da filosofia moderna e racionalismo EXERCÍCIOS PROPOSTOS RO TE IR O DE E ST UD OS Leia com atenção Capítulo 3 – Tópicos 3, 3.A, 3.B, 3.C, 4, 4.A, 4.B e 4.C Ex er cí ci os Série branca 101 102 103 105 111 112 113 114 Série amarela 105 106 107 108 115 116 117 118 Série roxa 107 108 109 110 117 118 119 120 Foco Enem 103 105 106 108 112 113 114 118 101. UEG-GO Da época antiga até o início da modernidade, nos séculos 16 e 17, a ciência estava ligada à filosofia, fazendo do filósofo um sá- bio que pensava e conhecia todas as coisas. Entretanto, a partir do nascimento da razão moderna com a Revolução Científica no século 17, a ciência começou a se desligar da filosofia, consti- tuindo campos e objetos de conhecimentos específicos com o uso crescente do método experimental matemático. Esse desli- gamento da ciência e da filosofia contribuiu para uma nova con- cepção de homem, sociedade e natureza. Assim, verifica-se que a. a filosofia continua tentando compreender o mundo humano e o natural, que agora são objeto das diver- sas ciências, mas sem fazer recortes do real, como a ciência faz, já que a filosofia considera seu objeto sob o ponto de vista da totalidade. b. as ciências, ao se separarem da filosofia, passam a lidar com juízos de valor, preocupando-se mais com o dever-ser, ao passo que a filosofia assume para si a tarefa de explicar o mundo tal como ele funciona, ofe- recendo meios de intervenção na realidade. c. nesse processo de separação entre filosofia e ciên- cias, as primeiras ciências a adquirirem autonomia foram as ciências humanas, sendo que as ciências naturais só surgiramno século 19 com o avanço do pensamento matemático. d. a separação entre filosofia e ciência, na realidade, de- cretou o fim da filosofia, já que o mundo natural e o hu- mano passam a ser objeto do conhecimento científico que possui caráter pragmático e utilitário, dispensan- do a reflexão filosófica. 102. UFF-RJ O italiano Picco della Mirandola foi um importante filó- sofo humanista do Renascimento dos séculos XV e XVI. Seu livro Sobre a dignidade do homem enaltece a importância do ser humano e narra um mito da criação do homem. Segundo o autor, quando decidiu criar o ser humano, o criador já ha- via utilizado na criação dos outros seres todos os modelos e qualidades de que dispunha. Então, o criador falou assim a Adão: Se não te conferi um lugar fixo, uma forma que te fosse própria e um dom especial, Adão, foi para que tu mesmo, es- colhendo segundo teu desejo e tua determinação o lugar, a forma e o dom que quiseres, possas fazê-los teus. Todos os outros seres receberam uma natureza rigidamente definida e ficaram sob o meu poder, segundo leis previamente estabele- cidas. Somente a ti não te prendem laços, exceto tu mesmo, segundo a vontade que te concedo. Marque a sentença que expressa ideais do humanismo renascentista e que é mais adequada ao pensamento de Pic- co della Mirandola. a. O ser humano é inacabado e livre e, por isso, pode se aperfeiçoar. b. A imperfeição impede o aperfeiçoamento do ser humano. c. A imperfeição humana o impede de ser livre. d. A liberdade impede o aperfeiçoamento humano. e. Somente se fosse perfeito é que o ser humano seria livre. 103. Enem C1-H2 A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua mate- mática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impos- sível entender humanamente as palavras; sem eles, vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. GALILEI, G. O ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Os Pensadores.. No contexto da Revolução Científica do século XVII, assu- mir a posição de Galileu significava defender a a. continuidade do vínculo entre ciência e fé dominante na Idade Média. b. necessidade de o estudo linguístico ser acompanha- do do exame matemático. c. oposição da nova física quantitativa aos pressupostos da filosofia escolástica. d. importância da independência da investigação cientí- fica pretendida pela Igreja. e. inadequação da matemática para elaborar uma expli- cação racional da natureza. 