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AULA 1 JORNALISMO NA ERA DIGITAL Prof. Arthur Franco 2 CONVERSA INICIAL Sociedade global, Aldeia global, Sociedade pós-industrial, Sociedade da informação, Sociedade em rede, Sociedade tecnológica, Sociedade do conhecimento. São diversas as nomenclaturas para denominar o momento atual, que se encontra permeado por transformações técnicas e organizacionais focadas no consumo de tecnologia e informação decorrentes dos avanços nas áreas de microeletrônica e telecomunicações. A relação da humanidade com as mídias sofreu profundas alterações nos últimos trinta anos, assim como o modo de se comunicar e de fazer jornalismo. Passando de um estágio no qual as notícias chegavam principalmente pela mídia impressa e televisiva, o mundo viu uma revolução acontecer com a popularização da internet. Novos meios de consumir, de se informar e de se relacionar foram surgindo (e ainda estão), acarretando mudanças não apenas no campo tecnológico, mas também se infiltrando em todas as áreas e criando novas concepções simbólicas e comportamentais na economia, na cultura e na política. Fronteiras foram alteradas, o próprio espaço- tempo foi encurtado e a quantidade de informações que chega diariamente até nós foi amplificada, assim como os modos que recebemos tais conteúdos. A emergência do ciberespaço, um local povoado virtualmente por dados, pessoas e empresas, fez convergir diferentes interações para o mesmo ponto, e o hipertexto deu possibilidade de tornar as conexões ilimitadas e interligadas. Os avanços nas Tecnologias de Informação e Comunicação, comumente referidas como TICs, alteraram como lidamos com nossos pares e com a própria tecnologia, gerando um novo paradigma tecnológico que, segundo Castells (2002), tem na informação sua matéria-prima principal. Seguindo essa acepção, temos um elevado nível de penetrabilidade dessas novas tecnologias na rotina dos indivíduos e a implementação da lógica de redes tanto em projetos empresariais como pessoais, em um cenário de convergência das mídias e das tecnologias “altamente integrado, no qual trajetórias tecnológicas antigas ficam literalmente impossíveis de se distinguir em separado” (Castells, 2002, p. 109). O desenvolvimento tecnológico possibilitou a organização da sociedade em redes, definidas por Castells (2002, p. 497) como "a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura”. A descentralização é uma das principais características das redes, e tal 3 atributo pode ser aplicado e verificado em diversas áreas da sociedade: o conhecimento deixou de ser agrupado em grandes centros para permear todos os cantos do ciberespaço; empresas, especialmente as multinacionais, passaram a ter polos descentralizados que mantém contato constante; as relações sociais se tornaram fragmentadas, assim como as identidades dos sujeitos. Além disso, a flexibilidade e a adaptabilidade passaram a ser valores amplamente empregados e desejados em diversos âmbitos, gerando reorganização da economia capitalista e das relações de poder. Aqui, é vital fazer uma distinção entre mídias massivas e pós-massivas, de acordo com as ideias propostas por Lemos (2010), pois a compreensão da heterogeneidade que emerge no âmbito digital torna mais claro como a comunicação na era da cibercultura toma forma. Massivas são aquelas que apresentam um fluxo controlado de informação, centralizado e conduzido pelo regime editorial do emissor, transmitido por grandes empresas de comunicação que tem na publicidade um de seus pilares de sustentação financeira em um movimento “para manter as verbas publicitárias, sempre o hit, o sucesso de «massa», que resultará em mais verbas publicitárias e maior lucro. As mídias de função massiva são centradas, na maioria dos casos, em um território geográfico nacional ou local” (Lemos, 2010, p. 124). As mídias massivas foram a principal ferramenta comunicacional por décadas para formar a opinião pública devido ao seu importante papel de coesão social por se dirigirem às massas de forma ampla e abrangente. Já as mídias pós-massivas advêm da possibilidade de qualquer um poder produzir a informação, já que existe a liberação do polo do emissor sem que exista a necessidade de