Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O PLANO INFERENCIAL DE LEITURA E O ENSINO DE ESPANHOL NA ESCOLA BRASILEIRA: COGNIÇÃO DISTRIBUÍDA, POLÍTICAS COGNITIVAS E LIVRO DIDÁTICO DIEGO DA SILVA VARGAS Rio de Janeiro 2017 171 CAPÍTULO 4: A LEITURA INTEGRATIVA E O PLANO INFERENCIAL DE LEITURA Como aponta Kastrup (2012, p.59), a suspensão de uma política de recognição ou a invenção de práticas de descontrução ou deslocamento dessa política nos obriga a colocar outras práticas no lugar. Tal tarefa não é simples, uma vez que o modelo da recognição “é um modelo que nos puxa sempre e a resistência tem que ser constantemente reiterada. O caminho tem que ser feito dia a dia, como um desafio permanente. Por isso, a formação inventiva vai se fazendo o tempo todo, sem ter um resultado pronto”. Assim, torna-se urgente a busca por práticas escolares que fomentem políticas de invenção e que, portanto, reconheçam uma visão de cognição como distribuída e de aprendizagem como invenção de problemas. Essa aprendizagem deveria ser construída, na escola, através da integração conceptual entre o que o aluno já sabe e as informações novas que a escola traz. Em função disso, neste capítulo, me dedico a tratar especificamente do problema do ensino de leitura e de possíveis caminhos para sua reconstrução. Acredito que essa seja uma contribuição fundamental não apenas para o ensino de língua espanhola na escola pública brasileira, mas também para o ensino de qualquer disciplina em qualquer etapa da educação básica, uma vez que a leitura permeia toda e qualquer atividade escolar. Assim, inicio este capítulo apresentando um breve panorama de como o ensino da leitura vem sendo tratado pela escola brasileira, às vezes, apresentando-o de forma mais geral, às vezes, apresentando-o especificamente ao que apontam os trabalhos sobre o ensino de espanhol em situação escolar. Em seguida, apresento, então, a proposta de visão de leitura integrativa, acreditando que ela pode nos oferecer um suporte para a compreensão do processo de construção de significados durante a leitura. Assim, acredito também que ela pode embasar a proposição de caminhos didáticos para melhorar o ensino de leitura na escola, de forma que ele possa contribuir efetivamente para o desenvolvimento dos alunos como leitores amadurecidos e críticos em relação ao que leem. Tal concepção me leva à seção seguinte em que apresentarei o plano inferencial de leitura e sua articulação com as necessidades de mudança para o tratamento da leitura na escola brasileira. Assim, perpassando os estudos em metacognição, apresento, ao 172 final, uma visão de ensino de leitura baseada na ideia de cognição distribuída e pensada especificamente para o tratamento do plano inferencial de leitura, que deveria ser trabalhado de forma inventiva em sala de aula. 4.1. Problemas do ensino de leitura no Brasil No capítulo anterior, ao tratar do tema das políticas cognitivas e de sua articulação com o uso dos livros didáticos em sala de aula e com a trajetória histórica da disciplina língua espanhola na escola brasileira, já foi possível estabelecer, de alguma maneira, uma visão panorâmica de como a escola brasileira enxerga a aprendizagem e, consequentemente, o ensino. Neste capítulo, foco especificamente na leitura, sem ignorar que ela representa, em um pequeno – mas essencial – nível, essa visão mais ampla. Nesta seção, especificamente, trago, então, alguns estudos que já discutiram o ensino de leitura na escola brasileira, seja em língua portuguesa, seja em língua espanhola, uma vez que entendo, como os próprios PCN apontam, que o ensino de leitura é um só, e que as habilidades desenvolvidas em uma língua são levadas a outra. Antes de tudo, é importante ressaltar que estudos que levantam críticas em relação à forma como a escola ensina a leitura são diversos desde muito tempo. No Brasil, eles se reproduzem de maneira intensa, desde especialmente os anos 80 (KATO, 1990). Minha intenção com essa seção é apenas recolher alguns desses estudos que tenham alguma relação mais direta com o objeto desta tese, retomando e dando prosseguimento à pesquisa desenvolvida em Vargas (2012a), quando, por exemplo, identifiquei que, em livros didáticos de língua portuguesa, não existe de fato um ensino de leitura e que, ainda que se apresentem textos de qualidade, as atividades de leitura neles apresentadas são de nível relativamente baixo. De forma geral, o que se nota é que a vasta produção acadêmica sobre o trabalho escolar com a leitura não conseguiu ainda se efetivar em mudanças concretas na realidade da sala de aula, dessa maneira, se veem, demonstrações diversas do “insucesso das propostas de letramento escolar” (ROJO e BATISTA, 2003, p.9). Entre outros fatores, sobre isso, diversos trabalhos, a partir de diferentes linhas teóricas, já revelaram que o trabalho em sala de aula não propicia que os estudantes entendam que ler é um processo que exige a participação ativa dos leitores (BOTELHO, 2010; 2011; 2015; BRANDÃO e MARTINS, 2003; CARNEIRO et al., 2015; COSTA, 2011; DELL’ISOLA, 1997; FERREIRA, 2012; FULGÊNCIO e LIBERATO, 1996, 2003; 173 GERALDI, 2003; GERHARDT, 2006b; 2013; 2014; GERHARDT, ALBUQUERQUE e SILVA, 2009; GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015; GERHARDT e VARGAS, 2010; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001, 2010; MARCUSCHI, 1996; PIMENTA, 2006; ROJO, 2003; ROJO e BATISTA, 2003; TOMITCH, 2000; VARGAS et al., 2011; VARGAS, 2011; 2012a; 2012b; 2013). De modo geral, o que se nota é que a leitura ainda se encontra em um lugar difuso dentro das aulas de língua portuguesa ou de línguas estrangeiras na escola brasileira. Esse lugar difuso, como apontei em Vargas (2012a), se deve justamente à contradição que se estabelece entre o que agora podemos chamar de políticas cognitivas que embasam a estrutura escolar e o que é a leitura como prática social. Como denuncia Geraldi (2003, p.117), a escola, em oposição ao fazer científico, busca sempre a sistematização, a regularidade, a padronização: a instituição escolar, incapaz de tolerar tais idas e vindas, porque adepta de uma forma de conceber o conhecimento como algo exato e cumulativo, pretensamente científico, não pode abrir mão de, didaticamente, tentar ordenar e disciplinar esta aprendizagem (GERALDI, 2003, p.117). Nesse sentido, é possível afirmar que a escola desenvolve práticas reprodutoras. Em função disso, o trabalho com a leitura acaba se dando de forma difusa, posto que não caberia nesse modelo. Assim, a realidade do ensino de leitura acaba se construindo de outra maneira, uma vez que não há qualquer sistematicidade em relação a ele: A assistematicidade que se apresenta no contexto escolar em relação ao desenvolvimento da leitura ao longo das etapas escolares pelas quais o estudante passa acaba por revelar a quebra de um padrão, justamente porque não se consegue, mantendo os padrões vigentes, fazer um trabalho que desenvolva as capacidades leitoras de seus alunos (VARGAS, 2012a, p.41). Além disso, como apontam Rojo e Batista (2003, p.117), as atividades de leitura, de forma geral, não conseguem “explorar satisfatoriamente aspectos linguístico- discursivos cruciais para a construção da leitura” (ROJO e BATISTA, 2003, p.117), o que gera uma leitura superficial em relação aos temas abordados nos textos (ROJO, 2003). Essas questões acabam não contribuindo para o desenvolvimento das capacidades dos alunos, uma vez que, de modo geral, “o aluno passeia pelo texto em sua superfície em busca das respostas que satisfarão não a si, mas à aferição de leitura que o livro didático e o professor podem vir a fazer” (GERALDI, 2003, p.170). 174 Acabam, assim, sendo priorizados “os trabalhos temático e estrutural ou formal sobre estes [os textos], ficando asabordagens discursivas ou a réplica ativa em segundo plano” (ROJO e BATISTA, 2003, p.19-20). Como destaca Botelho (2015), ao ensinar a leitura através de uma concepção de texto como produto acabado e como repositório de informações, a escola, metonimizada pelo livro didático (VARGAS, 2012a), acaba não contribuindo para a realização de uma leitura criativa, reflexiva ou mesmo para que os alunos construam significados a partir do que leem: “as atividades desses materiais formam um leitor que não atua sobre o texto e que não constrói reflexões sobre o que leu, mas que aprende somente a reproduzir informações que o texto lhe transmite e que não interpreta de forma autônoma a partir do que leu” (BOTELHO, 2015, p.31). Apresenta-se, assim, o reforço de uma visão recognitiva de aprendizagem da leitura, já que o texto é tomado como dado e o aluno não é encarado como capaz de produzir significados ao interagir com ele. Portanto, nota-se que o aluno como produtor de significados também não existe nas aulas de leitura, sendo o seu papel apenas reproduzir os significados dados pelo texto e confirmados pelo professor ou pelo livro didático. Assim, em resumo, não se reconhece “a leitura como uma ação que envolve a participação ativa da pessoa que lê na construção dos significados” (GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015, p.181). Essa visão reprodutora é claramente demonstrada quando se observa que não há, nas atividades de leitura, a apresentação para os alunos de objetivos claros para sua realização (BOTELHO, 2015; GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015). Tampouco se apresentam atividades que reconheçam os conhecimentos prévios dos alunos como relevantes para o desenvolvimento da leitura (BOTELHO, 2015). Como denuncia Botelho (2015, p.21), “Não considerar o conhecimento prévio dos alunos como parte relevante para realização da atividade de leitura deriva de um modelo de educação em que os