104. UEM-PR Coordenada por Denis Diderot, a Enciclopédia, cuja primeira edição é de 1751, representa a caracterização das ideias ilumi- nistas, que exerceram uma influência sobre a Revolução France- sa de 1789. Sobre o enciclopedismo, assinale o que for correto. 01. O Iluminismo como doutrina filosófica fundamenta os seus pressupostos na teologia e filosofia de Santo Agostinho, para quem a busca pelo conhecimento de Deus é iluminada pela graça divina e pela fé. 02. A Revolução Científica que ocorreu com Copérnico, Kepler e Galileu, durante o Renascimento, influen- ciou a filosofia do Iluminismo. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 25 4 PV 3D -1 8- 30 04. No século XVIII, conhecido como o "século das luzes", Immanuel Kant tentou superar a dicotomia raciona- lismo/empirismo, que alimentava a polêmica entre muitos filósofos do Iluminismo. 08. Entre os objetivos da Enciclopédia, encontramos o desejo de renovar o pensamento de forma crítica e ilustrá-lo para o grande público. 16. Na França, Luís XVI incentivou D’Alembert, Diderot e Condillac a publicar a Enciclopédia, pois acreditava que a razão iluminista poderia ajudar na manutenção da ordem do Antigo Regime. 105. Essa luta cultural deve ser compreendida [...] como uma das dimensões da luta da burguesia para afirmar-se diante do clero e da nobreza e de seus ideais de submissão piedosa e da cavalaria medieval. A atividade artística, portanto, acaba se tornando um dos focos principais desse confronto. As atividades e os campos de reflexão que mais preocupavam os pensadores renascentistas apare- cem condensados nas artes plásticas: a filosofia, a religião, a história, a arte, a técnica e a ciência. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Atual, 1994, p. 26. Nesse trecho, o historiador Nicolau Sevcenko destaca a. a superioridade da estética manifesta nas artes sobre a pretensão de conhecimento da filosofia. b. a cultura renascentista como reflexo da infraestrutura socioeconômica de transição feudo-capitalista. c. a subordinação do pensamento religioso ao campo criativo expresso nas artes renascentistas. d. a contextualização do pensamento renascentista nas relações socioculturais de sua época. e. a filosofia renascentista e moderna como mero instru- mento na luta burguesa por poder social. 106. A própria noção de Iluminismo, Ilustração, ou ainda Esclarecimento, como o termo é por vezes traduzido, indica, através da metáfora da luz e da claridade, uma oposição às trevas, ao obscurantis- mo, à ignorância, à superstição, ou seja, à existência de algo oculto, enfatizando, ao contrário, a necessi- dade do real, em todos os seus aspectos, tornar-se transparente à razão. MARCONDES, Danilo. Introdução à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 207. A leitura do texto remete à constatação de que o Iluminismo a. representa o verdadeiro surgimento da filosofia na história humana. b. cumpre integralmente suas promessas na civilização contemporânea. c. concede importância central à razão na emancipação da humanidade. d. valoriza a metafísica como base do conhecimento racional. e. contesta integralmente os métodos aplicados pela ciência moderna. 107. Unioeste-PR O pensamento ocidental, mais notadamente entre os séculos XVI e XVII, assinalou uma trans- formação radical de paradigma no tocante à ciên- cia e ao seu desenvolvimento. Esta mudança, de tão notável, inaugurou a modernidade e se contra- pôs fortemente ao modo medieval de fazer ciên- cia. Por esta razão, o período marca, decisivamen- te, a chamada "Revolução Científica" que propôs a substituição da física aristotélica por uma nova filosofia da natureza. Os responsáveis pela criação da ciência moder- na, entre os quais se destaca a figura de Galileu Galilei, acreditavam que os estudos anteriores em filosofia natural exibiam uma dependência exces- siva de especulações metafísicas e um apego ile- gítimo à opinião de autoridades, particularmente Aristóteles, cujas doutrinas dominavam a cena filo- sófica havia mais de 1 800 anos. Os novos filósofos contrapunham a isso a observação da própria na- tureza. É nessa observação – a