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FI L FI L FI L FI L FI L FI L FI L FI L Fil os ofi a 58 1 Capítulo 3 Da � loso� a helenística à � loso� a moderna .. 226 Exercícios Propostos ........................................ 248 Módulo 5 Escolas � losó� cas helenísticas e � loso� a medieval ................ 248 Módulo 6 Caracterização inicial da � loso� a moderna e racionalismo ............................... 253 Gabarito dos Exercícios Propostos................ 258 22 6 M IK KE L S TR OB EC H/ DR EA M ST IM E. CO M / N VN KA RT HI K/ DR EA M ST IM E. CO M / HA YW IR EM ED IA /D RE AM ST IM E. CO M 3 Da filosofia helenística à filosofia moderna 1. As escolas filosóficas helenísticas As últimas décadas do século IV a.C. assinalaram amplas transformações sociais, políticas e culturais no antigo mun- do grego. Um acontecimento simbolicamente expressivo foi a supressão das cidades helênicas independentes, efetivada no ano de 338, sob o jugo do domínio macedônico. Com a con- solidação do império de Alexandre Magno, geograficamente estendido sobre diferentes sociedades da Antiguidade, a Gré- cia, antes caracterizada como um conjunto de comunidades cívicas autônomas, converteu-se em território pertencente a um poder central exercido sobre civilizações diversas. A pólis, essencialmente constituída pela cidadania, dei- xou de ser a medida da vida humana para os gregos. Os cida- dãos, antes politicamente articulados em relações participa- tivas, transformaram-se em súditos, submetidos a decisões impostas pelo núcleo do poder imperial. O poder político verti- calizou-se ou, em termos incisivos, verificou-se o desapareci- mento da política, entendida, em sua acepção originariamente helênica, como esfera cívica de igualdade entre os cidadãos. Eliminaram-se as assembleias como espaços deliberativos de diálogos, debates e conflitos, protagonizados pela cidadania. Sob o ponto de vista cultural, os historiadores definem essa etapa como helenismo, constituído pela difusão dos valores gregos nas demais sociedades incorporadas ao poder imperial, bem como pela assimilação, entre os he- lênicos, de princípios culturais das civilizações orientais. CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 22 7 PV 3D -1 8- 30 A cultura helenística exprime uma nova realidade social, em que se interpenetram elementos socioculturais clássicos da Grécia com aspectos socioculturais do Antigo Oriente. Os historiadores da cultura convencionaram designar de helenismo as atividades culturais de- senvolvidas no período transcorrido entre a mor- te de Alexandre Magno, em 323 a.C., e o fim da República Romana, em 31 a.C., quando Augusto (vencedor da batalha de Actium, em 27 a.C.) tor- na-se imperador de Roma. A designação refere-se à presença dominante da língua e da cultura gre- gas em todo o mundo conhecido, numa difusão sem precedentes cuja causa inicial foi a convicção de Alexandre, aluno de Aristóteles, de que, por seu intermédio, a Grécia deveria cumprir uma missão civilizatória sobre todos os povos da Terra. [...] Embora o termo helenismo pareça indicar apenas a hegemonia da cultura grega, na realidade, expri- me a comunicação intensa entre as criações cultu- rais helênicas e as orientais enquanto submetidas e um mesmo e único poder central [...]. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13. Dessa forma, comparativamente às filosofias da época clás- sica, as teses filosóficas helenísticas têm sentido mais cosmo- polita, ultrapassando a tradicional dicotomia da cultura helênica, que divide hierarquicamente a humanidade entre gregos, con- siderados superiores, e bárbaros, classificados como inferiores. Esse viés filosófico cosmopolita é consoante à fragilização das distinções culturais entre diferentes civilizações, agora reunidas sob o mesmo poder administrativo e envolvidas pela chamada cultura helenística. Essas relevantes transformações suscitam modificações de conteúdo no âmbito da especulação filosófica. Afinal, a atividade filosófica grega, de sua origem pré-socrática à sua época clássica, com os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, desenvolve-se no horizonte da cidade-Estado. O surgimento da pesquisa filosófica em torno do cosmos relaciona-se com a instauração das comunidades cívicas na Grécia Antiga, e a projeção das temáticas humanas para o plano principal da filosofia corresponde à ampliação e ao aprofundamento da cidadania, especialmente na democracia ateniense. Assim, a reflexão antropológica das teorias filosóficas clássicas refe- rencia-se nos seres humanos como cidadãos – os sistemas filosóficos de Platão e de Aristóteles, por exemplo, compreen- dem a natureza humana e sua realização ética no universo das relações sociopolíticas. Na dissolução helenística da equação entre humanidade e cidadania, portanto, modifica- ram-se os parâmetros da problematização filosófica. Em um contexto de anulação prática das relações socio- políticas delineadas pela participação cívica, as interrogações filosóficas das escolas de pensamento helenísticas desloca- ram-se do cidadão para o indivíduo, examinando seus recur- sos internos em sua capacidade de neutralizar as hostilida- des do mundo externo, de atingir a felicidade a despeito das adversidades de sua realidade exterior. Com a destituição do valor cívico da humanidade, modificaram-se os referenciais das pesquisas éticas, reduzindo seu teor político e ingressan- do na dimensão subjetiva das individualidades. No lugar do ser humano compreendido primordialmente como cidadão, emergiu o ser humano concebido, sobretudo, como indivíduo. Império Greco-Macedônico Alexandria Alexandria Alexandria Alexandria Alexandria Pasárgada Persépolis Susa Alexandria Alexandria Alexandria Babilônia Alexandria Arion Alexandria Patala Alexandria Samarcanda ÁSIA MENOR SÍRIA FENÍCIA PÉRSIA BACTRIANA SOGDIANA ÍNDIA EGITO MACEDÔNIA Montes CáucasosMar Negro Mar Mediterrâneo M ar Verm elho Mar Egeu Mar Cáspio Ri o I nd o Golfo Pérsico OCEANO ÍNDICO0 300 km N Império de Alexandre As conquistas de Alexandre lançaram as bases da cultura helenística. Em linhas gerais, os sistemas filosóficos helenísticos discriminaram os saberes em áreas rigidamente articuladas: lógica, física e ética. A lógica, sob a perspectiva dessas escolas filosóficas, dedicava-se ao problema do conhecimen- to, estudando as relações entre sensações, raciocínios e retórica na produção de relatos verdadeiros sobre a realidade. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 22 8 PV 3D -1 8- 30 A física versava sobre a totalidade da natureza e o conjunto dos fenômenos naturais, e a ética dedicava-se à busca ra- cional da felicidade pelos seres humanos. No tocante aos estudos físicos, as escolas helenísticas são materialistas, não excedem a natureza em busca de princípios explicativos incorpóreos; a saber, nesses siste- mas filosóficos, não encontramos nenhum conceito reco- nhecidamente metafísico, similar às ideias platônicas ou ao primeiro motor aristotélico. Aspecto igualmente importante para a compreensão da física helenística é a constatação de que o conhecimento da natureza constitui-se como condi- ção necessária para a ética, ou seja, as regras para a vida virtuosa situam-se na racionalidade da natureza: possuem determinação natural. A felicidade, segundo os filósofos he- lenistas, consiste na existência humana em conformidade com a natureza. Em que pesem esses pontos comuns, porém, não se deve reduzir os sistemas explicativos helenísticos a uma concepção filosófica unificada. As diferenças entre cinismo, epicurismo, estoicismo e ceticismo, escolas de pensamen- to do período, são tão significativas quanto os aspectos que as assemelham entre si. A. O cinismo A origem do cinismo precede a época helenística, uma vez que a atitude filosófica cínica foi inaugurada no século V a.C., por Antístenes (444-365 a.C.). Admirador de Sócrates,esse filósofo recolheu a proposta socrática de forma bastan- te singular: renunciou ao modo de vida aristocrático e assu- miu uma existência despojada, contestando abertamente os valores e as práticas sociais. Entretanto foi com seu dis- cípulo, Diógenes de Sínope (404-323 a.C.), que a filosofia cínica tornou--se amplamente conhecida. Acerca de Diógenes, constam algumas narrativas revela- doras do conteúdo do cinismo. Um desses relatos afirma que esse filósofo habitualmente, em plena luz do dia, caminha- va com uma lanterna por regiões movimentadas de Atenas, anunciando estar em busca do verdadeiro homem. Por que Diógenes circulava persistentemente entre diferentes seres humanos, buscando a autêntica humanidade? Quem era, afinal, o homem por ele procurado? Por que nenhum dos in- divíduos encontrados era verdadeiramente um ser humano? Na realidade, essa atitude de Diógenes contém uma de- núncia radical à vida em sociedade. De acordo com seu pon- to de vista, os seres humanos, arrebatados pelos valores, pelas normas e pelos costumes sociais, distanciaram-se de sua natureza propriamente humana. Perguntando pelo genuíno ser humano, o cínico criticava incisivamente o con- junto de convenções sociais que, conforme o seu ponto de vista, contrariam a natureza da humanidade. Não se tratava simplesmente de recusar as instituições vigentes, propon- do sua substituição por outras normas sociais, mas sim de uma absoluta rejeição da artificialidade imanente à vida em sociedade. Diógenes condenou a propriedade privada de bens, a valorização das riquezas materiais, o poder político, as relações familiares, os saberes intelectuais, ou seja, tudo aquilo que, na concepção do cinismo, afasta o ser humano de sua natureza. Exemplar a esse respeito é outro suposto episódio da vida de Diógenes. Consta que o imperador Alexandre Magno rece- beu notícias sobre o extravagante modo de vida desse cínico. Impressionado com as informações, Alexandre solicitou ser conduzido à sua presença e o encontrou descansando sob