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AULA 2 O JORNALISMO NA ERA DIGITAL Prof. Arthur Franco 2 CONVERSA INICIAL Por muitas décadas, a profissão de jornalista parecia ocupar um lugar especial no imaginário social. O jornalista seria aquele profissional ligado à vida boêmia, incumbido da missão de se comprometer com a verdade como um paladino da justiça. No entanto, o cenário de mudanças do universo tecnológico causou alterações no ideal jornalístico. A modernização que atingiu a sociedade na década de 1990 também estendeu seus tentáculos ao jornalismo, mudando sua concepção, seus modos de financiamento e também seus valores. A digitalização do mundo trouxe a dissolução de certas funções no jornalismo enquanto criava outras, as formas de apuração foram atualizadas, a aceleração da produção de conteúdo foi ainda mais intensificada, isso em uma área que sempre precisou estar quase que à frente dos próprios acontecimentos. Como vimos na aula anterior, a internet não é apenas uma nova mídia, mas sim uma forma de comunicação inovadora que alterou radicalmente inúmeros setores da sociedade, e que tem mecanismos poderosos o suficiente para causar mudanças estruturais no jornalismo, não somente práticas, mas também ideológicas. Tal revolução causou uma “crise” generalizada sem precedentes no jornalismo, um momento de indefinição que abre inúmeras possibilidades enquanto torna obsoletas práticas já fundamentadas há décadas. A internet altera a forma de consumo da informação, criando uma comunicação denominada por Alves (2006) como eu-cêntrica, embasada em escolhas individuais do usuário frente a um enorme catálogo de opções disponíveis. Se antes a notícia era difundida em blocos escolhidos pelos gatekeepers em determinado formato (impresso, televisivo, rádio etc.), em horários estabelecidos, hoje “a comunicação se torna eu-cêntrica porque tenho acesso somente ao que eu quero, na hora em que eu quero, no formato em que eu quero e onde eu quero” (Alves, 2006, p. 97). Os moldes da comunicação jornalística tradicional do Século XX se encontram obsoletos, já que o jornalismo passa então de um produto a um serviço (Alves, 2006), articulado em uma rede contínua hiper-abundante de informações sempre alerta e disponível para quem deseja consumi-las. Não é à toa que a Revista Time, uma das maiores publicações mundiais, elegeu em 2006 “Você” para estampar sua capa de “Pessoa do Ano”, destacando o controle que os usuários da rede têm no modo de consumir e produzir informações. 3 Se antes a mídia tradicional era intermediária entre a população e o consumo, já que a maior parte dos anúncios era veiculada por ela, no cenário digital existe a possibilidade dos anunciantes terem contato direto com o usuário, abrindo portas para novas formas de publicidade que não dependem da mídia tradicional. Ao mesmo tempo, esse caminho pode apresentar problemas ao jornalismo sério que fundamenta uma das bases da democracia. Se antes era o dinheiro da publicidade, juntamente das assinaturas, que sustentavam a existência da mídia tradicional e agora esse dinheiro é diretamente investido na comunicação com os consumidores, como pode o jornalismo de qualidade se sustentar? Se a informação que antes só podia ser obtida por meio de um meio que trabalhava com publicidade (jornal impresso, rádio jornal, telejornal etc.) e hoje ela é disponível para qualquer usuário da web de forma gratuita, como amparar o jornalismo que leva tempo e investimento para ter qualidade? São perguntas que vão aos poucos sendo respondidas, mediante tentativas e erros dos negócios de jornalismo no ambiente digital. As mudanças advindas com a web no âmbito do jornalismo ainda não se assentaram, ainda não podemos prever como a produção e o consumo de informação estarão configuradas na próxima década. O que é possível, é olhar para as últimas duas décadas para perceber o que foi alterado no universo jornalístico e, então, tentar traçar rotas navegáveis para o futuro. Nesta aula, veremos como o jornalismo se adaptou ao universo virtual e algumas tendências que aparentam guiar a comunicação no Século XXI. Vamos lá? TEMA 1 – A TRANSPOSIÇÃO DO PAPEL PARA A TELA: APONTAMENTOS SOBRE O JORNALISMO DIGITAL São várias as denominações que o jornalismo pode receber quando