tal mídia estar ligada a um grande conglomerado ou empresa, como coloca Lemos (2010). Ao invés da produção massiva de tendência geral, nas mídias pós-massivas o conteúdo é nichificado, abrindo possibilidade para que um autor não precise: necessariamente passar para uma grande produtora de hits para viver de sua obra. Com novas ferramentas de funções pós-massivas, ele pode dominar, em tese, todo o processo criativo, criando sua comunidade de usuários, estabelecendo vínculos abertos entre eles, neutralizando a intermediação e interagindo diretamente com um mercado de nichos. (Lemos, 2010, p. 125) Entretanto, é preciso ter cuidado para não pensar que as mídias massivas são somente aquelas analógicas e as pós-massivas são apenas advindas da revolução digital. Um grande site de buscas na internet ou uma página de notícias 4 de um grande conglomerado comunicacional podem ser consideradas massivas, enquanto rádios comunitárias ou jornais de bairro impressos são entendidas como pós-massivas, já que se dirigem a um nicho específico. Por isso, é importante pensar na diferenciação entre os dois tipos no quesito de função, e não de dispositivo. O quadro midiático da modernidade é transpassado pelos dois tipos de mídia, que fomentam a conversação pública dando origem a uma “esfera pública mediada”, na qual existe uma transição de mídias informacionais para conversacionais, com maiores e mais constantes trocas de conteúdo ocorrendo em uma esfera mais específica com conhecidos e amigos do que nas mídias massivas com sua emissão impessoal. O jornalismo, que sempre foi tanto um campo, quanto uma profissão em constante mudança e evolução, também foi intensamente afetado pelas TICs, tanto em sua produção quanto no seu consumo. Uma vez que essa área da Comunicação lida diretamente com a realidade social e está em ininterrupta transformação, o jornalismo transita entre diversos polos para dar conta de compreender e apreender como os diversos âmbitos se relacionam. A fetichização do aparato tecnológico atingiu também as redações, informatizando os espaços e os modos de consumo da notícia. Isso não trouxe apenas facilidades na produção (fim das barreiras geográficos, informação em tempo real, facilidade de comunicação com as fontes, possibilidade de observar e trabalhar com diferentes tessituras culturais), mas também acarretou um maior excesso de trabalho aos profissionais da comunicação, já que os meios tecnológicos digitais demandam maior exigência cognitiva e tornam os jornalistas dependentes destes para a realização do seu trabalho. Nos últimos dez anos, vimos a crescente concentração das mais diversas mídias no celular, pelo qual passamos não só a consumir a maior parte da informação que chega até nós todos os dias, mas também possibilitando a produção de conteúdo em tempo real por qualquer um, em qualquer lugar. Para começar nossos estudos, falaremos justamente da convergência tecnológica e informacional de acordo com um dos maiores estudiosos da cibercultura e da comunicação em tempos de amplo e intenso uso da internet, Henry Jenkins. Vamos lá? 5 TEMA 1 – CULTURA DA CONVERGÊNCIA E HENRY JENKINS A ideia de que o surgimento de uma nova mídia causa o desaparecimento de suas predecessoras não é nova. Muito se especulou se o rádio encontraria seu fim com o surgimento da televisão, e com o advento da internet, muitos teóricos declaram que a televisão estaria fadada ao esquecimento. Entretanto, em vez da substituição de um meiopor outro, o que é observado é a ressignificação do uso dos meios tradicionais. McLuhan já identificava na década de 1960 a inter-relação existente entre os meios de comunicação e como estes andam “em pares”, exemplificando como o “conteúdo” da televisão se deve ao cinema. Para o autor: os meios, como extensões de nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os nossos sentidos particulares, como também entre si, na medida em que se inter-relacionam. O rádio alterou a forma das estórias noticiosas, bem como a imagem fílmica, com o advento do sonoro. A televisão provocou mudanças drásticas na programação do rádio e na forma das radionovelas. (McLuhan, 2005, p. 39). As novas mídias não devoram aquelas que as antecederam, mas estabelecem