saberes dos alunos não são convidados a participar do processo de aprendizado escolar”. Esses dois dados revelam a pouca importância que é dada ao aluno-aprendiz durante o processo de ensino. A consequência, como apontei em Vargas (2012a), dessa situação de ensino de leitura na escola é que esse tipo de prática, que coloca o aluno- leitor no lugar de mero decodificador de signos linguísticos e reprodutor de ideias apresentadas por outros, encaminha esses aprendizes a um entendimento de leitura 175 como simples tarefa mecânica de seleção de informações. Dessa forma, na escola, de maneira absurda, obtém sucesso o aluno que se nega a “mergulhar” no texto e a recriá- lo. Neste caso, a leitura singular, denotativa, parafrásica é o padrão comparativo utilizado pelo sistema escolar pelas “vantagens” que proporciona, tais como: a facilidade de correção por parte do professor, a superficialidade não reflexiva que gera alienação e a manutenção de estratificação social (DELL’ISOLA, 1997, p.56). Considerando o panorama apresentado no capítulo anterior, não se pode ignorar que essa é uma política cognitiva que se apresenta muito fortemente na escola brasileira. Assim, o mais grave é que, como se trata, então, de uma política cognitiva efetivada nas salas de aula, além do aprendizado da leitura como tarefa mecânica de seleção de informações, há aí outra aprendizagem, que se dá no plano meta: a ideia de que aprender é reproduzir e que, ao aprendiz, que não tem nem é capaz de construir qualquer saber relevante, só cabe, portanto, repetir as informações que recebe: porque os temas destas interlocuções são constituídos como “conteúdos de ensino” prontos, acabados, aos quais cabe ao aprendiz “aceder”; porque a interlocução de sala de aula se caracteriza mais como “aferição” de incorporação do que já estava pronto, acabado; porque os sujeitos envolvidos se sujeitam às compreensões do mundo que se lhes oferecem na escola (GERALDI, 2003, p.8). Esse modelo de leitura apresentado anteriormente e massivamente desenvolvido no espaço escolar, mais do que ensinando conteúdos aos alunos, estão atuando muito fortemente na construção de sentidos sobre qual é a verdadeira natureza da leitura. Como destaca Geraldi (2003), a Escola se converteu em um lugar de certezas e, mais que isso, de reprodução dessas certezas. Não há espaço para dúvidas, erros e, muito menos, para a construção de conhecimentos, uma vez que tudo se apresenta como produto. Os processos, dessa forma, são ignorados e inexistem. Essa visão também acaba conceptualizada pelo aprendiz que, no papel de aluno, em sala de aula, aprende que é assim que se constrói o conhecimento e assim que se desenvolve a leitura: através da reprodução do que já é certo, do que está escrito. O aprendiz aprende, então, que ele não é alguém que possui saberes e experiências relevantes e que tampouco pode construir qualquer tipo de conhecimento. Neste sentido, não apenas o professor se despersonaliza na relação institucional que mantém com o aluno – este também se dessujeitiza e se minimiza, preocupando-se mais em atender a um sistema de avaliação que infere e incorpora ao longo da sua existência como estudante, do que propriamente em formar-se como pessoa por meio 176 da compreensão plena dos conteúdos e da expressão das suas próprias ideias (GERHARDT, 2006b, p.1184-1185). Com esse modelo de interação, em que alunos, professores e objetos de aprendizagem são pré-existentes à interação que constroem em sala de aula e em que o foco está na reprodução de um conteúdo escolarizado, obviamente, não há espaço para que o professor entenda efetivamente as necessidades de seus alunos e trabalhe, com base nelas e a partir delas. Em relação à leitura Gerhardt, Botelho e Amantes (2015, p.182) destacam que: as atividades escolares, por não promoverem a leitura como ação cognitiva plena, não permitem a professores e alunos compreender as capacidades destes últimos como leitores, nem identificar eventuais dificuldades de leitura para saná-las em atividades posteriores. Tudo isso se resume no que, em Gerhardt e Vargas (2010, p.153), apresentamos com uma lista de “premissas equivocadas” sobre o ensino de leitura: 1. Saber ler é saber repetir/transcrever material explícito do texto; a leitura inferencial não é identificada como tal. 2. Na falta de parâmetros objetivos para a avaliação em leitura, aceita- se toda resposta que for oferecida numa dada atividade; 3. Ou, ao contrário, aferra-se ao gabarito do livro ou outro material disponível, tido como certo, e tratam-se como erradas as respostas diferentes; 4. Não se consideram os saberes prévios do aluno na leitura de um texto, os quais poderiam levar à compreensão sobre como ele elabora suas respostas; 5. As aulas de leitura (e também de escrita) são completamente apartadas das de gramática, o que demonstra falta de percepção de que, nos textos, os conteúdos estruturais tratados nos estudos gramaticais estão sendo efetivamente usados, e poderiam ser explorados nas atividades de leitura e produção textual. Todas essas premissas revelam como o ensino de leitura é atravessado, nas escolas, por políticas de recognição. Alunos e textos são tomados como dados, sem que possam ser transformados ao se integrarem para a construção de novos sentidos. Não se considera sequer que novos sentidos possam ser construídos através da atividade de leitura. Com base nesse panorama, este capítulo busca, então, propor caminhos para o ensino de leitura com base nos pressupostos que foram apresentados no capítulo anterior. Como inspiração, pego o questionamento proposto por Dias e Scheinvar (2012, p.150): “Seria possível experienciar e fazer aulas menos explicativas e mais problematizadoras em um tempo como o nosso, em que tudo já vem muito pronto e sob um regime de controle?”. Assim, me pergunto: seria possível pensar um ensino de 177 leitura que fugisse da reproduçãoe se voltasse para a formação de leitores críticos, reflexivos, autônomos? Seria possível superar as “premissas equivocadas” (GERHARDT e VARGAS, 2010) em que se baseiam as atividades escolares de leitura? Acredito que sim e que a educação está nesse movimento, posto que, como aponta Rajagopalan (2006, p.161), está ganhando cada vez mais adeptos a ideia de que, na hora de planejar o currículo e de elaborar a metodologia do ensino de línguas, é preciso valorizar e levar em conta o conhecimento que os próprios aprendizes já possuem e empregam como um dos fatores importantes na tarefa de aprender. É essa ideia que move tendências recentes como: educação com fins emancipatórios (empowerment education), ensino reflexivo (reflective teaching) etc. Dessa maneira, torna-se urgente o resgate do “saber do aluno como elemento constitutivo da elaboração pedagógica e didática, favorecendo o aprendizado e provendo a necessária construção da autonomia das pessoas como produtoras de significados linguísticos na vida pública” (GERHARDT, 2013, p.82). Só dessa forma é possível romper com a lógica denunciada em, entre outros, Soares (2005) e Moita Lopes (1996), de que os alunos de classes populares nada teriam a contribuir para o ensino, uma vez que seriam menos aptos intelectualmente ou pertenceriam a uma cultura menor e/ou porque não teriam aptidão para o aprendizado de línguas estrangeiras. Nessa perspectiva, para Rajagopalan (2006, p.162), há também outra ruptura com o próprio campo teórico, posto que “a atitude de respeitar o ponto de vista do discente contrasta de forma gritante com orientação da linguística teórica, segundo a qual o leigo nada teria a ensinar ao perito”. Buscando somar forças a essas perspectivas de ensino, considero que a transformação em direção a uma mudança efetiva em relação ao ensino de leitura, baseada nas questões postas anteriormente, passa pela construção de outra concepção de leitura e, consequentemente, de ensino de leitura. Essa outra concepção, defendida aqui nesta tese, será apresentada nas próximas seções deste capítulo. 4.2. Da leitura interativa à leitura integrativa Tradicionalmente, os estudos em leitura têm apresentado, quase sempre em uma linha temporal, três visões sobre como se dá o processamento da informação pelo sujeito leitor. Predominantemente encarando-a como um processo no qual leitor e texto participam com igual responsabilidade, tais estudos consideram duas dessas visões 178 como ultrapassadas e postulam uma terceira visão, na qual busca-se articular as duas anteriores. Assim, opõe-se uma visão denominada de interativa a duas outras visões que se opõem entre si e que corresponderiam aos dois tipos básicos de processamento da informação: a hipótese top-down ou descendente e a hipótese bottom-up ou ascendente (CORACINI, 2002; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001). A hipótese bottom-up deriva de uma visão estrutural e mecanicista da linguagem. Tal hipótese toma o texto, ou seja, a informação visual 71 como fonte única de sentido para o leitor. Assim, por meio de um processamento exclusivamente ascendente, o leitor faria um uso linear e indutivo das informações visuais, construindo o significado a partir da síntese do significado das partes. A leitura seria entendida, então, como um processo mecânico e serial que começaria pela verificação de um elemento escrito para que, a partir dele, se mobilizem outros conhecimentos de forma que, passivamente, o leitor possa restaurar o sentido original do texto (CORACINI, 2002; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001). A hipótese top-down, derivada de uma primeira geração de estudos da psicologia cognitiva voltados para a compreensão leitora, vê o texto como um objeto indeterminado e incompleto. Por isso, no ato de leitura, o leitor seria a fonte única do sentido, acionando esquemas cognitivos que atuariam como padrões para o entendimento das coisas. O processo de leitura seria um jogo de adivinhações e o texto atuaria como mero confirmador de hipóteses. Desse modo, de forma descendente, o leitor processa o texto não linearmente, fazendo o uso intensivo e dedutivo da chamada informação não visual (ou conhecimento prévio), ou seja, de tudo o que não aparece explicitamente no texto, partindo da macroestrutura para a microestrutura e da função para a forma (CORACINI, 2002; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001). Nesse sentido, pode-se perceber que as duas visões constituem modelos de recognição, posto que, na primeira delas, temos o predomínio de um texto que já chega pronto para o leitor e, na segunda, o predomínio de um leitor que, igualmente, chega pronto para o texto. Nenhum dos dois se altera ao entrarem mutuamente em contato. A terceira hipótese não necessariamente se vincula a um modelo inventivo de cognição, 71 A informação visual é tratada aqui como toda informação explicitamente apresentada na linearidade do texto. Ela pode ser reconhecida pelos olhos, no caso de videntes, ou pelo tato, no caso de leitores cegos. 