executado no ambiente virtual, como jornalismo digital, ciberjornalismo, webjornalismo e jornalismo online. Sendo o jornalismo digital o mais abrangente do conceito, aqui o adotaremos como protocolo, entendendo que ele abarca: todo o produto discursivo que constrói a realidade por meio da singularidade dos acontecimentos, que é sustentado por redes telemáticas ou qualquer outro tipo de tecnologia por meio das quais os sinais numéricos são transmitidos e que incorpora a interação com os usuários em todo do processo de produção. (Machado, 2000, p.19, tradução livre) 4 Nos primórdios do jornalismo digital, era difícil prever como a mídia impressa se comportaria frente à onda tecnológica que inundava as redações. Alguns anos depois, já era possível perceber que o jornalismo impresso sofreu baixas ao redor do mundo, com diversos nomes de peso reduzindo ou extinguindo suas publicações no suporte papel. Várias empresas então passaram a possuir dois setores separados: um voltado à mídia tradicional e outro direcionado ao ambiente virtual, com equipes diferentes. Conforme as inovações digitais ganhavam espaço, os dois segmentos foram sendo unificados no Brasil, sendo a Folha de São Paulo a última a realizar tal integração em 2010 (Pereira; Adghirni, 2011). Essa fusão de esferas teve uma visão integracionista de enxergar o veículo e os conteúdos como um todo, com cada parte focando não apenas em uma plataforma ou tipo de mídia, mas sim a articulação de um sistema conectado e com ampla presença digital. Muito é especulado sobre as profundas mudanças que afetaram o jornalismo em sua transição para uma nova lógica digital. Alguns autores, como Charron (Guilhermano, 2019), colocam que a “crise” pela qual o jornalismo passa não é em decorrência da falta de interesse do público por notícias ou das inovações tecnológicas, mas sim do fator econômico. Para ele, a questão do financiamento da produção é que causa o momento de incerteza, porque o saber fazer jornalístico ainda é de domínio dos profissionais, porém como financiar essa estrutura é o que está causando a instabilidade. Outros autores, como Almiron Roig (2006), colocam que as TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) alteraram a dinâmica de produção tradicional da notícia, porém que a “crise” de valores do jornalismo é resultado de uma cultura econômica de corporações e da fusão de empresas jornalísticas a grandes corporações que têm como orientação valores econômicos. Essa nova configuração leva o autor a se questionar se o jornalismo ainda consegue manter seus valores clássicos no Século XXI, já que “a fusão de empresas jornalísticas ameaça a sobrevivência da imprensa como uma instituição independente, pois o jornalismo se torna uma atividade subsidiária dentro de grandes corporações que baseiam sua gestão em outros objetivos” (Kovach; Rosenstiel, 2003, p. 45, tradução livre). Para corroborar a ideia de que as TICs não foram tão decisivas assim para o declínio da mídia impressa, Garcia e Fariña (2007, p. 13, tradução livre) colocam que desde a última década do Século XX o jornalismo está em “crise” por uma série de fatores, como “um declínio geral na radiodifusão, uma perda de parte do 5 mercado publicitário, um declínio no número de jovens leitores, uma diminuição da influência sobre o rádio e a televisão e aumento dos custos de distribuição e produção”. Apresentadas algumas visões sobre a emergência da comunicação digital e os motivos da mudança paradigmática do fazer jornalístico, é importante compreender esse fenômeno e suas principais características,especialmente aquelas que sofreram alterações com a digitalização da tecnologia. Para tal, observemos os dez paradigmas da mídia na era digital propostos por Orihuela (2003). O autor propõe que tais entendimentos não irão substituir os antigos procedimentos de forma imediata, mas sim apresentam uma perspectiva transicional, sendo que no cenário atual midiático, as formas tradicionais de comunicação e as novas referências produtivas coexistem. • Transformação da audiência “passiva” em usuário “ativo”, já que o conteúdo que o internauta escolhe consumir é decidido por seus gostos e ao nicho que ele pertence; • Mudança de venda da própria mídia para conteúdo, como, por exemplo, a CNN, que não é um tipo