com estas uma relação de retroalimentação que modifica os conteúdos, os usos e os recursos de ambas. Tal relação também pode ser visualizada na chamada Lei de Riepl, proposta por Wolfgang Riepl, editor-chefe do jornal alemão Nürnberger Zeitung e estudioso do processo de evolução das mídias. Há mais de um século, em 1913, ele propôs que o surgimento de uma nova mídia não causa a substituição das já existentes, mas sim que um processo de convergência acontece, com as mídias tradicionais sendo influenciadas pelas novas invenções (Parry, 2012). Apesar do reconhecimento e da popularização dos estudos de convergência como um episódio “recente”, é possível perceber que este é um fenômeno nativo do contexto midiático. Um dos principais teóricos da cultura da convergência é Henry Jenkins, que entende tal processo como a circulação de conteúdo entre diferentes plataformas, muito mais do que uma simples integração tecnicista dos meios. Para ele, convergência não é somente a aglomeração de diversas possibilidades de mídia em apenas um aparelho (como é o caso do celular), mas sim uma alteração nos âmbitos mercadológicos, culturais, sociais e de consumo. Além da afluência tecnológica por meio da aproximação das plataformas, a cultura da convergência também tem como bases a inteligência coletiva e cultura participativa, conceitos que detalharemos nos próximos temas. 6 Como colocado pelo autor (2009), na cultura da convergência existe uma confluência de múltiplos suportes de mídias, com histórias, produtos e informações circulando por diversos meios de comunicação, tanto digitais quanto analógicos. Para que a circulação se efetive, é necessário que os consumidores tenham papel ativo, incentivados pelas mídias a transitarem entre elas em busca de completar um quebra-cabeças de informação. Se no passado os papéis de produtor e consumidor se encontravam bem delimitados e permaneciam em pontas opostas, no ambiente da convergência das mídias, tais atribuições se confundem e interagem de acordo com uma nova formatação midiática. Por conseguinte, podemos entender a convergência como o: fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando. (Jenkins, 2009, p. 27) Em tal cenário de confluência, é possível a difusão de conteúdos por meio de diferentes suportes técnicos, e o processo de convergência não se dá apenas em um sentido como na mídia tradicional. Se previamente a comunicação era feita de cima (empresas) para baixo (consumidores), no cenário atual, ela coexiste em ambos os sentidos, com as indústrias midiáticas se adaptando para oferecer conteúdos multimídia que interagem entre si em diferentes plataformas, e com os consumidores se apropriando das tecnologias e interagindo de forma ativa, tanto na recepção, quanto na produção. Esse cenário proporciona a ampliação de trocas e bens culturais e modifica as formas de interação comunicacional, tanto aquelas mídia-público, quanto as mídia-mídia e as público-público. O momento tecnológico, cultural e histórico intervém diretamente no modo com que os processos comunicacionais são constituídos e percebidos. Com o advento da internet na década de 1970 e sua popularização em anos recentes, as formas de interação entre os sujeitos sofreram importantes mudanças, alterando as perceptivas de construções simbólicas e as formas de obtenção e de transmissão do conhecimento, assim como as posições de produtor e consumidor, conforme veremos no próximo item. 7 TEMA 2 – DE CONSUMIDOR A PRODUTOR: A CIRCULAÇÃO DA INFORMAÇÃO A passagem da Web 1.0 para sua versão 2.0 resultou em uma mudança significativa nas formas de comunicação online, marcada pelo surgimento de blogs e redes sociais, pela alteração do modelo de produção de conteúdo de um- para-muitos para muitos-para-muitos e por um crescente dinamismo e interatividade em uma rede previamente dominada por um modelo estático. As inovações ocorridas nas indústrias voltadas ao âmbito comunicacional e a valorização constante da tecnologia intelectual reorganizaram o ambiente social, especialmente o digital, e permitiu que o consumidor, previamente passível apenas a receber a informação, passasse também a poder a produzi-la e difundi- la. A produção imaterial, ou seja, de conteúdo e de