179 uma vez que também pode apontar para a existência prévia de sentidos antes da interação que se estabelece entre texto e leitor, entretanto, nos auxilia na construção dessa visão. Ela foi definida posteriormente, quando os teóricos da leitura perceberam que essas duas visões isoladamente não conseguem representar completamente o processo de construção de significados pelo sujeito leitor no ato de sua leitura. Assim, articulando as duas anteriores, passou-se a se defender a existência de um processamento interativo – a um só tempo top-down e bottom-up –, de forma que se vê a compreensão de um texto como ocorrendo por meio da interação entre experiências prévias (conceitos linguístico-culturais recuperados pelo leitor) e o texto. Não nego que, de fato, a leitura se dá pela realização a um só tempo desses dois movimentos e que, portanto, há uma interação entre texto e leitor no ato da leitura. Entretanto, a partir da perspectiva que busco construir nesta tese, derivada da articulação desses pressupostos a estudos mais recentes, acredito que uma concepção de leitura que a toma como um processo interativo não seja suficiente, uma vez que ela simplifica excessivamente os processos cognitivos envolvidos no ato de ler, reduzindo- os a dois movimentos opostos (ascendente e descendente) e dificultando, assim, as possibilidades de intervenção em relação ao ensino. Como aponta Gerhardt (2010, p.257): a sua adoção não é suficiente para que possamos defini-lo como base processual do aprendizado em termos cognitivos, porque, restrito à movimentação de informações entre a mente e o contexto, esse modelo não dá conta de incluir – quanto mais de definir como se constitui e do que se constitui – o estatuto do novo conceito formulado pela mente e de como ele se relaciona com os conceitos que servem de input para a sua formação, para que se atrelem, em um só esquema estrutural, fontes, processo e resultado (GERHARDT, 2010, p.257). Além disso, a busca pela construção de outra concepção ajuda a resolver também o problema que a nomenclatura “leitura interativa” (também denominada de interacional 72 ) traz, posto que vem sendo utilizada por diferentes correntes teóricas. Desse modo, os diferentes usos do termo acabam por esconder diferenças substanciais entre eles, podendo, inclusive, referir-se a diferentes tipos de interação: leitor-texto, 72 O fato de que muitos trabalhos, inclusive, apresentam os dois termos como semelhantes é uma evidência dessa falsa polissemia do termo “leitura interativa”. 180 leitor-autor, autor-texto-leitor. 73 Com base nisso, busco, então, nesta seção, definir essa perspectiva que estounomeando de “leitura integrativa” (ou de “leitura como processo integrativo”) e mostro, em seguida, como o processo de construção de inferências pode ser uma evidência dessa concepção, surgindo, inclusive como uma possibilidade concreta de intervenção na formação de leitores em ambiente escolar. Inicialmente, cabe destacar que, dentro dessa concepção, a leitura é vista como um processo (ou como a integração de processos) e não como um produto, resultado da extração de significados do texto pelo leitor. Assim, alinhando-me tanto aos pressupostos apresentados no capítulo 2 desta tese como a uma concepção de cognição como invenção, nego qualquer concepção que parta da ideia de que os significados construídos ao longo de uma leitura existam anteriormente ao processo de integração do leitor com o que lê. Dentro dessa perspectiva, o significado é visto como construído on line e real time, ou seja, no momento da interação, de forma negociada e ajustada. Isso nos leva a “observar o significado de forma dinâmica, ou seja, como construção e articulação entre experiências, habilidades, conhecimentos e processos” (GERHARDT, 2006a, p.1). Como dito anteriormente, essa concepção não nega o fato de que haja uma real interação entre leitor e texto, ou entre a informação visual e os conhecimentos prévios do leitor durante o processamento da leitura. Acredita-se, inclusive, que essa ideia tem seu respaldo na fisiologia do cérebro humano, uma vez que ele não é capaz de processar toda a informação visual alcançada pelos olhos, o que tomaria muito tempo (FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003). Entretanto, embora não negue a ideia de que o processamento da leitura exija do leitor previsões e saltos de parte da informação a ser processada, gastando, assim, menos tempo e menos esforço cognitivo, como apontam os estudos psicolinguísticos clássicos, uma concepção integrativa concebe que os conhecimentos do leitor e as informações do texto se integram para o surgimento de novos conhecimentos porque essa é a natureza da cognição humana. Com base em importantes textos responsáveis pela divulgação de uma primeira visão sobre os aspectos cognitivos e psicolinguísticos da leitura no Brasil (KATO, 1990; 73 É interessante observar que, por exemplo, encontrei em Coracini (2002), uma proposta de também construir uma visão própria de leitura, denominada de leitura como processo discursivo, com base em seus pressupostos teóricos, e que essa visão também foi usada em trabalhos posteriores, de outros autores, em conjunto à noção de “leitura interativa (ou interacional)”, o que nos revela a importância desse movimento de singularização teórica, mas também a dificuldade de evidenciá-lo a possíveis leitores. 181 LEFFA, 1996; KLEIMAN, 2001; 2010; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003, entre outros), sabe-se o leitor retém apenas o conteúdo semântico construído, abandonando a forma literal apresentada na informação visual. Além disso, sabe-se também que todo o processo de leitura é seletivo e, portanto, individual, pois, como não percebemos tudo o que vemos, cada um de nós tem uma percepção única de um mesmo objeto. Postula-se também, nesses estudos, a existência de uma memória intermediária (consciousness ou estado de consciência), na qual se focalizam as partes do conhecimento geral do leitor necessárias para o entendimento de novas informações. Nela, parte da informação velha, o conhecimento prévio, é focalizada, e a informação nova é introduzida para a construção de novos significados. Isso só seria possível porque os nossos conhecimentos se organizam em esquemas cognitivos, que podem modificar-se, aumentando ou alterando-se, conforme novas informações são aprendidas. Portanto, os estudos psicolinguísticos clássicos fundantes de uma visão interativa de leitura já apontavam para o fato de que, para que a leitura seja construída, é necessário que o leitor tenha conhecimentos para serem ativados, de modo que ele possa receber a informação nova e compreendê-la. Nesse sentido, já se chamava a atenção para o papel fundamental do conhecimento prévio do leitor no desenvolvimento de sua leitura. Kleiman (2010, p.13) chega, inclusive, a apontar que “sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão”. Parto, então, desses estudos para buscar compreender processualmente como essa interação, posteriormente posta como integração, se dá, entendendo que, como destacado no capítulo anterior, Qualquer que seja o modelo processual proposto, ele deverá reconhecer a relação de mão dupla entre a pessoa que cogniza e o universo à sua volta, num fluxo contínuo de informação em ambos os sentidos, e não supor que o ser humano apenas recebe passivamente as informações, sem atuar sobre a construção do significado (GERHARDT, 2010, p.256). Com base, então, em pressupostos mais recentes, apresentados no segundo capítulo desta tese, é possível observar que nossos conhecimentos estão organizados, em nossa mente, em saberes acumulados e se relacionam e se manifestam na interação por meio de saberes processuais, que permitem a utilização desses saberes para a formação de outros (DUQUE e COSTA, 2012; GERHARDT, 2006a; 2010; MIRANDA, 2001). A partir disso, pode-se entender que, na leitura, o leitor integra a 182 informação recebida do texto aos seus saberes acumulados, por meio dos processos cognitivos que constituem os saberes processuais. Assim, o conhecimento prévio é entendido como todo o conhecimento que o leitor tem e que é ativado no momento da leitura (cf. BOTELHO, 2011, 2015; GERHARDT, ALBUQUERQUE, e SILVA, 2009). O conhecimento prévio se torna, assim, “um conceito fundamental à compreensão e exploração estratégica da leitura, tendo em vista que (...) é possível ler melhor a partir do olhar sobre aquilo que já conhecemos” (BOTELHO, 2015, p.16). Isso implica que, muito embora algumas previsões possam