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A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) Daniel Afonso Assaz Roberta Kovac MANUSCRITO DO CAPÍTULO A TERAPIA DE ACEITAÇAO E COMPROMISSO (ACT), DE DANIEL AFONSO ASSAZ E ROBERTA KOVAC, A SER PUBLICADO EM 2017 NO LIVRO TRATADO DE PSICOLOGIA CLÍNICA: DA GRADUAÇÃO À PÓS-GRADUAÇÃO, DA EDITORA ATHENEU. ESTA VERSÃO FOI DISPONIBILIZADA PARA FINS DIDÁTICOS. POR FAVOR, NÃO REPASSAR. A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) Daniel Afonso Assaz Roberta Kovac Durante uma sessão de terapia, podemos observar o cliente em constante interação verbal com o seu ambiente. Ele responde verbalmente ao mundo a sua volta, narrando e avaliando os eventos que ocorreram durante a semana, imaginando aqueles que podem acontecer e relembrando aqueles que transcorreram no passado. Além disso, é comum que ele também responda verbalmente ao próprio comportamento, descrevendo, interpretando, justificando e avaliando-o positiva ou negativamente. Extremamente importante é o fato de que esses relatos, interpretações, julgamentos e outras respostas verbais (usualmente chamadas de falas ou pensamentos a depender do seu caráter público ou privado) são muitas vezes capazes de exercer influência sobre outros comportamentos do indivíduo, podendo gerar reações emocionais (e.g. ansiedade, culpa), verbais (e.g. cadeias de preocupação e ruminação) e motoras (e.g. evitação, agressão). É exatamente esta interação verbal com o ambiente que pode constituir uma parcela importante do sofrimento dos clientes que buscam ajuda na psicoterapia. Como um psicólogo clínico pode compreender esse cenário? E intervir sobre ele? Uma possibilidade envolve focar no conteúdo da verbalização e verificar o quanto ela corresponde de fato à realidade do cliente ou está distorcida e enviesada. Para ilustrar esse processo, imagine um cliente, chamado Marcos, que tenha uma extensa história de invalidação e julgamento por expressar suas emoções. Ao interagir com outras pessoas, inclusive àquelas mais próximas, ele frequentemente pensa “Se eu mostrar meus sentimentos para as pessoas, elas vão me julgar” e, em seguida, evita a todo custo expressar o que está sentindo. Neste caso, o terapeuta poderia discutir, em conjunto com o cliente, o quanto ele está generalizando uma atitude de algumas pessoas para todas de seu convívio, inferindo reações psicológicas sem evidências para fazê-lo. Outra possibilidade de intervenção surge da observação de que nem todas as verbalizações produzem um impacto significativo no comportamento do indivíduo. É possível que a pessoa tenha o pensamento de que pode ser julgada ao demonstrar seus sentimentos e, apesar disto, expressá-los. Portanto, deve haver condições específicas que possibilitam que uma resposta verbal possa exercer influência sobre outros comportamentos. Ao adotarem essa perspectiva, analistas do comportamento enfatizam o contexto das verbalizações: as contingências históricas e atuais que favorecem o controle verbal sobre o comportamento (Hayes, 1987). Seguindo a linha de raciocínio contextual, a primeira pergunta esboçada é: como um conjunto de sons arbitrariamente definidos por uma comunidade verbal (i.e., uma frase) é capaz de exercer controle sobre o comportamento? Alguns autores sugeriram que isso é decorrente do fato de eles alterarem a função de determinados estímulos. Assim, no exemplo acima, a verbalização “Se eu demonstrar meus sentimentos, as pessoas ao meu redor vão me julgar” pode influir sobre o comportamento de Marcos na medida em que transforma a expressão de sentimentos em um estímulo aversivo, capaz de eliciar sentimentos de ansiedade e evocar respostas de fuga e esquiva. Os estudos de equivalência de estímulos demonstram que um estímulo pode ter, de fato, sua função adquirida a partir de relações arbitrárias com outros estímulos. Em estudos pioneiros, Sidman e colaboradores ensinaram crianças com desenvolvimento atípico a selecionarem tanto a palavra escrita bola (B) quanto a imagem de uma bola (C) diante da palavra falada “bola” (A). Apesar dos estímulos não compartilharem propriedades físicas (eles tem caráter auditivo, textual e pictórico), os participantes aprenderam as relações arbitrárias ensinadas. Mais impressionante é o fato de que os participantes foram capazes, sem treino adicional, de reverter a relação, nomeando “bola” diante da figura e da palavra escrita (B-A e C-A); e responder à relação entre a palavra