específico de mídia, mas sim um canal especialista em conteúdo da atualidade; • Mudança de foco de monomídia para multimídia, uma vez que a internet permite a convergência de diversas mídias em seu escopo; • Alteração da periodicidade para consumo em tempo real, visto que as notícias que tinham certa frequência passam a não ter um momento predeterminado para seu consumo e são atualizadas constantemente; • A ausência de limites de tempo/espaço para as notícias, já que no digital não existe limitação de conteúdo, levando a uma abundância de informações; • Passagem das informações mediadas por um gatekeeper para uma descentralização do que é discutido e disseminado na agenda midiática devido à variedade de fontes que transmitem conteúdos; • Distribuição e acesso de conteúdo de muitos para muitos, com a publicidade e os conteúdos sendo personalizáveis; • Acesso do mesmo canal tanto para produtores quanto para consumidores de conteúdo, com o estabelecimento de uma relação bilateral com a mídia e crescente interatividade; 6 • Mudança de texto linear para hipertexto, com modificação do controle da narrativa se alternando do produtor para o receptor; • Transformação de dados em conhecimento, com crescente foco na informação da informação: “inteligência da informação, interpretação, filtragem e pesquisa combinada com o desafio de novas narrativas multimídia interativas e fornecido por uma ampla gama de canais” (Orihuela, 2003). Como colocado por Ramonet (2013), o jornalismo sofreu mudanças a nível global com a popularização da internet, especialmente o jornalismo tradicional, já que blogs, redes sociais e fóruns de discussão abriram espaços que concorrem diretamente com a forma tradicional de levar notícias. Se antes na mídia impressa não havia a possibilidade de um leitor expressar de forma direta e despachada seu ponto de vista frente uma notícia, hoje qualquer texto postado por um jornalista pode ser alvo de comentários. Ramonet (2013) clama que o enriquecimento de informações se dá devido aos “neojornalistas”, também chamados por ele de “amadores-profissionais”. Não obstante, tanto a participação direta do público, quanto a publicação de informações de tom jornalístico por “neojornalistas” também envolvem questionamentos que estão dentro da alçada do jornalismo, mas geralmente fora da percepção do grande público, como: • Critérios de noticiabilidade (o usuário muitas vezes não tem bom discernimento do que é passível de virar notícia e o que não é); • Critérios de confiança (o usuário pode não checar as fontes antes de transmitir a informação); • Critérios de formato (uso da norma culta, objetividade, imparcialidade). TEMA 2 – AS GERAÇÕES DO JORNALISMO DIGITAL: PRIMEIRA, SEGUNDA, TERCEIRA E QUARTA Desde o começo da incursão do jornalismo pelo universo digital, diversas fases de sua existência podem ser elencadas de acordo com seus processos de produção e de consumo, e se torna importante ressaltar que tais fases não ocorreram de forma totalmente sequenciada e delimitada, tendo coexistindo entre si em determinados momentos. Vejamos quais são as três primeiras de acordo com as proposições de Mielniczuk (2003). 7 A primeira geração pode ser denominada transposição ou reposição, já que aqui os conteúdos oriundos do jornalismo impresso eram meramente transpostos para o ambiente virtual, sem preocupação com um design específico para a web ou modulação dos conteúdos para uma plataforma diferente. Mielniczuk (2003) coloca que os conteúdos eram atualizados a cada 24 horas, o que se relaciona com o ciclo de fechamento dos jornais impressos diários. Por se tratar de uma mera cópia do jornalismo impresso, não existia uma iniciativa de exploração das características próprias da web. O jornalismo online americano, nos primeiros anos de sua existência, é um exemplo clássico dessa prática, que ficou conhecida como shovelware. É interessante notar como Alves (2006) aponta a atividade de transferência de um meio para outro como uma prática já fundamentada no ambiente comunicacional, já que inicialmente o rádio era um “jornal falado” e a televisão um “rádio com imagens”. Assim, em um primeiro momento, a tendência é levar a linguagem e os formatos de uma mídia para outra, com pouca ou nenhuma alteração. A segunda geração se