o sol. Diante dele, colocou-se à disposição para auxiliá- -lo, perguntando sobre o desejo dele e sobre o que poderia lhe oferecer para satisfazê-lo. A resposta de Diógenes ao governante do Império resumiu a atitude filosófica cínica: “Afasta-te do meu sol”. DEDM AZAY/DREAM STIM E.COM As atitudes atribuídas a Diógenes são congruentes com a recusa cínica da artificialidade da vida social. Consta que esse filósofo, coerentemente a seu desapego de bens materiais, morou, durante certo tempo, em um barril. Sob o prisma cínico, as convenções sociais instituem um largo repertório de elementos supérfluos, que, contrariando a natureza humana, inviabilizam a felicidade dos seres huma- nos. O que é, então, a vida humana em conformidade com sua natureza? É o exercício contínuo da liberdade na realização das necessidades puramente animais dos seres humanos. Sendo assim, a autonomia e a felicidade dos seres humanos exigem a eliminação da artificialidade da existência social, reconduzindo a humanidade à sua plena natureza. A etimologia da palavra cinismo revela plenamente a recusa dessa atitude filosófica aos valores fixados pela vida em sociedade. O termo cínico é proveniente do grego kynikos, cujo significado é “como um cão”. Sua utilização na nomeação desses filósofos destaca precisamente o relevo que estes concedem à natureza humana em sua animalidade, no sentido de que o indivíduo poderia levar uma vida sem bens materiais, utilizando, semelhante- mente a um cão, apenas o necessário à sobrevivência. Dessa forma, o cinismo pode ser legitimamente definido como uma atitude anti-intelectual e, em sentido mais abran- gente, como uma filosofia anticultural, à medida que rejeita radicalmente as variadas construções culturais dos seres humanos em sociedade. Por essa razão, muitos historiadores da filosofia não reconhecem o cinismo como uma escola fi- losófica, considerando-o somente como a defesa de um de- terminado modo de vida. Alegam, para tanto, que a filosofia consiste justamente em um gênero cultural caracterizado pela elaboração de sofisticados sistemas teóricos que pre- tendem conhecer intelectualmente a totalidade do real ou, pelo menos, muitos de seus aspectos. Há, ainda, estudiosos que classificam o cinismo como uma corrente realmente filo- sófica, sob a justificativa de que a densidade da crítica social efetuada pelos cínicos implica um significativo leque de pro- blematizações filosóficas. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 22 9 PV 3D -1 8- 30 B. O epicurismo Na periferia de Atenas, por volta do ano 306 a.C., Epicuro de Samos (341-270 a.C.) fundou um centro de reflexões e discussões filosóficas – a Escola do Jardim, onde se desen- volveria o sistema de pensamento epicurista. Sua localização e seu ambiente campestre são indicativos de uma espécie de deslocamento intelectual em razão dos contratempos das relações urbanas, condicionadas pelo poder imperial prevale- cente no mundo grego. Um ponto de partida interessante para o conhecimen- to da filosofia epicurista é o registro de sua tese segundo a qual as falsas crenças são as raízes dos problemas humanos, das perturbações dos indivíduos, algo como uma doença da humanidade, que exige, para sua remoção, a utilização da razão filosófica. A filosofia, para Epicuro, consiste na verdade libertadora, porque proporciona aos seres humanos a correta compreensão da natureza de todos os fenômenos e da na- tureza da própria humanidade, oferecendo, assim, o conheci- mento necessário à felicidade. O conhecimento da natureza, portanto, é precondição para a vida ética. O epicurismo apresenta exemplos sobre como as convicções incorretas produzem inquietude nos seres humanos, principalmente no que tange às equivocadas concepções relativas aos deuses e às projeções cultu- rais acerca da morte. A crença de que os deuses inter- ferem na vida humana infunde temor nos homens, bem como a preocupação com o destino após a morte física constitui-se em fonte de ansiedade. Epicuro, então, con- traria essas noções. O filósofo declara a existência dos deuses, mas nega sua intervenção no mundo da huma- nidade, afirmando que as divindades não se ocupam de questões humanas, uma vez que encontram-se comple- tamente absortas na fruição da sabedoria. No que tange à morte, Epicuro define-a como uma simples desagrega- ção atômica, algo que não deve ser receado, porque não se relaciona com a existência humana, resumindo-se tão somente à privação de sensibilidade. Dessa forma, en- quanto existimos, a morte está ausente e, quando ela es- tiver presente, nós não existiremos, ou seja, existência e morte jamais coincidem no tempo. Para o epicurismo, as sensações são a fonte dos conhe- cimentos verdadeiros, sendo que os juízos da razão devem ser confirmados ou rejeitados pelo testemunho dos sentidos, por evidências empíricas. Uma declaração será verdadeira se receber comprovação empírica, já que a falsidade de uma pro- posição será revelada em sua incompatibilidade com o que é recolhido no campo das experiências, quando é contrariada pelas observações efetuadas no domínio das sensações. O que é recepcionado com nossos sentidos pelas expe- riências transforma-se em representações no pensamento, as quais são nomeadas como antecipações ou prenoções (prolepses). Uma antecipação define-se como uma ideia genérica, extraída de uma situação pretérita, que dispensa a presença imediata do objeto para que ele seja pensado, algo que possibilita a previsão conceitual de suas características diante da hipótese do aparecimento futuro de tal fenômeno. O conceito epicurista de prenoção explica como o conhecimen- to, apesar de sua origem no plano sensível, supera a esfera imediatamente empírica e se consuma no nível discursivo. Essa conceituação, que identifica a memória e o tempo na racionalidade da natureza, situa-se no centro da teoria ética do epicurismo. Em sua física, Epicuro recorreu aopensamento pré-so- crático, apropriando-se do atomismo de Demócrito de Abdera (460-370 a.C.), com sua tese acerca da eternidade da tota- lidade, da matéria eterna, constituída essencialmente por átomos invisíveis que se deslocam no espaço e se com- binam na formação de todos os seres existentes. Epicuro, contudo, modificou o atomismo pré-socrático com a introdu- ção dos conceitos de peso e de desvio – este último, como veremos, decisivo na elaboração de sua filosofia moral. A noção de que os átomos possuem peso implica uma concepção de deslocamento distinta daquela formulada por Demócrito. Para esse filósofo, os movimentos originais dos átomos são multidirecionais, quer dizer, eles deslocam- -se pelo vazio em múltiplas e variadas direções e desses des- locamentos resultam encontros entre átomos que se combi- nam na geração da realidade cósmica. Epicuro, por seu turno, descarta a multidirecionalidade dos movimentos dos áto- mos, concluindo que eles, por serem naturalmente dotados de peso, projetam-se descendentemente pelo vazio, em um movimento de queda em linha reta. Nessa perspectiva, o movimento dos átomos tem a mes- ma direção e o mesmo sentido para todos eles, isto é, os áto- mos deslocam-se em linhas paralelas, o que impõe a seguinte questão ao epicurismo: como é possível a ocorrência de en- contros entre os átomos? Ocorre que os átomos deslocam-se sempre verticalmente para baixo, jamais se articulam uns com os outros e, sem tais arranjos, não teríamos uma expli- cação razoável para o surgimento do mundo, dos astros, dos seres vivos, dos seres humanos, enfim de tudo o que existe e cuja existência é atestada pelos nossos sentidos. Assim, procurando justificar racionalmente a efetivida- de do mundo, o epicurismo acrescenta o conceito de desvio (clinâmen), de acordo com o qual os átomos desviam-se ligei- ramente de suas trajetórias mecanicamente estabelecidas, produzindo, então, variadas colisões, cujo resultado é a compo- sição do cosmos e da totalidade de seus seres. Se essa noção de desvio é imprescindível para a física epicurista, não menos importante é para sua filosofia moral, delineando a liberdade humana perante as determinações do mundo. Na correspon- dência entre os mecanismos da humanidade e os mecanismos da natureza humana, a concepção de desvio fundamenta a possibilidade de os seres humanos resistirem à fatalidade, afir- mando sua liberdade interior diante das adversidades da reali- dade exterior. Mesmo perante circunstâncias claramente hos- tis, os seres humanos são livres para conquistar a felicidade. Em que consiste a felicidade para o epicurismo? Essa in- terrogação recebe explanação específica de Epicuro em seu texto intitulado Carta sobre a felicidade. A teoria ética epicu- rista define-se pelo hedonismo, pela valorização do prazer, entendido como princípio e fim da vida feliz. Tal observação, entretanto, não deve levar à conclusão de que essa escola fi- losófica preconiza a adesão indiscriminada a todas as formas de prazer. Há prazeres superficiais que, escolhidos com base em concepções desvirtuadas da realidade, derivam em dis- túrbios e afastam os seres humanos da verdadeira felicidade. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 0 PV 3D -1 8- 30 Epicuro distingue o prazer estável dos prazeres que procedem de carências, declarando que estes últimos rela- cionam-se com três tipos de desejos: os naturais e necessá- rios, os naturais e não necessários e os não naturais e não necessários. Desejos naturais e necessários são aqueles vinculados à conservação da vida, como o referente à nu- trição e à proteção diante dos infortúnios climáticos. Natu- rais e não necessários são as variantes supérfluas dos de- sejos naturais e necessários, como a aspiração à refeição sofisticada, à bebida refinada, à vestimenta elegante. Não naturais e não necessários são os desejos completamente artificiais, como a ambição por riquezas, por prestígio social, por conquistas e por poder. De acordo com a tese epicurista para a qual a conduta ética é aquela que preserva o ser humano em sua natureza, os desejos que devem ser contemplados pelos indivíduos são os naturais e necessários. Já os desejos naturais e não necessários exigem um limite racional, porque tendem à imoderação, e o descomedimento é fonte de desconfortos físicos e de inquietações na alma. Já os desejos não natu- rais e não necessários devem ser removidos, uma vez que procedem de falsas opiniões sobre o real, distanciando os seres humanos de sua autêntica humanidade e arrebatan- do-os em um círculo de contínuas perturbações. Nesse sen- tido, por exemplo, quando um ser humano extrai prazer ime- diato da aquisição de bens materiais, ele é acometido pelo receio de perdê-los e não tardará a considerar insuficiente a sua riqueza, lançando-se à busca de outras conquistas, em um ciclo de insatisfações. BU DD A/ DR EA M ST IM E. CO M Segundo o epicurismo, o desejo por riquezas materiais não é natural, por isso a busca por sua satisfação produz perturbações na alma humana. Dessa forma, o prazer estável, diferentemente dos praze- res instáveis, não se realiza na contemplação de carências, mas sim na contenção dos desejos não necessários e na su- pressão dos desejos artificiais. O prazer estável não se move entre sucessivas insatisfações; ele consiste, isto sim, no pra- zer em repouso, atingido mediante a ataraxia, a tranquilidade racionalmente estabelecida, e a aponia, a ausência de dor ou a saudade do corpo. O ser humano que exerce o controle racional dos seus desejos preserva-se em harmonia com a natureza, evitando perturbações em sua alma e situando-se além de eventuais sofrimentos corporais. As condições pertinentes para a conquista e a preserva- ção da autonomia individual são oferecidas pela comunidade de amigos. Nela, os seres humanos elaboram e compartilham o saber filosófico, exercitando a prudência, a justiça, a hones- tidade, ou seja, vivendo em conformidade com a natureza, convivendo virtuosamente. O conhecimento verdadeiro e a remoção de crenças ilu- sórias asseguram a ataraxia. Elas são, porém, suficientes para assegurar a felicidade em situações objetivamente ad- versas, favoráveis ao sofrimento? A resposta do epicurismo a essa pergunta é positiva e, neste momento, o conceito de pro- lepse, a antecipação fundada na memória, assume tonalida- de essencialmente ética. Perante as adversidades do tempo presente, o indivíduo é capaz de se deslocar para o pretérito, recorrendo ao seu acervo pessoal de lembranças felizes e atualizando-as pela via da rememoração, com a qual se des- via da fatalidade: as recordações agradáveis anulam as cir- cunstâncias hostis. Resultado idêntico é proporcionado pelo movimento interior em direção ao futuro, quando o indivíduo projeta-se temporalmente na esperança de uma felicidade que neutralize a dor que o assedia na época presente. C. O estoicismo A escola helenística estoica, inaugurada por Zenão de Cítio (334-262 a.C.), utilizou a metáfora de um pomar para ilustrar sua concepção de organicidade do pensamento filo- sófico. Nessa representação, o muro que circunda o terreno de árvores frutíferas simboliza a lógica, o conjunto de crité- rios e referências que regulam o verdadeiro conhecimento do mundo natural e da humanidade. As árvores simbolizam a física, o saber sobre a natureza, fundamento do saber mo- ral, e os frutos, produzidos e sustentados pelas árvores, são a alegoria da ética, alicerçada na racionalidade da natureza. O nome dessa escola deriva de stoá, palavra grega que é sinônimo de pórtico. Estrangeiro e consequente- mente impedido de adquirir propriedades territoriais em Atenas, Zenão ministra suas aulas sob um pórtico desti- nado ao uso público. Assim, esse filósofo e seus seguido- res tornam-se conhecidos como estoicos. Para o estoicismo, o conhecimento efetiva-se em um iti- nerário que tem seu ponto de partida nas sensações e sua conclusão no assentimento racional, revelandoo mundo como um conjunto perfeitamente ordenado por sucessivas relações de causalidade. A totalidade do real – o mundo, os fenômenos naturais, os acontecimentos humanos – é gover- nada por um princípio divino. O que é esse princípio divino de- finido pelos estoicos? Não se trata de um deus personificado, metafísico e transcendente, criador de um universo exterior a si mesmo; consiste, isto sim, no logos, na razão universal e imanente a tudo o que existe: exprime a convicção estoica de que a realidade é completamente racional. Tal concepção de totalidade plenamente racional impli- ca a noção de providência, a tese segundo a qual a natureza, as formas de vida e os fatos são rigorosamente necessários: LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 1 PV 3D -1 8- 30 destinados a ser como efetivamente são, não poderiam ser diferentes. Pronuncia-se, então, o determinismo do sistema filosófico estoico que explica a realidade como uma longa e complexa conexão de causas e efeitos, no interior da qual não há espaço para episódios fortuitos, acidentais. No horizonte desse determinismo racional, os seres vi- vos tendem naturalmente à sua conservação, apropriando- -se do próprio ser e evitando o que é contrário à vida. Na hu- manidade, a propensão à preservação e à expansão da vida deriva da aproximação entre os seres humanos, na consti- tuição de laços comunitários que garantem sobrevivência e proteção para todas as pessoas. Assegura-se, dessa forma, o bem, que, na perspectiva estoica, é a promoção e a am- pliação do ser, da vida, em conformidade com a providência racional, na mesma medida em que o mal reside naquilo que é contrário à razão. A racionalidade do todo exprime-se claramente na huma- nidade, com sua capacidade de utilização decidida da razão. Em sua condição racional, os seres humanos são natural- mente dispostos à conquista da felicidade, a meta natural da vida. A felicidade, para o estoicismo, requer a eliminação das paixões, tais como a dor, o desejo, o temor e o prazer, e a aceitação serena do destino. Diante de situações dramáticas, o ser humano virtuoso mantém-se indiferente, não se afetan- do pelas adversidades do mundo, justamente porque sabe que todos os acontecimentos são racionais e necessários: a realidade não poderia ser diferente do que, de fato, é. O sábio, portanto, atinge a felicidade ao se resignar à fatalidade dos fenômenos que não se submetem ao controle humano. Realizadas essas considerações, surge uma grande questão: a filosofia estoica, com sua teoria determinista, comporta a noção de liberdade? Ou os seres humanos se- riam livres em um mundo integralmente determinado, em que os acontecimentos são sempre necessários? Os estoi- cos oferecem solução para essa interrogação, observando que os seres humanos não podem modificar o destino, ape- sar de serem livres para resistir às suas determinações ou para acolhê-las racionalmente. Crisipo de Solis (280-208 a.C.), importante representante do estoicismo, versa sobre essa caracterização da liberdade ao se referir à dupla causalidade, ou melhor, aos conceitos de causalidade externa e de causalidade interna. Recorre, para tanto, ao movimento de objetos, especificamente de um cilindro e de um cone. Um cilindro e um cone movem-se im- pulsionados por uma força exterior, a saber, por uma causali- dade externa, porém as formas de seus movimentos, o giro do cone e a rotação do cilindro são internamente determina- das por suas estruturas, seguem a causalidade interna. Em situação análoga, encontram-se os seres humanos perante a realidade do mundo: recebem os seus fenômenos e, diante deles, comportam-se conforme sua disposição interna, com contestação ou resignação. O ser humano envolvido pelas paixões escolhe a contestação, confundindo, assim, a liber- dade com a ilusão de transformação da fatalidade. A conse- quência dessa atitude é a frustração, porque a realidade não se transforma de acordo com os desejos do indivíduo. O ser humano virtuoso exercita sua liberdade no reconhecimento racional da necessidade do destino, conformando-se, então, com a racionalidade dos acontecimentos do mundo. D. O ceticismo Muitos estudiosos da filosofia identificam o prenúncio do ceticismo entre os sofistas, na época clássica da filoso- fia grega, em especial com as proposições de Górgias de Leontinos (485-380 a.C.), com sua radical negação do ser. Na era helenística, a corrente filosófica cética delimitou-se, iniciando-se com Pirro de Élis (365-270 a.C.) e recebendo sua sistematização com Tímon (360-230 a.C.). Em linhas gerais, o ceticismo caracterizou-se pela desconfiança em relação a conhecimentos presumivelmente universais, questionando a ambição, prevalecente no interior da filo- sofia, de revelar a essência da realidade e de fornecer um universo de valores definitivos para a humanidade. Para o ceticismo, a razão não supera o campo instável dos fenômenos que nos envolvem, não atinge princípios ex- plicativos situados além da experiência, a natureza estável, o ser das coisas. A postura cética descarta, assim, sistemas filosóficos como o platonismo, o aristotelismo, o epicuris- mo e o estoicismo – as diferentes teses filosóficas cujo ponto em comum é a apresentação de supostas verdades universais. Sob o prisma cético, não existem motivos que justifiquem o assentimento à teoria das ideias de Platão, à metafísica de Aristóteles, à física epicurista ou à ética estoi- ca, para citar alguns dos muitos exemplos possíveis. Os cé- ticos, enfim, consideram dogmáticas todas as explicações filosóficas que pretendem apresentar certezas, verdades inquestionáveis sobre o mundo. A tese cética de que não há verdade incide, porém, em uma contradição. Afinal, de acordo com os críticos da pers- pectiva cética, declarar a inexistência da verdade significa, paradoxalmente, atestar que, pelo menos, uma verdade existe: é verdadeira a não existência da verdade. Perante essa objeção, a escola de pensamento cética reelaborou sua concepção, definindo-a nos seguintes termos: é possível ela- borar hipóteses diferentes e contrárias acerca da realidade, mas jamais se tem critérios válidos para atestar a verdade ou a falsidade de uma ou outra afirmação, ou seja, não é legítimo dizer que uma proposição seja verdadeira, tampouco é plau- sível dizer que seja falsa. Essa postura cética referente ao conhecimento desdo- bra-se em apreciações éticas sobre o modo como se deve viver. Para o ceticismo, as inquietações, ansiedades e angús- tias têm suas raízes precisamente nas aspirações às verda- des definitivas e universais. Sendo assim, é imprescindível renunciar à busca de certezas, que nunca são alcançadas, e aceitar a simples realidade dos fenômenos que nos cercam. Em sentido prático, trata-se do entendimento de que os indi- víduos devem se ajustar à cultura, aos hábitos, valores e cos- tumes vigentes em sua sociedade, organizando suas vidas de acordo com as exigências da experiência social. Com esses apontamentos sobre o ceticismo, encerra-se a exposição sobre as escolas filosóficas helenísticas, cuja influência, bem como a da filosofia grega clássica, prolongou- -se cronologicamente à época do domínio imperial romano e, mais do que isso, inscreveu suas marcas na história do pen- samento filosófico. No período do Império Romano, porém, surgiria um elemento que modificaria profundamente a cul- tura ocidental e promoveria a reorientação das especulações filosóficas: o cristianismo. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 2 PV 3D -1 8- 30 01. UEM-PR O Período Helenístico inicia-se com a conquista mace- dônica das cidades-Estado gregas. As correntes filosóficas desse período surgem como tentativas de remediar os so- frimentos da condição humana individual: o epicurismo ensinando que o prazer é o sentido da vida; o estoicismo instruindo a suportar com a mesma firmeza de caráter os acontecimentos bons ou maus; o ceticismo de Pirro orien-tando a suspender os julgamentos sobre os fenômenos. Sobre essas correntes filosóficas, assinale o que for correto. 01. Os estoicos, acreditando na ideia de um cosmo harmonioso governado por uma razão universal, afirmaram que virtuoso e feliz é o homem que vive de acordo com a natureza e a razão. 02. Conforme a moral estoica, nossos juízos e pai- xões dependem de nós e a importância das coi- sas provém da opinião que delas temos. 04. Para o epicurismo, a felicidade é o prazer, mas o verdadeiro prazer é aquele proporcionado pela ausência de sofrimentos do corpo e de perturba- ções da alma. 08. Para Epicuro, não se deve temer a morte, porque nada é para nós enquanto vivemos e, quando ela sobrevém, somos nós que deixamos de ser. 16. O ceticismo de Pirro sustentou que, porque to- das as opiniões são igualmente válidas e nossas sensações não são verdadeiras nem falsas, nada se deve afirmar com certeza, e, da suspensão do juízo, advêm a paz e a tranquilidade da alma. Resolução As afirmações 01 e 02 são verdadeiras, referindo-se corretamente às teses estoicas segundo as quais a reali- dade é governada pela providência imanente da razão e o ser humano deve atingir a indiferença diante das adversi- dades do mundo. As sentenças 04 e 08 mencionam acer- tadamente a noção epicurista de que a felicidade se atin- ge com a ataraxia e a aponia, bem como sua concepção de que existência e morte não se relacionam, razão pela qual a morte não deve ser temida. A 16 é igualmente ver- dadeira, destacando a suspensão do juízo como aspecto central do ponto de vista cético, em sua postura perante o conhecimento e em suas implicações éticas. Soma: 31 (01 + 02 + 04 + 08 + 16) APRENDER SEMPRE 26 2. A filosofia medieval O surgimento e a expansão do cristianismo, ao longo dos últimos séculos da Antiguidade, transformaram substancial- mente o universo cultural das sociedades ocidentais. Insti- tucionalizada na Igreja Católica Apostólica Romana, a religião cristã conformou culturalmente as sociedades medievais europeias, fixando parâmetros que condicionaram os pensa- mentos, as explicações, os sentimentos e as condutas dos seres humanos em suas relações entre si e com o mundo. Do ponto de vista do conhecimento, a cultura cristã instau- rou o problema das relações entre o saber revelado e o saber racional. O cristianismo assentou-se na suposição de verdades divinamente reveladas à humanidade e recepcionadas no pla- no da fé, compondo, assim, um amplo repertório de respostas doutrinárias para antigas interrogações dos seres humanos, versando, entre outras questões, sobre a origem do Universo, a natureza humana e os valores morais. A filosofia legada pelos gregos, por sua vez, caracteriza-se essencialmente como a bus- ca por um conhecimento racionalmente construído, que reivin- dica sua aceitação na demonstração lógica de suas conclusões. Nesse contraste entre o conhecimento revelado do cristianismo e o conhecimento racional da filosofia, emerge o dilema: é pos- sível compatibilizar a sabedoria cristã e a sabedoria filosófica? M IKE EHRM AN/DREAM STIM E.COM A filosofia medieval elaborou-se sob densa ascendência do cristianismo, institucionalizado na Igreja Católica. Se, no início do cristianismo, prevaleceu o desprezo à tradição filosófica grega, o desenvolvimento da cultura cris- tã, contudo, foi assinalado por tentativas de conjugação da crença religiosa com a especulação filosófica. Essa etapa de formação da filosofia cristã é denominada patrística. Condu- zida por representantes do corpo eclesiástico católico, atin- giu sua mais rebuscada expressão intelectual em um autor que exerceu ascendência determinante sobre o pensamento medieval: Aurelius Augustinus (354-430), conhecido como Santo Agostinho ou Agostinho de Hipona. A. A filosofia de Agostinho Agostinho, natural de Tagaste, na Numídia, província africana pertencente ao Império Romano, atual Argélia, teve as primeiras décadas de sua vida pontuadas pelos estudos, pelas atividades de professor, pela adesão aos prazeres mundanos e, sobretudo, por um permanente desconforto existencial. Converteu-se definitivamente ao cristianismo no ano de 482 e, mais tarde, tornou-se bispo na cidade de Hipona – atual Annaba, na Argélia. A partir daí, dividiu-se en- tre as atividades sacerdotais e a reflexão filosófica de orien- tação cristã, registrada em escritos como A cidade de Deus e Confissões. No livro Confissões, Agostinho combina relatos autobio- gráficos, centrados na descrição de seus dramas interiores e em seu itinerário de conversão ao cristianismo, com a ex- planação de conceitos filosóficos inspirados em suas leituras sobre Platão, especificamente em sua apropriação do neopla- tonismo de Plotino (205-270). Nas investigações filosóficas agostinianas, temas nucleares da filosofia grega, como a na- tureza humana, a moral e o conhecimento, são racionalmente examinados em sua confluência com a teologia cristã. Com o intuito de proporcionar a apresentação sumária da filosofia agostiniana, serão percorridas aqui suas pondera- ções acerca da origem do mal, do conhecimento identificado à iluminação divina, da memória, da felicidade e do tempo. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 3 PV 3D -1 8- 30 Qual é a origem do mal? Esse problema filosófico, com no- tória relevância para pressuposição cristã de suprema bondade divina, é analisado por Agostinho em Confissões. A compreen- são da tese agostiniana sobre o mal é favorecida pela menção prévia a uma questão explicitada no mesmo texto: quem é Deus? O filósofo, reconhecendo a dificuldade de responder di- retamente a essa pergunta, principia pela identificação do que não é Deus. O mundo não é Deus, assim como não são Deus os múltiplos seres existentes, o céu, os astros, os rios, as monta- nhas, as paisagens naturais, os animais, os seres humanos. O mundo e sua diversidade são criações divinas e, enquanto tais, possuem um ser relativo, isto é, possuem um ser que lhes é concedido por Deus no ato da criação, mas não são seres ple- nos, posto que não são o próprio Deus. Deus é o ser absoluto, eterno, imutável, onisciente e perfeito. Deus é o bem supremo. A bondade do ser supremo conduz à inferência de que todas as suas criações são necessariamente boas, relativamente boas porque concebidas com a absoluta bondade divina. Com base na observação de que o criador é absolutamente bom e, consequentemente, boas são todas as suas criações, Agostinho declara que não é certo atribuir origem divina ao mal: o mal não é produzido por Deus. Prosseguindo em seu raciocí- nio, o filósofo é logicamente conduzido, então, à constatação de que o mal não existe. Afinal, tudo o que existe é criação di- vina, é bom. Como explicar, portanto, o mal que se observa no mundo? Seria simplesmente uma ilusão? Para entender a tese agostiniana sobre essa questão, é necessário especificar sua consideração de que o mal não existe, acrescentando que não existe como substância, como ser ou, em linguagem propria- mente filosófica, Agostinho não reconhece ontologicamente o mal. Para ele, o mal é o não ser, é o desvio ou a ausência do bem. Permanece, assim, o problema: qual a procedência dessa ausência do bem, o não ser que é nomeado como o mal? Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da von- tade desviada da substância suprema – de Vós, ó Deus – e tendendo para todas as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se le- vanta com intumescência. AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 190. O mal, de acordo com Agostinho, é proveniente do livre-arbí- trio humano. O ser humano, mais elevada das criaturas divinas, é concebido à imagem e semelhança de Deus, dotado de inteligên- cia, memória e vontade. Utilizando sua vontade, o livre-arbítrio concedido pelo Criador, o ser humano escolhe o pecado, proje- tando o amor a si mesmo acima do amor a Deus e desviando-se do bem.Dessa forma, o mal surge como perversão da natureza humana na realização do pecado original, com o qual a humani- dade se desloca de sua originária proximidade com Deus. Nesses termos, Agostinho estabelece o recorte conceitual entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens. As fronteiras entre essas diferentes dimensões não são exatamente físicas, algo como a dimensão divina situada no céu e a dimensão humana localizada na Terra. Trata-se, fundamentalmente, de uma dis- tinção espiritual entre aqueles que amam sobretudo a Deus, constituindo a cidade divina, e aqueles que priorizam a amor a si mesmos, formando a cidade humana. Nessa perspectiva, a Cidade de Deus envolve os seres humanos que, vivendo na Terra, estão predestinados pela graça divina à salvação, pois, se o mal provém do livre-arbítrio, na mesma medida é o livre- -arbítrio a via para a reconciliação com Deus. Entretanto, não são todos os seres humanos destinados ao reencontro com o Criador, mas somente os predestinados, os que são contempla- dos com a graça divina na correção de seu livre-arbítrio, coloca- dos na direção do bem e da felicidade. Para Agostinho, a felicidade é inscrita por Deus na memó- ria dos seres humanos, a qual, aliás, revela a profundidade da vida interior dos homens. Esse filósofo diferencia a memória composta pelas impressões, recolhidas pelas vias sensoriais, da memória intelectual, à qual pertencem os conceitos origina- riamente presentes na alma humana. Pelos nossos sentidos – olfato, tato, paladar, visão, audição –, recepcionamos impres- sões de objetos externos – qualidades como sons, formas, cores –, e não os objetos em sua essência. Já a memória inte- lectual não deriva dos sentidos, porque seu fundamento não é dado por objetos externos à alma humana, mas repousa, isto sim, em ideias inatas, referindo-se diretamente a realidades não sensíveis e eternas. Dessa natureza são, por exemplo, os conhecimentos matemáticos e morais. Essa concepção de memória intelectual insere-se na tese agostiniana da iluminação divina, inspirada na teoria platônica da reminiscência. Para Platão, o processo de conhecimento é sinônimo de rememoração, uma vez que a alma humana, ante- riormente à sua encarnação, contempla as ideias, os seres em si. Para Agostinho, as verdades eternas são comunicadas por Deus aos seres humanos, introduzidas na memória humana pela luz eterna da razão. Na filosofia de Agostinho, o princípio platônico da reminiscência é reelaborado em consonância com os preceitos do cristianismo. 01. UFU-MG Leia o trecho extraído da obra Confissões. Quem nos mostrará o Bem? Ouçam a nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz do vosso rosto, Senhor. Nós não somos a luz que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por Vós. Para que sejamos luz em Vós os que fomos outrora trevas. AGOSTINHO, Santo. Confissões IX. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 154. (Os Pensadores). Sobre a doutrina da iluminação de Santo Agostinho, marque a alternativa correta. APRENDER SEMPRE 27 LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 4 PV 3D -1 8- 30 a. A irradiação da luz divina faz com que conheçamos imediatamente as verdades eternas em Deus. Essas verdades, necessárias e eternas, não estão no interior do homem, porque seu intelecto é contingente e mutável. b. A irradiação da luz divina atua imediatamente sobre o intelecto humano, deixando-o ativo para o conhecimento das verdades eternas. Essas verdades, necessárias e imutáveis, estão no interior do homem. c. A metáfora da luz significa a ação divina que nos faz recordar as verdades eternas que a alma possuía antes de se unir ao corpo. d. A metáfora da luz significa a ação divina que nos faz recordar as verdades eternas que a alma possuía e que nela permanecem mediante os ciclos da reencarnação. Resolução De acordo com a teoria agostiniana da iluminação divina, as verdades são introduzidas por Deus na alma humana, isto é, encontram-se na interioridade do ser humano. Alternativa correta: B Quanto à felicidade, qual é a natureza do seu pertencimen- to à memória? Agostinho discorre sobre a memória dos afetos, lembranças de situações pretéritas delineadas por comoções como alegria, tristeza e temor, experiências que são absorvi- das pela memória e recordadas na ausência de sua efetiva re- petição. Seria desse tipo a presença da felicidade na memória? É indispensável sublinhar que Agostinho concede extrema importância ao tema da felicidade, à medida que sua explana- ção da interioridade humana, pontualmente sobre a memória, tem o propósito de investigar se é possível o encontro com Deus pelo ser humano interior, pela alma humana. Para esse filósofo, a felicidade consuma-se precisamente no encontro com o ser supremo. Em relação à felicidade, esse pensador medieval distin- gue três estados possíveis: a felicidade efetiva, a esperança e a infelicidade. No primeiro caso, tem-se a felicidade propria- mente dita, como realidade do tempo presente. No segundo, a felicidade diz respeito à expectativa de que se torne real a projeção de um futuro feliz. Por fim, na última situação men- cionada, a felicidade sequer é reconhecida em sua possibili- dade de realização, inexiste a perspectiva de sua efetivação. Esses diferentes estados concernentes à felicidade articu- lam-se em uma unidade: em todos eles, deseja-se a felici- dade. Na felicidade presente, deseja-se preservá-la; na ex- pectativa, deseja-se conquistá-la; e, mesmo na ausência de esperança, deseja-se uma realidade feliz. Observa-se, dessa forma, o amor universal à felicidade, presente em todos os se- res humanos, constatação esta que atesta sua localização na memória, não como lembrança de afetos experimentados de maneira circunstancial, mas como recordação de uma condi- ção original da natureza humana. Neste ponto, Agostinho discrimina conceitualmente a fe- licidade e a alegria. A alegria procede de experiências munda- nas, associando-se à luxúria, ao orgulho, à vaidade: confunde os instáveis prazeres terrenos com bens eternos e verdadeiros. A felicidade – alegria verdadeira – é superior à alegria, porque não deriva de contingências do mundo, sendo introduzida por Deus na alma humana. A felicidade consiste na condição origi- nal da natureza do ser humano, em sua semelhança com o cria- dor, na primazia do amor a Deus. O autêntico restabelecimento da humanidade coincide com a reconciliação do ser humano com Deus, o que exige o êxito da vontade corretamente orienta- da sobre a vontade desviante no interior da alma humana. As explanações sobre a memória e os estados da alma humana diante da felicidade vinculam-se ao conceito de tem- po, tema que é objeto de um capítulo específico no livro Con- fissões. Santo Agostinho examina o tempo em seus vínculos com a eternidade. Deus é eterno e imutável em sua perfeição. Na eternidade divina, não há antes ou depois, passado ou porvir; há exclusivamente o presente perpétuo. O tempo per- tence à criação, quer dizer, surge com a produção divina dos seres mutáveis e corruptíveis. Dessa forma, para a pergunta sobre o que fazia Deus antes da criação, esse filósofo fornece lacônica resposta: nada. Isso porque a questão é inadequada, posto que não há anterioridade à criação divina do mundo, dado que noções temporais como antes e depois são conce- bíveis somente no horizonte das criaturas. Qual a localização, então, do tempo? O que são passado, presente e futuro? Agostinho problematiza o conceito de tem- po, negando a existência objetiva das dimensões temporais pretéritas e futuras. O passado não é uma realidade concreta, posto que não tem atualidade efetiva, referindo-se apenas ao que não é mais. O futuro também é destituído de objetividade, pois remete ao que ainda não é. Mesmo a noção de presente é problemática, porque o presente inserido no plano da tempo- ralidade, diferentemente do presente perpétuo da eternida- de, deixa, de forma contínua, de ser o tempo presente, trans- formando-se naquilo quenão é mais, em pretérito. LEIGH PRATHER/DREAM STIM E.COM O tempo é objeto das reflexões filosóficas de Agostinho. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 5 PV 3D -1 8- 30 Dessa forma, assim como a memória, as ideias eternas e a felicidade, o tempo localiza-se na interioridade humana, na alma do ser humano, como recordação do passado, atenção ao presente e expectativa perante o futuro. Modifica-se com isso a própria terminologia, nomeando-se o pretérito como presente das coisas passadas – a recordação –, o presente como presente das coisas presentes e o futuro como presen- te das coisas futuras – expectativa. B. A filosofia de Tomás de Aquino Se a patrística, com sua expressão sofisticada no pensa- mento de Agostinho de Hipona, configura a filosofia cristã em sua primeira fase, os séculos finais da época medieval são caracterizados pela supremacia da escolástica, termo que denomina os estudos teológicos e filosóficos desenvolvidos nas universidades medievais, em especial a partir da tradu- ção dos textos aristotélicos para o idioma latino. O filósofo Tomás de Aquino (1224-1274) é a principal re- ferência do pensamento escolástico, e seu sistema filosófico, conhecido como tomismo, efetua a apropriação das teses fi- losóficas de Aristóteles pelo cristianismo. De origem familiar nobre, Tomás de Aquino ingressou na ordem religiosa dos dominicanos, desenvolveu seus estudos em Paris e Nápoles e lecionou em diferentes universidades europeias. Suas ativi- dades de pesquisa e magistério proporcionaram a redação de textos importantes, como O ente e a essência, Suma contra os gentios e Suma teológica, que se tornaram clássicos na história da especulação filosófica. Nesses escritos, a tenta- tiva de conjugação da fé cristã com o saber racional, carac- terística da filosofia medieval, adquiriu sua mais completa e explícita elaboração. Na Suma contra os gentios, Tomás diferencia verdades reveladas e verdades racionais. As primeiras procedem dire- tamente da revelação divina e pertencem à dimensão supra- natural da fé e as últimas derivam da racionalidade e são con- quistadas pela aplicação da inteligência humana aos dados recolhidos pelos sentidos. Entre ambas, observa o filósofo, não há conflitos, mas uma convergência na qual a teologia revelada orienta o conhecimento racional. Como era de se esperar, Tomás de Aquino vai sustentar, por várias razões, a subordinação da ciência humana à ciência divina. Em primeiro lu- gar, porque a finalidade suprema do homem é a busca da felicidade na vida futura, o que depen- de da observância de certos preceitos fornecidos pela teologia cristã. Em segundo lugar, porque, como Santo Agostinho já havia preconizado, a filosofia pode auxiliar na compreensão de pas- sagens obscuras das Sagradas Escrituras. Em terceiro lugar, a filosofia pode também auxiliar a fé cristã fornecendo uma explicação racional de teses teológicas, como, por exemplo, a tese da existência de Deus. STORCK, Alfredo. Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 50. De acordo com Tomás de Aquino, as temáticas concer- nentes a Deus, ao mundo e ao ser humano são comuns à teologia e à filosofia, e a atividade filosófica conduz a verda- des que não contrariam os dogmas religiosos, mas são, isto sim, confluentes com os elementos doutrinários do cristia- nismo. Entretanto, diferentemente do saber supranatural, o conhecimento sustentado em um percurso racional oferece o acesso a um conjunto limitado de verdades. Pelo itinerário da razão não é possível, por exemplo, atingir a trindade di- vina – Pai, Filho e Espírito Santo – e a encarnação do verbo divino na pessoa humana de Jesus Cristo. Por outro lado, a investigação filosófica é capaz de comprovar racionalmente a existência de Deus mediante a observação de seus efeitos, os fenômenos físicos do mundo. Tomás de Aquino, portanto, mesmo atribuindo limitações ao conhecimento construído racionalmente, concede eleva- da importância à filosofia, à medida que a pesquisa racional se baseia naquilo que, a despeito da diversidade de crenças, é comum a todos os seres humanos, a saber, a razão. Nesse sentido, dedica-se à demonstração racional acerca de exis- tência de Deus, desenvolvida em sua Suma teológica. No que tange ao conhecimento, Tomás utiliza a metáfora da tábula rasa para se referir à condição inicial da alma huma- na: a mente é como uma página em branco, que se preenche com os conteúdos extraídos do mundo sensível. Os elemen- tos recepcionados pela experiência são transformados em conhecimentos conceituais pelo intelecto agente, com a luz natural da razão. Essa luz natural da razão consiste em uma faculdade natural do intelecto humano, e não em uma espé- cie de iluminação externa e sobrenatural. M OHAM ED OSAM A M OHAM ED ABDEL GHANY/DREAM STIM E.COM Para Tomás de Aquino, a mente humana é como uma página em branco. Nesses termos, compreende-se a tese da existência de Deus, pois se trata de uma inferência obtida pela razão com o exame dos fenômenos da natureza. Em outras palavras, inspecionando racionalmente os efeitos, os fatos do mundo, conclui-se pela existência da causa, Deus. Tomás de Aquino explicita essa tese com a apresentação de argumentos cla- ramente baseados na filosofia aristotélica, constituindo as cinco vias para a prova racional de existência de Deus. A primeira via é o argumento do movimento ou do primeiro motor. Segundo esse raciocínio, tudo o que se move transfor- ma-se na atualização de uma potência, é movido por algo que lhe é exterior. Sendo assim, no horizonte dos fenômenos do LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 6 PV 3D -1 8- 30 mundo, o que se move é conduzido por um movente – o que move algo – e esse movente, por sua vez, é movido por outro movente, em uma longa sucessão de relações. Seria logica- mente possível, então, expandir essa sequência regressiva- mente ao infinito, afirmando que um movente é, ele próprio, sempre movido por algo? A resposta é negativa, pois, para que exista essa complexa série de movimentos, é necessário existir um princípio movente que não seja ele próprio mutável: o primeiro motor imóvel. Esse primeiro motor imóvel é Deus. A segunda via, análoga à primeira, é o argumento da cau- salidade eficiente ou da causa primeira, referenciado nas re- lações de causa e efeito observadas no mundo. Nas relações de causalidade, um efeito é necessariamente antecedido por uma causa, e o que é causa para um efeito é, em igual me- dida, efeito de uma causa anterior. Essa complexidade das relações de causalidade sustenta-se na existência de uma causa primeira, que não é efeito, e da qual decorrem todas as relações de causa e efeito imanentes ao mundo. Essa causa primeira é Deus. A terceira via versa sobre os seres contingentes e o ser necessário. Esse argumento declara que os seres da nature- za são contingentes, isto é, podem ser e podem não ser, algo que é atestado por nossa experiência sobre a geração e a cor- rupção dos seres existentes. Porém, a existência do mundo requer um ser necessário, que jamais transita para o não ser e sem o qual não existiriam os seres contingentes. Esse ser necessário é Deus. Segundo Aquino, ao se admitir que, em algum tempo, nada existiu, deve-se admitir que nada exis- te, porque o nada gera nada. Assim, é necessário e forçoso admitir que há um ser que, por extrapolar a esfera do tempo, sempre existiu, e esse ser é Deus. A quarta via concerne aos graus de perfeição dos seres e ao ser perfeito. De acordo com esse argumento, há diferentes níveis de perfeição nos seres, o que nos permite afirmar, em uma perspectiva comparativa, que existem seres mais perfei- tos e seres menos perfeitos. Constata-se, assim, uma grada- ção de perfeição que procede de um parâmetro de absoluta perfeição, remetendo ao ser perfeito. Esse ser perfeito é Deus. Por fim, a quinta via caracteriza-se pelo sentido teleoló- gico, segundo o qual todosos seres do mundo possuem uma finalidade, sendo que até mesmo os seres incapazes de co- nhecimento agem conforme um fim que lhes é inerente, em sintonia com a ordem do Universo. Esse Universo rigidamente ordenado, em que todas as coisas são direcionadas a um fim, revela o governo de uma inteligência ordenadora. Essa inteli- gência ordenadora é Deus. 01. UFU-MG O texto que se segue refere-se às vias da prova da existência de Deus. As cinco vias consistem em cinco grandes linhas de argumentação por meio das quais se pode provar a existência de Deus. Sua importância reside sobretudo em que supõe a possibilidade de se chegar no entendi- mento de Deus, ainda que de forma parcial e indireta, a partir da consideração do mundo natural, do cosmo, entendido como criação divina. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 67. Com base no texto, marque a alternativa correta. a. As cinco vias são argumentos diretos e evidentes da existência de Deus. b. Tomás de Aquino formula as cinco vias da prova da existência de Deus, utilizando, sistematicamente, as passa- gens bíblicas para fundamentar seus argumentos. c. As cinco vias partem de afirmações gerais e racionais sobre a existência de Deus, para chegar a conclusões sobre as coisas sensíveis, particulares e verificáveis sobre o mundo natural. d. Tomás de Aquino formula as argumentações que provam a existência de Deus sob a influência do pensamento de Aris- tóteles, recorrendo não à Bíblia, mas, sobretudo, à metafísica do filósofo grego. Resolução Tomás de Aquino utiliza conceitos da filosofia aristotélica para demonstrar racionalmente a existência de Deus, com base na observação de seus efeitos no mundo. Deve-se observar que a utilização de conceitos da metafísica aristotélica não significa que o ponto de partida de Aquino, nessa tarefa, seja metafísico: é pela observação dos fenômenos físicos, efeitos, que esse filósofo pretende comprovar a existência de Deus. Alternativa correta: D APRENDER SEMPRE 28 A reflexão de Tomás de Aquino sobre a essência e a exis- tência conclui esta apresentação de seu pensamento. Para o filósofo, a essência diz respeito ao que algo é, possui dimen- são conceitual. Descrever a essência de alguma coisa, dizer o que é, não significa, contudo, declarar que, de fato, ela existe, pois a essência se diferencia da existência. Um exemplo sim- ples é imaginar a seguinte pergunta: o que é um ser humano completamente generoso? Se for apresentada uma resposta satisfatória, será possí- vel conhecer a essência de um ser humano completamente generoso. Ainda assim, pode-se acrescentar essa indagação: existe, realmente, um ser humano completamente genero- so? A constatação da essência de algo não oferece garantia quanto à sua existência. Tomás de Aquino não apenas destacou essa diferença en- tre essência e existência, como afirmou ainda que a essência LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 7 PV 3D -1 8- 30 precede a existência. Os seres contingenciais – o Universo, a natureza, os astros, os seres vivos – são originariamente es- sências presentes na vontade de Deus, que recebem sua exis- tência no ato da criação divina. E com relação a Deus? Seria correto dizer que a essência de Deus precede sua existência? Não, pois Deus não é um ser criado. É o ser necessário, perfeito e criador do mundo. Em Deus, a essência coincide com a exis- tência, ou melhor, Deus é pura existência. C. A polêmica dos universais A apresentação de algumas das teses de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino evidencia a persistência da prática fi- losófica em um universo cultural cristão. Ainda que condiciona- dos pelos fundamentos doutrinários do cristianismo, os temas referentes ao mundo e ao ser humano permanecem em sua condição de objetos de problematizações filosóficas. A filosofia resiste em sua natureza de atividade mobilizada por debates ra- cionais. Exemplar a esse respeito é a polêmica dos universais, intensificada com o surgimento das universidades