conhecimento, também sofreu valorização, com o crescimento de indústrias focadas na geração de ideias, como design, publicidade e de software, que buscam nos consumidores informações com o intuito de melhorar seus produtos. A audiência (inter)ativa abriu portas para que os consumidores não apenas recebessem o conteúdo, mas também se apropriassem dele, o ressignificassem e o colocassem em circulação novamente. As tecnologias digitais e as redes sociais, como Facebook, Twitter e YouTube, têm um papel fundamental em tal processo, já que qualquer um, em qualquer lugar e a qualquer hora pode acessar e articular conteúdos que podem ser acedidos por um número ilimitado de usuários. Frente a tal tendência, existe uma linha de pensamento teórico que busca escapar do binarismo produção- consumo e visa estudar os dois processos de forma inter-relacional. As fronteiras entre as duas pontas do processo comunicacional se tornam borradas na cultura da convergência, dando origem aos termos prossumidor (prosumer) proposto por Alvin Toffler (2010), na junção de produtor (producer) e consumidor (consumer), ou ainda consumidor 2.0, um personagem que “surge das novas possibilidades de mobilidade, interatividade, participação e personalização oriundas das novas ferramentas e plataformas digitais” (Tavares; Bório, 2014, p. 78). Blogs, wikis e sites de relacionamento social são exemplos nos quais os usuários se comportam tanto como produtores como consumidores, baseados em conteúdo gerado e mantido por usuários. Entretanto, é importante ressaltar que 8 essa possibilidade de difusão por parte dos usuários não traduz o fim de mídia de massa. É perceptível que certas mídias sofreram cortes frente às novas possibilidades tecnológicas, como jornais e revistas impressas, mas os meios de comunicação de massa ainda desempenham um importante papel na constituição da sociedade nos âmbitos econômico, político e social. A cultura da convergência possibilita que tanto indústrias quanto consumidores se beneficiem dessa nova forma de interação: as empresas podem se aproveitar do “trabalho” feito pelos consumidores e disponibilizar seus conteúdos em diferentes plataformas, enquanto os usuários podem comunicar suas preferências na espera da produção de um conteúdo voltado aos seus desejos e ansiedades. O comportamento de prossumidor é facilmente observado na cultura de fãs, tema que é extensamente trabalhadopor Jenkins (2009). Ao passo em que consomem produtos temáticos produzidos por empresas de mídia e entretenimento, os fãs também dialogam entre si em redes abertas de produção, cocriando narrativas próprias, ainda ligadas à narrativa “principal”, mas que ressignificam as temáticas das experiências, dos interesses e dos modos de produção/consumo de dos produtos ligados àquela temática. Apesar da cultura de fãs ser um exemplo popular nos estudos acerca do “prossumismo”, o jornalismo também é afetado pela mudança nas dinâmicas produtor/consumidor, conforme veremos ao longo dessa disciplina, com o desenvolvimento de mecanismos de interação que permitem que o usuário atue sobre a informação exibida, seja ela audiovisual, impressa ou multimídia. TEMA 3 – INTELIGÊNCIA COLETIVA E A DISSEMINAÇÃO DO SABER O segundo pilar da cultura da convergência se apoia na inteligência coletiva (IC), conceito desenvolvido por Pierre Lévy (2003). Vimos anteriormente que a Web 2.0 abriu possibilidades para que os usuários se tornassem também produtores de conteúdo, o que proporcionou a eflorescência de um ambiente colaborativo. É nesse âmbito que desponta a inteligência coletiva, descrita por Lévy (2003, p. 28) como “uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências”. Ou seja, a IC buscar coordenar diferentes indivíduos com diferentes habilidades e colocar os saberes de cada um em 9 circulação, formando algo como uma extensa biblioteca e usando tais conhecimentos em prol de uma coletividade. A coordenação e o compartilhamento desses saberes ocorrem justamente por meio das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), que proporcionam a emergência de um espaço virtual (o ciberespaço) por meio de uma rede de intercâmbio na qual experiências e práticas podem ser disponibilizadas, acessadas e