beneficiou das evoluções técnicas da internet no período, e já é possível notar tímidas produções de conteúdo exclusivas para a web e experimentações jornalísticas que levam em conta as possibilidades oferecidas pelo novo meio, como: links com chamadas para notícias de fatos que acontecem no período entre as edições; o e-mail passa a ser utilizado como uma possibilidade de comunicação entre jornalista e leitor ou entre os leitores, através de fóruns de debates; a elaboração das notícias passa a explorar os recursos oferecidos pelo hipertexto; surge a seção ‘últimas notícias’. (Mielniczuk, 2003, p. 9) Na terceira geração, é possível identificar ações jornalísticas específicas para a internet, assim como o lançamento de produtos exclusivos para tal meio. Mielniczuk (2003) aponta a introdução de recursos multimídia, como o uso de sons e animações; de recursos de interatividade, como chats e fóruns de discussão; opções para que o usuário configurasse o produto de acordo com suas preferências, e a atualização contínua das notícias. Por último, temos a quarta geração do jornalismo digital, quando ocorre a integração com bancos de dados complexos que podem cruzar as informações entre si, com ferramentas para apuração, edição e publicação das notícias já totalmente imersas no universo online, formas diversas de interação entre notícia, usuário e repórter e concepção de sites jornalísticos de alta dinamicidade. Essa é 8 a geração que estamos vivendo atualmente, embora já se possa falar na quinta geração do jornalismo digital, como exploraremos no tópico a seguir. TEMA 3 – JORNALISMO DE QUINTA GERAÇÃO: INOVAÇÕES E EXEMPLOS Como mencionado no tópico anterior, as fases do jornalismo digital não são momentos estáticos delimitados por um período temporal certeiro e fixado. Apesar de estarmos vivenciando a quarta geração, autores como Barbosa (2013) e Nunes (2016) debatem se já não teríamos a superado e estaríamos adentrando sua quinta fase. Seguindo a ideia da convergência midiática, na quinta geração do jornalismo online temos a conversação multimidiática entre diferentes plataformas, em uma “atuação conjunta, integrada, entre os meios, conformando processos e produtos, marcado pela horizontalidade nos fluxos de produção, edição, e distribuição dos conteúdos, o que resulta num continuum multimídia de cariz dinâmico” (Barbosa, 2013, p. 33, grifo da autora). A autora chama atenção para o conceito de continuum multimídia, uma união das mídias tradicionais totalmente incorporadas com as ditas novas, com redação integradas (que englobam as produções para apps, web e impresso), múltiplas plataformas e a horizontalidade da produção, da distribuição e do consumo da informação. Tanto Barbosa (2013), quanto Nunes (2016) apontam características observadas em ligação àmobilidade comunicacional, especialmente relacionadas a aplicativos jornalísticos (apps) e a leitura de jornais em tablets, que permitem vislumbrar o possível início de uma quinta geração do jornalismo digital. Barbosa (2013) destaca os produtos autóctones, aqueles formulados nativamente para um meio com conteúdo e funcionalidades exclusivas que: vão além daqueles aplicativos compostos com materiais compilados das edições impressas e dos sites web, os quais, por enquanto, existem como padrão mais comum, configurando a transposição 2.0. Como agentes de inovação, renovação e de reconfiguração para o jornalismo no atual contexto da convergência jornalística, as mídias móveis possuem gramática própria, práticas de produção, dinâmicas de consumo e modelos de negócio específicos. Com as mídias móveis, surge também o fenômeno da appification – que está influenciando o design de sites web, como se pode verificar no redesenho do USA Today13, por exemplo, e no que conformará o novo site do The New York Times. (Barbosa, 2013, p. 43) Nunes (2016) também aponta a importância das produções autóctones no contexto da quinta geração, além de características como a independência do espaço web (não necessidade do navegador ou de protocolos www, com a criação de apps específicos para o jornalismo), a mobilidade e a ubiquidade, um maior 9 potencial off-line, com possibilidade de download das edições e “construção visual, de organização de conteúdo, hierarquização noticiosa e design