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INTERACÇÕES NO. 39, PP. 285-295 (2015) 
http://www.eses.pt/interaccoes 
PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO: 
A IMPORTÂNCIA DOS SABERES POPULARES PARA O 
ENSINO DE CIÊNCIAS 
Fábio Gabriel Nascibem 
Instituto de Química de Araraquara – UNESP – Brasil 
fnascibem@yahoo.com.br 
 
Alessandra Aparecida Viveiro 
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP – Brasil 
alessandraviveiro@gmail.com 
 
 
Resumo 
Este trabalho tem por objetivo estabelecer uma discussão sobre a importância 
da inserção dos saberes populares no ensino de ciências e no pensamento científico. 
Ao se levar em conta as culturas dos indivíduos e da comunidade em que se inserem, 
os conhecimentos proibidos ganham espaço na formação dos estudantes e novos 
paradigmas podem ser estabelecidos. A partir disso, podemos construir um fazer 
pedagógico que seja muito mais prazeroso e, também, ampliar os horizontes do 
conhecimento acadêmico. Não se trata de reduzir o status do conhecimento científico, 
mas elevar as outras formas de conhecimento, fazendo relações entre saberes, 
apresentando, explorando e discutindo diferentes visões de mundo. Acreditamos que 
levar em conta os saberes populares dos estudantes é uma ferramenta humanizadora 
e uma forma de levar em conta a subjetividade do aluno e situá-lo como transformador 
de seu próprio mundo, fazendo assim uma educação científica crítica e cidadã. 
Palavras-chave: Ensino de ciências; Conhecimento científico; Saberes populares. 
Abstract 
The objective of this paper is the discussion about the importance of insertion of 
the people’s knowledge in science teaching and in to scientific thought. Its importance 
is given therefore to take into account the culture of individuals and communities in 
which they operate; forbidden knowledge gaining ground in the training of students, 
new paradigms will be established. It is not reduce the status of scientific knowledge, 
 PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 286 
http://www.eses.pt/interaccoes 
but raise other forms of knowledge, making relationships between knowledge, 
presenting, discussing and exploring different worldviews. We believe that taking into 
account the popular knowledge of the students is a humanizing tool and a way to take 
into account the subjectivity of students and situates it as a processor of its own world, 
thus making a science education and critical citizenship. 
Keywords: Science education; Scientific knowledge; People’s knowledge. 
 
Introdução 
Na sociedade, em geral, os conhecimentos científicos são considerados como 
perfeitos, infalíveis e acabados, conferindo à ciência um status indevido e 
superestimado (Chalmers, 1993) em detrimento de outras visões de mundo. 
O meio acadêmico, por sua vez, comumente ignora a cultura, os conhecimentos 
das pessoas da comunidade em que está inserido, o conhecimento dos não letrados e 
tudo aquilo que a circunda. Em suma, o conhecimento válido é somente aquele 
produzido pelos pesquisadores, o conhecimento científico. 
No entanto, é preciso considerar que a ciência é um constructo humano, logo é 
falível, dinâmica, mutável. Abandonar uma postura dogmática e fechada na ciência 
passa por ampliar seus horizontes. Nesse sentido, o saber popular tem condições de 
apresentar muitos novos desafios. 
Para Feyerabend (2011), a voz dos leigos deve ser ouvida. Segundo o autor, os 
considerados leigos são dotados de conhecimentos igualmente importantes aos 
científicos. Exemplifica com o caso da acupuntura, saber milenar oriental que teve 
conhecimentos incorporados na medicina ocidental. Na história da ciência, temos o 
caso de Paracelsus que viajava pelo mundo em busca de conhecimentos populares 
em ervas e plantas para incorporar à sua “iatroquímica” na intenção de obter novos 
caminhos para a medicina por discordar das teorias vigentes (Stratern, 2002). 
Chalmers (2011), por sua vez, destaca que as primeiras pessoas a levantarem a 
mão contra pressupostos científicos e identificarem problemas ambientais foram 
pessoas “comuns”, inseridas em setores diversos da sociedade. 
Apesar desses aspectos, seguindo a tendência hegemônica, positivista e 
287 NASCIBEM & VIVEIRO 
http://www.eses.pt/interaccoes 
cientificista, a escola, muitas vezes, prioriza o conteúdo científico, preconizado por 
livros didáticos, e despreza os saberes, as vivências e os conhecimentos alternativos 
dos estudantes. Predomina, assim, o ensino de ciências em uma perspectiva 
transmissiva, descontextualizado, reforçando a neutralidade da ciência e 
negligenciando as relações entre ciência, tecnologia e sociedade (Gondin & Mól, 
2009). 
Costa (2008, p. 165), nesse sentido, levanta a questão: “se os saberes 
etnológicos são desprestigiados na academia, e portanto na formação docente, como 
esperar que o professor insira esse conhecimento em sua prática cotidiana?”. Para o 
autor, isso passa pelo “reconhecimento, por parte dos professores e da academia, dos 
‘saberes populares’ como valiosos no processo de ensino-aprendizagem, os quais 
serão acessados pelo contato com a realidade social dos alunos” (Op. cit., p. 165). 
Ensino de Ciências: Problemas e Desafios 
O ensino de ciências naturais tende a ser transmissivo em detrimento de 
abordagens investigativas. As aulas práticas, que poderiam ser uma importante 
estratégia para exploração sobre a complexidade da natureza das ciências, são 
muitas vezes similares a receitas culinárias, onde tudo que se faz é seguir passos de 
um roteiro, sem nenhuma discussão prévia ou posterior (Borges, 2002). 
A relação dialógica entre teoria e prática muitas vezes é ignorada. As práticas 
em sala de aula priorizam conhecimentos descontextualizados e a memorização de 
fórmulas e expressões. Dessa forma, o ensino de ciências não se constitui como 
fomentador da curiosidade dos alunos, não favorece o interesse pela área e pouco 
contribui para a explicação dos fenômenos cotidianos e para melhor relação desses 
estudantes com o meio onde vivem. 
Os saberes populares invadem a escola mas são comumente 
desconsiderados pois o conhecimento científico é considerado hegemônico e 
superior (Chassot, 2011). Nesse sentido, Chassot (2004) discute os currículos 
marginalizados, ou a história dos “sem história”, que denomina de “currículos 
proibidos”, que são os conhecimentos daqueles que estão à margem e, portanto, 
subjugados pela Academia, ou seja, seus conhecimentos não tem espaço em 
currículos arbitrários que seguem diretamente na direção de interesses de classes 
dominantes. 
 PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 288 
http://www.eses.pt/interaccoes 
Segundo Corrêa e Brito (2012), os currículos das escolas brasileiras ignoram 
os saberes dos grupos marginalizados, desprezam a cultura e também 
propostas que utilizem esses saberes como ferramentas para o ensino de 
ciências. Contituem “conhecimentos esquecidos, abandonados, subjugados por um 
conhecimento considerado superior e vivem à margem do que, modernamente, 
chamamos ciência” (Bastos, 2013, p. 6195). 
Essas condições impostas na escola, catalisadas por ações midiáticas 
(Kominsky & Giordan, 2002), perpetuam distorções quanto ao pensamento científico e 
a natureza da ciência na qual é recorrente a transmissão de uma ciência mágica, 
inacessível, para poucos, para gênios, em suma, uma ciência esotérica (Chassot, 
2011). 
Para Silva e Zanon (2000), a escola deve ser o local de mediação entre a teoria 
e prática, o ideal e o real, o científico e o cotidiano. Assim, não deve priorizar 
currículos unificados e universais, mas levar em conta aspectos regionais e se 
aproximar da comunidade onde está inserida. 
É preciso dar espaço para os saberes e a cultura dos indivíduos, articulando 
saberes populares e científicos no ensino de ciências. Não se trata de reduzir o status 
do conhecimento científico, mas elevar o de outras formasde conhecimento, fazendo 
relações entre saberes, apresentando, explorando e discutindo diferentes visões de 
mundo. Como discute Paulo Freire (1987, p. 68), “não há saber mais ou saber menos, 
há saberes diferentes”. 
Saberes Populares e Conhecimento Científico 
O conhecimento científico é definido na literatura a partir de diferentes 
perspectivas. São considerados científicos os conhecimentos produzidos por 
instituições científicas, de pesquisa, e que seguem rígidos métodos para lhe atribuir 
confiabilidade e lhe diferir dos conhecimentos não científicos. Têm como objetivo 
explicar os fenômenos da natureza, da sociedade, etc., e baseia-se em problemas de 
pesquisa muito bem definidos e que são esmiuçados seguindo metodologias e 
processos na busca de resultados para o problema inicial. 