compartilhadas por um número sem limite de usuários. Lévy aponta as interações no ciberespaço como forma de compartilhar e expandir conhecimentos. A IC não se restringe apenas ao compartilhamento de informações em comentários em fóruns e comunidades, mas também aponta para o reconhecimento do outro como um indivíduo dotado de um conhecimento em potencial. Por meio das TICs, existe uma coordenação dos saberes em tempo real com as informações dispostas de forma descentralizadas e facilmente representadas e recuperadas por sistemas de busca e tags, como, por exemplo, no YouTube, um hábil exemplo de como a IC funciona. Inúmeros indivíduos publicam vídeos de múltiplos temas que servem para diversos propósitos e atendem as mais variadas demandas por conhecimento, desde aquele científico até tutoriais de faça você mesmo. Se faz interessante refletir que, na era em que o conhecimento chega ao patamar de moeda de troca extremamente valorizada, não reconhecer que o outro possui competências é destituí-lo de inteligência social. A busca por uma padronização e valorização de apenas determinado tipo de conhecimento, como por meio de boletins escolares e relatórios de produtividade empresariais, marginaliza grupos sociais que acabam privados de identidade econômica, social e política. Lévy (2003) defende que todo sujeito, independentemente de raça, escolaridade ou posição social, possuem saberes individuais originados com sua formação como sujeito, uma vez que: mesmo que esteja desempregado, que não tenha dinheiro, não possua diploma, mesmo que more num subúrbio, mesmo que não saiba ler, nem por isso sou “nulo” […] todos os seres humanos têm direto ao reconhecimento de uma identidade de saber. (Lévy, 2003, p. 28) Por isso é importante frisar que para Lévy a inteligência coletiva está distribuída entre todos os indivíduos. O conhecimento a que ele se refere não se restringe ao saber científico ou técnico, mas toda competência e habilidade possuída por qualquer ser humano, chamadas pelo autor de savoir-faire. Por 10 mínima e aparentemente frívola que uma habilidade possa parecer, ela tem potencial de contribuir para alguém que dela necessita, ou mesmo de ser combinada com outro saber e resultar em um conhecimento florescente. A curadoria de informações é uma atividade praticada extensivamente por todos os usuários das redes sociais, que selecionam o que curtem e o que dão voz e projetam para seus seguidores/amigos. Se antes o jornalista e a equipe editorial dos grandes conglomerados de mídia eram os gatekeepers que decidiam quais informações seriam noticiadas de acordo com a linha editorial, o valor- notícia e outros critérios, hoje a tendência é o mídialivrismo, em que todos podem assumir o papel de autores e editores. Vozes que anteriormente não encontrariam canais para divulgação, como comunidades carentes e populações marginalizadas, hoje encontram na internet possibilidade de não apenas difundir seus anseios, necessidades e vivências, mas também conseguem dialogar com outros grupos não contemplados pelos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, a proposta de inteligência coletiva se apresenta como uma forma de democratização não só da informação, mas também dos sujeitos, frente à exclusão sofrida por aqueles que não possuem os conhecimentos tecnocientíficos valorizados pelo mercado. No âmbito prático do jornalismo, podemos citar como exemplo o uso do Twitter nas trocas constantes que existem entre usuários e os perfis de grandes empresas de jornalismo. A cobertura em tempo real de acontecimentos e a ubiquidade do serviço, como mostra Nunes (2010), são características do jornalismo digital, no qual “a fronteira entre produtores e consumidores de conteúdo é mais tênue e o jornalista pode ter uma relação mais íntima, direta e conversacional com o público” (Nunes, 2010, p. 58). Conforme veremos mais adiante em nossa disciplina, o jornalista passa de gatekeeper para gatewatcher frente à participação ativa do público, discernindo o que é relevante diante uma cacofonia de vozes. Além disso, a coordenação em tempo real dos saberes permite que profissionais da comunicação realizem a checagem de fatos de forma instantânea e dinâmica, procedimento imprescindível