ser feitas sobre como um determinado texto será lido, cada pessoa lerá um texto de uma forma que lhe é absolutamente pessoal; por isso, não haverá nunca duas pessoas que leiam um texto de maneira igual (GERHARDT, ALBUQUERQUE e SILVA, 2009, p.75-76). Segundo Duque (2015b), como também já foi mostrado no capítulo 2, os nossos saberes acumulados se estruturam e são acionados inconscientemente através de padrões cognitivos denominados de frames. O autor define os frames como “mecanismos cognitivos através dos quais organizamos pensamentos, ideias e visões de mundo” e afirma que “novas informações só ganham sentido se forem integradas a frames construídos por meio da interação ou do discurso” (DUQUE, 2015b, p.26). Assim, cognitivamente, podemos afirmar que a linguagem aciona e constrói frames em nossa memória continuamente, o que teria respaldo nos estudos neurais da linguagem, que já demonstraram que “um frame é uma “cascata” de circuitos neurais acionada por palavras” (DUQUE, 2015b, p.27). De certa forma, essa visão retoma a dos estudos clássicos, uma vez que já consideravam que o nosso conhecimento prévio estava organizado em esquemas, e a refina, ao evidenciar a dinamicidade da construção do significado, permitindo-nos um melhor uso da teoria para estudos aplicados ao ensino. Além disso, é interessante observar que, mesmo no campo da linguística cognitiva, alguns trabalhos, como o de Miranda (1999), já associavam os chamados “domínios estáveis” ao conhecimento prévio, ainda que nesses trabalhos, alguns desses domínios tivessem um caráter de permanência recentemente rejeitado por uma abordagem exclusivamente baseada em frames. Propostas de análises de leituras realizadas por estudantes em contexto escolar com base em frames podem ser vistas em Botelho (2015) e Vargas (2012a, 2015). Tratando especificamente do ensino da leitura, Botelho (2015), então, afirma que a 183 organização doconhecimento prévio do leitor deve ser compreendida em função do emprego dos frames, uma vez que sendo estruturas de conhecimento altamente sistematizadas, delimitadas por experiências corporificadas e por interações sociais, (...) além de não permanecerem na memória de forma aleatória, podem ser entendidas como uma espécie de conhecimento compartilhado a fim de se compreender um dado evento ou objeto abordados em um texto. Com base nesse tipo de percepção, Duque (2014, p.82) definiu os frames como uma estrutura seletiva de “memória social”, o que favorece a que pensemos o conhecimento prévio a partir da noção de frame (BOTELHO, 2015, p.49). Duque (2015b) afirma que os frames são essenciais para a construção de sentidos, uma vez que só podemos atribuir características a conceitos predefinidos porque somos capazes de associá-los a frames específicos e de mudar a perspectiva dentro de um mesmo frame. O autor ressalta que diversas são as abordagens sobre esse conceito, mas que todas constroem uma visão de frames como gestalts formadas por partes ou papéis que estabelecem relações entre si, podendo variar em níveis de complexidade, ou seja, em números de papéis pelos quais são compostos e de relações entre esses papéis. Os frames, assim, poderiam, inclusive, ser constituídos por outros frames. Dentro de uma visão que reconhece os movimentos ascendente e descendente do fluxo da informação como contribuindo de igual maneira para a construção de significados, é possível dizer que apenas a ativação dos frames não é suficiente para a compreensão do discurso. É preciso que eles se articulem, nesse duplo movimento, às informações que o texto traz. Para isso, o leitor deve se utilizar de seus saberes processuais, tais como a integração conceptual (FAUCONNIER e TURNER, 2002), processo cognitivo que, por excelência, permite a articulação de diferentes domínios já existentes e, consequentemente, a formação de novos significados. Ao considerar a integração conceptual como processo chave para a construção de significados, no caso desta tese, em uma atividade de leitura, é possível começar a construir uma visão que fuja do modelo da recognição, posto que se reconhece a possibilidade de que texto e leitor se transformem no ato da leitura e de que novos significados surjam dessa integração. Em resumo, entende-se que os conhecimentos prévios se unem e se organizam em nossos saberes acumulados, que, durante a leitura, são ativados e integrados às informações novas. Consecutivamente, as informações construídas passam a constituir- se como velhas, o que possibilita a integração com novas informações, formando uma 184 sucessão de integrações para a compreensão do texto. Assim, ao longo de uma atividade de leitura, ocorrem sucessivos processos de integração conceptual entre a informação visual e o conhecimento prévio do leitor, o que permite a formação de novos significados que, por sua vez, passam a compor também sua memória. Para isso, pode-se basear em Gerhardt (2010), que define os processos de formação de conceitos, e, consequentemente, de aprendizagem como frutos da capacidade humana de juntar duas coisas para formar uma terceira por meio da integração conceptual, como apresentado no capítulo anterior. A autora define da seguinte maneira como se dá o aprendizado de um conceito na Escola (o que, para mim, vale também para a construção dos significados durante a leitura de um texto em sala de aula): Os participantes do processo de construção de significados proporcionado pela mesclagem conceptual - no nosso caso, conceitos- base para a formação de outros novos conceitos na escola – estão em diferentes domínios de experiência: no input I, o domínio dos conhecimentos do aluno; no input II, o domínio dos conhecimentos da escola. Os domínios input encontram-se numa situação de fluxo, de troca; para usar a terminologia clássica do processamento interativo, trata-se dos movimentos top-down e bottom-up, respectivamente. Isso nos permite dizer que o modelo interativo proposto por Rumelhart & McClelland (1982) faz parte de um universo processual mais amplo, de integração conceptual (GERHARDT, 2010, p.258). Assim, é possível associar a visão clássica da psicolinguística sobre o processamento da leitura a esse fundamental processo descoberto recentemente e definido no segundo capítulo desta tese. Cabe ressaltar que a projeção interdominial se dá por meio de projeções seletivas e deriva na formação de um espaço-mescla. Essa projeção só é possível se, entre os domínios, houver estruturas comuns que permitam sua articulação, formando, assim, o espaço genérico. O espaço-mescla herda, assim, estruturas parciais dos inputs, mas tem uma estrutura própria, não sendo simplesmente a soma das partes. Dessa forma, se os estudos clássicos já entendiam a leitura como o resultado da interação entre conhecimento prévio e informação nova, dentro dessa ótica derivada da articulação dos estudos clássicos a estudos mais recentes, pode-se compreendê-la como o resultado de sucessivas integrações conceptuais entre o conhecimento prévio (organizado em frames) e a informação nova recebida do texto (que ativa os frames do conhecimento prévio e é também selecionada em função dos frames já construídos pelo 185 leitor). O que se produz dessa interação estaria, então, nos sucessivos espaços-mescla que se formam para a construção do todo conceptualizado. Assim, o leitor, ao receber as informações novas explicitamente apresentadas no texto, recupera experiências, saberes, conceitos, sentidos, etc. previamente construídos e os articula ao que recebe do texto. Dessa forma, tanto a informação nova, recebida do texto, como a informação velha, se alteram para que novos saberes, conceitos, experiências, visões, sentidos, etc. se construam. Tanto do ponto de vista psicológico quanto sociológico, o texto se descontextualiza e se deixa recontextualizar pelo leitor. Tal fato relaciona-se diretamente com o repertório de experiências do leitor. Nenhum texto apresenta um sentido único, instalado, imutável, depositado em algum lugar. (...). A leitura é produzida à medida que o leitor interage com o texto (DELL’ISOLA, 2001, p.28). Assim, reconhece-se o papel fundamental desempenhado pelo conhecimento prévio na compreensão da linguagem, como já apontavam os textos responsáveis pela divulgação de uma primeira visão sobre os aspectos cognitivos e psicolinguísticos da leitura no Brasil (KATO, 1990; LEFFA, 1996; KLEIMAN, 2001; 2010; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003, entre outros), mas entende-se também e melhor como se dá a integração entre este e a informação nova, o que nos permite, inclusive, pensar numa didática mais apropriada para o trabalho com a leitura na escola. Ao mesmo tempo, através dessa visão, também se retoma o valor da informação visual para a construção da leitura, uma vez que é esta que vai ativa os frames que compõem o nosso conhecimento prévio. Também é importante destacar que nem todas as informações constantes no texto são percebidas/conceptualizadas, uma vez que a projeção interdominial é sempre seletiva e que o próprio conhecimento prévio guia essa seleção, o que contribui para a corroboração do já clichê de que toda leitura é individual, uma vez que é fruto de projeções seletivas únicas. Para que a leitura se dê efetivamente, é preciso, então, que as partes relevantes dos dois inputs sejam selecionadas e integradas, de forma que o leitor possa de fato integrar-se ao texto e que, desse processo, novos saberes se formem. Assim, não haveria leitura ou significado construído anteriormente ao próprio ato de leitura, tampouco haveria leituras melhores ou piores por si mesmas. Como salienta Kastrup (2012, p.55), “não existe um mundo só, nem existe só um sistema cognitivo e nem uma representação melhor do que a outra do mundo, mais próximada realidade. Existem diferentes percepções e diferentes mundos”. Existem também 186 diferentes leituras, pensadas em diferentes contextos, por diferentes pessoas, com base em diferentes saberes e experiências para o alcance de diferentes objetivos. Nas próximas seções, apresento, então, o que estou chamando de plano inferencial de leitura. Dentro da concepção que aqui apresento, este seria o plano de leitura que melhor evidencia as premissas aqui postas, uma vez que as inferências vão ser vistas justamente como a consequência da integração conceptual entre os conhecimentos prévios do leitor e as informações visuais apresentadas na linearidade do texto. Assim, apresento, inicialmente, o processo de construção de inferências – a inferenciação – como um processo cognitivo, para depois atravessar essa discussão com as questões que envolvem o ensino de leitura na escola. 