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INTERACÇÕES NO. 39, PP. 285-295 (2015) http://www.eses.pt/interaccoes PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO: A IMPORTÂNCIA DOS SABERES POPULARES PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS Fábio Gabriel Nascibem Instituto de Química de Araraquara – UNESP – Brasil fnascibem@yahoo.com.br Alessandra Aparecida Viveiro Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP – Brasil alessandraviveiro@gmail.com Resumo Este trabalho tem por objetivo estabelecer uma discussão sobre a importância da inserção dos saberes populares no ensino de ciências e no pensamento científico. Ao se levar em conta as culturas dos indivíduos e da comunidade em que se inserem, os conhecimentos proibidos ganham espaço na formação dos estudantes e novos paradigmas podem ser estabelecidos. A partir disso, podemos construir um fazer pedagógico que seja muito mais prazeroso e, também, ampliar os horizontes do conhecimento acadêmico. Não se trata de reduzir o status do conhecimento científico, mas elevar as outras formas de conhecimento, fazendo relações entre saberes, apresentando, explorando e discutindo diferentes visões de mundo. Acreditamos que levar em conta os saberes populares dos estudantes é uma ferramenta humanizadora e uma forma de levar em conta a subjetividade do aluno e situá-lo como transformador de seu próprio mundo, fazendo assim uma educação científica crítica e cidadã. Palavras-chave: Ensino de ciências; Conhecimento científico; Saberes populares. Abstract The objective of this paper is the discussion about the importance of insertion of the people’s knowledge in science teaching and in to scientific thought. Its importance is given therefore to take into account the culture of individuals and communities in which they operate; forbidden knowledge gaining ground in the training of students, new paradigms will be established. It is not reduce the status of scientific knowledge, PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 286 http://www.eses.pt/interaccoes but raise other forms of knowledge, making relationships between knowledge, presenting, discussing and exploring different worldviews. We believe that taking into account the popular knowledge of the students is a humanizing tool and a way to take into account the subjectivity of students and situates it as a processor of its own world, thus making a science education and critical citizenship. Keywords: Science education; Scientific knowledge; People’s knowledge. Introdução Na sociedade, em geral, os conhecimentos científicos são considerados como perfeitos, infalíveis e acabados, conferindo à ciência um status indevido e superestimado (Chalmers, 1993) em detrimento de outras visões de mundo. O meio acadêmico, por sua vez, comumente ignora a cultura, os conhecimentos das pessoas da comunidade em que está inserido, o conhecimento dos não letrados e tudo aquilo que a circunda. Em suma, o conhecimento válido é somente aquele produzido pelos pesquisadores, o conhecimento científico. No entanto, é preciso considerar que a ciência é um constructo humano, logo é falível, dinâmica, mutável. Abandonar uma postura dogmática e fechada na ciência passa por ampliar seus horizontes. Nesse sentido, o saber popular tem condições de apresentar muitos novos desafios. Para Feyerabend (2011), a voz dos leigos deve ser ouvida. Segundo o autor, os considerados leigos são dotados de conhecimentos igualmente importantes aos científicos. Exemplifica com o caso da acupuntura, saber milenar oriental que teve conhecimentos incorporados na medicina ocidental. Na história da ciência, temos o caso de Paracelsus que viajava pelo mundo em busca de conhecimentos populares em ervas e plantas para incorporar à sua “iatroquímica” na intenção de obter novos caminhos para a medicina por discordar das teorias vigentes (Stratern, 2002). Chalmers (2011), por sua vez, destaca que as primeiras pessoas a levantarem a mão contra pressupostos científicos e identificarem problemas ambientais foram pessoas “comuns”, inseridas em setores diversos da sociedade. Apesar desses aspectos, seguindo a tendência hegemônica, positivista e 287 NASCIBEM & VIVEIRO http://www.eses.pt/interaccoes cientificista, a escola, muitas vezes, prioriza o conteúdo científico, preconizado por livros didáticos, e despreza os saberes, as vivências e os conhecimentos alternativos dos estudantes. Predomina, assim, o ensino de ciências em uma perspectiva transmissiva, descontextualizado, reforçando a neutralidade da ciência e negligenciando as relações entre ciência, tecnologia e sociedade (Gondin & Mól, 2009). Costa (2008, p. 165), nesse sentido, levanta a questão: “se os saberes etnológicos são desprestigiados na academia, e portanto na formação docente, como esperar que o professor insira esse conhecimento em sua prática cotidiana?”. Para o autor, isso passa pelo “reconhecimento, por parte dos professores e da academia, dos ‘saberes populares’ como valiosos no processo de ensino-aprendizagem, os quais serão acessados pelo contato com a realidade social dos alunos” (Op. cit., p. 165). Ensino de Ciências: Problemas e Desafios O ensino de ciências naturais tende a ser transmissivo em detrimento de abordagens investigativas. As aulas práticas, que poderiam ser uma importante estratégia para exploração sobre a complexidade da natureza das ciências, são muitas vezes similares a receitas culinárias, onde tudo que se faz é seguir passos de um roteiro, sem nenhuma discussão prévia ou posterior (Borges, 2002). A relação dialógica entre teoria e prática muitas vezes é ignorada. As práticas em sala de aula priorizam conhecimentos descontextualizados e a memorização de fórmulas e expressões. Dessa forma, o ensino de ciências não se constitui como fomentador da curiosidade dos alunos, não favorece o interesse pela área e pouco contribui para a explicação dos fenômenos cotidianos e para melhor relação desses estudantes com o meio onde vivem. Os saberes populares invadem a escola mas são comumente desconsiderados pois o conhecimento científico é considerado hegemônico e superior (Chassot, 2011). Nesse sentido, Chassot (2004) discute os currículos marginalizados, ou a história dos “sem história”, que denomina de “currículos proibidos”, que são os conhecimentos daqueles que estão à margem e, portanto, subjugados pela Academia, ou seja, seus conhecimentos não tem espaço em currículos arbitrários que seguem diretamente na direção de interesses de classes dominantes. PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 288 http://www.eses.pt/interaccoes Segundo Corrêa e Brito (2012), os currículos das escolas brasileiras ignoram os saberes dos grupos marginalizados, desprezam a cultura e também propostas que utilizem esses saberes como ferramentas para o ensino de ciências. Contituem “conhecimentos esquecidos, abandonados, subjugados por um conhecimento considerado superior e vivem à margem do que, modernamente, chamamos ciência” (Bastos, 2013, p. 6195). Essas condições impostas na escola, catalisadas por ações midiáticas (Kominsky & Giordan, 2002), perpetuam distorções quanto ao pensamento científico e a natureza da ciência na qual é recorrente a transmissão de uma ciência mágica, inacessível, para poucos, para gênios, em suma, uma ciência esotérica (Chassot, 2011). Para Silva e Zanon (2000), a escola deve ser o local de mediação entre a teoria e prática, o ideal e o real, o científico e o cotidiano. Assim, não deve priorizar currículos unificados e universais, mas levar em conta aspectos regionais e se aproximar da comunidade onde está inserida. É preciso dar espaço para os saberes e a cultura dos indivíduos, articulando saberes populares e científicos no ensino de ciências. Não se trata de reduzir o status do conhecimento científico, mas elevar o de outras formasde conhecimento, fazendo relações entre saberes, apresentando, explorando e discutindo diferentes visões de mundo. Como discute Paulo Freire (1987, p. 68), “não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes”. Saberes Populares e Conhecimento Científico O conhecimento científico é definido na literatura a partir de diferentes perspectivas. São considerados científicos os conhecimentos produzidos por instituições científicas, de pesquisa, e que seguem rígidos métodos para lhe atribuir confiabilidade e lhe diferir dos conhecimentos não científicos. Têm como objetivo explicar os fenômenos da natureza, da sociedade, etc., e baseia-se em problemas de pesquisa muito bem definidos e que são esmiuçados seguindo metodologias e processos na busca de resultados para o problema inicial. Para Maturana (2001), a palavra ciência está associada, atualmente, ao conhecimento validado através do chamado “método científico”, que toma como base dois pressupostos: 289 NASCIBEM & VIVEIRO http://www.eses.pt/interaccoes “a) que o método científico, seja pela verificação, pela confirmação, ou pela negação da falseabilidade, revela, ou pelo menos conota, uma realidade objetiva que existe independentemente do que os observadores fazem ou desejam, ainda que não possa ser totalmente conhecida; b) que a validade das explicações e afirmações científicas se baseia em sua conexão com tal realidade objetiva.” (p. 125). Para Dieckmann e Dieckmann (2008), é científico o conhecimento sistematizado e publicado pela Academia. Lopes (1999) defende que são considerados científicos os conhecimentos objetivos, sem influência da subjetividade, descobertos e provados a partir da experiência e da experimentação. Essa visão empírico-indutivista das ciências, além de ser preconceituosa, muito diz a respeito da exclusão de outras visões de mundo nos estudos presentes na Academia. Na Psicologia, por exemplo, a psicanálise foi, por muito tempo, considerada como não científica em razão de seu problema de pesquisa não ser tão bem definido (no princípio) e não conter o positivismo que o seu tempo impunha (Cunha, 2000). Os saberes populares, por sua vez, são aqueles que as pessoas possuem acumulados durante sua vida e servem para explicar e compreender aquilo que as cerca. Lakatos e Marconi (2003, p.75) definem o saber popular como aquele “transmitido de geração em geração por meio da educação informal e baseado em imitação e experiência pessoal”. Conforme discute Bastos (2013), “as diferentes populações humanas apresentam um arsenal de conhecimentos sobre o ambiente que as cerca. Propriedades terapêuticas e medicinais de animais e plantas, a percepção dos fenômenos naturais, como as estações do ano, tempo para plantar e colher, classificação de animais e plantas, organização de calendários, dicionários, sazonalidade de animais e sua relação com aspectos da natureza são organizações que formam um cabedal de saberes que comumente são chamados de conhecimentos tradicionais.” (p. 6195) Esses conhecimentos não possuem o mesmo rigor e nem sempre trazem a pretendida veracidade científica, mas carregam enorme riqueza cultural e de experiência de vida. PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 290 http://www.eses.pt/interaccoes Podem ser confundidos com o senso comum, mas Chassot (2011) os diferencia. Para o autor, o senso comum está disseminado em todo tecido social, enquanto os saberes populares são aqueles associados às práticas cotidianas das classes destituídas de capital cultural e econômico. Associados a conhecimentos adquiridos à luz da experiência em anos de trabalho e de vida, e sendo parte da cultura do indivíduo e de um grupo social, os saberes populares podem trazer grandes contribuições se forem estabelecidos diálogos com os conhecimentos científicos. Este processo pode ocasionar muitas determinações interessantes e novos caminhos para ciência, por um lado, e valorização daqueles que produzem e detêm os saberes populares, por outro. Na escola, essa articulação é especialmente interessante e necessária. Breve Panorama dos Estudos sobre a Temática: Algumas Reflexões Buscando traçar um breve panorama das pesquisas brasileiras envolvendo saberes populares no ensino de ciências que nos possibilitasse reflexões sobre o tema, sem a pretensão de aprofundamento, realizamos um levantamento bibliográfico dos artigos publicados em três importantes periódicos da área no período de 2009 a 2013: Ensaio (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG), Ciência e Educação (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP) e Investigações em Ensino de Ciências (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS). A busca incidiu sobre o título, resumo e palavras-chave, baseada em termos que pudessem remeter ao tema de interesse como, por exemplo, saberes populares, conhecimento popular, concepções alternativas, fazeres populares. Em caso de dúvidas, consultamos o trabalho completo. Em nenhum desses veículos localizamos artigos sobre o tema. Realizamos, então, a mesma busca nas atas das edições de 2007, 2009 e 2011 do Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC) (Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências [ABRAPEC], 2009, ABRAPEC, 2011 & ABRAPEC, 2012)1. O Quadro 1 apresenta a síntese do levantamento, reunindo os 1 O Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC) é um evento bienal promovido pela Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC). Ao longo dos anos, tem se consolidado no Brasil ao reunir pesquisadores das áreas de Ensino de Física, de Biologia, de Química, de Geociências, de Ambiente, de Saúde e áreas afins. Os 291 NASCIBEM & VIVEIRO http://www.eses.pt/interaccoes trabalhos localizados relacionados com a temática comparados com o total de artigos publicados nos Anais do evento nas três edições. Quadro 1 – Síntese do levantamento bibliográfico realizado nas Atas do ENPEC. Ano Trabalhos Relacionados/Total de Trabalhos Título Autores 2007 0/601 - - 2009 1/533 Interlocução entre os saberes: relações entre os saberes populares de artesãs do Triângulo Mineiro e o ensino de ciências. Gondim; Mól. 2011 2/1187 Diálogo dos saberes: o conhecimento científico e popular das plantas medicinais na escola. Kovalski; Obara; Figueiredo. Dialogando saberes no campo: um estudo de caso em uma Escola Família Agrícola. Lima; Freixo. Conforme indicado, foram identificados somente três artigos que tratavam da temática “saberes populares”, sendo um na edição de 2009 e dois na edição de 20112, que discutiremos brevemente a seguir. Gondim e Mól (2009) pesquisaram saberes populares de artesãos moradores do Anais da oitava edição do evento, ocorrida em 2011, foram publicados em 2012, justificando a diferença de datas observada entre o evento e a citação do artigo. Em dezembro de 2013, foi realizada a nona edição. No entanto, por ocasião do levantamento realizado, os Anais ainda não estavam publicados e, por isso, não foram objeto da pesquisa. A publicação dos Anais ocorre após o evento, reunindo somente os trabalhos efetivamente apresentados. 2 O elevado número de trabalhos se comparado às edições anteriores talvez possa ser associado ao fato de que o ENPEC, nesta ocasião, ocorreu de forma simultânea com o Congreso Iberoamericano de Investigación en Enseñanza de las Ciéncias. PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 292 http://www.eses.pt/interaccoes triângulo mineiro, discutindo suas relações com a perspectiva Ciência-Tecnologia- Sociedade- CTS e a aplicação desses saberes no ensino de ciência. Neste trabalho, é notável a riqueza de informações e conhecimentos que os moradores detalham em suas práticas. Relatam, por exemplo, diversos conhecimentos químicos na arte da tinturaria, como conceito de solubilidade, separação de misturas, entre outros, usados no processo de tingimento e aplicado a técnicas que evitem o desbotar das roupas após tingir. Verificou-se, também, que seus conhecimentos são passados entre as gerações e que há grande influência da religião e de crenças. Notável, também, como atribuem influência das fases da lua ou do ciclo menstrual, por exemplo, nas suas práticas. Os autores terminam por dizer que a abordagem desses conhecimentos na educação escolar promove a interdisciplinaridade, a contextualização e a problematização com as práticas dos moradores da comunidade, podendo proporcionar uma aprendizagem mais prazerosa. Outro artigo localizado, de Kovalski, Obara e Figueiredo (2012), trata da abordagem dos saberes dentro da sala de aula relacionada à medicina natural. Os pesquisadores trabalharam com alunos de uma escola rural no município de Maringá-PR, propondo o diálogo entre os saberes populares que os alunos carregam e os conhecimentos científicos relacionados às plantas. Segundo os autores, o trabalho promoveu o diálogo, quebrou a monotonia do ensino transmissivo e permitiu desenvolver os conhecimentos prévios dos alunos sobre medicina natural e acerca de plantas, tais como dados científicos das mesmas e propriedades. Concluem indicando que a escola geralmente despreza os saberes populares dos alunos e enfatizando a necessidade de promoção deste diálogo. O terceiro artigo, de Lima e Freixo (2012), trata de um estudo de caso em uma escola agrícola de Valente-BA. Os autores identificaram que os alunos possuíam conhecimentos alternativos em relação à fauna e flora e, a partir disto, foi possível estimular os diálogos entre o que traziam de bagagem e o conhecimento científico aceito pela comunidade científica. As autoras destacam o enriquecimento mútuo que a troca de experiências proporcionou. A partir desse breve levantamento, podemos tecer duas considerações: em primeiro lugar, identificamos que a temática é ainda pouco estudada e discutida, o que corrobora para a manutenção do conteudismo e descontextualização encontrados em 293 NASCIBEM & VIVEIRO