na conjuntura de pós- verdade conforme veremos em outra aula. TEMA 4 – CULTURA PARTICIPATIVA E A CONTRIBUIÇÃO DO PÚBLICO A cultura participativa e a criação de conteúdo por parte do usuário digital são o terceiro pilar que, segundo Jenkings (2009), fundamenta a cultura da 11 convergência. Quando se fala de cultura participativa, questões de fandom, democracia virtual, transmídia e jornalismo cidadão emergem, já que vários conceitos transitam sob o guarda-chuva que é esse termo. Para Jenkings (2009, p. 216), a cultura participativa é um fenômeno guiado pela circulação de conteúdos por usuários consumidores e produtores de mídia, uma “cultura em que fãs e outros consumidores são convidados a participar ativamente da criação e da circulação de novos conteúdos”. Antes de prosseguirmos, nos atentemos a uma diferença que nem sempre é percebida pelos comunicólogos e estudantes da cibercultura. Em diversos casos, os vocábulos interatividade e participação aparecem como sinônimos e aparentam ser intercambiáveis. Entretanto, Jenkings (2009, p. 116) fornece uma importante diferenciação entre os dois que pode auxiliar a compreender de forma aprofundada a relação da cultura participativa com o usuário. Para ele, a interatividade se liga ao “modo como as novas tecnologias foram planejadas para responder ao feedback do consumidor”, com diversos níveis de interatividade possíveis devido às diferentes tecnologias (pense na possibilidade de mudar de canal com o controle remoto) e as possibilidades de interação sendo definidas pelo designer do produto ou por restrições tecnológicas. Já a participação é mais controlada pelos consumidores e não pelos produtoresde mídia, não se atendo tanto a restrições tecnológicas. Um exemplo para entender facilmente a distinção entre os dois termos é o computador. Em seus primórdios, ele oferecia interação com as mídias ao usuário, entretanto essas interações eram definidas pelo fabricante/pelos produtores de mídia: havia um limite possível do que o usuário poderia fazer. Com a evolução da Web 2.0, a participação do usuário foi possibilitada, extrapolando os limites impostos pelo fabricante e fazendo seu uso de formas não previstas, tornando qualquer indivíduo passível de produção de conteúdo. Como muito bem colocado por Jenkings (2009, p. 116), “permitir aos consumidores interagir com as mídias sob circunstâncias controladas é uma coisa; permitir que participem na produção e distribuição de bens culturais – seguindo as próprias regras – é totalmente outra”. Mesmo antes do advento das mídias digitais, a ideia de um público que não interagia com o conteúdo comunicacional das mídias massivas já era rechaçado. A noção de passividade total do público, como proposto pela Teoria da Agulha Hipodérmica, foi descartada há décadas por se entender que, mesmo nas mídias tradicionais, o público nunca é totalmente passivo. Entretanto, as TICs 12 deram possibilidade de o usuário tomar papel ativo na construção e na difusão do conhecimento. Jenkins (2009) coloca que o consumidor agora também assume o papel de prossumidor, alterando hierarquias e até mesmo a tomada de decisões por meio de um consumo “produtivo” e cidadão. Entretanto, a participação do público no sistema midiático em si não é tão novidade assim. No passado, as inserções dos usuários em programas de TV e rádio, jornais e revistas eram feitas via cartas e telefonemas, passíveis em muito caso de severa edição antes de serem levadas ao ar. Hoje, com a mobilidade e a interatividade na palma da mão, a possibilidade de contato em tempo real com o público é muito maior, e o nível de edição possível por vezes é menor, resultando em casos nos quais manifestações contrárias aos valores do programa feitas por espectadores ainda acabam sendo exibidas. Exemplos de participação do público são inúmeros, sejam em plataformas jornalísticas ou não: espectadores enviam fotos que são exibidas em telejornais; tweets do público sobre determinado tema são mostrados em inúmeros programas; caixas de comentários convidam os usuários ao debate em portais de notícia. Com a migração para o digital, o jornalismo trouxe consigo o público, dando voz e lugar para que este pudesse participar não só do consumo