4.3. A inferenciação como processo cognitivo Como dito anteriormente, nesta tese, estou focando nossa atenção no processo de construção de inferências (ou inferenciação), por acreditar que ele evidencia os fenômenos descritos anteriormente. Com base nos pressupostos anteriormente apresentados, a inferenciação passa a ser entendida como um processo cognitivo básico de construção de significados, consequência, na leitura, da integração das duas fontes de informação anteriormente citadas: a informação visual e o conhecimento prévio. Antes de tudo, é importante salientar que, durante muito tempo, a inferência foi vista como uma forma de se referir a tudo que não estava explícito em um texto. Assim, a inferência estava essencialmente vinculada ao texto, sendo vista dentro de uma concepção ascendente (bottom-up) de leitura. Além disso, ao referir-se a tudo que não é explícito em um texto, apresenta-se uma aparente polissemia do termo, que, na verdade, representa uma falta de precisão teórica. A noção de inferência tem sido usada para descrever operações cognitivas que vão desde a identificação do referente de elementos anafóricos e exofóricos até a construção da organização temática do texto. Essa excessiva abrangência do conceito de inferência é problemática para a caracterização desse fenômeno, pois reúne sob o mesmo título operações muito diversas, trazendo assim dificuldades para o estudo dele (COSCARELLI, 2002, p.2). Ao escolher uma angular teórica que busque aprimorar o conceito de inferência em leitura sob a ótica apresentada nos capítulos anteriores e na seção anterior deste capítulo, acredito estar contribuindo para a fundamentação de discursos pedagógicos sobre o ensino de leitura. Nesse sentido, é importante ressaltar que diversos dos 187 trabalhos clássicos sobre leitura e cognição já deram o devido destaque ao papel cumprido pelas inferências em um ato de leitura. Muitos já apontaram, inclusive, que os leitores sempre constroem inferências de forma espontânea enquanto leem, e que o que fica após uma leitura, ou seja, seu resultado para o leitor, na verdade, são as inferências geradas ao longo do processo e não as informações explicitamente postas nos textos (DELL’ISOLA, 2001; FERREIRA e DIAS, 2004; FULGÊNCIO e LIBERATO; 2003; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001, 2010): “há evidências experimentais que mostram com clareza que o que lembramos mais tarde, após a leitura, são as inferências que fizemos durante a leitura; não lembramos o que o texto dizia literalmente” (KLEIMAN, 2010, p.25). Entretanto, tendo em mente a ideia de que tais estudos não permitiam observar com a devida importância a processualidade da leitura, como destacado na seção anterior, tornou-se necessário também construir uma visão de inferência que se encaixasse com a visão de leitura explicitada anteriormente. Essa visão foi definida de forma mais detalhada em Vargas (2012a), e aqui apresento brevemente alguns pontos lá postos, os que nos permitem entender melhor a análise apresentada mais adiante. Nesse sentido, é interessante observar que os primeiros estudos sobre leitura e cognição já nos deram, anteriormente, também a base para a construção de uma visão essencialmente integrativa do processo de inferenciação, uma vez que já definia esse processo como a articulação entre duas fontes de informação: o texto, em sua linearidade, e o conhecimento prévio (cf. CHIKALANGA, 1992). Além disso, o fato de entenderem a leitura como processamento seletivo, que depende de previsões e deduções também já produzira, em estudos anteriores, contribuições para a compreensão da inferenciação como processo básico de significação, por meio do qual o leitor se coloca como ativo na construção de significados (KATO, 1990; KLEIMAN, 2001, 2010; FULGÊNCIO e LIBERATO, 1996, 2003). Chikalanga (1992), entre outros autores, ofereceu a base para essa compreensão, ao definir a inferência como o processo cognitivo no qual um leitor obtém a informação implícita de um texto escrito com base em duas fontes de informação: o conteúdo proposicional do texto (isto é, a informação explicitamente afirmada) e o conhecimento prévio do leitor. Alternativamente, o 188 termo é usado para definir o produto final desse processo (CHIKALANGA, 1992, p.697, tradução minha) 74 . A partir desses estudos, em Vargas (2012a), caracterizei as inferências como resultados únicos e novos de cada leitura, sendo, portanto, uma evidência de que a leitura é um processo que acontece on line, em condições singulares. Nesse sentido, cabe lembrar que a inferenciação é um processo que permeia a linguagem de forma geral, ocorrendo em todas as atividades que envolvem a compreensão (de textos, de imagens, etc.), tanto na fala como na escrita, posto que novas experiências são sempre postas em articulação a velhas, e a construção de significados se dá sempre nesse movimento de integração: “a nossa compreensão não só de textos, mas da realidade como um todo, está condicionada à nossa experiência anterior” (FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003, p.86). Dessa forma, em relação à leitura, um leitor só é capaz de atribuir sentido a um texto se passa a constituí-lo também, transformando-o em algo novo. O significado não está embutido ou inscrito totalmente no texto oral ou escrito. Embora o texto carregue um sentido pretendido pelo autor, ele é polissêmico e, como tal, oferece possibilidades de ser reconstruído a partir do universo de sentidos do receptor, que lhe atribui coerência através de uma negociação de significados. Esse processo, por sua vez, amplia as chances de compreender e ser compreendido na e pela interação (FERREIRA e DIAS, 2004, p.440). A construção de inferências é entendida, então, como um processo de criação, um processo básico de produção de (novos) significados. Com base nisso, ao incorporar-se a teoria da integração conceptual (FAUCONNIER e TURNER, 2002) aos estudos anteriormente citados, é possível trazer uma maior noção de processualidade ao estudo da inferenciação, que pode, então, ser analisada de maneira on line e por meio de integrações de conceitos projetados seletivamente. Assim, a inferenciação é vista como: um processo de formação de conceitos (inferências) que se dá a partir da integração conceptual entre dois inputs de informação: o conhecimento prévio do leitor e a informação visual apresentada no texto. A inferência, por sua vez, possui um caráter imprevisto e particular, sendo um elemento novo relativamente aos inputs (VARGAS, 2012a, p.85). 74 Original: “inference is defined as the cognitive process a reader goes through to obtain the implicit meaning of a written text on the basis of two sources of information: the ‘propositional content of the text’ (i.e. the information explicitly stated) and ‘prior knowledge’ of the reader. Alternatively, the term is taken to mean the end product(s) of such a process” (CHIKALANGA,1992, p.697). 189 É importante lembrar que a informação recebida não vem por meio de frases, mas dos agrupamentos de saberes que denominamos de frames, uma vez que a mente cria gestalts contextuais e não interpreta cada frase de forma isolada (DUQUE e COSTA, 2012). A geração de inferências se dá, então, por meio da projeção interdominial entre o conhecimento prévio e as informações visuais, que funcionam como inputs, e assim, por meio da projeção seletiva, obtêm-se as inferências no espaço- mescla. Essas inferências seriam, então, sempre base para a construção de novas inferências que vão se desenvolvendo ao longo da leitura, uma vez que, como explicam Fauconnier e Turner (2002, p.24), “a existência de uma boa mescla pode tornar possível o desenvolvimento de uma mescla melhor. A estrutura conceptual contém muitos produtos entrincheirados da integração conceptual anterior” 75 . Tal processo seria, então, a base da compreensão leitora, que se daria sempre como fruto de inferenciações situadas, porque dependem, em um sentido amplo, do contexto em que são realizadas, mas não podem ser previstas. Utilizando, então, o esquema de integração conceptual representado a seguir, pode-se dizer que, no input I, estariam as informações que o leitor seleciona de seu conhecimento prévio, organizado em frames, e que se articulariam ao input II, das informações trazidas pelo texto e igualmente selecionadas pelo leitor. Da projeção seletiva das informações contidas em ambos os espaços, seriam construídas as inferências no espaço-mescla, que se forma pela integração de ambos os espaços, com base em elementos que eles tenham em comum. Como salientam Fauconnier e Turner (2002), nós podemos criar diferentes mesclagens a partir dos mesmos inputs. Assim, o processo, ainda que seja o mesmo, pode ter resultados diferentes, uma vez que os inputs não determinam a rede de integração conceptual. 