gráfico com forte influência dos veículos jornalísticos de papel. Esta referência dialoga com influências digitais da própria web, tornando-se um híbrido entre estes dois” (Nunes, 2016, p. 26). Quanto ao último item, Barbosa (2013) traz que até uma possível inversão de ordem de produção pode ocorrer, primeiro se produzindo para os apps e tablets, e depois para as demais plataformas, como a web e o impresso. Por fim, a quinta geração do jornalismo digital se delineia em torno do conceito de remediation, ou seja, a representação de um meio em outro meio, identificando o meio anterior, a linguagem por ele utilizada e seus papéis sociais para então constituir um novo meio em um suporte novo, como coloca Barbosa (2013). No entanto, pela alta rapidez de desenvolvimento dos produtos digitais e a diferenciação constante entre produtos “novos” e “velhos”, a autora expõe que talvez já se possa trabalhar com o conceito de pós-remediação, já que cada vez mais os produtos mais recentes trazem rupturas e novas potencialidades. Exemplos da quinta geração do jornalismo digital podem ser identificados em produtos como O Globo a Mais (do jornal O Globo), o EdiçãoFolha (do jornal Folha de São Paulo), o Estadão Noite (do jornal O Estado de São Paulo), que são publicações digitais totalmente voltadas para tablets e smartphones, além dos aplicativos de jornais como o The New York Times¸ BBC News, Le Monde | Actualités en direct e Herald Sun. TEMA 4 – NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO JORNALÍSTICA: AS AGÊNCIAS INDEPENDENTES A possibilidade de produção de conteúdo a largas audiências por parte dos usuários das TICs proporcionou a emergência de entidades e empresas comunicacionais desvinculadas dos grandes conglomerados de mídia. Novos veículos de informação despontam por meio da organização de comunicadores que constroem agências independentes que possuem modelos de financiamento e de difusão de notícias diferenciados daqueles da mídia tradicional. Além da viabilidade de difusão de conteúdo proporcionada pelas TICs, outro fator que também impulsionou a crescente onda de agências independentes foram os cortes sofridos por inúmeras redações dos mais diversos tipos de veículos. A precarização que atinge os empregos formais também chega ao 10 informais, já que junto do aumento do número de agências, vemos também o crescimento de jornalistas freelancers ou daqueles com contratos como pessoas jurídicas, tipos de negócios que, de certa forma, também podem ser encarados como uma forma de jornalismo independente. Algumas características se apresentam como abrangentes para o jornalismo independente, como o engajamento em uma dinâmica de crítica social aliada a cobertura de eventos ou que não são tradicionalmente noticiados pela grande mídia ou trazendo ângulos que ela não explora; o compromisso com a verdade e a credibilidade; dar vozes a grupos marginalizados ou socialmente não privilegiados; investimentos de modelos de negócios não tradicionais com diferentes práticas de captação monetária; a adoção de práticas metajornalísticas, ou seja, trazer os valores, os princípios e as práxis jornalísticas para o debate público ao trabalhar questões e limites éticos do próprio jornalismo. Nesse sentido, os smartphones e a internet são os grandes instrumentos utilizados pelos jornalistas ligados as agências independentes, que conseguem atingir diretamente o público em uma produção peer-to-peer adaptada ao jornalismo, como coloca Satuf (2016, p. 11): ancorada numa concepção mais horizontal e aberta da comunicação potencializada pelo uso de telefones móveis e smartphones interconectados. No jornalismo peer-to-peer, as informações percebidas como relevantes pelos integrantes de um grupo ganham o tratamento típico de notícia e circulam por redes de cooperação que são formadas mais por afinidade ideológica do que por estruturas corporativas previamente estabelecidas. Trata-se de um jornalismo produzido a partir de mobilizações instantâneas e pontuais, operado por atores tecnologicamente empoderados que se unem para interferir no campo político, econômico ou cultural. Entre 2015 e 2016, a Agência Pública conduziu uma pesquisa que buscava delinear o jornalismo independente no Brasil, relevando que naquela época foram mapeadas 79 iniciativas distribuídas por 12 estados e no Distrito Federal, com 32 delas possuindo caráter comercial e 47 sem fins lucrativos. A Pública ainda revelou que 57 desses veículos possuem alguma forma de financiamento, 35 possuem rendas de fontes diversas, 22 de apenas uma fonte e 22 não possuem financiamento nenhum. Entre as iniciativas com fins lucrativos, 13 afirmaram obter recursos advindos da publicidade, enquanto naquelas sem fins lucrativos o modelo de financiamento mais mencionado foi a doação de pessoas jurídicas, com 15 iniciativas. 