http://www.eses.pt/interaccoes nossas escolas no ensino de ciências; em segundo lugar, pelos trabalhos analisados, verificamos a riqueza dos saberes populares e o quanto a exploração destes saberes nas aulas pode ser interessante. Considerações Finais A partir das discussões tecidas neste trabalho, enfatizamos que, para a melhoria do ensino de Ciências, entre outros aspectos, é preciso dar espaço para os saberes e a cultura dos indivíduos e da comunidade em que se insere. É preciso superar preconceitos para com os sujeitos marginalizados, “sem história”. Os “conhecimentos proibidos” (Bizzo, 2009) podem e devem ser objetos de estudo da ciência e integrar o ensino de ciências, trazendo a comunidade para dentro das escolas e das universidades. A partir disso, podemos construir um fazer pedagógico que seja muito mais prazeroso e, também, ampliar os horizontes do conhecimento acadêmico, incorporando os saberes e culturas das comunidades. Acreditamos que levar em conta os saberes populares dos estudantes é uma ferramente humanizadora e uma forma de levar em conta a subjetividade do aluno e situa-lo como transformador de seu próprio mundo, fazendo assim uma educação científica crítica e cidadã. Referências Bibliográficas Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (2007). Anais do VI ENPEC – Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Belo Horizonte: ABRAPEC. Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (2009). Anais do VII ENPEC – Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Belo Horizonte: ABRAPEC. Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (2012). Anais do VIII ENPEC – Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências e do Congreso Iberoamericano de Investigación en Enseñanza de las Ciéncias. Rio de Janeiro: ABRAPEC. Bastos, S. N. D. (2013). Etnociências na sala de aula: uma possibilidade para aprendizagem significativa. In Anais do II Congresso nacional de educação e II PARA ALÉM DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO 294 http://www.eses.pt/interaccoes Seminário Internacional de representações sociais, subjetividade e educação. Curitiba: PUC. Bizzo, N. (2009). Ciências: fácil ou difícil? São Paulo: Biruta, 2009. Borges, A. T. (2002). Novos rumos para o laboratório escolar de ciências. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 19(3), 291-313. Chalmers, A. F. (1993). O que é ciência afinal? 1. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. Chassot, A. (2004). Para quem é útil o ensino. Canoas: Editora Ulbra. Chassot, A. (2011). Alfabetização científica: questões e desafios para a educação. 5 ed. Ijuí: Unijuí. Correa, E. M. & Brito, M. R. (2012). Currículo, saberes e o ensino de ciências. In Anais do III Simpósio nacional de ensino de ciência e tecnologia. Ponta Grossa: UFTPR. Costa, R. G. A. (2008). Os saberes populares da etnociência no ensino das ciências naturais: uma proposta didática para aprendizagem significativa. Revista Didática Sistêmica, 8, 162-172. Cunha, M. V. (2000). Psicologia da Educação. Rio de Janeiro: DP e A. Dickmann, I. & Dickmann, I. (2008). Primeiras palavras em Paulo Freire. Passo Fundo: Battistel. Feyerabend, P. Contra o método. (2011). São Paulo. Editora UNESP. Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Gondim, M. S. C. & Mól, G. S. (2009). Interlocução entre os saberes: relações entre os saberes populares de artesãs do Triângulo Mineiro e o ensino de ciências. In Anais do VII Encontro nacional de pesquisa em educação em ciências. 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Os livros científicos didáticos enfatizam os resultados aos quais a ciência chegou – as teorias e conceitos que aceitamos, as técnicas de análise que utilizamos – mas não costumam apresentar alguns outros aspectos da ciência. De que modo as teorias e os conceitos se desenvolvem? Como os cientistas trabalham? Quais as idéias que não aceitamos hoje em dia e que eram aceitas no passado? Quais as relações entre ciência, filosofia e religião? Qual a relação entre o desenvolvimento do pensamento científico e outros desenvolvimentos históricos que ocorreram na mesma época? A história das ciências não pode substituir o ensino comum das ciências, mas pode complementá-lo de várias formas¹. O estudo adequado de alguns episódios históricos permite compreender as interrelações entre ciência, tecnologia e socie- dade, mostrando que a ciência não é uma coisa isolada de todas as outras mas sim faz parte de um desenvolvimento histórico, de uma cultura, de um mundo humano, ¹ Sherratt 1982–1983 apresenta um histórico a respeito da utilização da história da ciência na educação, mostrando que as primeiras propostas ocorreram há mais de um século. Matthews 1994 apresenta uma visão geral sobre o uso da história e da filosofia da ciência na educação e uma boa bibliografia sobre o assunto. Ver também Martins 1990. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxii — #22 i i i i i i i i XXII INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO sofrendo influências e influenciando por sua vez muitos aspectos da sociedade². Todos conhecem os nomes de Lavoisier, Newton, Galileu, Darwin. Mas o que estava acontecendo no mundo (e, especialmente, nos lugares onde eles viviam) quando eles desenvolveram suas pesquisas? Não existiu nenhuma relação entre o que eles fizeram e aquilo que estava acontecendo em volta deles? É claro que existiu. Mas não costumamos estudar isso, o que dá a falsa impressão de que a ciência é algo atemporal, que surge de forma mágica e que está à parte de outras atividades humanas. Na verdade, mesmo a matemática – que parece um conhecimento muito distante das preocupações do dia-a-dia – sofre forte influência de outras áreas. Por exemplo: a teoria das probabilidades surgiu, no século XVII, como decorrência de preocupações com jogos (de dados, de cartas, etc.) e apostas em dinheiro (Sheynin 1977; Bellhouse 1993). O estudo adequado de alguns episódios históricos também permite perceber o processo social (coletivo) e gradativo de construção do conhecimento, permitindo formar uma visão mais concreta e correta da real natureza da ciência, seus pro- cedimentos e suas limitações – o que contribui para a formação de um espírito crítico e desmitificação do conhecimento científico, sem no entanto negar seu valor. A ciência não brota pronta, na cabeça de “grandes gênios”. Muitas vezes, as teorias que aceitamos hoje foram propostas de forma confusa, com muitas falhas, sem possuir uma base observacional e experimental. Apenas gradualmente as idéias vão sendo aperfeiçoadas, através de debates e críticas, que muitas vezes transformam totalmente os conceitos iniciais. Costumamos dizer que nossa visão do universo, heliocêntrica, foi proposta por Copérnico no século XVI. No entanto, existe pouca semelhança entre aquilo que aceitamos hoje em dia e aquilo que Copérnico propôs. Também não pensamos como Galileu, por exemplo. A teoria de evolução biológica que aprendemos hoje em dia não é a teoria de Darwin (há muitas diferenças). A aritmética que estudados atualmente não é a aritmética desenvolvida pelos pitagóricos. Nossa química não é a química de Lavoisier. Nosso conhecimento foi sendo formado lentamente, através de contribuições de muitas pessoas sobre as quais nem ouvimos falar e que tiveram importante papel na discussão e aprimoramento das idéias dos cientistas mais famosos, cujos nomes conhecemos. ² O ensino das relações entre ciência, tecnologia e sociedade tem sido enfatizado no Brasil há bastante tempo (ver Moreira 1986, p. 69). Para uma visão mais radical da inserção da ciência na cultura local ver D’Ambrósio 2005. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxiii — #23 i i i i i i i i ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXIII O estudo adequado de alguns episódios históricos também permite compreender que a ciência não é o resultado da aplicação de um “método científico” que permita chegar à verdade³. Os pesquisadores formulam hipóteses ou conjeturas a partir de idéias que podem não ter qualquer fundamento, baseiam-se em analogias vagas, têm idéias preconcebidas ao fazerem suas observações e experimentos, constroem teorias provisórias que podem ser até mesmo contraditórias, defendem suas idéias com argumentos que podem ser fracos ou até irracionais, discordam uns dos outros em quase tudo, lutam entre si para tentar impor suas idéias. As teorias científicas vão sendo construídas por tentativa e erro, elas podem chegar a se tornar bem estruturadas e fundamentadas, mas jamais podem ser provadas. O processo científico é extremamente complexo, não é lógico e não segue nenhuma fórmula infalível. Há uma arte da pesquisa, que pode ser aprendida, mas não uma seqüência de etapas que deve ser seguida sempre, como uma receita de bolo. O estudo histórico de como um cientista realmente desenvolveu sua pesquisa ensina mais sobre o real processo científico do que qualquer manual de metodologia científica. Os estudantes (de todos os níveis), seus professores e o público em geral possuem uma grande variedade de concepções ingênuas, mal fundamentadas e, afinal, falsas, sobre a natureza das ciências e sua relação com a sociedade (Gil-Pérez et al. 2001; Fernández et al. 2002). Alguns concebem a ciência como “a verdade”, “aquilo que foi provado” – algo imutável, eterno, descoberto por gênios que não podem errar. É uma visão falsa, já que a ciência muda ao longo do tempo,às vezes de um modo radical, sendo na verdade um conhecimento provisório, construído por seres humanos falíveis e que, por seu esforço comum (social), tendem a aperfeiçoar esse conhecimento, sem nunca possuir a garantia de poder chegar a algo definitivo. Como se pode saber que uma dessas visões sobre a ciência é inadequada e que a outra descreve a realidade? Apenas pela análise de sua história. Outras visões, anti-cientificistas, são igualmente falsas: a reação contra o poder da ciência pode levar a defender uma posição de que todo conhecimento não passa de mera opinião, que todas as idéias são equivalentes e que não há motivo algum para aceitar as concepções científicas (Cupani 2004). Isso também não é verdade. Embora nada garanta que os cientistas tomem decisões acertadas, suas escolhas não são totalmente cegas: há evidências a favor ou contra cada posição e é possível pesar cada lado e preferir um ao outro, com base nos conhecimentos de cada época. É também o estudo cuidadoso da história da ciência que pode mostrar-nos isso. ³ Ver, por exemplo, uma análise dos procedimentos de Isaac Newton em sua pesquisa sobre a composição da luz branca, em Silva & Martins 2003. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxiv — #24 i i i i i i i i XXIV INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO Quanto às relações entre ciência e sociedade, há também posições extremas: ou se pensa que a ciência é algo totalmente “puro”, independente do lugar e da época em que se desenvolve; ou, no outro extremo, supõe-se que é um mero discurso ideológico da sociedade onde se desenvolveu, sem nenhum valor objetivo. O estudo histórico mostra que nenhuma das duas posições é uma boa descrição da realidade. A ciência não se desenvolve em uma torre de cristal, mas sim em um contexto social, econômico, cultural e material bem determinado. Por outro lado, não é possível explicar os conhecimentos científicos apenas a partir desse contexto: é necessário levar também em conta os fatores internos da ciência, tais como os argumentos teóricos e as evidências experimentais disponíveis em cada momento (Barra 1998). O estudo detalhado de alguns episódios da história da ciência é insubstituível, na formação de uma concepção adequada sobre a natureza das ciências, suas limitações, suas relações com outros domínios. Esses episódios podem mostrar grandes sucessos e também grandes fracassos do esforço humano para compreender a natureza; a contribuição titânica de alguns cientistas, acompanhada no entanto por muitos erros gigantescos das mesmas pessoas; o papel de uma multidão de pesquisadores obscuros no desenvolvimento de importantes aspectos das ciências; o processo gradual de formação de teorias, modelos, conceitos e do próprio método científico; a existência de teorias alternativas, de controvérsias, de revoluções que lançam por terra concepções que eram aceitas (por bons motivos) durante muito tempo; a permanência de dúvidas mesmo com relação a teorias bem corroboradas; a influência de concepções filosóficas, religiosas e o papel da tradição e de precon- ceitos injustificados no desenvolvimento das ciências; e muitos outros aspectos da dinâmica da ciência. Nos últimos cinqüenta anos, o trabalho dos historiadores da ciência demoliu certas concepções ingênuas sobre as ciências e nos abriu os olhos para podermos ver o que de fato ocorre na pesquisa científica. Infelizmente, esse novo conhecimento ainda não se difundiu adequadamente⁴. Talvez seja agora um momento adequado para introduzi-lo na educação científica, em todos os níveis – começando pela formação dos docentes e do pessoal de nível superior, para poder atingir depois outros níveis de educação e uma população mais ampla. Uma visão mais adequada e bem fundamentada da natureza das ciências, de sua dinâmica, de seus aspectos sociais, de suas interações com seu contexto, etc., certamente trará conseqüências importantes. O trabalho científico deve ser ⁴ Duschl 1985 comentou que tem havido uma grande defasagem entre os avanços da pesquisa em História e Filosofia da Ciência e sua aplicação ao ensino científico. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxv — #25 i i i i i i i i ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXV respeitado mas não venerado (nem desprezado). Colocado em suas reais dimensões, poderá tanto despertar vocações em jovens, quanto suscitar da sociedade o apoio que merece, em suas devidas proporções. Além de poder ajudar a transmitir uma visão mais adequada sobre a natureza da ciência, a história das ciências pode auxiliar no próprio aprendizado dos conteúdos científicos. Nos últimos quarenta anos, os educadores se tornaram agudamente conscientes (graças principalmente à influência de Piaget) de que os educandos não são uma “tabula rasa” (Piaget & Garcia 1987). Trazem consigo certas estruturas operatórias mais ou menos desenvolvidas, de acordo com seu estágio cognitivo; e também trazem certas concepções que, em geral, conflitam e resistem à sua substituição pelas concepções da ciência atual. Essas concepções prévias (anteri- ores ao ensino científico sistemático) não podem ser apagadas ou ignoradas. Se elas não forem reconhecidas e gradativamente transformadas nas outras, podem continuar a existir, paralelamente às concepções científicas impostas pelo professor, interferindo constantemente com sua efetiva compreensão, aceitação e aplicação. É comum encontrar, mesmo no nível universitário, pessoas que acreditam que a gravidade terrestre deixa de agir fora da atmosfera – a gravidade teria uma esfera de influência limitada, finita. Mesmo estudando que a força gravitacional produzida por um planeta esférico varia com o inverso do quadrado da distância (e que, portanto, atinge uma distância infinita), essa idéia “popular” da esfera de influência continua a existir, paralelamente, sem suscitar dúvidas ou conflitos, na mente de muitas pessoas⁵. Sob o ponto de vista da educação, a existência dessas concepções alternativas exige a utilização de novas estratégias. Os professores devem: • conhecê-las e não fingir que não existem; • não ridicularizá-las ou tentar recalcá-las mas tratá-las com respeito; • entender seu papel, sua fundamentação, para o indivíduo; • compará-las com outras concepções – tanto a atualmente aceita pela ciência como outras alternativas; • analisar as evidências a favor e contra cada uma delas; e ⁵ Há uma pesquisa recente sobre concepções prévias a respeito da atração gravitacional em estudantes: Teodoro 2000. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxvi — #26 i i i i i i i i XXVI INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO • tentar auxiliar o educando a passar por uma mudança conceitual, da antiga para a científica, através de argumentos da mesma natureza dos que são utili- zados nas discussões científicas – mas não por um argumento de autoridade. Sob o ponto de vista dos alunos, essa reestruturação conceitual tem vários aspec- tos. Para se processar de um modo “suave” e racional, ela exige um conhecimento e aceitação dos procedimentos de discussão e desenvolvimento da ciência. Exige a capacidade de se pensar ao mesmo tempo em várias possibilidades, suspendendo momentaneamente o juízo, analisando prós e contras, buscando argumentos a favor de cada uma delas, sem se prender a nenhuma e buscando a melhor delas. Exige também a superação de obstáculos de natureza emocional: pode se processar uma luta entre a “minha” concepção e a “do professor”, em que colocar em dúvida ou rejeitar uma idéia antes aceita pode acarretar uma sensação de perda de uma parte de si próprio e a invasão de algo externo. Tanto para o docente quanto para o educando, o conhecimento da história da ciência pode ser muito útil, para essa transformação conceitual. O processo pelo qual o aluno precisa passar é semelhante ao processo de desenvolvimento histórico da própria ciência (Barros & Carvalho 1998). Assuas resistências são semelhantes às dos próprios cientistas do passado; e mesmo as suas idéias, por mais “absurdas” que pareçam, podem ser semelhantes às que foram aceitas em outros tempos por pessoas que nada tinham de tolas. Embora não haja um paralelo completo entre esses “conceitos prévios” e as concepções científicas antigas, as semelhanças acima indicadas são suficientemente