experiência – que se encontrariam os verdadeiros fundamentos do conhecimento da natureza. Silvio Seno Chibeni Considerando-se o texto, é correto afirmar que a ciência moderna se caracteriza por a. ser uma ciência cujos procedimentos estão unica- mente calcados na análise das qualidades percebidas nos corpos. b. conceber um mundo natural no qual todos os seres e fenômenos são determinados hierarquicamente. c. observar a natureza com rigor, descrever quantita- tivamente os fenômenos, pela experimentação e matematização. d. propor, seguindo seus antecessores do Renascimen- to, um método essencialmente contemplativo. e. desenvolver uma longa argumentação cosmológica para sustentar a natureza real do cosmos aristotéli- co-ptolomaico. 108. Enem C1-H3 Esclarecimento é a saída do homem de sua me- noridade, da qual ele próprio é culpado. A menori- dade é a incapacidade de fazer uso de seu entendi- mento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sema direção de outrem. Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos ho- mens, depois que a natureza de há muito os liber- tou de uma condição estranha, continuem, no en- tanto, de bom grado menores durante toda a vida. KANT, I. Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? Petrópolis: Vozes, 1985. Adaptado. Kant destaca no texto o conceito de Esclarecimento, fundamental para a compreensão do contexto filosófico da LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 25 5 PV 3D -1 8- 30 modernidade. Esclarecimento, no sentido empregado por Kant, representa a. a reivindicação de autonomia da capacidade racional como expressão da maioridade. b. o exercício da racionalidade como pressuposto menor diante das verdades eternas. c. a imposição de verdades matemáticas, com caráter objetivo, de forma heterônoma. d. a compreensão de verdades religiosas que libertam o homem da falta de entendimento. e. a emancipação da subjetividade humana de ideolo- gias produzidas pela própria razão. 109. UFF-RJ Segundo o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), o ser humano tem o direito de dominar a natureza e as técnicas; as ciências são os meios para exercer esse poder. Que proces- so histórico pode ser diretamente associado a essas ideias? a. Os ideais de retorno à vida natural b. O bloqueio continental imposto à Europa por Napo- leão Bonaparte c. A Contrarreforma promovida pela Igreja Católica d. O surgimento do estilo barroco nas artes e. A Revolução Industrial 110. No século XVIII, a filosofia moderna caracterizou-se pelo predomínio do movimento filosófico iluminista. Discorra so- bre as articulações entre o Iluminismo, o Renascimento Cul- tural e a Revolução Científica. 111. UFU-MG Leia com atenção o texto a seguir. Mas há um enganador, não sei quem, suma- mente poderoso, sumamente astucioso que, por indústria, sempre me engana. Não há dúvida, por- tanto, de que eu, eu sou, também, se me engana: que me engane o quanto possa, nunca poderá fa- zer, porém, que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo. DESCARTES. Meditações sobre filosofia primeira. Campinas: Unicamp, 2004. p. 45. Para atingir o processo extremo da dúvida, Descartes lança a hipótese de um gênio maligno, sumamente poderoso e que tudo faz para enganar. Essa radicalização do processo dubitativo ficou conhecida como dúvida hiperbólica. Assinale a alternativa que apresenta corretamente a relação estabele- cida por Descartes entre a dúvida hiperbólica (exagerada) e o cogito (eu penso). a. Descartes sustenta que o ato de pensar tem tamanha evidência, que eu jamais posso ser enganado acerca do fato de que existo enquanto penso. b. A dúvida hiperbólica é insuperável, uma vez que todos os conteúdos da mente podem ser imagens falsas produzidas pelo gênio maligno. c. Com o exemplo dos juízos matemáticos, que são sem- pre indubitáveis, Descartes consegue eliminar a hipó- tese do gênio maligno. d. Somente a partir da descoberta da ideia de Deus é que Descartes consegue eliminar a dúvida hiperbólica e afirmar a existência do pensante. 