interativo da notícia, mas também da produção da mesma. Manifestações do jornalismo participativo podem ser observadas tanto em veículos menores e locais quanto nos grandes conglomerados de mídia, e essa tática de inserir a participação do público no jornalismo é vista por muitos como uma tentativa de evitar a evasão dos leitores/espectadores para outras mídias, como blogs e redes sociais. TEMA 5 – REDAÇÃO E ROTINA MULTIMÍDIAS Uma tendência oriunda com a convergência das mídias é a multimidialização do jornalismo, ou seja, a produção de conteúdo especialmente voltado para o espaço online, com uso de imagens, textos, vídeos, som, hiperlinks e a integração com outras mídias, entre outros recursos. Salaverría (2014, p. 30) propõe que multimídia é a “combinação de pelo menos dois tipos de linguagem em apenas uma mensagem”, o que permite visualizar que a ideia de multimídia já estava presente antes do jornalismo digital, como na televisão, em que imagens e sons se entrelaçam para a transmissão das informações. Entretanto, o ambiente virtual possibilitou a multiplicação dos recursos utilizados e facilitou sua publicação e disseminação. 13 Para que os elementos multimídia estejam em consonância entre si e atraiam o público ao serem combinados em um conteúdo, Salaverría (2014) propõe que eles obedeçam certa harmonia e estabelece seis critérios que devem ser levados em conta no momento de coordenar os componentes. O primeiro é a compatibilidade, ou seja, combinar elementos compatíveis que não disputarão entre si pela atenção do leitor. O segundo se traduz na complementariedade, o ideal de que os dois recursos devem se enriquecer mutualmente, enquanto o terceiro é ausência de redundância, já que não se deve repetir o mesmo conteúdo em cada formato. Em quarto lugar temos o ato de hierarquizar os elementos com o intuito de “determinar qual é a linguagem que melhor se adequa à transmissão desse conteúdo” (Salaverría, 2014, p. 43) e dar a ele mais tempo e/ou espaço. A ponderação é o quinto elemento, cabendo ao profissional entender as limitações do meio, sejam elas de espaço, tempo, velocidade da internet. Como coloca o autor, não é porque a internet disponibiliza um espaço “infinito” que os usuários estão dispostos a consumir toda informação disponível. E por fim temos o critério da adaptação, o respeito às próprias normas e estilos do meio. Assim como as possibilidades de entrega da notícia por meio de múltiplos formatos foram alteradas na era da convergência, a rotina do fazer jornalismo também se apresenta diferenciada. Não apenas o jornalista precisa apurar a pauta e escrever o texto, mas também é necessário que ele entenda como as diferentes mídias funcionam, qual delas funciona melhor com o texto que ele está produzindo, aprender sobre métrica e como elas funcionam. No campo da cibercultura, as métricas de como uma publicação está se saindo, ou seja, quantos cliques a matéria teve, quantos leitores a leram, de onde eles vieram, para onde eles são redirecionados são um dos corações da convergência das mídias e do jornalismo digital. Entretanto, apenas ler os números não é plenamente satisfatório nem garante resultados positivos. A lógica que opera no sistema mercadológico da comunicação é a do lucro, em que “mais é melhor”, logo, mais cliques significam uma maior audiência, e uma maior audiência significa mais anúncios publicitários, o que por sua vez significa mais lucro. Esse tipo de mentalidade leva a publicação de tudo que pode ser considerado notícia, abrangendo desde os grandes acontecimentos até as pequenas ocorrências voltadas para os nichos. A demanda de concentrar-se apenas nas métricas pode levar a graves complicações no jornalismo. Todas as questões que tangem a escolha da pauta, 14 a apuração, a abordagem da matéria, o tratamento das fontes e o debate sobre qual a melhor mídia para postar o conteúdo se veem muitas vezes submersas e ofuscadas pela pressa de publicar a matéria primeiro e de obter o maior número de cliques, o que leva a uma tendência de todos os portais de notícia publicarem as mesmas notícias com os mesmos enfoques. A avidez de publicar sobre aquilo que está sendo debatido nas redes sociais de alta rotatividade de informação, como