fortes para tornar o conhecimento da história da ciência um importante aliado nesse trabalho. Examinando exemplos históricos, com o distanciamento emocional que isso permite, o estudante pode se preparar para aceitar que um processo semelhante ocorra com suas próprias idéias. Pode perceber que, na história, sempre houve discussões e alternativas, que algumas pessoas já tiveram idéias semelhantes às que ele próprio tem, mas que essas idéias foram substituídas por outras mais adequadas e mais coerentes com um conjunto de outros conhecimentos. Há vários anos os educadores de todo o mundo perceberam a importância da utilização da história da ciência no ensino de todos os níveis. O Brasil não é uma exceção, e nos últimos anos os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino médio enfatizaram muito a relevância da história das ciências para complementar outras abordagens no ensino científico. A história das ciências está gradualmente ganhando espaço no ensino, especialmente no nível universitário e no nível médio. No entanto, ainda existem grandes barreiras para que essa disciplina desempenhe efetivamente o papel que pode e deve ter no ensino. As Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxvii — #27 i i i i i i i i ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXVII três principais barreiras são (1) a carência de um número suficiente de professores com a formação adequada para pesquisar e ensinar de forma correta a história das ciências; (2) a falta de material didático adequado (textos sobre história da ciência) que possa ser utilizado no ensino; e (3) equívocos a respeito da própria natureza da história da ciência e seu uso na educação (Siegel 1979). Explicarei a seguir essas três dificuldades, indicando em que medida o presente livro pretende contribuir para solucionar esses problemas. A história das ciências é um estudo especializado, como qualquer outro. Nor- malmente, estuda-se e aprende-se um novo conhecimento com a orientação de professores que já possuem domínio sobre aquele campo. É claro que há pessoas capazes de aprender história da ciência, sozinhos, estudando bons livros – assim como existem pessoas capazes de aprender, sozinhas, assuntos como bioquímica, mecânica quântica ou geometria diferencial – mas são exceções. Seria excelente se existissem professores-pesquisadores de história das ciências, com ótima formação, em todas as universidades, ministrando disciplinas em todos os cursos de nível su- perior (não apenas as licenciaturas) propiciando, por efeito multiplicador, a difusão de uma visão adequada sobre a história das ciências. É importante enfatizar um ponto: estamos falando sobre professores-pesquisadores, ou seja, pessoas capazes de fazer pesquisa (em nível internacional) sobre história da ciência e não professores improvisados de história da ciência. Infelizmente, poucos brasileiros foram para o exterior em busca de uma formação na área e há poucas pós-graduações no Brasil dedicadas à história das ciências. A situação tende a mudar, em um futuro próximo, mas por enquanto o número de professores-pesquisadores na área de história das ciências, em nossas universidades, ainda é muito pequeno. Há, sim, um certo número de pessoas que dão aulas de história da ciência sem ter uma formação adequada e que, por isso, podem nem saber distinguir um bom livro de um péssimo livro de história da ciência – e que podem, por esse motivo, transmitir uma visão totalmente equivocada da história da ciência, como será explicado mais adiante. Esse primeiro problema – a carência de um número suficiente de professores com a formação adequada para pesquisar e ensinar de forma correta a história das ciências – deverá ir sendo resolvido com o passar do tempo, no Brasil, como ocorreu em outros países. Precisamos de mais cursos de pós-graduação em história da ciência, precisamos de um maior intercâmbio com os melhores centros de pesquisa do exterior, precisamos de novos grupos, departamentos e centros de pesquisa na área. Enquanto não é resolvido, deve-se ter em mente que os professores improvisados podem prestar um grande desserviço a essa área. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxviii — #28 i i i i i i i i XXVIII INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO O segundo problema é a falta de material didático adequado que possa ser utilizado no ensino (textos sobre história da ciência, em português, de bom nível). Não é que não existam livros em português sobre história das ciências – existem muitos, podem ser encontrados em livrarias e até em bancas de jornais. De tempos em tempos alguma editora lança uma coleção de biografias de “gênios da ciência”, e há muitos livros populares a respeito de história das ciências. As enciclopédias e até os livros didáticos trazem também muitas informações. E na Internet é possível também encontrar muito material sobre história das ciências. Então, o que está faltando? Ou já existe material suficiente para ser utilizado na educação? O problema não é a quantidade, é a qualidade. Assim como existem os profes- sores improvisados de história da ciência, que não têm formação adequada, há os escritores improvisados de história da ciência. São pessoas sem um treino na área, que se baseiam em obras não especializadas (livros escritos por outros autores improvisados), juntam com informações que obtiveram em jornais, enciclopédias e na Internet, misturam tudo no liquidificador (ou no computador) e servem ao leitor desavisado. As obras que resultam desse “esforço” transmitem não apenas informações históricas erradas, mas deturpam totalmente a própria natureza da ciência. Em vez de ajudar a corrigir a visão popular equivocada a respeito de como se dá o desenvolvimento científico, esses livros e artigos contribuem para reforçar e perpetuar mitos daninhos a respeito dos “grandes gênios”, sobre as descobertas repentinas que ocorrem por acaso, e outros erros graves a respeito da natureza da ciência. Os equívocos se propagam através das revistas científicas populares, dos jornais, da televisão, da Internet, penetram nas salas de aula, são aprendidos e repetidos por outras pessoas. Os autores de livros científicos didáticos, geralmente com a melhor das intenções, introduzem em suas obras uma série de informações sobre história da ciência – em geral, também, completamente errôneas. Em princípio, os livros e artigos sobre história da ciência deveriam ser escritos por quem entende do assunto (Martins 2001). Óbvio, não é? Um livro de medicina deve ser escrito por um médico, um livro sobre sociologia deve ser escrito por um sociólogo, e assim por diante. E um bom livro de história da ciência, além de ser escrito por quem entende do assunto, deve ser o resultado de um trabalho de pesquisa, do estudo dos melhores estudos já feitos sobre o tema e da leitura das obras originais (literatura primária) que estão sendo descritas. Por fim (mas não menos importante), um bom texto sobre história da ciência, para poder ser utilizado na educação, deve ser escrito em linguagem adequada e simples, procurando explicar tudo claramente, sem pedantismos acadêmicos mas sem tentar simplificar e transformar em “água com açúcar” a complexidade histórica real. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxix — #29 i i i i i i i i ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXIX Falando sobre textos que apresentem uma visão adequada da história da ciência, é necessário agora discutir o terceiro problema citado acima: há, infelizmente, muitos equívocos a respeito da próprianatureza da história da ciência e seu uso na educação (Martins 1993). Quando utilizada de forma inadequada, a história das ciências pode chegar a ser um empecilho ao bom ensino de ciências. Eis alguns exemplos: a) Redução da história da ciência a nomes, datas e anedotas É muito comum, atualmente, encontrar-se em livros didáticos e na prática educacional um uso banal da história da ciência, em afirmações isoladas tais como: “Em 1668, Francesco Redi, biólogo e médico italiano, demonstrou expe- rimentalmente que a geração espontânea não podia ser verdadeira”⁶. O que está por trás de afirmações desse tipo? Uma falsa concepção, baseada em idéias como: • a ciência é feita por grandes personagens; • a ciência é constituída a partir de eventos ou episódios marcantes, que são as “descobertas” realizadas pelos cientistas; • cada alteração da ciência ocorre em uma data determinada; • cada fato independe dos demais e pode ser estudado isoladamente. É claro que tais pressupostos são insustentáveis. Quem conhece realmente a história da ciência sabe que as alterações históricas são lentas, graduais, difusas; são um trabalho coletivo e não individual e instantâneo, dos “grandes gênios”⁷; é difícil ou impossível caracterizar em uma só frase ou em poucas palavras o que foi uma determinada mudança científica; e há estreita correlação entre acontecimentos de muitos tipos diferentes, o que torna difícil isolar uma “descoberta” e descrevê-la fora de seu contexto. b) Concepções errôneas sobre o método científico Algumas vezes, os professores de disciplinas científicas (mesmo de nível univer- sitário), não entendem a natureza da ciência. Ainda há uma crença no método indutivista da investigação científica, baseado no pior tipo de positivismo (ver ⁶ Ver a análise apresentada em Martins 1998. ⁷ Ver, por exemplo, uma discussão a respeito da lenda repetida popularmente sobre Arquimedes e a coroa do rei Heron em Martins 2000. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxx — #30 i i i i i i i i XXX INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO Silveira & Ostermann 2002). Geralmente, professores que não têm interesse e competência suficientes em história e filosofia da ciência transmitem uma visão distorcida do funcionamento da ciência para seus estudantes. Eles podem tentar mostrar como se obtém uma teoria a partir da observação e experimento, ou como se pode provar uma teoria – apesar da impossibilidade filosófica de tais tentativas. Algumas vezes eles não estão conscientes de sua própria falta de compreensão e tentam usar a história da ciência para aperfeiçoar o seu ensino. Alegam, por exemplo, que Pasteur provou, através de seus experimentos, que a geração espontânea não existe (o que é historicamente falso). O tipo de história da ciência que usam é simplificada e distorcida – o tipo de coisa que os historiadores da ciência chamam de “historiografia Whig” (Russell 1984). O estudo cuidadoso da história da ciência pode ensinar muito sobre a natureza da ciência, como já foi indicado acima. Mas isso só ocorrerá se forem utilizados exemplos históricos reais e não as lendas sem fundamento que são repetidas por quem nunca fez pesquisa histórica. c) Uso de argumentos de autoridade Outra falha no uso da história da ciência no ensino é o seu uso para tentar obrigar à aceitação dos conhecimentos científicos, através de argumentos de autoridade: “Embora a gente não entenda direito a teoria da relatividade, ela foi estabelecida pelo grande físico Albert Einstein . . .”, ou “Todas as características dos animais vão se alterando com o tempo, de acordo com a teoria da evolução de Darwin”. Invocar uma pretensa certeza científica baseada em um nome famoso é um modo de impor crenças e de deixar de lado os aspectos fundamentais da própria natureza da ciência. Há uma importante distinção entre conhecimento científico e crença científica. Ter conhecimento científico sobre um assunto significa conhecer os resultados científicos, aceitar esse conhecimento e ter o direito de aceitá-lo, conhecendo de fato (não através de invenções pseudo-históricas) como esse conhecimento é justificado e fundamentado. Crença científica, por outro lado, corresponde ao co- nhecimento apenas dos resultados científicos e sua aceitação baseada na crença na autoridade do professor ou do “cientista”. A fé científica é simplesmente um tipo moderno de superstição. É muito mais fácil adquiri-la que o conhecimento científico – mas não tem o mesmo valor. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxxi — #31 i i i i i i i i ESTUDOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS XXXI Há apenas um caminho para se adquirir conhecimento científico, no sentido aqui descrito. É através do estudo da história da ciência – mas não da “historio- grafia Whig”. É necessário estudar o contexto científico, as bases experimentais, as várias alternativas possíveis da época, e a dinâmica do processo de descoberta (ou invenção), justificação, discussão e difusão das idéias. Apenas desse modo é possível aprender como uma teoria foi justificada e porque foi aceita. Ao mesmo tempo, aprende-se muito sobre a natureza da ciência. Isso, no entanto, não pode ser feito recorrendo-se apenas a livros populares sobre história da ciência. É preciso estar informado sobre as melhores pesquisas historiográficas, para poder conhecer os inúmeros detalhes relevantes. Pode-se perceber, através desses exemplos, que o uso da história da ciência no ensino não é algo simples. Há muitas armadilhas, e exige-se o uso de conhecimento epistemológico e historiográfico especializado para evitar alguns erros que poderiam levar o professor a empregar erroneamente a história da ciência para transmitir uma idéia de ciência totalmente inadequada, como ocorre muitas vezes⁸. É necessário, por isso, um trabalho de pesquisa para fundamentar um adequado uso da história da ciência no processo educacional. É impossível para uma pessoa, sozinha, conhecer profundamente toda a história das ciências – ou mesmo de uma das ciências. Por isso, o próprio desenvolvimento de aplicações da história da ciência ao ensino exige um trabalho coletivo, que não poderá ser realizado em um tempo curto. O que se propõe neste livro é apenas uma pequena contribuição a esse longo processo coletivo. Alguns anos atrás, participei de uma mesa-redonda sobre o uso de história da ciência no ensino, em um congresso sobre educação. Os membros da mesa-redonda dedicaram grande parte do tempo apregoando as utilidades da história da ciência para o ensino. Depois das exposições, uma pessoa da platéia fez uma intervenção crucial. Disse que estava cansada de ouvir aquele tipo de discurso, que sabia que a história da ciência era importante, e queria passar à prática. Onde ela poderia conseguir livros ou artigos para aplicar no ensino? A resposta, constrangedora, foi que esse material ainda não existe. Em parte, esse problema poderia ser superado através de traduções. Sim, são publicadas muitas traduções de livros sobre história da ciência – mas, novamente, ⁸ Esse problema é discutido em Matthews 1988. Brush discute se é possível ensinar a história da ciência "real"ao invés de se continuar com a versão tradicional dos livros-texto: Brush, 1974. Veja também Siegel, 1979. Estudos de História e Filosofia das Ciências — PROVA 2 — 29/6/2006 — página xxxii — #32 i i i i i i i i XXXII INTRODUÇÃO: A HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E SEUS USOS NA EDUCAÇÃO a escolha dos livros traduzidos não costuma ser sábia. Em geral, as editoras estão mais preocupadas com o lucro do que com a qualidade, é claro. Por isso, a escolha da editora de traduzir um livro depende essencialmente de seu sucesso de vendas no exterior – o que não é uma indicação de qualidade. Bem, agora deve estar ficando clara a dificuldade envolvida nesse segundo pro- blema. Temos poucos historiadores da ciência no Brasil, com formação adequada. Alguns deles nem tentam escrever textos mais acessíveis – apenasse dedicam à pesquisa especializada. Mesmo os que tentam escrever artigos e livros para um público mais amplo podem não ser bem-sucedidos nisso. O resultado é a carência de obras de boa qualidade e, ao mesmo tempo, acessíveis, em português, sobre história das ciências. A grande maioria do que se publica é inadequado. Há poucas coisas publicadas no Brasil (artigos e livros) confiáveis, que podem ser utilizados sem medo. Este livro que está nas suas mãos pretende ajudar a preencher essa lacuna. Os autores são pesquisadores com experiência em história da ciência e que procuraram escrever textos bem fundamentados, porém acessíveis ao não especialista. É claro que os capítulos desta obra não tratam sobre toda a história das ciências – isso seria impossível – e sim textos que abordam algum tema específico, com razoável profundidade, baseando-se em um trabalho de pesquisa sério. São necessários muitos outros livros como esse (ou de diferentes estilos), para preencher a enorme carência existente em nosso país de textos adequados sobre a história das ciências. ���������� bibliográficas BARRA, Eduardo Salles O. A realidade do mundo da ciência: um desafio para a história, a filosofia e a educação científica. Ciência & Educação 5 (1): 15–26, 1998. 