112. Tomemos como exemplo esse pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia: ele ainda não perdeu a doçura do mel que continha, ainda retém algo do odor das flores de que foi produzido; sua cor, sua figura, sua grandeza, são patentes [...]. Mas eis que, ao mesmo tempo que falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor desprende-se, o odor se dissipa, sua cor se altera, sua figura se modifica, sua grandeza aumenta, ele se torna líqui- do, fica quente, mal o podemos tocar e, apesar de batermos nele, não produzirá som algum. A mes- ma cera permanece depois dessa modificação? É necessário confessar que permanece: e ninguém pode refutá-lo. DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 264. Os pensadores. Em Meditações metafísicas, Descartes utiliza esse exemplo da cera para a. demonstrar que o conhecimento não se baseia nos sentidos. b. elaborar sua hipótese radical do gênio maligno. c. revelar a ausência de conhecimentos nas tradições culturais. d. problematizar as relações entre mente e corpo. e. articular a existência de Deus com a subjetividade do ser humano. 113. Enem C1-H2 Texto I Há já algum tempo eu me apercebi de que, des- de meus primeiros anos, recebera muitas falsas opi- niões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto. Era neces- sário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente a fim de estabelecer um saber firme e inabalável. DESCARTES, René. Meditações concernentes à primeira filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Adaptado. Texto II É o caráter radical do que se procura que exige a radicalização do próprio processo de busca. Se todo o espaço for ocupado pela dúvida, qualquer certeza que aparecer a partir daí terá sido de alguma forma gerada pela própria dúvida, e não será seguramente nenhuma daquelas que foram anteriormente varri- das por essa mesma dúvida. SILVA, F.L. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 2001. Adaptado. A exposição e a análise do projeto cartesiano indicam que, para viabilizar a reconstrução radical do conhecimento, deve-se LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 25 6 PV 3D -1 8- 30 a. retomar o método da tradição para edificar a ciência com legitimidade. b. questionar de forma ampla e profunda as antigas ideias e concepções. c. investigar os conteúdos da consciência dos homens menos esclarecidos. d. buscar uma via para eliminar da memória saberes an- tigos e ultrapassados. e. encontrar ideias e pensamentos evidentes que dis- pensam ser questionados. 114. O sujeito tem uma função pelo menos ordenadora do conhecimento. É ele a sede da certeza de todos os objetos. Subjetivismo não significa, obviamente, que a mente de cada um detenha os critérios que orientarão o conhecimento. Subjetivismo quer dizer apenas pri- mado da subjetividade, precedência do sujeito no pro- cesso de conhecimento, e essa é, seguramente, a gran- de modificação introduzida por Descartes na filosofia. LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 2005. p. 12. Nesse texto, Franklin Leopoldo e Silva destaca a tese cartesiana a. da união entre mentes e corpos nos seres humanos efetivos. b. do mundo exterior como perfeita criação divina. c. da radicalização da dúvida como ceticismo metodo- lógico. d. da convergência entre a linguagem matemática e as ciências. e. do eu metafísico como garantia de conhecimentos seguros. 115. Unicamp-SP A dúvida é uma atitude que contribui para o surgimento do pensamento filosófico moderno. Neste comportamento, a verdade é atingida atra- vés da supressão provisória de todo conhecimento, que passa a ser considerado como mera opinião. A dúvida metódica aguça o espírito crítico próprio da Filosofia. BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar. Porto Alegre: Editora Globo, 1970, p. 11. Adaptado. Com base no texto, é correto afirmar que a. a Filosofia estabelece que opinião, conhecimento e verdade são conceitos equivalentes. b. a dúvida é necessária para o pensamento filosófico, por ser espontânea e dispensar o rigor metodológico. c. o espírito crítico é uma característica da Filosofia e surge quando opiniões e verdades são coincidentes. d. a dúvida, o questionamento rigoroso e o espírito crítico são fundamentos do pensamento filosófico moderno. 