75 Original: “The existence of a good blend can make possible the development of a better blend. Conceptual structure contains many entrenched products of previous conceptual integration”. 190 Figura 5 - Esquema de integração conceptual representando a inferenciação em leitura Dessa forma, a inferência surge como a evidência mais representativa de que a leitura é essencialmente integrativa, uma vez que, ao mesmo tempo em que é o resultado de uma integração conceptual, ela representa o que retemos após a realização de uma leitura. Assim, mais do que uma interação na qual leitor e texto contribuem para a construção de significados através dos movimentos ascendente e descendente, o que temos é uma verdadeira integração entre texto e leitor, sendo os resultados dessa integração elementos completamente novos relativamente aos domínios que os formam e únicos para cada leitor em cada momento de cada leitura que realiza. Assim, é possível concordar com Vanin (2009, p.51), que, por outro caminho, entende que a inferenciação (ou o “ato inferencial”, como o denomina) é “um processo de construção de sentido através de um conjunto de relações decorrentes da interligação do conteúdo de memórias enciclopédicas pertinentes para o momento comunicacional e do contexto que circunda tal interação”. Para ela – como para a visão que aqui é apresentada – “a significação só se torna possível devido à atividade inferencial, que é desencadeada pelas interações do indivíduo com o mundo, através de um sistema de encaixes de raciocínios de natureza linguística, social, cultural, e cognitiva” (VANIN, 2009, p.51). Mais uma vez, essa visão integrativa nos permite associar-nos à ideia de cognição inventiva (KASTRUP, 2005, 2012, 2015), posto que, como já salientara Vanin 191 (2009, p.56), “a formação de inferências nas trocas comunicativas leva à construção do mundo e dos significados dos objetos que nele estão inseridos”, não havendo, portanto, qualquer sentido anterior ao movimento de integração. Mesmo a informação visual, que poderia ser entendida como dada antes da integração, nessa concepção, torna-se única, uma vez que cada um de nós seleciona o que dela nos interessa selecionar ou o que podemos selecionar em função de nossos conhecimentos prévios. Não só “as inferências são subordinadas a contextos interpretativos específicos” (DUQUE, 2015a, p.68), como a informação visual também o é. Nesse sentido, não só a leitura integrativa comprova a natureza distribuída da cognição humana, mas também as inferências – enquanto resultado dessa leitura – também o fazem. As inferências, desse modo, só são construídas porque distribuímos nossa cognição entre o que há em nossos conhecimentos prévios, o texto com o qual nos integramos e a situação em que nos encontramos, que vai nos levar a definir objetivos específicos para nossa leitura a usar elementos e pessoas nela presentes como parte também desse processo de construção. Como afirmam Fauconnier e Turner (2002), nós vivemos na mescla, uma vez que nossa experiência deriva das integrações conceptuais que realizamos. Isso quer dizer que as inferências que produzimos formam parte da nossa realidade. Entretanto, ressaltam eles, há atividades altamente abstratas que realizamos e que dependem da nossa capacidade de separar passo a passo as integrações realizadas. Os autores citam, por exemplo, a matemática, e prosseguem: Quão completamente nossa apreensão consciente é limitada à mescla depende do tipo de atividade para qual a mesclagem serve. No caso da sensação e da percepção, nossa experiência consciente vem inteiramente da mistura - nós "vivemos na mistura", por assim dizer. Em outras atividades, a apreensão consciente tem mais margem para avançar e retroceder, para "viver na rede de integração completa” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.83, tradução minha)76. É partindo, então, da ideia de que podemos refletir sobre parte das integrações conceptuais que realizamos que desejo pensar o trabalho com o ensino de leitura na escola. Entendendo que a escola é o espaço – socialmente construído – que deveria nos levar a nos construirmos como sujeitos críticos, autônomos, reflexivos, acredito que, 76 Original: “How thoroughly our conscious apprehension is limited to the blend depends on the kind of activity that blending serves. In the case of sensation and perception, our conscious experience comes entirely from the blend - we "live in the blend", so to speak. In other activities, conscious apprehension has more leeway to go back and forth, to "live in the full integration network” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.83). 192 nela, o ensino de leitura deva ir além do estímulo à produção de processos espontâneos de construção de inferências. Uma vez que as inferências que construímos em uma leitura se tornam parte da nossa realidade, cabe à escola levar os alunos a pensarem sobre essa realidade construída, não naturalizando sentidos e visões de mundo. A leitura crítica, dessa maneira, partiria (mas não se restringiria a) de um trabalho realizado no plano inferencial. É sobre isso que tratarei na próxima seção, para, nos capítulos seguintes, verificar o que vem sendo feito da leitura nos livros didáticos de espanhol selecionados para esta pesquisa. 4.4. A cognição distribuída e o plano inferencial de leitura: por um ensino de leitura como processo integrativo Como explicitado anteriormente, ao pensar o ensino de leitura na escola, parto do fato de que o aprendizado envolve dois domínios de realidade distintos: o do conhecimento da pessoa e o domínio contextual (GERHARDT, 2010). Dessa forma, dentro de uma visão escolar de aprendizagem, existiria o espaço da realidade do aluno e o espaço da realidade da escola, que se mesclariam para a formação de novos conceitos, por parte de quem aprende, geradosna estrutura emergente fruto dessa integração. Do mesmo modo, a leitura na Escola ocorre a partir da integração entre o espaço da realidade do aluno e o espaço das informações trazidas pelo texto, com o aluno-leitor construindo uma nova leitura, fruto dessa integração. Nesse sentido, Gerhardt (2013), apresenta algumas contribuições que as ciências cognitivas podem oferecer às ciências sociais na discussão sobre a escola – contribuições essas que serão consideradas aqui basilares para a discussão proposta sobre o ensino de leitura, entendendo-o como manifestação de uma relação maior da escola com a aprendizagem: [1] As ciências cognitivas atualmente podem oferecer o entendimento de como a construção do significado em “coparticipação social” (MOITA LOPES, 1996, p.88) se manifesta em termos dos processos cognitivos realizados pelas pessoas (...), porque oferece uma percepção fidedigna e aprimorada de como a pessoa lida com a linguagem, não apenas interacional e socialmente, mas também cognitivamente – articulando “o lado de dentro” com o “lado de fora” e recusando as supostas dualidades mente-corpo e cognição-cultura típicas das epistemologias tradicionais (GERHARDT, 2013, p.98, grifos da autora). 193 [2] Os estudos em cognição e ensino de língua permitem realizar uma associação entre o uso da linguagem e a construção mais geral da cognição humana, detectando as evidências linguísticas do que desencadeia as ações cognitivas, quais são os seus objetivos, e quais tipos de problemas elas buscam resolver. Essa detecção pode subsidiar a formulação de propostas didático-pedagógicas que, em vez de definir a priori qual é a relação entre as pessoas e a linguagem, busquem associar a cognição cotidiana dos alunos, mais próxima das realidades vividas por eles fora da escola, às suas ações cognitivas situadas dentro da sala de aula (GERHARDT, 2013, p.98). [3] Os estudos em cognição, sobretudo aqueles relacionados ao caráter processual da construção do significado, oferecem um arcabouço teórico-descritivo capaz de nos auxiliar a compreender os mecanismos, elementos e processos relacionados ao aprendizado, aqui visto como integração conceptual que conta com a articulação entre as bases de conhecimento existentes no “lado de dentro” e no “lado de fora”, para que sejam criados novos conceitos, novas ideias. Associando-se tais trabalhos aos estudos em cognição distribuída, é possível definir parâmetros razoavelmente precisos acerca do que é necessário proceder para que se possa instaurar em sala de aula um ambiente de intersubjetividade que seja favorecedor do aprendizado, mesmo com o engessamento que a forte institucionalização e a normatização das relações escolares impõem sobre nossos comportamentos (GERHARDT, 2013, p.99). Acredito, assim, que o trabalho reflexivo sobre esse movimento de integração entre o espaço cotidiano do aluno, de seus saberes e suas experiências, e o espaço da escola, manifestado no texto lido e na atividade realizada, seja essencial. Não apenas o aluno pode selecionar melhor as informações que busca em seu conhecimento prévio e as informações novas recebidas em função de um objetivo específico, como também pode refletir sobre possíveis direcionamentos presentes nos textos lidos para que ele selecione determinadas informações e ignore outras. Além disso, ao refletir sobre as inferências construídas, o aluno pode refletir também sobre sua concepção de mundo, alterando-a, de maneira mais consciente, em função da sua integração com novos saberes. É possível dizer, inclusive, que um trabalho com o plano inferencial apresenta para os alunos uma concepção de aprendizagem que foge do padrão reprodutivo do modelo de recognição e que, portanto, auxilia na construção de aprendizes que estão sempre abertos – e atentos – à construção de novos saberes e à consciência de que nenhum saber é fixo, uma vez que não existe ninguém nem