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View publication statsView publication stats https://www.researchgate.net/publication/275832971 71 Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007 A questão da cientificidade das ciências humanas Lidia Maria Rodrigo* Resumo: O artigo examina a questão da construção das humanidades como ciências autônomas no século XIX, a partir do seu distanciamento da filosofia e aproximação das ciências naturais, cujos procedimentos metodológicos foram tomados como padrão universal de cientificidade. Examina não apenas como o positivismo formulou o primeiro esboço de uma teoria geral das ciências humanas com base no modelo das ciências da natureza, mas também os problemas decorrentes desse empréstimo metodológico. Termina por mostrar que a recusa do modelo positivista não implica negar a possibilidade de um saber científico sobre o homem, na medida em que existem alternativas que procuram viabilizar as ciências humanas dentro de outros parâmetros, distintos daqueles positivistas. Palavras-chave: Epistemologia; positivismo; ciências da natureza; ciências humanas. Abstract: This article brings an analysis of the building of humanities as autonomous sciences in the eighteenth century, since they became distant from philosophy and close to natural sciences, whose methodological procedures were taken as a universal pattern of scientificity. It also presents a study on how positivists have formulated both the first sketch of a general theory of human sciences based on the nature sciences model and the problems resulting from this methodological borrowing. It ends by showing that refusing the positivist model does not mean refusing the existence of scientific knowledge about man, since there are alternatives by which some people try to make human sciences viable according to parameters that differ from the positivist ones. Key words: Epistemology; positivism; nature sciences; human sciences. 1- O projeto de uma autonomia das ciências humanas Fruto do saber elaborado pela filosofia na Antigüidade, a primeira forma de conhecimento do homem sobre si mesmo antecedeu em muitos séculos o surgimento das ciências humanas. A atenção dos primeiros filósofos, contudo, não se voltou inicialmente para o homem, mas para o cosmos. Os pensadores conhecidos como pré-socráticos ocuparam-se, sobretudo, com a explicação sobre * Professora do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da Unicamp. lidia@lexxa.com.br 72 Pro-Posições, v. 18, n.1 (52) - jan./abr. 2007 a ordem do mundo, com a intenção de conferir um sentido novo às coisas, inves- tigando seus princípios. Somente a partir do século V a.C., com Sócrates e os sofistas, a filosofia colocou no centro de suas preocupações o tema antropológico, procurando compreender o sentido da existência e da ação humanas. Pode-se perguntar por que razão a reflexão sobre o homem só se processou pos- teriormente às indagações cosmológicas. É possível supor que, num primeiro mo- mento, talvez seja mais fácil colocar a atenção sobre o mundo e sobre as coisas que se encontram diante de nós, uma vez que a investigação sobre o homem requer uma postura muito mais complexa. Ela demanda um retorno reflexivo sobre si mesmo, pelo qual o olhar deve deslocar-se daquilo que vê para aquele que vê. De qualquer modo, o que interessa neste momento é registrar que, no mundo ocidental, a primeira forma de conhecimento sistematizado sobre o homem não foi produzida pela ciência, mas por intermédio da filosofia. A ciência, no sentido em que a entendemos hoje, é relativamente recente. Ela só foi elaborada no século XVII, com a Revolução Científica Moderna, e as primei- ras ciências a se constituírem como tais não foram as ciências humanas, mas as ciên- cias da natureza. Mais uma vez o estudo da natureza precedeu a investigação sobre o homem, e essa ordem terá conseqüências epistemológicas, como se verá a seguir. Além de promover mudanças substanciais nas concepções cosmológicas her- dadas da antiguidade, a Revolução Científica Moderna também foi responsável por uma nova concepção de ciência, que desde então passou a ser caracterizada como um conhecimento objetivo, metódico, baseado em comprovações que ali- am experiência e razão, fazendo uso da quantificação e da linguagem matemática. Tal modelo de cientificidade foi construído em oposição à cosmologia e às concepções epistemológicas aristotélico-tomistas. A novidade da ciência moderna residiu precisamente na afirmação da autonomia da ciência do sensível e na sua progressiva recusa de subordinação à elucidação filosófica. Vancourt assinala com precisão em que sentido a gênese da ciência moderna comportou um procedi- mento de libertação da metafísica “A inteligência inverte o movimento que a en- caminha para o ser e a essência das coisas. Muda de direção a fim de ocupar-se dos dados fenomenais em si mesmos.” (1964, p.44) Já não se trata mais, como em Aristóteles e Santo Tomás, de partir do sensível para transcendê-lo e chegar às essências inteligíveis, constituindo uma metafísica. Galileu, ao contrário, perma- nece no âmbito da própria experiência; estuda o mundo natural não para colher essências, mas para compreender os fenômenos sensíveis e suas leis, que ele consi- dera ser possível decifrar com base na linguagem matemática. É importante assinalar que esse novo modelo de ciência foi assumido como parâmetro não apenas para o conhecimento de determinada região do real – a natureza –, mas foi aceito como padrão universal de cientificidade. Isso não quer dizer que se deva atribuir tal intenção aos cientistas que fizeram a Revolução Ci- 73 Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007 entífica – Copérnico, Kepler, Galileu, entre outros –, mas simplesmente que as- sim tal modelo foi interpretado por alguns de seus sucessores. Com base na pre- missa de que o procedimento de ciências exemplares, como a física, havia institu- ído a única categoria de conhecimento dotado de crédito, o modelo de cientificidade das ciências da natureza foi tomado como parâmetro da ciência enquanto tal. Daí em diante qualquer conhecimento que reivindicasse validade científica teria de satisfazer os critérios que presidiram à constituição das ciências naturais. Compreende-se, então, a razão pela qual as humanidades, quando passaram a alimentar a pretensão de se constituir em ciência, foram buscar precisamente nas ciências da natureza os critérios e as diretrizes capazes de converter o saber sobre o homem em conhecimento científico. 2- Construção positivista de um estatuto de cientificidade para as humanidades De que modo as ciências humanas construíram seu estatuto de cientificidade ou como adquiriram positividade? Conforme já foi apontado, a transição para um padrão científico de conheci- mento realizou-se primeiro no âmbito das ciências da natureza, no século XVII; só no século XIX ela se processa nas ciências humanas, fruto de uma transposição metodológica das ciências naturais. O projeto de construção de sua autonomia científica conduziu, intencionalmente, a um distanciamento da filosofia – lugar originário da reflexão racional sobre o homem no mundo ocidental – e das ideo- logias, consideradas ambas como discursos não científicos. Ao eleger os parâmetros de cientificidade como critério único de verdade, o positivismo de Comte (1798- 1857) atribuiu à ciência o monopólio cognitivo da totalidade do real – natureza e cultura humana –, classificando a tradição filosófica como etapa ultrapassada de uma ciência imatura. Por isso mesmo, quando no século XIX o conhecimento sobre o homem passou a situar-se no plano da positividade, os discursos anteriores foram considerados ideológicos, quer dizer, representações pré-científicas ou mes- mo pseudocientíficas. As teorias positivistas constituíram os primeiros esboços de uma teoria geral das ciências humanas. O positivismo de Comte e de Durkheim assinala o fim da teoria do conhecimento, instalando em seu lugar uma teoria da ciência. Segundo Habermas, tal substituição fica evidenciada no fato de que o sujeito cognoscente não mais se apresenta como uma referência para a elucidação do processo cognitivo (Cf. 1982, p.90). O objetivismo inerente a essa posição teórica reduz o conheci- mento científico a um conjunto de fatos estruturados por leis, sem se dar ao traba- lho de problematizar o ato mesmo de constituição dos fatos ou a participação do sujeito cognoscente nesse processo. Nessa perspectiva, Habermas afirma que “A 74 Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007 postura positivista mascara a problemática da constituição-de-mundo. O sentido do próprio conhecimento torna-se irracional, e isso em nome de um conhecimento exato.” (1982, p.91; grifo do autor). A indagação sobre o sentido do conhecimen- to é substituída pela questão positivista acerca do sentido dos fatos. Embora Habermas, com razão, não considere Comte um pensador original no plano metodológico, uma vez que este último elabora sua teoria com base numa combinação eclética de elementos da tradição empirista e racionalista pré-crítica, reconhece que esse pensador produz uma inovação na postura filosófica frente às ciências ao formular “uma metodologia científica que põe, em lugar do sujeito da teoria do conhecimento, o progresso técnico-científico como sujeito de uma filo- sofia cientificista da história.” (HABERMAS, 1982, p.94) Comte substitui o con- ceito filosófico do conhecimento por uma explicação do sentido da ciência; com isso, a objetividade do conhecimento deixa de ser pensada a partir do horizonte do sujeito, passando a ser compreendida como derivada exclusivamente da área do objeto. Tal procedimento tem algumas implicações epistemológicas: 1) A objetividade é entendida como o contrário da subjetividade; saber objeti- vo e saber subjetivo são convertidos em domínios antagônicos e exclusivos, posição que não deixa de ser tributária de uma concepção pré-crítica do conhecimento. 