Para Maturana (2001), a palavra ciência está associada, atualmente, ao 
conhecimento validado através do chamado “método científico”, que toma como base 
dois pressupostos: 
289 NASCIBEM & VIVEIRO 
http://www.eses.pt/interaccoes 
“a) que o método científico, seja pela verificação, pela confirmação, ou pela 
negação da falseabilidade, revela, ou pelo menos conota, uma realidade objetiva 
que existe independentemente do que os observadores fazem ou desejam, 
ainda que não possa ser totalmente conhecida; b) que a validade das 
explicações e afirmações científicas se baseia em sua conexão com tal realidade 
objetiva.” (p. 125). 
 Para Dieckmann e Dieckmann (2008), é científico o conhecimento sistematizado 
e publicado pela Academia. Lopes (1999) defende que são considerados científicos os 
conhecimentos objetivos, sem influência da subjetividade, descobertos e provados a 
partir da experiência e da experimentação. Essa visão empírico-indutivista das 
ciências, além de ser preconceituosa, muito diz a respeito da exclusão de outras 
visões de mundo nos estudos presentes na Academia. Na Psicologia, por exemplo, a 
psicanálise foi, por muito tempo, considerada como não científica em razão de seu 
problema de pesquisa não ser tão bem definido (no princípio) e não conter o 
positivismo que o seu tempo impunha (Cunha, 2000). 
Os saberes populares, por sua vez, são aqueles que as pessoas possuem 
acumulados durante sua vida e servem para explicar e compreender aquilo que as 
cerca. Lakatos e Marconi (2003, p.75) definem o saber popular como aquele 
“transmitido de geração em geração por meio da educação informal e baseado em 
imitação e experiência pessoal”. 
Conforme discute Bastos (2013), 
“as diferentes populações humanas apresentam um arsenal de conhecimentos 
sobre o ambiente que as cerca. Propriedades terapêuticas e medicinais de 
animais e plantas, a percepção dos fenômenos naturais, como as estações 
do ano, tempo para plantar e colher, classificação de animais e plantas, 
organização de calendários, dicionários, sazonalidade de animais e sua relação 
com aspectos da natureza são organizações que formam um cabedal de 
saberes que comumente são chamados de conhecimentos tradicionais.” (p. 
6195) 
Esses conhecimentos não possuem o mesmo rigor e nem sempre trazem a 
pretendida veracidade científica, mas carregam enorme riqueza cultural e de 
experiência de vida. 
 PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 290 
http://www.eses.pt/interaccoes 
Podem ser confundidos com o senso comum, mas Chassot (2011) os diferencia. 
Para o autor, o senso comum está disseminado em todo tecido social, enquanto os 
saberes populares são aqueles associados às práticas cotidianas das classes 
destituídas de capital cultural e econômico. 
Associados a conhecimentos adquiridos à luz da experiência em anos de 
trabalho e de vida, e sendo parte da cultura do indivíduo e de um grupo social, os 
saberes populares podem trazer grandes contribuições se forem estabelecidos 
diálogos com os conhecimentos científicos. Este processo pode ocasionar muitas 
determinações interessantes e novos caminhos para ciência, por um lado, e 
valorização daqueles que produzem e detêm os saberes populares, por outro. Na 
escola, essa articulação é especialmente interessante e necessária. 
Breve Panorama dos Estudos sobre a Temática: Algumas Reflexões 
Buscando traçar um breve panorama das pesquisas brasileiras envolvendo 
saberes populares no ensino de ciências que nos possibilitasse reflexões sobre o 
tema, sem a pretensão de aprofundamento, realizamos um levantamento bibliográfico 
dos artigos publicados em três importantes periódicos da área no período de 2009 a 
2013: Ensaio (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG), Ciência e Educação 
(Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP) e Investigações em 
Ensino de Ciências (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS). 
A busca incidiu sobre o título, resumo e palavras-chave, baseada em termos que 
pudessem remeter ao tema de interesse como, por exemplo, saberes populares, 
conhecimento popular, concepções alternativas, fazeres populares. Em caso de 
dúvidas, consultamos o trabalho completo. 
Em nenhum desses veículos localizamos artigos sobre o tema. 
Realizamos, então, a mesma busca nas atas das edições de 2007, 2009 e 2011 
do Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC) (Associação 
Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências [ABRAPEC], 2009, ABRAPEC, 2011 
& ABRAPEC, 2012)1. O Quadro 1 apresenta a síntese do levantamento, reunindo os 
																																																													
1 O Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC) é um evento bienal 
promovido pela Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC). Ao 
longo dos anos, tem se consolidado no Brasil ao reunir pesquisadores das áreas de Ensino de 
Física, de Biologia, de Química, de Geociências, de Ambiente, de Saúde e áreas afins. Os 
291 NASCIBEM & VIVEIRO 
http://www.eses.pt/interaccoes 
trabalhos localizados relacionados com a temática comparados com o total de artigos 
publicados nos Anais do evento nas três edições. 
 
Quadro 1 – Síntese do levantamento bibliográfico realizado nas Atas do ENPEC. 
Ano 
Trabalhos 
Relacionados/Total de 
Trabalhos 
Título Autores 
2007 0/601 - - 
2009 1/533 
Interlocução entre os saberes: 
relações entre os saberes populares 
de artesãs do Triângulo Mineiro e o 
ensino de ciências. 
Gondim; Mól. 
2011 2/1187 
Diálogo dos saberes: o 
conhecimento científico e popular 
das plantas medicinais na escola. 
Kovalski; 
Obara; 
Figueiredo. 
Dialogando saberes no campo: um 
estudo de caso em uma Escola 
Família Agrícola. 
Lima; Freixo. 
 
 
Conforme indicado, foram identificados somente três artigos que tratavam da 
temática “saberes populares”, sendo um na edição de 2009 e dois na edição de 20112, 
que discutiremos brevemente a seguir. 
Gondim e Mól (2009) pesquisaram saberes populares de artesãos moradores do 
																																																																																																																																																																																			
Anais da oitava edição do evento, ocorrida em 2011, foram publicados em 2012, justificando a 
diferença de datas observada entre o evento e a citação do artigo. Em dezembro de 2013, foi 
realizada a nona edição. No entanto, por ocasião do levantamento realizado, os Anais ainda 
não estavam publicados e, por isso, não foram objeto da pesquisa. A publicação dos Anais 
ocorre após o evento, reunindo somente os trabalhos efetivamente apresentados. 
2 O elevado número de trabalhos se comparado às edições anteriores talvez possa ser 
associado ao fato de que o ENPEC, nesta ocasião, ocorreu de forma simultânea com o 
Congreso Iberoamericano de Investigación en Enseñanza de las Ciéncias. 
 PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 292 
http://www.eses.pt/interaccoes 
triângulo mineiro, discutindo suas relações com a perspectiva Ciência-Tecnologia-
Sociedade- CTS e a aplicação desses saberes no ensino de ciência. 
Neste trabalho, é notável a riqueza de informações e conhecimentos que os 
moradores detalham em suas práticas. Relatam, por exemplo, diversos 
conhecimentos químicos na arte da tinturaria, como conceito de solubilidade, 
separação de misturas, entre outros, usados no processo de tingimento e aplicado a 
técnicas que evitem o desbotar das roupas após tingir. 
Verificou-se, também, que seus conhecimentos são passados entre as gerações 
e que há grande influência da religião e de crenças. Notável, também, como atribuem 
influência das fases da lua ou do ciclo menstrual, por exemplo, nas suas práticas. 
Os autores terminam por dizer que a abordagem desses conhecimentos na 
educação escolar promove a interdisciplinaridade, a contextualização e a 
problematização com as práticas dos moradores da comunidade, podendo 
proporcionar uma aprendizagem mais prazerosa. 
Outro artigo localizado, de Kovalski, Obara e Figueiredo (2012), trata da 
abordagem dos saberes dentro da sala de aula relacionada à medicina natural. Os 
pesquisadores trabalharam com alunos de uma escola rural no município de 
Maringá-PR, propondo o diálogo entre os saberes populares que os alunos carregam 
e os conhecimentos científicos relacionados às plantas. 
Segundo os autores, o trabalho promoveu o diálogo, quebrou a monotonia do 
ensino transmissivo e permitiu desenvolver os conhecimentos prévios dos alunos 
sobre medicina natural e acerca de plantas, tais como dados científicos das mesmas e 
propriedades. Concluem indicando que a escola geralmente despreza os saberes 
populares dos alunos e enfatizando a necessidade de promoção deste diálogo. 