11 Por fim, 13 dos veículos publicam diretamente no Facebook, 59 utilizam sites próprios para a publicação de seu conteúdo, o restante divulga em mídias diversas como Twitter e Medium e apenas um utiliza o sistema de newsletter. Pelo site da Pública (Disponível em: <https://apublica.org/mapa-do-jornalismo/#_>. Acesso em: 28 dez. 2020) é possível acompanhar as iniciativas independentes e descobrir mais sobre cada uma delas. Como exemplos de agências independentes no Brasil podemos citar a Agência Pública, a Ponte, o Nexo Jornal, Amazônia Real e AzMina, dentre outros. TEMA 5 – MUDANÇAS DA PRÁTICA: COMO O DIGITAL INFLUENCIA A ROTINA JORNALÍSTICA? A convergência das mídias, a facilidade de acesso à informação e a possibilidade de disseminação de conteúdo fora do controle das grandes empresas de mídias alteraram profundamente a rotina jornalística. Pereira e Adghirni (2011) colocam três mudanças que marcaram o percurso comunicacional com a introdução das inovações digitais: uma aceleração na produção e na disseminação da notícia, a multiplicação de espaços multimídias e modificações na forma de coleta das informações. O oferecimento constante de notícias passou a ser a ordem, e os jornalistas se veem refém da lógica de produção de notícias bem apuradas em um tempo cada vez mais reduzido. Como mostra a pesquisa desenvolvida pela Apex em 2018 sobre o Perfil do Jornalista Brasileiro, ser multitarefas é a realidade cotidiana dos profissionais, já que “59% informaram que dominam de 3 a 6 ‘habilidades’relacionadas à área e 20,7% disseram ter conhecimento em 7 ou mais atividades” (Apex, 2018, p. 15), como produção e edição de imagens, captação e edição de vídeos, design e mesmo experiência com SEO (Search Engine Optimization), técnica do marketing voltada a otimização dos resultados em sites de busca, como o Google. Isso só corrobora a visão do jornalista multitarefa, símbolo do profissional da atualidade, que é obrigado a dominar diferentes linguagens e domínios técnicos, porém sem ter refletida no salário e nas condições de trabalho essa pluralidade de funções. Pela pesquisa da Apex vemos também que as TICs não influenciam apenas os consumidores de notícia, mas também têm papel fundamental na sua produção, já que o e-mail aparece em primeiro lugar como tipo de contato mais utilizado, com o Whatsapp em segundo e o telefone apenas em terceiro. O jornalista agora depende dos meios digitais para fazer seu trabalho, preso em uma 12 relação de dependência e não desligamento dos mesmos. Se o jornalismo é 24 horas, como exalta o slogan da GloboNews, “canal de notícias 24 horas no ar. Nunca Desliga”, o jornalista também acaba o sendo. Um veículo é feito por profissionais, e, se um noticiário nunca desliga, existem profissionais por trás dele que também nunca desligam, como colocam Pereira e Adghirni (2011, p. 46): “as mídias não têm mais horário de fechamento e são publicadas à medida que os fatos se sucedem. Enquanto o jornal ou a revista tem um deadline para a impressão gráfica, na tela, a notícia eterniza-se como num vai e vem das ondas do mar”. A apuração hoje é um procedimento feito por meio de um computador na redação ou pelo WhatsApp. Se antes o jornalista era obrigado a correr atrás da notícia de forma concreta, indo à rua, enfrentando trânsito, se encontrando com a fonte e dela colhendo o depoimento mediante uma relação mais intimista, hoje o profissional de jornalismo corre pelo labirinto que é o ciberespaço, realizando entrevistas pelo celular, fazendo a checagem de fatos e sendo bombardeado por sugestões de pautas. Muitos dos recursos digitais recentes, como o WhatsApp, foram integrados automaticamente às rotinas jornalísticas, na maioria das vezes sem uma regulação prévia