nada que esteja dado e acabado. Desse modo, evitam-se dois problemas clássicos em relação à aprendizagem escolar, descritos em Gerhardt (2013): o fato de a cognição cotidiana interferir excessivamente na cognição escolar, ou seja, o aluno não conseguir aprender o que a 194 escola lhe ensina porque seus saberes prévios se sobrepõem aos novos saberes, e o fato de a cognição escolar ser excessivamente institucionalizada, ou seja, de não haver, dentro da escola, qualquer espaço de abertura para a entrada dos saberes prévios dos alunos, o que, dentro dessa concepção, impede inclusive a articulação com os novos saberes apresentados. Como apontam Gerhardt, Albuquerque e Silva (2009, p.89), a sala de aula, geralmente, é posta como um cenário de desencontros e falta de diálogos: a escola fala uma língua, o aluno, outra; a escola suscita dele pensamentos alienígenas à sua vida, e ele, evidentemente, se mantém no lugar de onde veio, e esse estado de coisas se repete sem que a parte realmente responsável por uma mudança de olhar e de atitude reconheça as suas responsabilidades. De forma que o aluno sai da escola sem ter verdadeiramente em algum momento entrado nela. Para isso, torna-se essencial, de antemão, um trabalho escolar que tome verdadeiramente a leitura como um processo, e como um processo que se dá na mente de forma distribuída, por meio da integração de dois domínios de experiência diferentes e pela seleção de elementos desses domínios para a sua integração, em função de objetivos anteriormente postos para a leitura e da articulação entre os frames que organizam o conhecimento prévio do leitor e os frames que são apresentados no/pelo texto lido. Portanto, torna-se necessário entender que qualquer leitura depende tanto do leitor quanto do texto, no sentido de que o texto não pode se distanciar demais dos conhecimentos prévios do leitor, o que exige um trabalho de construção desses conhecimentos anterior à leitura, nem o leitor pode abrir mão de engajar seus saberes nesse processo. Além disso, ela é marcada por um contexto macro e microssocial, envolvendo outras pessoas e o ambiente físico e institucional em que elas se encontram. Nesse sentido, uma boa leitura é aquela que permite a construção de novos saberes: nem o texto nem o leitor permanecem inalterados, sendo esses novos saberes o que o leitor reterá após sua leitura. Metacognitivamente, cabe ainda ao leitor saber que está realizando esse processo, regulando-o em função de seus objetivos. Entendido o processo de leitura sob essa ótica, é possível pensar melhor em como a Escola pode atuar no desenvolvimento metacognitivo do aluno-leitor em interação não só com o texto escrito, mas também com o mundo que o rodeia, uma vez que esse também é compreendido e interpretado por meio dos mesmos processos cognitivos. As atividades de leitura, em qualquer disciplina, deveriam lançar mão dessas noções, buscando ativar os conhecimentos prévios do aluno (ou construí-los, se 195 necessário) e permitir (e mais: validar e desenvolver) a integração desses conhecimentos aos novos que o texto apresenta, trabalhando, essencialmente, o processo de construção da leitura com base na integração entre esses dois inputs. Não faz sentido, assim, que a escola busque do aluno, como vimos na primeira seção deste capítulo, apenas a capacidade de reproduzir informações explicitamente postas nos textos, uma vez que isso nega os processos cognitivos envolvidos na leitura e força o aluno a se comportar de uma maneira artificial em relação à sua leitura. Como vimos, essa é uma prática que representa uma política cognitiva contra a qual precisamos lutar emergencialmente e o plano inferencial de leitura pode ser um importante instrumento nessa luta. Nesse sentido, cabe salientar que estou denominando de plano inferencial de leitura o plano das possibilidades de inferências realizadas durante uma determinada leitura, a partirda proposta apresentada em Gerhardt e Vargas (2010) de que um texto pode ser lido de várias formas diferentes, cada qual equivalente à ativação de uma determinada organização no plano meta77. Sobre isso, diversos trabalhos já apontaram que os leitores constroem inferências espontaneamente enquanto leem e que o resultado de uma leitura, na verdade, são as inferências geradas ao longo do processo e não as informações explicitamente postas nos textos, como se costuma imaginar (DELL’ISOLA, 2001; FERREIRA E DIAS, 2004; FULGÊNCIO e LIBERATO, 1996; 2003; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001; 2010, MARCUSCHI, 2002, 2003). Por outro lado, outros tantos trabalhos mostram que, na escola, ainda se ignoram os diferentes processos de construção possíveis para cada leitor, buscando essencialmente a reprodução de informações explicitamente apresentadas ou recorrendo a questões que não exigem a leitura dos textos para serem respondidas (DELL’ISOLA, 1997; FERREIRA, 2012; GERHARDT e VARGAS, 2010; MARCUSCHI, 1996; 2003; ROJO e BATISTA, 2003; ROJO, 2003; VARGAS, 2011, 2012a, 2012b, 2013; VARGAS et al., 2011). Além disso, há trabalhos que mostram que diferentes inferências, quantitativamente e qualitativamente, são produzidas em função de objetivos diferentes postos para a leitura (GERBER e TOMITCH, 2008; ROSCIOLI e TOMITCH, 2014; ROSCIOLI, TOMITCH e FARIAS, 2015). 77 Nesse texto, entre outros planos ainda não estabelecidos, citamos algumas possibilidades de planos: a) o das estruturas esquemáticas dos saberes estáveis que subjazem à construção do significado; b) o da estrutura de evento para narrativas; c) o da organização referencial; d) o da organização sequencial; e) o da organização do parágrafo; f) o da organização inferencial; g) o da estrutura de argumentação; h) o da compreensão metalinguística e i) o da compreensão metacognitiva (GERHARDT e VARGAS, 2010). 196 Quando se trata da inferência, costuma-se observá-la como uma simples estratégia de leitura utilizada para, teoricamente, preencher as lacunas deixadas em um texto. Como explica Dell’isolla (2001), nesse tipo de abordagem, o nível básico do texto (o que mais adiante chamarei de linear ou literal) pode apresentar proposições que não se inter-relacionam. As inferências, então, atuariam preenchendo os espaços deixados entre essas proposições. A construção de inferências seria, assim, um procedimento nem sempre utilizado, ocorrendo apenas quando o texto o exigisse. Sob essa visão, o leitor geraria inferências apenas para entender o que está escrito quando as informações do texto lido não fossem suficientes. Acredita-se, assim, que, de alguma forma, seria possível entender o texto tal e como ele se nos apresenta, e a inferência seria o resultado de um processo predominantemente ascendente (bottom-up), o que reforça uma visão de cognição – e de aprendizagem – como reprodução, dentro de uma política de recognição. De forma a superar essa visão, acredito que as atividades escolares de leitura deveriam, no que se refere ao plano inferencial, trabalhar em dois planos: (a) num primeiro plano, deveriam trabalhar efetivamente com o desenvolvimento de tarefas que levassem os alunos a reconhecerem as inferências por eles construídas e a pensarem sobre as inferências como um processo que envolve a integração de duas fontes de informação. Isso envolveria um trabalho de ativação e, se necessário, de construção de conhecimento prévio e um trabalho com questões que abordem diferentes níveis de leitura, orientando o aluno em sua reflexão sobre as inferências construídas e sobre os elementos selecionados e articulados para essa construção; e (b) num segundo plano – meta –, em paralelo ao anterior, no desenvolvimento de habilidades metacognitivas sobre os processos que os leitores desenvolvem ao aprenderem a ler, em função de objetivos previamente definidos e de hipóteses construídas ao longo de uma leitura. Dessa forma, pensando no plano inferencial, seria papel da escola levar os alunos a proporem objetivos para suas próprias leituras – pensando-os como invenção de problemas – e a pensarem estratégias de leitura em função desses problemas, sendo as inferências, assim, construídas em função dos objetivos propostos. Além disso, seria fundamental a compreensão de como as inferências atuam na formulação e flexibilização de hipóteses de leitura de forma que a 197 leitura seja efetivamente vista como processualidade e que o aluno possa pensar sobre ela enquanto lê. Assim, questões de leitura que se propusessem de fato a ensinar o aluno a ler melhor deveriam atuar levando-o a ativar seus conhecimentos prévios e permitindo que os integre de uma melhor maneira às informações novas que o texto apresenta. Para que isso aconteça, é necessário que os professores que se dedicam ao ensino de leitura, em aulas de línguas ou de outras disciplinas, conheçam como se dá o processo da leitura, para que possam atuar reflexivamente em sala de aula, interferindo nele quando necessário, e criando parâmetros para a avaliação e análise dos textos a serem utilizados, bem como do trabalho a ser desenvolvido com eles: ...acreditamos que o desvendamento do processo torna possível o planejamento de medidas de ensino adequadas, de base informada, bem fundamentadas. (...) Refletir sobre o conhecimento e controlar os nossos processos cognitivos são passos certos no caminho que leva à formação de um leitor que percebe relações, e que forma relações com um contexto maior, que descobre e infere informações e significados mediante estratégias cada vez mais flexíveis e originais (KLEIMAN, 2010, p.9). Igualmente, para que a citação de Kleiman (2010) possa ser efetivamente realizada, o aluno deve conhecer os objetivos da tarefa que busca desenvolver, do que está buscando alcançar, das habilidades que precisa