O terceiro artigo, de Lima e Freixo (2012), trata de um estudo de caso em uma 
escola agrícola de Valente-BA. Os autores identificaram que os alunos possuíam 
conhecimentos alternativos em relação à fauna e flora e, a partir disto, foi possível 
estimular os diálogos entre o que traziam de bagagem e o conhecimento científico 
aceito pela comunidade científica. As autoras destacam o enriquecimento mútuo que a 
troca de experiências proporcionou. 
A partir desse breve levantamento, podemos tecer duas considerações: em 
primeiro lugar, identificamos que a temática é ainda pouco estudada e discutida, o que 
corrobora para a manutenção do conteudismo e descontextualização encontrados em 
293 NASCIBEM & VIVEIRO 
http://www.eses.pt/interaccoes 
nossas escolas no ensino de ciências; em segundo lugar, pelos trabalhos analisados, 
verificamos a riqueza dos saberes populares e o quanto a exploração destes saberes 
nas aulas pode ser interessante. 
Considerações Finais 
A partir das discussões tecidas neste trabalho, enfatizamos que, para a melhoria 
do ensino de Ciências, entre outros aspectos, é preciso dar espaço para os saberes e 
a cultura dos indivíduos e da comunidade em que se insere. É preciso superar 
preconceitos para com os sujeitos marginalizados, “sem história”. Os “conhecimentos 
proibidos” (Bizzo, 2009) podem e devem ser objetos de estudo da ciência e integrar o 
ensino de ciências, trazendo a comunidade para dentro das escolas e das 
universidades. 
A partir disso, podemos construir um fazer pedagógico que seja muito mais 
prazeroso e, também, ampliar os horizontes do conhecimento acadêmico, 
incorporando os saberes e culturas das comunidades. 
Acreditamos que levar em conta os saberes populares dos estudantes é uma 
ferramente humanizadora e uma forma de levar em conta a subjetividade do aluno e 
situa-lo como transformador de seu próprio mundo, fazendo assim uma educação 
científica crítica e cidadã. 
Referências Bibliográficas 
Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (2007). Anais do VI 
ENPEC – Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Belo 
Horizonte: ABRAPEC. 
Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (2009). Anais do VII 
ENPEC – Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Belo 
Horizonte: ABRAPEC. 
Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (2012). Anais do VIII 
ENPEC – Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências e do 
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de Janeiro: ABRAPEC. 
Bastos, S. N. D. (2013). Etnociências na sala de aula: uma possibilidade para 
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 PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 294 
http://www.eses.pt/interaccoes 
Seminário Internacional de representações sociais, subjetividade e educação. 
Curitiba: PUC. 
Bizzo, N. (2009). Ciências: fácil ou difícil? São Paulo: Biruta, 2009. 
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Chassot, A. (2004). Para quem é útil o ensino. Canoas: Editora Ulbra. 
Chassot, A. (2011). Alfabetização científica: questões e desafios para a educação. 5 
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295 NASCIBEM & VIVEIRO 
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em educação em ciências. Rio de Janeiro: ABRAPEC. 
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Introdução: a história das ciências e seus usos na educação
Chapter · January 2006
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1 author:
Roberto A. Martins
University of Campinas
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Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxi — #21
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INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS
CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO
Roberto de Andrade Martins
A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS nos apresenta uma visão a respeito da natureza dapesquisa e do desenvolvimento científico que não costumamos encontrar no
estudo didático dos resultados científicos (conforme apresentados nos livros-texto
de todos os níveis). Os livros científicos didáticos enfatizam os resultados aos quais
a ciência chegou – as teorias e conceitos que aceitamos, as técnicas de análise que
utilizamos – mas não costumam apresentar alguns outros aspectos da ciência. De
que modo as teorias e os conceitos se desenvolvem? Como os cientistas trabalham?
Quais as idéias que não aceitamos hoje em dia e que eram aceitas no passado? Quais
as relações entre ciência, filosofia e religião? Qual a relação entre o desenvolvimento
do pensamento científico e outros desenvolvimentos históricos que ocorreram na
mesma época?
A história das ciências não pode substituir o ensino comum das ciências, mas
pode complementá-lo de várias formas¹. O estudo adequado de alguns episódios
históricos permite compreender as interrelações entre ciência, tecnologia e socie-
dade, mostrando que a ciência não é uma coisa isolada de todas as outras mas sim
faz parte de um desenvolvimento histórico, de uma cultura, de um mundo humano,
¹ Sherratt 1982–1983 apresenta um histórico a respeito da utilização da história da ciência na educação,
mostrando que as primeiras propostas ocorreram há mais de um século. Matthews 1994 apresenta uma
visão geral sobre o uso da história e da filosofia da ciência na educação e uma boa bibliografia sobre o
assunto. Ver também Martins 1990.
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XXII INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO
sofrendo influências e influenciando por sua vez muitos aspectos da sociedade².
Todos conhecem os nomes de Lavoisier, Newton, Galileu, Darwin. Mas o que estava
acontecendo no mundo (e, especialmente, nos lugares onde eles viviam) quando
eles desenvolveram suas pesquisas? Não existiu nenhuma relação entre o que eles
fizeram e aquilo que estava acontecendo em volta deles? É claro que existiu. Mas
não costumamos estudar isso, o que dá a falsa impressão de que a ciência é algo
atemporal, que surge de forma mágica e que está à parte de outras atividades
humanas. Na verdade, mesmo a matemática – que parece um conhecimento muito
distante das preocupações do dia-a-dia – sofre forte influência de outras áreas. Por
exemplo: a teoria das probabilidades surgiu, no século XVII, como decorrência de
preocupações com jogos (de dados, de cartas, etc.) e apostas em dinheiro (Sheynin
1977; Bellhouse 1993).
O estudo adequado de alguns episódios históricos também permite perceber o
processo social (coletivo) e gradativo de construção do conhecimento, permitindo
formar uma visão mais concreta e correta da real natureza da ciência, seus pro-
cedimentos e suas limitações – o que contribui para a formação de um espírito
crítico e desmitificação do conhecimento científico, sem no entanto negar seu
valor. A ciência não brota pronta, na cabeça de “grandes gênios”. Muitas vezes,
as teorias que aceitamos hoje foram propostas de forma confusa, com muitas
falhas, sem possuir uma base observacional e experimental. Apenas gradualmente
as idéias vão sendo aperfeiçoadas, através de debates e críticas, que muitas vezes
transformam totalmente os conceitos iniciais. Costumamos dizer que nossa visão
do universo, heliocêntrica, foi proposta por Copérnico no século XVI. No entanto,
existe pouca semelhança entre aquilo que aceitamos hoje em dia e aquilo que
Copérnico propôs. Também não pensamos como Galileu, por exemplo. A teoria
de evolução biológica que aprendemos hoje em dia não é a teoria de Darwin
(há muitas diferenças). A aritmética que estudados atualmente não é a aritmética
desenvolvida pelos pitagóricos. Nossa química não é a química de Lavoisier. Nosso
conhecimento foi sendo formado lentamente, através de contribuições de muitas
pessoas sobre as quais nem ouvimos falar e que tiveram importante papel na
discussão e aprimoramento das idéias dos cientistas mais famosos, cujos nomes
conhecemos.
² O ensino das relações entre ciência, tecnologia e sociedade tem sido enfatizado no Brasil há bastante
tempo (ver Moreira 1986, p. 69). Para uma visão mais radical da inserção da ciência na cultura local ver
D’Ambrósio 2005.
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ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXIII
O estudo adequado de alguns episódios históricos também permite compreender
que a ciência não é o resultado da aplicação de um “método científico” que permita
chegar à verdade³. Os pesquisadores formulam hipóteses ou conjeturas a partir de
idéias que podem não ter qualquer fundamento, baseiam-se em analogias vagas,
têm idéias preconcebidas ao fazerem suas observações e experimentos, constroem
teorias provisórias que podem ser até mesmo contraditórias, defendem suas idéias
com argumentos que podem ser fracos ou até irracionais, discordam uns dos
outros em quase tudo, lutam entre si para tentar impor suas idéias. As teorias
científicas vão sendo construídas por tentativa e erro, elas podem chegar a se tornar
bem estruturadas e fundamentadas, mas jamais podem ser provadas. O processo
científico é extremamente complexo, não é lógico e não segue nenhuma fórmula
infalível. Há uma arte da pesquisa, que pode ser aprendida, mas não uma seqüência
de etapas que deve ser seguida sempre, como uma receita de bolo. O estudo histórico
de como um cientista realmente desenvolveu sua pesquisa ensina mais sobre o real
processo científico do que qualquer manual de metodologia científica.