medievais. Trata-se de uma discussão que se inicia na antiga filosofia grega e que envolve as articulações entre pensamento, lingua- gem e ser. A polêmica dos universais examina as relações con- ceituais entre os termos que designam uma multiplicidade de individualidades e essas individualidades em si mesmas. Quan- do, por exemplo, aplica-se a expressão “humanidade”, a inten- ção é referir-se a um conceito universal, portador de um núcleo comum a todos os seres humanos singulares ou, apenas para citar mais um exemplo, ao se usar a palavra árvore, muitas ve- zes, recorre-se a uma palavra que reúne as incontáveis árvores efetivamente existentes na natureza. A questão, então, é esta: esses termos são conceitos com realidade objetiva ou são sim- ples nomeações desprovidas de conteúdos reais? Em torno desse problema, desenvolvem-se, na filosofia medieval, três concepções: o realismo, o nominalismo e o realismo moderado. O realismo, cujo principal expoente é Guilherme de Champeaux (1070-1121), compreende os conceitos como realidades objetivas, originariamente situadas além das indi- vidualidades concretas, indivíduos estes que, aliás, seriam reproduções singulares de uma conceituação universal. Se- gundo esse ponto de vista, a humanidade – para retomar um dos exemplos escolhidos – é um conceito real e os seres hu- manos singulares são realizações específicas dessa realidade conceitual. Em sentido oposto, o nominalismo, que tem Ros- celin de Compiègne (1050-1125) entre seus representantes, entende que os termos universais são somente palavras sem conteúdo real, que não se referem com pertinência à realidade, pois o que realmente existe são as individualidades que efeti- vamente se observam no mundo. Sob essa ótica, humanidade é somente um termo convencional, destituído de relações ver- dadeiras com a realidade objetiva, porque o que, de fato, existe são os múltiplos seres humanos em sua vida concreta. O realismo moderado, defendido por Pedro Abelardo (1079-1142), é uma tese intermediária, segundo a qual as individualidades são compostos inseparáveis. Os elementos que formam os indivíduos, suas características universais e suas características singulares, não são objetivamente disso- ciáveis; eles existem concretamente nas composições indivi- duais. Entretanto, esses diferentes elementos são discernidos pelo intelecto humano que, mediante o procedimento da abs- tração, identifica os aspectos comuns das individualidades, os quais consistem, assim, em conceitos universais. 3. Caracterização inicial da filosofia moderna O que é a filosofia moderna? Uma interrogação dessa natu- reza não é satisfatoriamente equacionada por uma resposta di- reta e imediata, exigindo, isto sim, uma explanação mais longa, com o propósito de reconstituir os caminhos e as característi- cas que delimitam esse período do pensamento filosófico. A di- visão da história da filosofia em diferentes etapas é um proce- dimento didático utilizado pelos historiadores, com a intenção de destacar as modificações da atividade filosófica no curso do tempo e os traços minimamente comuns aos pensadores de épocas determinadas. Para tanto, consideram não apenas a história da filosofia, mas também as suas relações e corres- pondências com as transformações culturais, econômicas e políticas das sociedades humanas. Ao demarcarem um perío- do da filosofia, esses estudiosos não apresentam um panora- ma homogêneo, uma unidade teórica entre os vários autores, mas sim um núcleo comum de temas, reflexões e debates, no interior do qual se desenvolvem as controvérsias filosóficas. Dessa forma, mesmo reconhecendo a pertinência da per- gunta pela definição da filosofia moderna, é preciso resistir à inclinação de respondê-la imediatamente. É mais apropriado assumi-la como ponto de partida para a gradual identificação dos aspectos que contribuem para sua formação, das suas articulações com o universomais amplo da cultura, dos seus temas centrais e das suas principais tendências teóricas. A. Transformações socioculturais e filosofia moderna Alguns livros de história da filosofia registram o início pleno da filosofia moderna com o francês René Descartes (1596-1650) e sua conclusão com os textos do alemão Imma- nuel Kant (1724-1804). Ainda que as obras desses filósofos representem, respectivamente, o marco inaugural e a consu- mação do pensamento filosófico moderno, não são referên- cias temporais e conceituais rígidas. Muitos escritos filosófi- cos anteriores aos textos de Descartes distanciaram-se dos padrões filosóficos medievais e anunciaram reflexões tipica- mente modernas. Da mesma forma, estudos de filósofos pos- teriores a Kant prosseguem no âmbito da filosofia moderna. Assim, registra-se também a tendência de fixação dos limites cronológicos da filosofia moderna entre os séculos XV e XIX. O surgimento e a formação da filosofia moderna situam-se em um contexto histórico de profundas transformações das so- ciedades europeias, cujas origens localizam-se ainda na Baixa Idade Média (séculos XI a XV), com o Renascimento Comercial e o Renascimento Urbano, fenômenos socioeconômicos que, paulatinamente, desestruturaram os tradicionais vínculos feu- dais e proporcionaram relações sociais que, no curso do tempo, configurariam a modernidade. No plano sociocultural, foram de- cisivos os acontecimentos dos séculos XV, XVI e XVII, tais como o Renascimento Cultural, as Reformas Religiosas, a formação dos Estados Nacionais europeus e a Revolução Científica. As Reformas Religiosas do século XVI – luterana, calvinista e anglicana – removeram o monopólio institucional do catoli- cismo sobre o cristianismo na Europa Ocidental, instaurando uma pluralidade religiosa cristã de notável repercussão no campo da cultura. Na esfera política, a considerável fragmen- tação territorial do poder, característica da época medieval, foi substituída pela unificação do poder em bases nacionais e sob a forma do absolutismo monárquico. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 8 PV 3D -1 8- 30 O estabelecimento de novas religiões cristãs, com o con- sequente pluralismo do cristianismo, convergiu com a diver- sidade de discursos filosóficos na cultura moderna, à medida que tanto as concepções religiosas quanto as especulações filosóficas não se circunscreviam mais ao domínio absoluto do pensamento católico. Não se trata de afirmar uma relação de causa e efeito nem de dizer que as Reformas Religiosas são a causa da dissociação entre as teorias filosóficas e a doutrina católica, tampouco de sugerir que as novas religiões sejam um efeito das nascentes teses filosóficas modernas. Estamos re- gistrando, isto sim, um ponto de convergência e de influências recíprocas entre ambas: o pluralismo de ideias desafiando o tradicional domínio católico no plano sociocultural europeu. Já a formação dos Modernos Estados Nacionais europeus ensejou a retomada da política como problema filosófico rele- vante. Uma das questões centrais na filosofia clássica grega, a temática política praticamente desapareceu das escolas fi- losóficas helenísticas, passando a ocupar posição secundária na filosofia medieval. Ressurgiria como tema nuclear do pensa- mento filosófico na cultura moderna. Referência inaugural da filosofia política moderna, o livro O príncipe, do florentino Nico- lau Maquiavel (1469-1527), refletiu sobre as dificuldades de se promover a unificação política italiana e, sobretudo, iniciou uma forma original de pesquisa política, centrada no exercício do poder como virtude própria da política – e não na concepção da política como atividade dirigida à realização do bem comum. Em seu chamado realismo político, Maquiavel separou a ética do cristianismo, compreendendo a política como esfera exte- rior aos princípios morais vigentes nas demais relações sociais. Nas especulações políticas da filosofia moderna, pro- jetaram-se as teorias contratualistas de Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), assentadas na tese de que a socie- dade política é uma construção artificial da humanidade para superar uma original condição de natureza da humanidade. A filosofia de Hobbes implicava a defesa do Estado absolutista, di- ferenciando-se, contudo, das teorias que procuraram legitimar o poder absoluto dos monarcas, em sua suposta descendência divina, como representantes diretos de Deus em seus respecti- vos reinos. Hobbes confeccionou sua concepção de legitimida- de do poder absoluto do Estado com base em sua conceituação da natureza humana. A teoria contratualista de Locke, diferente- mente do ponto de vista filosófico de Hobbes, reconheceu como legítimas apenas as formas de sociedade política que prioriza- vam os direitos individuais e, nesse sentido, contestou o poder absoluto dos monarcas. Jean-Jacques Rousseau, em suas críti- cas à sociedade civilizada, denunciou as desigualdades sociais e propôs, como solução política para os acentuados problemas da civilização, um contrato social fundado na vontade geral. A filosofia política moderna prolongou-se no movimento fi- losófico iluminista do século XVIII, mobilizada pelas discussões acerca de aspectos temáticos como os direitos individuais, a liberdade, as razões das desigualdades sociais, a aspiração à igualdade, as formas de organização política, as relações entre Estado e sociedade, a noção de progresso, entre outras ques- tões sociopolíticas racionalmente examinadas. Quanto ao Renascimento Cultural e à Revolução Científica, estes são temas que merecem uma apresentação um pouco mais detida, uma vez que são densas as suas confluências com a constituição do pensamento filosófico moderno. A denominação Renascimento Cultural, aplicada ao movi- mento expresso nas realizações artísticas, nas modalidades de conhecimento, na filosofia e, em sentido abrangente, à mudança de mentalidade que atinge sua forma explícita no século XVI, indica sua proposta de ruptura com os parâmetros do pensamento medieval: sob o ponto de vista renascentista, a Idade Média consistiu em uma época obscurantista, na qual o poder social católico reprimiu as autênticas elaborações culturais dos seres humanos. Nesse horizonte, compreen- dem-se as características delineadoras do Renascimento, entre as quais destacam-se o antropocentrismo, o racionalis- mo e o naturalismo. Sempre que se evoca o tema do Renasci- mento, a imagem que imediatamente nos vem à mente é a dos grandes artistas plásticos e de suas mais famosas obras, amplamente reprodu- zidas e difundidas até nossos dias, como a Mona Lisa e a Última Ceia de Leonardo da Vinci, o Juízo Final, a Pietá e o Moisés de Michelangelo, assim como as inúmeras e suaves Madonas de Rafael [...]