ativar e das estratégias de que se pode utilizar para alcançá-lo. No que se refere à leitura, por exemplo, o estabelecimento de objetivos “refere-se à intervenção do leitor na seleção prévia de quais significados deverão ser capturados na interação com o texto, a partir de uma definição específica do que se quer reconhecer nele” (GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015, p.182). Dessa maneira, nosso foco de atuação deve estar no desenvolvimento de suas habilidades metacognitivas, ou seja, em sua conscientização sobre seus próprios processos cognitivos. Nesse sentido, cabe lembrar que, como nos ensinou Kleiman (1992), as habilidades cognitivas não podem ser ensinadas, apenas exercitadas, mas as estratégias de leitura (ou seja, as habilidades metacognitivas) sim podem ser ensinadas de forma consciente. A metacognição é entendida aqui, então, como a nossa capacidade de pensar e refletir sobre nossa cognição, monitorando-a, regulando-a e reformulando-a quando necessário. Mais especificamente, podemos dizer que a metacognição diz respeito à autorregulação da própria cognição, de forma que possamos administrar nossos próprios processos cognitivos, em função de um determinado objetivo, através 198 de atividades de monitoramento e controle (NELSON e NARENS, 1996; SCHWARTZ e PERFECT, 2002; TARRICONE, 2011). Na leitura, podemos atuar metacognitivamente por meio da habilidade em elaborar objetivos e hipóteses flexíveis acerca dos significados que o texto traz. Assim, podemos dizer que o monitoramento e o controle são processos que atuam articuladamente na construção de duas dimensões para a metacognição em atividades de leitura: a autoavaliação, a partir da formulação de hipóteses, e o controle da ação cognitiva em função de um resultado desejado, a partir da postulação de objetivos e de estratégias para resolver os problemas (BOTELHO, 2011; 2015; GRIFFITH e RUAN, 2008; RANDI, GRIGORENKO e STERNBERG, 2008). Pensando em uma abordagem que busque a construçãode políticas inventivas em sala de aula, acredito que os estudos em metacognição podem nos auxiliar na fundação de um olhar que parta de problemas efetivamente inventados em sala de aula – que se transformam, no caso da leitura, em objetivos de leitura – para construir uma prática de leitura que abra espaço para a criação. Nesse sentido, cabe observar que mesmo ao trabalharmos com o primeiro plano, anteriormente citado, estamos também, como professores, trabalhando com habilidades metacognitivas, uma vez que a busca é por levar os alunos a refletirem sempre sobre as inferências por eles construídas ou sobre as inferências que poderiam construir para desenvolver uma melhor leitura dos textos com que se integram. Nesse sentido, se um leitor reconhece que uma determinada inferência se derivou da integração de uma determinada informação presente em um texto e uma informação existente em seu conhecimento prévio, já há nesse reconhecimento o desenvolvimento de uma reflexão metacognitiva sobre esse processo. Assim, a ideia é que, com o tempo, essa reflexão seja incorporada ao processo espontâneo de leitura do aluno, tendo ele se construído, com o apoio das atividades escolares, como um leitor maduro, autônomo – e crítico em relação ao que lê e, igualmente, à leitura que constrói. Essa perspectiva se aproxima do que Kastrup (2005) propõe como perspectiva para o aprendizado. Segundo a autora, A novidade e a surpresa configuram uma das faces da dupla temporalidade da aprendizagem. A segunda face de sua temporalidade é a sedimentação e o enraizamento. A sedimentação do aprendizado ocorre por intermédio da repetição e do ritmo de um treino que se dá por meio de um conjunto de sessões consecutivas e regulares. O sentido do treino é criar um campo estável de sedimentação e acolhimento de experiências afectivas inesperadas, que fogem ao 199 controle do eu. A regularidade das sessões tem como efeito a criação de uma familiaridade com as experiências de breakdown e, enfim, o desenvolvimento de uma atitude cognitiva e atencional ao plano das forças. O processo começa com esforço, por intermédio de uma atitude consciente e intencional, mas que se torna, com a prática, espontânea e inintencional” (KASTRUP, 2005, p.1279). É interessante observar que, ao repensar o papel da linguística aplicada para os novos tempos que vivemos, Rajagopalan (2006, p.160) aponta os estudos sobre a metacognição como um dos “bons ventos” que “começaram a soprar, ajudando a dissipar certo marasmo que se instalou no campo”, vindo para contribuir para o questionamento da tese de que “a prática só teria êxito se obedecesse aos ditames da teoria”. Entretanto, para que isso possa se concretizar em sala de aula, professores e especialistas em leitura podem e devem, como afirmam Applegate et al. (2002), atuar como catalizadores para uma mudança no ensino. Para que possam exercer esse papel, precisam os professores, anteriormente, compreenderem como se constrói uma leitura integrativa e se tornarem capazes de acessar a habilidade de seus alunos em pensar sobre e responder ao texto – o que também é um aprendizado que exige sedimentação, no termo proposto por Kastrup (2005). Caso contrário, eles acabam por perder, como apontei em Vargas (2012a), uma de suas mais poderosas ferramentas para estimular a consciência nos estudantes, e em si mesmos, de que ler é um processo ativo de construção de significados (e não de reprodução!) para o qual concorrem, entre outros fatores, tanto a voz de quem escreve como a voz de quem lê, em igual proporção. O caminho para esta mudança tem sido oferecido fartamente pelas ciências da cognição: a partir da pressuposição de que a relação entre professor e aluno, fortemente marcada pela institucionalização, é assimétrica por natureza, o olhar inicial de atenção para o lugar do outro precisa ser construído pela escola; cabe a ela dar-se conta de que em sala de aula existe uma pessoa que, embora esteja por lá fisicamente, precisa de estímulo e atenção para integrar o universo de saberes e experiências que a escola tem a oferecer; cabe a ela compreender que a aquisição de novas informações por parte do aluno só acontecerá se ele conseguir encontrar ligações entre o que lhe é conhecido e o que está para ser aprendido. O novo, pelo novo, de nada vale (GERHARDT, ALBUQUERQUE e SILVA, 2009, p.89). Assim, novamente, é possível voltar à ideia de cognição inventiva, uma vez que, dentro dessa visão, segundo Kastrup (2005, p.1287), “ensinar é, em grande parte, compartilhar experiências de problematização”. Desse modo, o ato de ensinar precisa 200 estar sempre aberto a potencializar as possibilidades de invenção de novas subjetividades e de novos mundos. Por isso considero que, no domínio da formação, é preciso encontrar estratégias de constante desmanchamento da tendência a ocupar o lugar do professor que transmite um saber. Penso que não se trata de determinismo nem de livre arbítrio; nem de submissão a um modelo existente, nem de boa vontade. O caminho é de um aprendizado permanente. Trata-se de um processo lento, marcado por idas e vindas, mas só ele possibilita a criação de uma política cognitiva da invenção (KASTRUP, 2005, p.1287). Além disso, uma vez que a perspectiva assumida aqui é a de que a cognição é distribuída, a saída do professor do lugar de alguém que transmite um saber também abre espaço para que os alunos, entre si, se engajem em processos coletivos de construção de significados. Assim, entendo que a leitura no plano inferencial pode ser a comprovação de que a leitura é distribuída entre texto e leitor, mas é também – e, talvez, até de maneira mais importante, distribuída entre leitores. Como apontam Zhang e Patel (2006), existem dois tipos de cognição distribuída: entre uma mente e um artefato externo e entre mentes individuais, e que: Um grupo de mentes pode ser melhor que um (ganho de processo) porque, em um grupo, há muito mais recursos, carga de tarefa e carga de memória, que são compartilhados e distribuídos, os erros são verificados, e assim por diante. O desempenho de um grupo também pode ser pior do que o de um indivíduo (perda de processo), porque em um grupo de comunicação leva tempo, o conhecimento pode não ser compartilhado e diferentes estratégias podem ser utilizadas por diferentes indivíduos (ZANGH e PATEL, 2006, p. 140). 78 Sem o professor ocupar exclusivamente esse lugar de saber, a busca pela resposta correta às questões postas por ele dá lugar a uma busca individual e coletiva de construção efetiva de significados em sala de aula. Entretanto, como é possível notar pela citação acima, isso precisa ser ensinado e desenvolvido em sala de aula, de forma a que a perspectiva de um pensar em grupos (GURECKIS e GOLDSTONE, 2008) não mais atrapalhe do que ajude. Pensar a cognição de forma distribuída em sala de aula, seja distribuída entre um aluno e o material com que se integra, seja entre alunos e entre alunos e professores, exige necessariamente um novo fazer, a criação de práticas que 78 Original: “A group of minds can be better than one (process gain) because in a group there are much more resources, task load and memory load are shared and distributed, errors are cross-checked, and so on. The performance of a group can also be worse than that of an individual (process loss) because in a group communication takes time, knowledge may not be shared and different strategies may be used by different individuals” (ZANGH e PATEL, 2006, p. 140). 201 retirem do centro políticas de recognição e ocupem esse espaço com políticas de invenção. Acredito que a possibilidade de trabalharmos com uma perspectiva que integre esses pressupostos a uma didática de leitura focada no desenvolvimento de habilidades