Os estudantes (de todos os níveis), seus professores e o público em geral possuem
uma grande variedade de concepções ingênuas, mal fundamentadas e, afinal, falsas,
sobre a natureza das ciências e sua relação com a sociedade (Gil-Pérez et al. 2001;
Fernández et al. 2002). Alguns concebem a ciência como “a verdade”, “aquilo
que foi provado” – algo imutável, eterno, descoberto por gênios que não podem
errar. É uma visão falsa, já que a ciência muda ao longo do tempo,às vezes de
um modo radical, sendo na verdade um conhecimento provisório, construído por
seres humanos falíveis e que, por seu esforço comum (social), tendem a aperfeiçoar
esse conhecimento, sem nunca possuir a garantia de poder chegar a algo definitivo.
Como se pode saber que uma dessas visões sobre a ciência é inadequada e que a
outra descreve a realidade? Apenas pela análise de sua história.
Outras visões, anti-cientificistas, são igualmente falsas: a reação contra o poder
da ciência pode levar a defender uma posição de que todo conhecimento não passa
de mera opinião, que todas as idéias são equivalentes e que não há motivo algum
para aceitar as concepções científicas (Cupani 2004). Isso também não é verdade.
Embora nada garanta que os cientistas tomem decisões acertadas, suas escolhas
não são totalmente cegas: há evidências a favor ou contra cada posição e é possível
pesar cada lado e preferir um ao outro, com base nos conhecimentos de cada época.
É também o estudo cuidadoso da história da ciência que pode mostrar-nos isso.
³ Ver, por exemplo, uma análise dos procedimentos de Isaac Newton em sua pesquisa sobre a
composição da luz branca, em Silva & Martins 2003.
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XXIV INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO
Quanto às relações entre ciência e sociedade, há também posições extremas: ou
se pensa que a ciência é algo totalmente “puro”, independente do lugar e da época
em que se desenvolve; ou, no outro extremo, supõe-se que é um mero discurso
ideológico da sociedade onde se desenvolveu, sem nenhum valor objetivo. O estudo
histórico mostra que nenhuma das duas posições é uma boa descrição da realidade.
A ciência não se desenvolve em uma torre de cristal, mas sim em um contexto social,
econômico, cultural e material bem determinado. Por outro lado, não é possível
explicar os conhecimentos científicos apenas a partir desse contexto: é necessário
levar também em conta os fatores internos da ciência, tais como os argumentos
teóricos e as evidências experimentais disponíveis em cada momento (Barra 1998).
O estudo detalhado de alguns episódios da história da ciência é insubstituível,
na formação de uma concepção adequada sobre a natureza das ciências, suas
limitações, suas relações com outros domínios. Esses episódios podem mostrar
grandes sucessos e também grandes fracassos do esforço humano para compreender
a natureza; a contribuição titânica de alguns cientistas, acompanhada no entanto
por muitos erros gigantescos das mesmas pessoas; o papel de uma multidão de
pesquisadores obscuros no desenvolvimento de importantes aspectos das ciências;
o processo gradual de formação de teorias, modelos, conceitos e do próprio método
científico; a existência de teorias alternativas, de controvérsias, de revoluções que
lançam por terra concepções que eram aceitas (por bons motivos) durante muito
tempo; a permanência de dúvidas mesmo com relação a teorias bem corroboradas;
a influência de concepções filosóficas, religiosas e o papel da tradição e de precon-
ceitos injustificados no desenvolvimento das ciências; e muitos outros aspectos da
dinâmica da ciência.
Nos últimos cinqüenta anos, o trabalho dos historiadores da ciência demoliu
certas concepções ingênuas sobre as ciências e nos abriu os olhos para podermos ver
o que de fato ocorre na pesquisa científica. Infelizmente, esse novo conhecimento
ainda não se difundiu adequadamente⁴. Talvez seja agora um momento adequado
para introduzi-lo na educação científica, em todos os níveis – começando pela
formação dos docentes e do pessoal de nível superior, para poder atingir depois
outros níveis de educação e uma população mais ampla.
Uma visão mais adequada e bem fundamentada da natureza das ciências, de
sua dinâmica, de seus aspectos sociais, de suas interações com seu contexto,
etc., certamente trará conseqüências importantes. O trabalho científico deve ser
⁴ Duschl 1985 comentou que tem havido uma grande defasagem entre os avanços da pesquisa em
História e Filosofia da Ciência e sua aplicação ao ensino científico.
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ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXV
respeitado mas não venerado (nem desprezado). Colocado em suas reais dimensões,
poderá tanto despertar vocações em jovens, quanto suscitar da sociedade o apoio
que merece, em suas devidas proporções.
Além de poder ajudar a transmitir uma visão mais adequada sobre a natureza da
ciência, a história das ciências pode auxiliar no próprio aprendizado dos conteúdos
científicos. Nos últimos quarenta anos, os educadores se tornaram agudamente
conscientes (graças principalmente à influência de Piaget) de que os educandos não
são uma “tabula rasa” (Piaget & Garcia 1987). Trazem consigo certas estruturas
operatórias mais ou menos desenvolvidas, de acordo com seu estágio cognitivo;
e também trazem certas concepções que, em geral, conflitam e resistem à sua
substituição pelas concepções da ciência atual. Essas concepções prévias (anteri-
ores ao ensino científico sistemático) não podem ser apagadas ou ignoradas. Se
elas não forem reconhecidas e gradativamente transformadas nas outras, podem
continuar a existir, paralelamente às concepções científicas impostas pelo professor,
interferindo constantemente com sua efetiva compreensão, aceitação e aplicação.
É comum encontrar, mesmo no nível universitário, pessoas que acreditam que a
gravidade terrestre deixa de agir fora da atmosfera – a gravidade teria uma esfera de
influência limitada, finita. Mesmo estudando que a força gravitacional produzida
por um planeta esférico varia com o inverso do quadrado da distância (e que,
portanto, atinge uma distância infinita), essa idéia “popular” da esfera de influência
continua a existir, paralelamente, sem suscitar dúvidas ou conflitos, na mente de
muitas pessoas⁵.
Sob o ponto de vista da educação, a existência dessas concepções alternativas
exige a utilização de novas estratégias. Os professores devem:
• conhecê-las e não fingir que não existem;
• não ridicularizá-las ou tentar recalcá-las mas tratá-las com respeito;
• entender seu papel, sua fundamentação, para o indivíduo;
• compará-las com outras concepções – tanto a atualmente aceita pela ciência
como outras alternativas;
• analisar as evidências a favor e contra cada uma delas; e
⁵ Há uma pesquisa recente sobre concepções prévias a respeito da atração gravitacional em estudantes:
Teodoro 2000.
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XXVI INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO
• tentar auxiliar o educando a passar por uma mudança conceitual, da antiga
para a científica, através de argumentos da mesma natureza dos que são utili-
zados nas discussões científicas – mas não por um argumento de autoridade.
Sob o ponto de vista dos alunos, essa reestruturação conceitual tem vários aspec-
tos. Para se processar de um modo “suave” e racional, ela exige um conhecimento
e aceitação dos procedimentos de discussão e desenvolvimento da ciência. Exige
a capacidade de se pensar ao mesmo tempo em várias possibilidades, suspendendo
momentaneamente o juízo, analisando prós e contras, buscando argumentos a favor
de cada uma delas, sem se prender a nenhuma e buscando a melhor delas. Exige
também a superação de obstáculos de natureza emocional: pode se processar uma
luta entre a “minha” concepção e a “do professor”, em que colocar em dúvida ou
rejeitar uma idéia antes aceita pode acarretar uma sensação de perda de uma parte
de si próprio e a invasão de algo externo.
Tanto para o docente quanto para o educando, o conhecimento da história da
ciência pode ser muito útil, para essa transformação conceitual. O processo pelo
qual o aluno precisa passar é semelhante ao processo de desenvolvimento histórico
da própria ciência (Barros & Carvalho 1998). Assuas resistências são semelhantes
às dos próprios cientistas do passado; e mesmo as suas idéias, por mais “absurdas”
que pareçam, podem ser semelhantes às que foram aceitas em outros tempos por
pessoas que nada tinham de tolas. Embora não haja um paralelo completo entre
esses “conceitos prévios” e as concepções científicas antigas, as semelhanças acima
indicadas são suficientemente fortes para tornar o conhecimento da história da
ciência um importante aliado nesse trabalho. Examinando exemplos históricos, com
o distanciamento emocional que isso permite, o estudante pode se preparar para
aceitar que um processo semelhante ocorra com suas próprias idéias. Pode perceber
que, na história, sempre houve discussões e alternativas, que algumas pessoas já
tiveram idéias semelhantes às que ele próprio tem, mas que essas idéias foram
substituídas por outras mais adequadas e mais coerentes com um conjunto de outros
conhecimentos.