2) A objetividade é dogmatizada, uma vez que já não há como nem por que refletir criticamente sobre as condições da objetividade ou problematizar o pro- cesso de produção do conhecimento científico. Habermas conclui que o positivismo acaba por blindar a pesquisa contra uma auto-reflexão (Cf. 1982, p.90). De fato, uma auto-reflexão sobre a concepção objetivista do conhecimento po- deria revelar que se esta não se sustenta nem na esfera das ciências da natureza, me- nos ainda em relação às ciências humanas. Os procedimentos investigativos das ci- ências naturais caracterizam-se pelaconstrução hipotética de teorias sujeitas à verificação experimental posterior, de modo que o resultado dessas experimentações corresponde às hipóteses explicativas, e não à descrição da realidade tal qual ela é objetivamente, ao contrário das ilusões cultivadas pelo positivismo clássico. Assim, as explicações dos eventos formuladas pelas ciências da natureza dependem de hi- póteses estabelecidas com base em condições previamente definidas pelo pesquisa- dor. Paul Veyne lembra que a ciência não busca o real, mas o formal: ela procura construir um discurso rigoroso, ao qual os fatos obedecem formalmente, dentro dos limites de sua abstração (Cf. 1982, p.118). O que significa dizer, contra o objetivismo, que os fatos não são dados aos sentidos e à razão, mas construídos pelo pesquisador. Essa concepção de cientificidade é que as ciências humanas foram buscar nas ciências naturais, embora tal empréstimo sempre estivesse sujeito a dificuldades epistemológicas de várias ordens. Como observa Marilena Chauí, não sendo pos- sível 75 Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007 uma transposição integral e perfeita dos métodos, das técni- cas e das teorias naturais para o estudo dos fatos humanos, as ciências humanas acabaram trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus resultados tornaram-se muito con- testáveis e pouco científicos. (1994, p. 271; grifo da autora) Podemos afirmar que, nos termos em que foi posta no século XIX, a questão da cientificidade dos estudos sobre o homem viveu e vive até hoje uma situação paradoxal: as ciências humanas não conseguem realizar inteiramente o modelo de positividade emprestado das ciências da natureza, mas também não se decidem a abandoná-lo, com receio de perderem seu direito de acesso à positividade. O positivismo comteano pode ser considerado o grande responsável pela for- mulação de uma metodologia derivada das ciências da natureza. Essa transposição foi justificada com base na premissa de que a sociedade é regida por leis naturais, isto é, leis invariáveis e independentes da vontade e da ação humanas. Em sendo assim, o mesmo método de estudo poderia ser aplicado ao estudo tanto da natu- reza como da sociedade. Os positivistas julgavam que nas ciências sociais se deve- ria proceder como nas ciências da natureza, isto é, deixar de lado as pressuposi- ções, separar os julgamentos de fato dos julgamentos de valor, a ciência da ideologia, visando alcançar um conhecimento inteiramente objetivo. Para Durkheim, por exemplo, a interferência de juízos de valor na investigação sociológica apenas revelaria a imaturidade dessa ciência em relação à matemática e às ciências físico-químicas. Ele pede ao sociólogo que estude os fatos sociais “como coisas”, “de fora”. O que se reclama do sociólogo é que adote o estado de espí- rito em que se colocam os físicos, químicos ou fisiologistas, quando se embrenham numa região ainda inexplorada do seu domínio científico. [...] Ora, falta à sociologia atingir este grau de maturidade intelectual (1973, p.379). A exemplo de outros positivistas, Durkheim considerava que as ciências hu- manas só poderiam superar seu estado de imaturidade epistemológica quando se submetessem aos critérios de cientificidade formulados pelas ciências naturais. 3- A viabilidade de uma ciência do homem Posto nesses termos, o ideal de cientificidade das ciências humanas converte-se numa questão extremamente polêmica. Em nome das exigências do rigor científi- co, os positivistas pretendem que essas ciências fujam ao âmbito dos valores e das significações para que seu objeto possa ingressar na ordem dos fatos ou no domí- nio da objetividade plena. Semelhante intenção conduz, inevitavelmente, a uma 76 Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007 pergunta: ao pretender que as ciências humanas se constituam sobre o modelo das ciências naturais, elas não correm o risco de se converter em ciências sem o ho- mem? Sua cientificidade, edificada sobre tais parâmetros, não será proporcional à sua desumanização? Ainda assim, é inegável que a edificação das ciências humanas a partir do sécu- lo XIX esteve amplamente calcada no modelo das ciências da natureza. Caso se abandone o modelo positivista, hoje sujeito a toda sorte de crítica, será necessário, simultaneamente, renunciar a qualquer tentativa de construção de um saber cien- tífico sobre o homem? Serão as ciências humanas inviáveis? A esse respeito parecem existir duas alternativas que, por não serem mutua- mente excludentes, talvez sejam complementares. Pela primeira, as ciências humanas procurariam preservar seu direito de acesso à positividade, submetendo-se aos parâmetros de cientificidade que vigoram no âmbito das ciências da natureza, embora reconhecendo seus limites, na medida em que o processo de objetivação só é aplicável a uma parte do fenômeno huma- no. Paul Veyne aposta nessa alternativa ao afirmar que é preciso considerar como não científica uma boa parte das ciências humanas atuais, mas, simultaneamente, afirmar a possibilidade de uma ciência do homem (Cf. 1982, p.120) E conclui: “O faro do teórico é, pois, adivinhar que aspectos da realidade são susceptíveis de serem traduzidos na linguagem rigorosa e fecunda das deduções da matemáti- ca...” (VEYNE, 1982, p.123). As ciências humanas podem, portanto, empregar procedimentos científicos, sem que isso implique a redução do homem a essa forma de estudo. Existem, obviamente, processos e fenômenos humanos objetiváveis, mas o homem não é inteiramente objetivável. No âmbito das ciências humanas, não há como evitar inteiramente as conotações valorativas, ideológicas, subjetivas; a identidade parci- al entre o sujeito e o objeto de estudo por si só já inviabiliza a efetivação do ideal positivista de objetividade. O sociólogo não pode se colocar de fora da sociedade para estudá-la; o mesmo acontece com o historiador em relação à história, com o lingüista em relação à língua, e assim por diante. A segunda alternativa que tem sido apontada consiste em defender a autono- mia metodológica das ciências humanas, criando uma forma própria e específica de acesso à positividade. Não se trataria, na verdade, de abrir mão da possibilidade de cientificidade, mas de abdicar do padrão positivista de ciência para construir um modelo próprio, adequado ao seu domínio de investigação e epistemologicamente viável. Nessa perspectiva, Vancourt declara que não é indispensável às ciências do homem seguirem os cami- nhos traçados pelas ciências da natureza. Elas podem perfei- tamente utilizar métodos próprios, diferentes do da física 77 Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007 matemática, sem perder, por isso, sua “positividade”, sem tornar-se uma metafísica do homem e renunciar à formula- ção de verdades controláveis pela experiência (1964, p.43). Esta última alternativa implicaria assumir um posicionamento contrário à ne- gação positivista da especificidade metodológica das ciências humanas em relação às ciências da natureza, que desqualifica o conhecimento produzido pelas primei- ras em nome de um ideal unitário e homogêneo de cientificidade. Nas ciências humanas não se trataria de eliminar totalmente a influência de determinações sociais e juízos de valor em nome de um pseudoconhecimento neutro, mas, como propõe Lucien Goldmann, de tornar conscientes tais interferências e integrá-las na investigação científica para evitar, ou reduzir ao mínimo, sua ação deformante (Cf. 1972, p.36). Em certa medida as duas alternativas acima acabam convergindo na idéia de que, mesmo sendo impossível produzir um conhecimento neutro, alguma forma de objetividade se revela viável, não aquela de caráter positivista, mas um discurso apropriado à compreensão do fenômeno humano como tal, que não condena a priori toda e qualquer forma de sujetividade, porque se recusa a admiti-la incom- patível com a elaboração de um conhecimento objetivo sobre o homem. Referências bibliográficas CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994. COMTE, A. Curso de filosofia
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