. Isso nos coloca a questão: por que razão o Renascimento implica esse destaque tão grande dado às artes visuais? [...] De fato, as artes plás- ticas acabaram se convertendo num centro de convergência de todas as principais tendências da cultura renascentista. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Atual, 1994. p. 25. Em oposição ao teocentrismo medieval, no qual as inter- pretações acerca do mundo e da humanidade foram regidas pela teologia católica, o antropocentrismo renascentista insta- lou o ser humano no centro de suas reflexões. Essa postura não significa, necessariamente, a negação da crença em Deus, mas o deslocamento da ênfase reflexiva para as possibilidades do ser humano, acompanhada da confiança em sua capacidade de criação e de ação sobre o mundo. De maneira resumida, é correto dizer que a cultura renascentista tendeu à valorização daquilo que de divino existe na humanidade. Essa perspectiva antropocêntrica se expressa nitidamen- te no pensador renascentista Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), que, em seu texto intitulado Discurso sobre a dignidade do homem, afirma que o criador concebeu o ser hu- mano comuma natureza indefinida. Sublinha, desse modo, a humanidade como artífice de si mesma, ou seja, não se fixan- do em uma precisa natureza por Deus, ao ser humano é con- ferida a prerrogativa de construir seu próprio ser em escolhas que podem rebaixá-lo ao nível das bestas ou elevá-lo ao plano celestial. Para Della Mirandola, diferente dos animais, cujo com- portamento é prescrito de forma rígida pela natureza que lhes foi impressa pela providência, o ser humano é um ser ontologi- camente indeterminado, que, portanto, traz em si a presença do divino. Para além do que é puramente dado, não se resume à simples criatura, sendo ele próprio, à semelhança de Deus, um criador, em condições de elaborar sua natureza em consonân- cia com sua vontade. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 23 9 PV 3D -1 8- 30 O antropocentrismo, então, identifica a humanidade como uma criatura especial no conjunto dos seres vivos, capaz de conhecer racionalmente a realidade e de modificar a nature- za em conformidade com seus interesses. Esse humanismo renascentista intersecciona-se, assim, com o racionalismo e com o naturalismo. O termo racionalismo, neste momento, não deve ser confundido com a postura gnosiológica para a qual os conhecimentos humanos são inatos, baseiam-se em ideias originariamente presentes na mente humana. Nos do- mínios da teoria do conhecimento, a filosofia moderna com- porta também filósofos racionalistas como aqueles segundo os quais os sentidos são a fonte do verdadeiro saber – os empiristas. Ao nomear o racionalismo como um dos traços es- senciais da cultura renascentista, há referência à convicção de que os seres humanos podem conhecer a realidade com o uso de sua intelectualidade, combinando a razão e a observa- ção dos fenômenos, sem recorrer a suposições sobrenaturais. O racionalismo renascentista preconiza a emancipação do saber racional em relação à teologia cristã. O pensamento medieval atribui importância à razão, mas a submete ao pri- mado da fé – as filosofias de Agostinho e de Tomás de Aquino conjugam saber racional e saber revelado sob a primazia deste último. O humanismo renascentista, por seu turno, rei- vindica a completa autonomia da razão em relação aos dog- mas teológicos, entendendo que o conhecimento humano da realidade natural deve se pautar pela observação racional do mundo em si mesmo, com o que se define o elemento natura- lista do Renascimento Cultural. O naturalismo define-se pela valorização do ser humano como ser natural e da própria natureza em sua totalidade, a despeito da existência de princípios sobrenaturais de susten- tação do mundo. No tocante ao saber, o naturalismo caracteri- za-se pelo empenho em revelar as leis que regem os fenôme- nos naturais, em que o conhecimento de suas regras permite à humanidade o desenvolvimento de técnicas que ampliem e intensifiquem o seu domínio sobre a própria natureza. O universo cultural renascentista lança os fundamentos da cultura moderna e, em seu interior, associada às trans- formações socioeconômicas que conduzem a transição das relações feudais para o capitalismo, processa-se a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII. Com ela, surge uma forma de conhecimento que assumiu importância central nas socieda- des humanas: a ciência moderna. B. Revolução Científica e filosofia moderna Da Antiguidade grega aos primeiros tempos da Era Mo- derna, a filosofia consiste na investigação racional dos dife- rentes aspectos da realidade, ou seja, compreende a totali- dade dos chamados saberes científicos. Filosofia e ciência são, então, sinônimos. Essa situação se modifica com a con- solidação da ciência moderna, que, com a definição de seus métodos específicos, diferencia-se da especula ção filosó- fica. Demarcam-se, assim, fronteiras entre o conhecimento filosófico e o conhecimento científico, ao mesmo tempo que se estabelece um permanente diálogo entre filosofia e ciên- cia, extensivo à atualidade. Afinal, o que é a ciência moderna? Comparando o moder- no conhecimento científico com a cultura católica medieval, nota-se a substituição das narrativas teológicas por efetivas pesquisas dos fenômenos naturais. A ciência pretende expli- car a natureza com base em regras encontradas na própria natureza, recusando-se a simplesmente aceitar os dogmas católicos sobre o mundo. Distinguindo-se dos dogmas cris- tãos, o saber científico não se baseia na autoridade religiosa, caracterizando-se pela postura dialógica, ou seja, aberta às divergências e às confrontações de teses, em seu compro- metimento com a busca de um conhecimento alicerçado em evidências que devem ser acolhidas pela razão. ANNA RASPOPOVA/DREAM STIM E.COM As relações entre filosofia e ciência moderna impõem o exame de importantes questões referentes ao conhecimento. Quanto à sua abertura às críticas e à sua proposta de um conhecimento racionalmente examinado, a ciência moderna identifica-se com a filosofia. Afinal, essas são características essenciais da filosofia, desde suas origens gregas. Entre- tanto, diferentemente da filosofia, a ciência moderna possui caráter mais prático, o que significa dizer que o moderno conhecimento científico possui, em comparação com o viés contemplativo da filosofia, uma dimensão, sobretudo, prática. A indicação de dois aspectos é suficiente para entender essa afirmação. De forma distinta da ciência antiga e medie- val, ou melhor, da filosofia, a ciência moderna desenvolve suas teorias amparada em observações sistemáticas dos fenômenos, com a realização de experimentações, mensu- rações e repetições de situações. Isso não quer dizer que a filosofia recuse a observação dos fatos do mundo. Basta re- cordar as incontáveis observações de Aristóteles acerca dos eventos naturais e dos seres vivos para constatar que essa é também uma preocupação da pesquisa filosófica. O que a ciência moderna efetua é a observação sistemática, metódi- ca e experimental com a qual se processa o teste empírico de suas hipóteses: a busca de conhecimentos justificados em demonstrações práticas. O viés prático da ciência moderna evidencia-se ainda em sua associação com a ambição humana de interferir nos processos naturais, transformando a natureza em benefício da humanidade, isto é, reivindicando a utilização do conhe- cimento da natureza para o desenvolvimento de tecnologias que contemplem as ambições humanas. Na ciência tradicio- nal – a filosofia pré-socrática, por exemplo –, a tentativa de conhecer o Universo e a natureza não se vincula a nenhum projeto de domínio humano sobre o meio natural. LI VR O DO P RO FE SS OR CA P. 3 FI LO SO FI A 58 1 24 0 PV 3D -1 8- 30 As relações entre ciência moderna e controle humano sobre a natureza desenvolvem-se no interior de um comple- xo processo histórico, muitas vezes resumido, na linguagem socioeconômica, como a transição do feudalismo para o ca- pitalismo. É interessante também registrar que os seus des- dobramentos históricos são, na atualidade, bastante discu- tíveis, como os desequilíbrios ambientais contemporâneos, para mencionar apenas um exemplo a esse respeito. Dessa forma, nota-se que entre a ciência antiga e a ciência moderna não há simplesmente uma relação de con- tinuidade. É certo que ambas se delineiam como pesquisas racionais da natureza e que muitos estudiosos identificam na ciência antiga o ponto de partida da ciência moderna. Po- rém, o conhecimento científico moderno constitui-se com uma metodologia original, que conjuga o exame racional dos fenômenos com práticas de experimentação e de verificação empírica de hipóteses. Além disso, desenvolve-se em um ho- rizonte cultural orientado pela pretensão humana de interferir sistematicamente nos processos naturais. Entre os protagonistas dessa Revolução Científica, des- taca-se o italiano Galileu Galilei (1564-1642). Professor e pesquisador extremamente dedicado, Galileu notabilizou-se por algumas iniciativas que desafiaram preconceitos
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