116. Unioeste-PR Há já algum tempo, dei-me conta de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões por verdadeiras e de que aquilo que depois eu fun- dei sobre princípios tão mal assegurados devia ser apenas muito duvidoso e incerto; de modo que era precisotentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões que recebera até então em minha crença e começar tudo novamente desde os fundamentos, se eu quisesse estabelecer alguma coisa de firme e de constante nas ciências. […] Agora, pois, que meu espírito está livre de todas as preocupações e que obtive um repouso seguro numa solidão tranquila, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade a destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para atin- gir esse propósito, provar que elas todas são falsas, o que talvez jamais realizasse até o fim; mas, visto que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de acreditar nas coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis do que nas que nos parecem ser manifestamente falsas, a menor razão de duvidar que eu nelas encontrar será suficiente para me fazer rejeitá-las todas. DESCARTES, René Com base na filosofia cartesiana, seguem as seguin- tes afirmações. I. A dúvida cartesiana é uma dúvida sobre os fundamen- tos do conhecimento e seu objetivo é avaliar a possi- bilidade da conquista de algo evidente e verdadeiro. II. A primeira certeza que conquistamos é a de que, embora nossos sentidos nos enganem às vezes, não é possível duvidar da existência das coisas que nos rodeiam. III. A dúvida, quando generalizada ao máximo, será auto- destrutiva, uma vez que ela é um ato de pensar e, por- tanto, requer como certa a existência de uma entidade que é sujeito desse ato. IV. Generalizar ao máximo a dúvida é uma atitude irracio- nal e meramente negativa. V. A dúvida cartesiana traz como resultado um fato de- terminante para toda a filosofia moderna: só temos acesso imediato às nossas percepções mentais, ao passo que o conhecimento de tudo o mais (o mundo, Deus, etc.) deve ser provado como possível, dada a distância que há entre nossos pensamentos e as de- mais coisas. Das afirmações feitas a. apenas as afirmativas II, III e IV estão corretas. b. apenas as afirmativas I e III estão corretas. c. apenas as afirmativas I, III e V estão corretas. d. apenas a afirmativa IV está incorreta. e. todas as afirmativas estão corretas. 117. UENP-PR Descartes (1596-1650) constrói, em seus ensinamentos e nas suas obras, um novo método para a descoberta da ver- dade e coloca como primeira regra a evidência, sobre a qual se pode corretamente afirmar: a. Enumerar todos os elementos analisados e colocá-los em evidência. b. Decompor cada problema em suas partes menores, tentando encontrar os fundamentos da realidade. c. Encaminhar a reflexão partindo dos objetos mais sim- ples até chegar aos mais complexos. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 25 7 PV 3D -1 8- 30 d. Acolher como verdadeiro apenas aquilo que é de tal modo evidente para a razão. e. Examinar os princípios do saber tradicional até encon- trar contradições e substituí-las por outras. 118. C1-H2 A natureza me ensina, também por intermédio desses sentimentos de dor, fome, sede etc., que não apenas estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, estou a ele vinculado muito estreitamente e de tal manei- ra confundido e misturado que formo com eles um único todo. Porque, se assim não fosse, se meu cor- po é ferido, eu não sentiria dor alguma, eu que sou apenas uma coisa pensante, e só perceberia esse fe- rimento pelo entendimento, como o piloto percebe pela vista se acontece alguma avaria em seu navio. DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 323. Os pensadores. Nesse trecho, o filósofo René Descartes destaca sua con- cepção de que a. o ser humano destina-se ao domínio científico sobre a natureza. b. o ser humano compromete seu intelecto no domínio das sensações. c. o ser humano empírico existe na articulação entre mente e corpo. d. o ser humano define-se essencialmente como subs- tância pensante. e. o ser humano constitui o ponto de partida subjetivo do saber. 