Há vários anos os educadores de todo o mundo perceberam a importância da
utilização da história da ciência no ensino de todos os níveis. O Brasil não é
uma exceção, e nos últimos anos os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
para o ensino médio enfatizaram muito a relevância da história das ciências para
complementar outras abordagens no ensino científico. A história das ciências está
gradualmente ganhando espaço no ensino, especialmente no nível universitário
e no nível médio. No entanto, ainda existem grandes barreiras para que essa
disciplina desempenhe efetivamente o papel que pode e deve ter no ensino. As
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ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXVII
três principais barreiras são (1) a carência de um número suficiente de professores
com a formação adequada para pesquisar e ensinar de forma correta a história das
ciências; (2) a falta de material didático adequado (textos sobre história da ciência)
que possa ser utilizado no ensino; e (3) equívocos a respeito da própria natureza da
história da ciência e seu uso na educação (Siegel 1979).
Explicarei a seguir essas três dificuldades, indicando em que medida o presente
livro pretende contribuir para solucionar esses problemas.
A história das ciências é um estudo especializado, como qualquer outro. Nor-
malmente, estuda-se e aprende-se um novo conhecimento com a orientação de
professores que já possuem domínio sobre aquele campo. É claro que há pessoas
capazes de aprender história da ciência, sozinhos, estudando bons livros – assim
como existem pessoas capazes de aprender, sozinhas, assuntos como bioquímica,
mecânica quântica ou geometria diferencial – mas são exceções. Seria excelente se
existissem professores-pesquisadores de história das ciências, com ótima formação,
em todas as universidades, ministrando disciplinas em todos os cursos de nível su-
perior (não apenas as licenciaturas) propiciando, por efeito multiplicador, a difusão
de uma visão adequada sobre a história das ciências. É importante enfatizar um
ponto: estamos falando sobre professores-pesquisadores, ou seja, pessoas capazes de
fazer pesquisa (em nível internacional) sobre história da ciência e não professores
improvisados de história da ciência. Infelizmente, poucos brasileiros foram para
o exterior em busca de uma formação na área e há poucas pós-graduações no
Brasil dedicadas à história das ciências. A situação tende a mudar, em um futuro
próximo, mas por enquanto o número de professores-pesquisadores na área de
história das ciências, em nossas universidades, ainda é muito pequeno. Há, sim, um
certo número de pessoas que dão aulas de história da ciência sem ter uma formação
adequada e que, por isso, podem nem saber distinguir um bom livro de um péssimo
livro de história da ciência – e que podem, por esse motivo, transmitir uma visão
totalmente equivocada da história da ciência, como será explicado mais adiante.
Esse primeiro problema – a carência de um número suficiente de professores
com a formação adequada para pesquisar e ensinar de forma correta a história
das ciências – deverá ir sendo resolvido com o passar do tempo, no Brasil, como
ocorreu em outros países. Precisamos de mais cursos de pós-graduação em história
da ciência, precisamos de um maior intercâmbio com os melhores centros de
pesquisa do exterior, precisamos de novos grupos, departamentos e centros de
pesquisa na área. Enquanto não é resolvido, deve-se ter em mente que os professores
improvisados podem prestar um grande desserviço a essa área.
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XXVIII INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO
O segundo problema é a falta de material didático adequado que possa ser
utilizado no ensino (textos sobre história da ciência, em português, de bom nível).
Não é que não existam livros em português sobre história das ciências – existem
muitos, podem ser encontrados em livrarias e até em bancas de jornais. De tempos
em tempos alguma editora lança uma coleção de biografias de “gênios da ciência”,
e há muitos livros populares a respeito de história das ciências. As enciclopédias e
até os livros didáticos trazem também muitas informações. E na Internet é possível
também encontrar muito material sobre história das ciências. Então, o que está
faltando? Ou já existe material suficiente para ser utilizado na educação?
O problema não é a quantidade, é a qualidade. Assim como existem os profes-
sores improvisados de história da ciência, que não têm formação adequada, há
os escritores improvisados de história da ciência. São pessoas sem um treino na
área, que se baseiam em obras não especializadas (livros escritos por outros autores
improvisados), juntam com informações que obtiveram em jornais, enciclopédias
e na Internet, misturam tudo no liquidificador (ou no computador) e servem ao
leitor desavisado. As obras que resultam desse “esforço” transmitem não apenas
informações históricas erradas, mas deturpam totalmente a própria natureza da
ciência. Em vez de ajudar a corrigir a visão popular equivocada a respeito de como
se dá o desenvolvimento científico, esses livros e artigos contribuem para reforçar
e perpetuar mitos daninhos a respeito dos “grandes gênios”, sobre as descobertas
repentinas que ocorrem por acaso, e outros erros graves a respeito da natureza da
ciência. Os equívocos se propagam através das revistas científicas populares, dos
jornais, da televisão, da Internet, penetram nas salas de aula, são aprendidos e
repetidos por outras pessoas. Os autores de livros científicos didáticos, geralmente
com a melhor das intenções, introduzem em suas obras uma série de informações
sobre história da ciência – em geral, também, completamente errôneas.
Em princípio, os livros e artigos sobre história da ciência deveriam ser escritos
por quem entende do assunto (Martins 2001). Óbvio, não é? Um livro de medicina
deve ser escrito por um médico, um livro sobre sociologia deve ser escrito por
um sociólogo, e assim por diante. E um bom livro de história da ciência, além de
ser escrito por quem entende do assunto, deve ser o resultado de um trabalho de
pesquisa, do estudo dos melhores estudos já feitos sobre o tema e da leitura das
obras originais (literatura primária) que estão sendo descritas. Por fim (mas não
menos importante), um bom texto sobre história da ciência, para poder ser utilizado
na educação, deve ser escrito em linguagem adequada e simples, procurando
explicar tudo claramente, sem pedantismos acadêmicos mas sem tentar simplificar
e transformar em “água com açúcar” a complexidade histórica real.
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ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXIX
Falando sobre textos que apresentem uma visão adequada da história da ciência,
é necessário agora discutir o terceiro problema citado acima: há, infelizmente,
muitos equívocos a respeito da próprianatureza da história da ciência e seu uso
na educação (Martins 1993). Quando utilizada de forma inadequada, a história das
ciências pode chegar a ser um empecilho ao bom ensino de ciências. Eis alguns
exemplos:
a) Redução da história da ciência a nomes, datas e anedotas
É muito comum, atualmente, encontrar-se em livros didáticos e na prática
educacional um uso banal da história da ciência, em afirmações isoladas tais
como: “Em 1668, Francesco Redi, biólogo e médico italiano, demonstrou expe-
rimentalmente que a geração espontânea não podia ser verdadeira”⁶. O que está
por trás de afirmações desse tipo? Uma falsa concepção, baseada em idéias como:
• a ciência é feita por grandes personagens;
• a ciência é constituída a partir de eventos ou episódios marcantes, que são
as “descobertas” realizadas pelos cientistas;
• cada alteração da ciência ocorre em uma data determinada;
• cada fato independe dos demais e pode ser estudado isoladamente.
É claro que tais pressupostos são insustentáveis. Quem conhece realmente
a história da ciência sabe que as alterações históricas são lentas, graduais,
difusas; são um trabalho coletivo e não individual e instantâneo, dos “grandes
gênios”⁷; é difícil ou impossível caracterizar em uma só frase ou em poucas
palavras o que foi uma determinada mudança científica; e há estreita correlação
entre acontecimentos de muitos tipos diferentes, o que torna difícil isolar uma
“descoberta” e descrevê-la fora de seu contexto.
b) Concepções errôneas sobre o método científico
Algumas vezes, os professores de disciplinas científicas (mesmo de nível univer-
sitário), não entendem a natureza da ciência. Ainda há uma crença no método
indutivista da investigação científica, baseado no pior tipo de positivismo (ver
⁶ Ver a análise apresentada em Martins 1998.
⁷ Ver, por exemplo, uma discussão a respeito da lenda repetida popularmente sobre Arquimedes e a
coroa do rei Heron em Martins 2000.