ou preparo da redação para lidar com as demandas constantes que ali surgem e com os impactos causados por essa nova forma de comunicação. Nesse sentido, a digitalidade não influencia apenas no fazer prático da notícia, mas também em sua concepção e valor, já que os meios digitais não são utilizados apenas nas entrevistas com as fontes diretas das matérias, mas também permitem colaborações na construção das notícias, com os usuários enviando sugestões de pauta para as redações. Isso pode implicar em uma mudança de valores, já que muitas vezes a tessitura da notícia parte do povo para o jornalista para então retornar ao povo, indicando a mudança de um caminho que anteriormente se originava do jornalista e então seguir para o povo. Tal procedimento pode dar a sensação de inclusão do público na construção do jornalismo, mas também pode alterar os valores do fazer jornalístico, já que agora os valores defendidos pelo público também ganham espaço. As noções de objetividade, transparência, exatidão e verdade, intrínsecas ao jornalismo tradicional, muitas vezes perdem lugar para o que o público entende como notícia, desencadeando abordagens simplórias e dividindo a apuração da notícia com o público. 13 Na corrida por fidelizar a audiência, muitos veículos optam por tal abordagem na expectativa de fazer o público se sentir representado e, assim, voltar para consumir constantemente seus produtos em um ciclo que se retroalimenta. Especialmente em casos de acidentes ou desastres, como desmoronamentos ou alagamentos, o jornalismo incentiva a participação constante do público, especialmente daquele no local do acontecimento, que “faz” uma parte do trabalho do repórter ao enviar para o veículo fotos, vídeos e informações sobre o fato. Por fim, a redução nos times de inúmeras empresas de mídia tradicional causou a migração dos jornalistas para a comunicação institucional, como aponta a Pesquisa sobre o perfil do Jornalista Brasileiro, realizada em 2012, a qual evidenciou que 40% dos jornalistas atuam em atividades de assessoria de imprensa ou em “comunicação ou outras ações que utilizam conhecimento jornalístico” e se localizam fora da mídia tradicional (Mick, 2012). Esse tipo de negócio de mídia se alia a facilidade de divulgação de informação proporcionada pelas TICs e causa alterações no modo de fazer jornalístico, já que interfere no processo de construção da notícia ao sugerir pautas, produzir discursos específicos e influenciar na agenda midiática, no sentido de que “a redução do plantel de jornalistas na imprensa aguçou o interesse de diversas instituições em garantir seus espaços na mídia. Para isso passaram, elas mesmas, a empregar jornalistas para coletar e municiar a imprensa com as suas ‘notícias’” (Sant’Anna, 2006, p. 16). É o que o autor coloca como uma nova modalidade de participante do jornalismo brasileiro, a mídia das fontes, “mídias mantidas e administradas por atores sociais que, até então, se limitavam a desempenhar o papel de fontes de informações [...] Estas fontes são, em grande parte, verdadeiras organizações políticas”. Exemplos são as mídias ligadas aos movimentos políticos, às instituições religiosas, às entidades de classe, empresas (públicas ou privadas), entre outras. O autor coloca que se antes essas fontes eram espectadores externos dos acontecimentos retratados pelo jornalismo, na atualidade elas se configuram como condicionantes de informações coletadas e previamente tratadas e direcionadas a uma determinada visão de mundo que, “ao contrário da imprensa, não estaria desprovida de segundo interesse e sim a serviço de um propósito político, econômico, comercial ou de qualquer outra ordem” (Sant’Anna, 2006, p. 7). 14 REFERÊNCIAS ALMIRON ROIG, N. Los valores del periodismo en la convergencia digital: civic journalism y quinto poder. Revista latina de comunicación social, La Laguna, v. 1, n. 61, 2006. ALVES, R. C. Jornalismo digital: dez anos de web... e a revolução continua. Comunicação e sociedade, Braga, v. 9, n. 10, p. 93-102. 2006. APEX CONTEÚDO ESTRATÉGICO. O perfil do jornalista brasileiro em 2018. (Ebook). Disponível em: <https://conteudo.apexconteudo.com.br/perfil-do- jornalista-brasileiro>. Acesso em: 29 dez. 2020. BARBOSA, S. 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