119. UEMA No Discurso do método, nas partes quarta e quinta es- pecialmente, Descartes defende a existência de Deus. Por exemplo, na quarta ele afirma o seguinte: [...] se há homens que não estejam bem persua- didos da existência de Deus e da alma, [...], quero que saiba que todas as outras coisas das quais se jul gam talvez certificados, como a de terem um corpo, haver astros e uma terra e coisa semelhantes, são ainda menos certas. DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Os pensadores. No contexto do mundo e do pensamento cartesiano, esse argumento pretende a. sustentar a existência da difusão do Deus cristão, pe- rante filósofos, ateus ou céticos. b. demonstrar que fé é o embasamento primordial para construção da ciência moderna. c. assegurar que toda cultura humana: ciência, filosofia, política, arte, etc. é provida por Deus. d. defender a fé católica que lhe fora infundida no colégio jesuítico La Flèche onde estudara. e. afirmar a existência de Deus como garantia da racio- nalidade objetiva da ciência moderna. 120. UFU-MG Suporei, portanto, que há não um Deus ótimo, fonte soberana da verdade, mas algum gênio ma- ligno e, ao mesmo tempo, sumamente poderoso e manhoso, que põe toda a sua indústria em que me engane: pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas externas nada mais são do que ludíbrios dos sonhos, ciladas que ele estende à minha credulidade. DESCARTES, R. Meditações sobre filosofia primeira: primeira meditação /12/. Tradução de: CASTILHO, Fausto. Campinas: IFCH-Unicamp, 1999. p. 25 a. Qual é, para Descartes, a relação existente entre o gê- nio maligno e a coisa pensante (res cogitans)? b. Que argumento é utilizado por Descartes para afirmar a existência do mundo? Veja o gabarito desses exercícios propostos na página 258. LI VR O DO P RO FE SS OR FI LO SO FI A 58 1 25 8 PV 3D -1 8- 30 GA B. Gabarito dos Exercícios Propostos FILOSOFIA 581 Módulo 5 81. D 82. 17 (01 + 16) 83. C 84. B 85. B 86. B 87. 20 (04 + 16) 88. A 89. 17 (01 + 16) 90. Nas últimas décadas do século IV a.C., com a consolidação do império de Alexandre Magno, geograficamente estendido sobre diferentes sociedades da Antiguidade, a Grécia, anteriormen- te caracterizada como um conjunto de comunidades cívicas autônomas, con- verte-se em território pertencente a um poder central exercido sobre civiliza- ções diversas. A pólis, essencialmente constituída pela cidadania, não é mais a medida da vida humana para os gre- gos. Nesse contexto, forma-se a cultura helenística, caracterizada pela inter- secção dos aspectos socioculturais he- lênicos com elementos socioculturais das civilizações orientais. Comparativamente às filosofias da época clássica, as teses filosóficas helenísticas têm sentido mais cosmo- polita, ultrapassando a tradicional di- cotomia da cultura helênica, que divide hierarquicamente a humanidade entre gregos, considerados superiores, e bár- baros, classificados como inferiores. Outra notável modificação se processa na direção antropológica da reflexão antropológica: enquanto as teorias fi- losóficas clássicas referenciam-se nos seres humanos como cidadãos, as in- terrogações filosóficas das escolas de pensamento helenísticas deslocam-se do cidadão para o indivíduo, examinan- do seus recursos internos em sua ca- pacidade de neutralizar as hostilidades do mundo externo, de atingir a felicida- de a despeito das adversidades de sua realidade exterior. Por fim, no tocante aos estudos físicos, as escolas helenís- ticas são materialistas, não excedem a natureza em busca de princípios expli- cativos incorpóreos; a saber, nesses sistemas filosóficos, não encontramos nenhum conceito reconhecidamente metafísico, similar às ideias platônicas ou ao primeiro motor aristotélico. 91. 25 (01 + 08 + 16) 92. D 93. A 94. V – F – V – F 95. A 96. A 97. A 98. E 99. 