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XXX INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO
Silveira & Ostermann 2002). Geralmente, professores que não têm interesse e
competência suficientes em história e filosofia da ciência transmitem uma visão
distorcida do funcionamento da ciência para seus estudantes. Eles podem tentar
mostrar como se obtém uma teoria a partir da observação e experimento, ou
como se pode provar uma teoria – apesar da impossibilidade filosófica de tais
tentativas.
Algumas vezes eles não estão conscientes de sua própria falta de compreensão
e tentam usar a história da ciência para aperfeiçoar o seu ensino. Alegam,
por exemplo, que Pasteur provou, através de seus experimentos, que a geração
espontânea não existe (o que é historicamente falso). O tipo de história da
ciência que usam é simplificada e distorcida – o tipo de coisa que os historiadores
da ciência chamam de “historiografia Whig” (Russell 1984).
O estudo cuidadoso da história da ciência pode ensinar muito sobre a natureza
da ciência, como já foi indicado acima. Mas isso só ocorrerá se forem utilizados
exemplos históricos reais e não as lendas sem fundamento que são repetidas por
quem nunca fez pesquisa histórica.
c) Uso de argumentos de autoridade
Outra falha no uso da história da ciência no ensino é o seu uso para tentar
obrigar à aceitação dos conhecimentos científicos, através de argumentos de
autoridade: “Embora a gente não entenda direito a teoria da relatividade, ela foi
estabelecida pelo grande físico Albert Einstein . . .”, ou “Todas as características
dos animais vão se alterando com o tempo, de acordo com a teoria da evolução de
Darwin”. Invocar uma pretensa certeza científica baseada em um nome famoso
é um modo de impor crenças e de deixar de lado os aspectos fundamentais da
própria natureza da ciência.
Há uma importante distinção entre conhecimento científico e crença científica.
Ter conhecimento científico sobre um assunto significa conhecer os resultados
científicos, aceitar esse conhecimento e ter o direito de aceitá-lo, conhecendo de
fato (não através de invenções pseudo-históricas) como esse conhecimento é
justificado e fundamentado. Crença científica, por outro lado, corresponde ao co-
nhecimento apenas dos resultados científicos e sua aceitação baseada na crença
na autoridade do professor ou do “cientista”. A fé científica é simplesmente um
tipo moderno de superstição. É muito mais fácil adquiri-la que o conhecimento
científico – mas não tem o mesmo valor.
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ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXXI
Há apenas um caminho para se adquirir conhecimento científico, no sentido
aqui descrito. É através do estudo da história da ciência – mas não da “historio-
grafia Whig”. É necessário estudar o contexto científico, as bases experimentais,
as várias alternativas possíveis da época, e a dinâmica do processo de descoberta
(ou invenção), justificação, discussão e difusão das idéias. Apenas desse modo é
possível aprender como uma teoria foi justificada e porque foi aceita. Ao mesmo
tempo, aprende-se muito sobre a natureza da ciência. Isso, no entanto, não pode
ser feito recorrendo-se apenas a livros populares sobre história da ciência. É
preciso estar informado sobre as melhores pesquisas historiográficas, para poder
conhecer os inúmeros detalhes relevantes.
Pode-se perceber, através desses exemplos, que o uso da história da ciência no
ensino não é algo simples. Há muitas armadilhas, e exige-se o uso de conhecimento
epistemológico e historiográfico especializado para evitar alguns erros que poderiam
levar o professor a empregar erroneamente a história da ciência para transmitir uma
idéia de ciência totalmente inadequada, como ocorre muitas vezes⁸. É necessário,
por isso, um trabalho de pesquisa para fundamentar um adequado uso da história
da ciência no processo educacional.
É impossível para uma pessoa, sozinha, conhecer profundamente toda a história
das ciências – ou mesmo de uma das ciências. Por isso, o próprio desenvolvimento
de aplicações da história da ciência ao ensino exige um trabalho coletivo, que não
poderá ser realizado em um tempo curto. O que se propõe neste livro é apenas uma
pequena contribuição a esse longo processo coletivo.
Alguns anos atrás, participei de uma mesa-redonda sobre o uso de história da
ciência no ensino, em um congresso sobre educação. Os membros da mesa-redonda
dedicaram grande parte do tempo apregoando as utilidades da história da ciência
para o ensino. Depois das exposições, uma pessoa da platéia fez uma intervenção
crucial. Disse que estava cansada de ouvir aquele tipo de discurso, que sabia que
a história da ciência era importante, e queria passar à prática. Onde ela poderia
conseguir livros ou artigos para aplicar no ensino? A resposta, constrangedora, foi
que esse material ainda não existe.
Em parte, esse problema poderia ser superado através de traduções. Sim, são
publicadas muitas traduções de livros sobre história da ciência – mas, novamente,
⁸ Esse problema é discutido em Matthews 1988. Brush discute se é possível ensinar a história da ciência
"real"ao invés de se continuar com a versão tradicional dos livros-texto: Brush, 1974. Veja também
Siegel, 1979.
Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxxii — #32
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XXXII INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO
a escolha dos livros traduzidos não costuma ser sábia. Em geral, as editoras estão
mais preocupadas com o lucro do que com a qualidade, é claro. Por isso, a escolha
da editora de traduzir um livro depende essencialmente de seu sucesso de vendas
no exterior – o que não é uma indicação de qualidade.
Bem, agora deve estar ficando clara a dificuldade envolvida nesse segundo pro-
blema. Temos poucos historiadores da ciência no Brasil, com formação adequada.
Alguns deles nem tentam escrever textos mais acessíveis – apenasse dedicam à
pesquisa especializada. Mesmo os que tentam escrever artigos e livros para um
público mais amplo podem não ser bem-sucedidos nisso. O resultado é a carência de
obras de boa qualidade e, ao mesmo tempo, acessíveis, em português, sobre história
das ciências. A grande maioria do que se publica é inadequado. Há poucas coisas
publicadas no Brasil (artigos e livros) confiáveis, que podem ser utilizados sem
medo.
Este livro que está nas suas mãos pretende ajudar a preencher essa lacuna. Os
autores são pesquisadores com experiência em história da ciência e que procuraram
escrever textos bem fundamentados, porém acessíveis ao não especialista. É claro
que os capítulos desta obra não tratam sobre toda a história das ciências – isso
seria impossível – e sim textos que abordam algum tema específico, com razoável
profundidade, baseando-se em um trabalho de pesquisa sério. São necessários
muitos outros livros como esse (ou de diferentes estilos), para preencher a enorme
carência existente em nosso país de textos adequados sobre a história das ciências.
����������	bibliográficas
BARRA, Eduardo Salles O. A realidade do
mundo da ciência: um desafio para a
história, a filosofia e a educação científica.
Ciência & Educação 5 (1): 15–26, 1998.
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FERNÁNDEZ, Isabel; GIL, Daniel;
Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxxiii — #33
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ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXXIII
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deformadas de la ciencia transmitidas por la
enseñanza. Enseñanza de las Ciencias 20
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GIL-PÉREZ, Daniel;
FERNÁNDEZ-MONTORO, Isabel;
CARRASCOSA-ALÍS, Jaime; CACHAPUZ,
António; PRAIA, João. Para uma inagem
não deformada do trabalho científico.
Ciência & Educação 7 (2): 125–153, 2001.
MARTINS, Lilian Al-Cheyr Pereira. A
história da ciência e o ensino de biologia.
Ciência & Ensino (5): 18–21, 1998.
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históricos. Caderno Catarinense de Ensino de
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manifesto historiográfico. Revista Brasileira
de Ensino de Física 23 (1): 113–129, 2001
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professor de ciências. Caderno Catarinense
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Ciência & Educação 10 (3): 531–543, 2004.
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insustentabilidade da proposta indutivista
Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxxiv — #34
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XXXIV INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO
de ’descobrir a lei a partir de resultados
experimentais’. Caderno Brasileiro de Ensino
de Física, 19: 7–27, 2002.
TEODORO, Sandra Regina. A história da
ciência e as concepções alternativas de
estudantes como subsídios para o
planejamento de um curso sobre atração
gravitacional. Dissertação (Mestrado em
Educação para a Ciência). Bauru: Faculdade
de Ciências, UNESP, 2000.
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https://www.researchgate.net/publication/275832971
71
Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007
A questão da cientificidade
das ciências humanas
Lidia Maria Rodrigo*
Resumo: O artigo examina a questão da construção das humanidades como ciências
autônomas no século XIX, a partir do seu distanciamento da filosofia e aproximação das
ciências naturais, cujos procedimentos metodológicos foram tomados como padrão universal
de cientificidade. Examina não apenas como o positivismo formulou o primeiro esboço de
uma teoria geral das ciências humanas com base no modelo das ciências da natureza, mas
também os problemas decorrentes desse empréstimo metodológico. Termina por mostrar
que a recusa do modelo positivista não implica negar a possibilidade de um saber científico
sobre o homem, na medida em que existem alternativas que procuram viabilizar as ciências
humanas dentro de outros parâmetros, distintos daqueles positivistas.