os Trending Topics do Twitter, para garantir cliques por parte dos internautas pode levar a erros graves de apuração que obrigam o veículo a se retratar pela falha posteriormente, o que pode acabar causando descredibilidade nos conteúdos futuros por este postado. Muitas vezes é menos danoso postar a notícia com “atraso”, mas com uma apuração séria e verdadeira, do que ter de pedir desculpas por disseminar inverdades. Seguindo ainda no campo da prática jornalística, é perceptível um movimento de “hamsterização” do jornalismo. Tal termo surgiu em um artigo do jornalista Dean Starkman, publicado em 2010 na Columbia Journalism Review, que dialoga com a rotina aparentemente sem fim que guia o jornalismo digital. A comparação vem da roda presente nas gaiolas dos hamsters, que giram a peça não com algum objetivo, mas apenas pelo movimento. Assim se guiaria o jornalismo digital segundo o autor, no qual o fechamento das matérias parece não ter fim, já que com a publicação de uma matéria é preciso também dar conta deseus desmembramentos: fazer um podcast, postar nas redes sociais e em blogs, fazer vídeos sobre o conteúdo, responder eventuais comentários dos leitores, publicar fotos etc. Boa parte do jornalismo exercido em grandes centros de comunicação se guia pela quantidade de matérias e de cliques, sempre requerendo mais e mais da já espremida redação. Mais matérias em diferentes plataformas significariam mais cliques e maior audiência, em uma busca constante por quantidade e deixando a qualidade e a profundidade dos assuntos de lado, como coloca Starkman (2010, online, tradução livre), “a roda do hamster não é velocidade; é movimento pelo movimento. A roda do hamster é volume sem pensamento. É o pânico das notícias, uma falta de disciplina, uma incapacidade de dizer não”. Além disso, a “hamsterização” do jornalismo também tange a rotina do profissional. A tendência também é da criação de matérias que causem um pico na audiência, mas que nem sempre tiveram tempo para serem apuradas com a devida profundidade requerida pelo tema. Starkman também chama atenção em 15 seu artigo para como as redações estão diminuindo de tamanho e como o volume de matérias parece aumentar ano após ano. Se previamente ao jornalista eram atribuídas as funções de pauteiro e de cobrir e escrever a matéria, os cortes sofridos nas redações e a busca constante por volume de publicações causa a demanda por jornalistas “polivalentes”, que cobrem, escrevem, editam, postam, entendem de códigos e algoritmos, compreendem os diferentes tipos de mídia e de audiências. Se é preciso que o jornalista seja muitos em um só, o que se observa nas redações é que um só faça as tarefas de muitos. As inovações tecnológicas facilitaram o fazer jornalístico de inúmeras formas, e muitas empresas se aproveitam dessas valências como motivo para reduzirem seu grupo de profissionais, sobrecarregando os que permanecem. 16 REFERÊNCIAS CASTELLS, M. A sociedade em rede. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. JENKINS, H. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: ALEPH, 2009. LEMOS, A. Celulares, funções pós-midiáticas, cidade e mobilidade. Revista brasileira de gestão urbana, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 155-166, 2010. LÉVY, P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2003. MCLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. 17. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. NUNES, E. O uso jornalístico do twitter no contexto da inteligência coletiva: uma análise dos tweets de @ESTADAO, @TERRANOTICIASBR E @ZEROHORA. 70 f. (Graduação em comunicação social: Habilitação em jornalismo) – Faculdade de biblioteconomia e comunicação, Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul, Porto Alegre, 2010. RAMONET, I. A explosão do jornalismo na era digital. In: MORAES, D. de. (Org.). Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FAPERJ, 2013, p. 14-39. PARRY, ROGER. A ascensão da mídia: a história dos meios de comunicação de gilgamesh ao google. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. SALAVERRÍA, R. Multimedialidade: informar para cinco sentidos. In: CANAVILHAS, J. (Org.). 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