31 (01 + 02 + 04 + 08 + 16) 100. a. O conhecimentoracional, filosófico, possibilita atin- gir um conjunto limitado de verdades, sendo capaz, por exemplo, de apresentar pro- vas da existência de Deus. Nesse sentido, a filosofia é concebida por\ Tomás de Aquino como um instrumen- to auxiliar da teologia. b. Segundo esse Tomás de Aquino, tudo o que se move transforma-se na atualização de uma potência, é movido por algo que lhe é exterior. Sendo assim, no horizonte dos fenômenos do mundo, o que se move é conduzido por um movente – o que move algo – e esse movente, por sua vez, é movido por ou- tro movente, em uma longa sucessão de relações. Seria logicamente possível, então, expandir essa sequência re- gressivamente ao infinito, afirmando que um movente sempre é ele próprio movido por algo? A resposta é negati- va, pois, para que exista essa complexa série de movimen- tos, é necessário que exista um princípio movente que não seja ele próprio mutável, ou seja, o primeiro motor imó- vel. Esse primeiro motor imó- vel é Deus. Módulo 6 101. A 102. A 103. C 104. 14 (02 + 04 + 08) 105. D 106. C 107. C 108. A 109. E 110. O movimento filosófico ilumi- nista recolhe a herança renascentis- ta – antropocentrismo, racionalismo, naturalismo –, reelaborando-a em sua concepção de que a humanidade tende à emancipação racional, ao aprimora- mento racional das instituições sociais. Nesses termos, o Iluminismo concede elevado valor ao moderno conhecimen- to científico, entendido como impres- cindível ao progresso da humanidade. 111. A 112. A 113. B 114. E 115. D 116. C 117. D 118. C 119. E 120. a. O gênio maligno é um recurso imaginativo utilizado por Des- cartes para radicalizar a dúvida com o propósito de encontrar uma ideia clara e distinta. Essa medida é decorrente das obje- ções que ele próprio formula ao ceticismo praticado no Dis- curso do método, constatando que a equiparação entre os fenômenos que preenchem os sonhos e os presumíveis dados da realidade percebida fragiliza-se com a alegação de que os sonhos se inspiram em fatos reais do mundo, tal qual a pintura de uma paisagem baseia-se em paisagens real- mente existentes. Com a hi- pótese do gênio maligno, por- tanto, a realidade do mundo é destituída de valor autêntico, restando apenas um ser real, o ser pensante que é ludibria- do pelo deus do mal. Afinal, apenas um ser que pensa pode ser enganado pelo gênio das ilusões. Reafirma-se, com esse expediente imaginativo, o primeiro cogito cartesiano, a constatação indiscutível de que existe um eu pensante, com a qual o filósofo conceitua a essência humana. b. A realidade do sujeito pensan- te é a certeza fundamental da filosofia cartesiana, consistin- LI VR O DO P RO FE SS OR FI LO SO FI A 58 1 25 9 PV 3D -1 8- 30 GA B. do no ponto de partida do qual Descartes avança no questio- namento racional sobre a exis- tência do mundo. Na filosofia cartesiana, a comprovação sobre a existência do mundo é mediada pela demonstra- ção racional da existência de Deus. Descartes sustenta sua tese sobre o ser superior nas limitações do eu pensante, que, a despeito de sua im- perfeição e finitude, tem em si as ideias de perfeição e de infinito, ideias estas que são procedentes de um ser per- feito e infinito, autor de tudo o que existe, Deus – a tese cartesiana sobre a existência de Deus ampara-se, ainda, na presença de conceitos mate- máticos na mente humana. Descartes, então, argumenta que a criação de um ser perfei- to é necessariamente perfeita. Nesse sentido, a imperfeição humana, segundo o filósofo, justifica-se apenas se a apre- ciarmos como parte de uma totalidade perfeita, o conjunto da realização divina, ou seja, o Universo. Assim, aponta-se a certeza da realidade externa ao eu pensante, indicação esta que é reforçada pela observa- ção de que Deus, criador do ser humano, inclina a humanida- de para a convicção de que as coisas materiais, substâncias extensas, realmente existem. Concorrem ainda para asse- gurar racionalmente a verda- de da existência do mundo os conceitos matemáticos e a imaginação. LI VR O DO P RO FE SS OR 26 0 PV 3D -1 8- 30 Anotações LI VR O DO P RO FE SS OR