Palavras-chave: Epistemologia; positivismo; ciências da natureza; ciências humanas.
Abstract: This article brings an analysis of the building of humanities as autonomous sciences
in the eighteenth century, since they became distant from philosophy and close to natural
sciences, whose methodological procedures were taken as a universal pattern of scientificity.
It also presents a study on how positivists have formulated both the first sketch of a general
theory of human sciences based on the nature sciences model and the problems resulting
from this methodological borrowing. It ends by showing that refusing the positivist model
does not mean refusing the existence of scientific knowledge about man, since there are
alternatives by which some people try to make human sciences viable according to
parameters that differ from the positivist ones.
Key words: Epistemology; positivism; nature sciences; human sciences.
1- O projeto de uma autonomia das ciências humanas
Fruto do saber elaborado pela filosofia na Antigüidade, a primeira forma de
conhecimento do homem sobre si mesmo antecedeu em muitos séculos o
surgimento das ciências humanas. A atenção dos primeiros filósofos, contudo,
não se voltou inicialmente para o homem, mas para o cosmos. Os pensadores
conhecidos como pré-socráticos ocuparam-se, sobretudo, com a explicação sobre
* Professora do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da
Unicamp. lidia@lexxa.com.br
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Pro-Posições, v. 18, n.1 (52) - jan./abr. 2007
a ordem do mundo, com a intenção de conferir um sentido novo às coisas, inves-
tigando seus princípios. Somente a partir do século V a.C., com Sócrates e os
sofistas, a filosofia colocou no centro de suas preocupações o tema antropológico,
procurando compreender o sentido da existência e da ação humanas.
Pode-se perguntar por que razão a reflexão sobre o homem só se processou pos-
teriormente às indagações cosmológicas. É possível supor que, num primeiro mo-
mento, talvez seja mais fácil colocar a atenção sobre o mundo e sobre as coisas que
se encontram diante de nós, uma vez que a investigação sobre o homem requer uma
postura muito mais complexa. Ela demanda um retorno reflexivo sobre si mesmo,
pelo qual o olhar deve deslocar-se daquilo que vê para aquele que vê.
De qualquer modo, o que interessa neste momento é registrar que, no mundo
ocidental, a primeira forma de conhecimento sistematizado sobre o homem não
foi produzida pela ciência, mas por intermédio da filosofia.
A ciência, no sentido em que a entendemos hoje, é relativamente recente. Ela
só foi elaborada no século XVII, com a Revolução Científica Moderna, e as primei-
ras ciências a se constituírem como tais não foram as ciências humanas, mas as ciên-
cias da natureza. Mais uma vez o estudo da natureza precedeu a investigação sobre
o homem, e essa ordem terá conseqüências epistemológicas, como se verá a seguir.
Além de promover mudanças substanciais nas concepções cosmológicas her-
dadas da antiguidade, a Revolução Científica Moderna também foi responsável
por uma nova concepção de ciência, que desde então passou a ser caracterizada
como um conhecimento objetivo, metódico, baseado em comprovações que ali-
am experiência e razão, fazendo uso da quantificação e da linguagem matemática.
Tal modelo de cientificidade foi construído em oposição à cosmologia e às
concepções epistemológicas aristotélico-tomistas. A novidade da ciência moderna
residiu precisamente na afirmação da autonomia da ciência do sensível e na sua
progressiva recusa de subordinação à elucidação filosófica. Vancourt assinala com
precisão em que sentido a gênese da ciência moderna comportou um procedi-
mento de libertação da metafísica “A inteligência inverte o movimento que a en-
caminha para o ser e a essência das coisas. Muda de direção a fim de ocupar-se dos
dados fenomenais em si mesmos.” (1964, p.44) Já não se trata mais, como em
Aristóteles e Santo Tomás, de partir do sensível para transcendê-lo e chegar às
essências inteligíveis, constituindo uma metafísica. Galileu, ao contrário, perma-
nece no âmbito da própria experiência; estuda o mundo natural não para colher
essências, mas para compreender os fenômenos sensíveis e suas leis, que ele consi-
dera ser possível decifrar com base na linguagem matemática.
É importante assinalar que esse novo modelo de ciência foi assumido como
parâmetro não apenas para o conhecimento de determinada região do real – a
natureza –, mas foi aceito como padrão universal de cientificidade. Isso não quer
dizer que se deva atribuir tal intenção aos cientistas que fizeram a Revolução Ci-
73
Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007
entífica – Copérnico, Kepler, Galileu, entre outros –, mas simplesmente que as-
sim tal modelo foi interpretado por alguns de seus sucessores. Com base na pre-
missa de que o procedimento de ciências exemplares, como a física, havia institu-
ído a única categoria de conhecimento dotado de crédito, o modelo de cientificidade
das ciências da natureza foi tomado como parâmetro da ciência enquanto tal. Daí
em diante qualquer conhecimento que reivindicasse validade científica teria de
satisfazer os critérios que presidiram à constituição das ciências naturais.
Compreende-se, então, a razão pela qual as humanidades, quando passaram a
alimentar a pretensão de se constituir em ciência, foram buscar precisamente nas
ciências da natureza os critérios e as diretrizes capazes de converter o saber sobre o
homem em conhecimento científico.
2- Construção positivista de um estatuto de cientificidade para as
humanidades
De que modo as ciências humanas construíram seu estatuto de cientificidade
ou como adquiriram positividade?
Conforme já foi apontado, a transição para um padrão científico de conheci-
mento realizou-se primeiro no âmbito das ciências da natureza, no século XVII;
só no século XIX ela se processa nas ciências humanas, fruto de uma transposição
metodológica das ciências naturais. O projeto de construção de sua autonomia
científica conduziu, intencionalmente, a um distanciamento da filosofia – lugar
originário da reflexão racional sobre o homem no mundo ocidental – e das ideo-
logias, consideradas ambas como discursos não científicos. Ao eleger os parâmetros
de cientificidade como critério único de verdade, o positivismo de Comte (1798-
1857) atribuiu à ciência o monopólio cognitivo da totalidade do real – natureza e
cultura humana –, classificando a tradição filosófica como etapa ultrapassada de
uma ciência imatura. Por isso mesmo, quando no século XIX o conhecimento
sobre o homem passou a situar-se no plano da positividade, os discursos anteriores
foram considerados ideológicos, quer dizer, representações pré-científicas ou mes-
mo pseudocientíficas.
As teorias positivistas constituíram os primeiros esboços de uma teoria geral
das ciências humanas. O positivismo de Comte e de Durkheim assinala o fim da
teoria do conhecimento, instalando em seu lugar uma teoria da ciência. Segundo
Habermas, tal substituição fica evidenciada no fato de que o sujeito cognoscente
não mais se apresenta como uma referência para a elucidação do processo cognitivo
(Cf. 1982, p.90). O objetivismo inerente a essa posição teórica reduz o conheci-
mento científico a um conjunto de fatos estruturados por leis, sem se dar ao traba-
lho de problematizar o ato mesmo de constituição dos fatos ou a participação do
sujeito cognoscente nesse processo. Nessa perspectiva, Habermas afirma que “A
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Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007
postura positivista mascara a problemática da constituição-de-mundo. O sentido
do próprio conhecimento torna-se irracional, e isso em nome de um conhecimento
exato.” (1982, p.91; grifo do autor). A indagação sobre o sentido do conhecimen-
to é substituída pela questão positivista acerca do sentido dos fatos.
Embora Habermas, com razão, não considere Comte um pensador original no
plano metodológico, uma vez que este último elabora sua teoria com base numa
combinação eclética de elementos da tradição empirista e racionalista pré-crítica,
reconhece que esse pensador produz uma inovação na postura filosófica frente às
ciências ao formular “uma metodologia científica que põe, em lugar do sujeito da
teoria do conhecimento, o progresso técnico-científico como sujeito de uma filo-
sofia cientificista da história.” (HABERMAS, 1982, p.94) Comte substitui o con-
ceito filosófico do conhecimento por uma explicação do sentido da ciência; com
isso, a objetividade do conhecimento deixa de ser pensada a partir do horizonte
do sujeito, passando a ser compreendida como derivada exclusivamente da área
do objeto. Tal procedimento tem algumas implicações epistemológicas:
1) A objetividade é entendida como o contrário da subjetividade; saber objeti-
vo e saber subjetivo são convertidos em domínios antagônicos e exclusivos, posição
que não deixa de ser tributária de uma concepção pré-crítica do conhecimento.
2) A objetividade é dogmatizada, uma vez que já não há como nem por que
refletir criticamente sobre as condições da objetividade ou problematizar o pro-
cesso de produção do conhecimento científico. Habermas conclui que o positivismo
acaba por blindar a pesquisa contra uma auto-reflexão (Cf. 1982, p.90).
De fato, uma auto-reflexão sobre a concepção objetivista do conhecimento po-
deria revelar que se esta não se sustenta nem na esfera das ciências da natureza, me-
nos ainda em relação às ciências humanas. Os procedimentos investigativos das ci-
ências naturais caracterizam-se pelaconstrução hipotética de teorias sujeitas à
verificação experimental posterior, de modo que o resultado dessas experimentações
corresponde às hipóteses explicativas, e não à descrição da realidade tal qual ela é
objetivamente, ao contrário das ilusões cultivadas pelo positivismo clássico. Assim,
as explicações dos eventos formuladas pelas ciências da natureza dependem de hi-
póteses estabelecidas com base em condições previamente definidas pelo pesquisa-
dor. Paul Veyne lembra que a ciência não busca o real, mas o formal: ela procura
construir um discurso rigoroso, ao qual os fatos obedecem formalmente, dentro dos
limites de sua abstração (Cf. 1982, p.118). O que significa dizer, contra o
objetivismo, que os fatos não são dados aos sentidos e à razão, mas construídos pelo
pesquisador.
Essa concepção de cientificidade é que as ciências humanas foram buscar nas
ciências naturais, embora tal empréstimo sempre estivesse sujeito a dificuldades
epistemológicas de várias ordens. Como observa Marilena Chauí, não sendo pos-
sível
75
Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007
uma transposição integral e perfeita dos métodos, das técni-
cas e das teorias naturais para o estudo dos fatos humanos,
as ciências humanas acabaram trabalhando por analogia com
as ciências naturais e seus resultados tornaram-se muito con-
testáveis e pouco científicos. (1994, p. 271; grifo da autora)
Podemos afirmar que, nos termos em que foi posta no século XIX, a questão
da cientificidade dos estudos sobre o homem viveu e vive até hoje uma situação
paradoxal: as ciências humanas não conseguem realizar inteiramente o modelo de
positividade emprestado das ciências da natureza, mas também não se decidem a
abandoná-lo, com receio de perderem seu direito de acesso à positividade.
O positivismo comteano pode ser considerado o grande responsável pela for-
mulação de uma metodologia derivada das ciências da natureza. Essa transposição
foi justificada com base na premissa de que a sociedade é regida por leis naturais,
isto é, leis invariáveis e independentes da vontade e da ação humanas. Em sendo
assim, o mesmo método de estudo poderia ser aplicado ao estudo tanto da natu-
reza como da sociedade. Os positivistas julgavam que nas ciências sociais se deve-
ria proceder como nas ciências da natureza, isto é, deixar de lado as pressuposi-
ções, separar os julgamentos de fato dos julgamentos de valor, a ciência da ideologia,
visando alcançar um conhecimento inteiramente objetivo.
Para Durkheim, por exemplo, a interferência de juízos de valor na investigação
sociológica apenas revelaria a imaturidade dessa ciência em relação à matemática e
às ciências físico-químicas. Ele pede ao sociólogo que estude os fatos sociais “como
coisas”, “de fora”.
O que se reclama do sociólogo é que adote o estado de espí-
rito em que se colocam os físicos, químicos ou fisiologistas,
quando se embrenham numa região ainda inexplorada do
seu domínio científico. [...] Ora, falta à sociologia atingir
este grau de maturidade intelectual (1973, p.379).
A exemplo de outros positivistas, Durkheim considerava que as ciências hu-
manas só poderiam superar seu estado de imaturidade epistemológica quando se
submetessem aos critérios de cientificidade formulados pelas ciências naturais.
3- A viabilidade de uma ciência do homem
Posto nesses termos, o ideal de cientificidade das ciências humanas converte-se
numa questão extremamente polêmica. Em nome das exigências do rigor científi-
co, os positivistas pretendem que essas ciências fujam ao âmbito dos valores e das
significações para que seu objeto possa ingressar na ordem dos fatos ou no domí-
nio da objetividade plena. Semelhante intenção conduz, inevitavelmente, a uma
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Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007
pergunta: ao pretender que as ciências humanas se constituam sobre o modelo das
ciências naturais, elas não correm o risco de se converter em ciências sem o ho-
mem? Sua cientificidade, edificada sobre tais parâmetros, não será proporcional à
sua desumanização?
Ainda assim, é inegável que a edificação das ciências humanas a partir do sécu-
lo XIX esteve amplamente calcada no modelo das ciências da natureza. Caso se
abandone o modelo positivista, hoje sujeito a toda sorte de crítica, será necessário,
simultaneamente, renunciar a qualquer tentativa de construção de um saber cien-
tífico sobre o homem? Serão as ciências humanas inviáveis?
A esse respeito parecem existir duas alternativas que, por não serem mutua-
mente excludentes, talvez sejam complementares.
Pela primeira, as ciências humanas procurariam preservar seu direito de acesso
à positividade, submetendo-se aos parâmetros de cientificidade que vigoram no
âmbito das ciências da natureza, embora reconhecendo seus limites, na medida
em que o processo de objetivação só é aplicável a uma parte do fenômeno huma-
no. Paul Veyne aposta nessa alternativa ao afirmar que é preciso considerar como
não científica uma boa parte das ciências humanas atuais, mas, simultaneamente,
afirmar a possibilidade de uma ciência do homem (Cf. 1982, p.120) E conclui:
“O faro do teórico é, pois, adivinhar que aspectos da realidade são susceptíveis de
serem traduzidos na linguagem rigorosa e fecunda das deduções da matemáti-
ca...” (VEYNE, 1982, p.123).
As ciências humanas podem, portanto, empregar procedimentos científicos,
sem que isso implique a redução do homem a essa forma de estudo. Existem,
obviamente, processos e fenômenos humanos objetiváveis, mas o homem não é
inteiramente objetivável. No âmbito das ciências humanas, não há como evitar
inteiramente as conotações valorativas, ideológicas, subjetivas; a identidade parci-
al entre o sujeito e o objeto de estudo por si só já inviabiliza a efetivação do ideal
positivista de objetividade. O sociólogo não pode se colocar de fora da sociedade
para estudá-la; o mesmo acontece com o historiador em relação à história, com o
lingüista em relação à língua, e assim por diante.
A segunda alternativa que tem sido apontada consiste em defender a autono-
mia metodológica das ciências humanas, criando uma forma própria e específica
de acesso à positividade. Não se trataria, na verdade, de abrir mão da possibilidade
de cientificidade, mas de abdicar do padrão positivista de ciência para construir
um modelo próprio, adequado ao seu domínio de investigação e
epistemologicamente viável. Nessa perspectiva, Vancourt declara que
não é indispensável às ciências do homem seguirem os cami-
nhos traçados pelas ciências da natureza. Elas podem perfei-
tamente utilizar métodos próprios, diferentes do da física
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Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007
matemática, sem perder, por isso, sua “positividade”, sem
tornar-se uma metafísica do homem e renunciar à formula-
ção de verdades controláveis pela experiência (1964, p.43).
Esta última alternativa implicaria assumir um posicionamento contrário à ne-
gação positivista da especificidade metodológica das ciências humanas em relação
às ciências da natureza, que desqualifica o conhecimento produzido pelas primei-
ras em nome de um ideal unitário e homogêneo de cientificidade. Nas ciências
humanas não se trataria de eliminar totalmente a influência de determinações
sociais e juízos de valor em nome de um pseudoconhecimento neutro, mas, como
propõe Lucien Goldmann, de tornar conscientes tais interferências e integrá-las
na investigação científica para evitar, ou reduzir ao mínimo, sua ação deformante
(Cf. 1972, p.36).
Em certa medida as duas alternativas acima acabam convergindo na idéia de
que, mesmo sendo impossível produzir um conhecimento neutro, alguma forma
de objetividade se revela viável, não aquela de caráter positivista, mas um discurso
apropriado à compreensão do fenômeno humano como tal, que não condena a
priori toda e qualquer forma de sujetividade, porque se recusa a admiti-la incom-
patível com a elaboração de um conhecimento objetivo sobre o homem.
Referências bibliográficas
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994.
COMTE, A. Curso de filosofia

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