escrita e a figura (A-C e C-A) (Sidman, 1994). Estas relações, que não haviam sido diretamente ensinadas, foram chamadas de derivadas. Estudos subsequentes demonstraram a transferência de função entre estímulos arbitrariamente relacionados, seja por meio de relações diretas ou derivadas. Nesse caso, ambos são funcionalmente semelhantes para a pessoa: ela responde à palavra “como se fosse” o objeto e vice-versa. Esse fenômeno foi observado para diferentes funções, como eliciadora, discriminativa, reforçadora e punitiva (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001). A demonstração desse fenômeno sugere que, ao integrarem relações arbitrárias com outros estímulos, palavras podem alterar a função destes e, portanto, exercer influência sobre o comportamento. Frente à derivação de relações e a transformação de função por meio de relações arbitrárias entre estímulos, algumas propostas teóricas surgiram para explicar estes fenômenos a partir de contingências históricas e atuais. Uma delas é a Teoria das Molduras Relacionais, ou RFT (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001). O argumento central da RFT é que responder a relações arbitrárias entre estímulos é um comportamento operante, que constitui a base da linguagem e cognição humana. Apesar de diversos organismos serem capazes de responder a relações entre estímulos caso sejam reforçados ao fazê-lo, estas relações são baseadas em propriedades físicas (tamanho, peso, cor). De acordo com a RFT, uma história específica de relacionar eventos do ambiente, arranjada pela comunidade verbal, permite que algumas dicas verbais sejam abstraídas e adquiram controle contextual sobre o responder relacional de seres humanos. Por sua vez, este controle permite que este padrão de resposta seja expandido para relações arbitrárias entre estímulos, não sendo mais limitado pelas propriedades físicas destes. Estas dicas verbais são divididas em dois grandes conjuntos, denominados contexto relacional e contexto funcional (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001). O primeiro sinaliza o tipo de relação estabelecida entre os estímulos. Esta pode ser de coordenação, como nos estudos de equivalência, indicada por palavras como igual, similar e parecido. Mas também pode ser de distinção (diferente), oposição (oposto), comparação (maior/menor que), hierarquia (inclui, contém), temporalidade (antes/depois), causalidade (se...então), espacialidade (em cima, do lado) e de perspectiva (eu/você, aqui/ali, agora/então, relações que dependam da perspectiva de quem fala). Cada um desses tipos de relações implica em um padrão de resposta e derivação de relações específicas (e.g., se A é igual a B, B é igual a A; mas se A é maior que B; B é menor que A). Já o contexto funcional indica o tipo de propriedade ou característica dos estímulos que está sendo relacionada (p.ex. tamanho, perigo, beleza, valor) e, portanto, que função será transformada. Uma vez que ambos os contextos adquirem controle sobre o responder relacional, o indivíduo é capaz de responder a relações arbitrárias entre estímulos, de derivar novas relações e responder a estímulos que terão sua função transformada a depender destas relações arbitrárias. Diz-se então, após uma extensa história de contingências, que o repertório comportamental de um indivíduo agora inclui o tipo de operante estudado pela RFT – o responder relacional arbitrariamente aplicável (RRAA). Para exemplificar, imagine que você esteja procurandoum destino de viagem para as próximas férias e seu amigo afirme que “Salvador é mais bonita que o Rio de Janeiro”. Nessa frase, temos dois estímulos: Salvador e Rio de Janeiro. Além disso, existe um contexto relacional de comparação (“mais que”) e um contexto funcional de beleza (“bonita”). A partir disso, mesmo sem conhecer Salvador, você é capaz de derivar que ela deve ser mais bonita do que São Paulo (que, em função da sua história prévia, sabe ser menos bela do que o Rio de Janeiro) e reagir de modo diferente a ela, preferindo viajar para Salvador que para o Rio, por exemplo. Perceba que caso a frase fosse invertida (“Rio de Janeiro é mais bonito que Salvador”), sua preferência possivelmente mudaria de acordo. Observe ainda que, caso você esteja buscando uma cidade para morar, e não somente visitar, a frase acima é capaz de não exercer efeito sobre sua escolha. Porém, outra relação, com um contexto funcional diferente que transforme funções mais relevantes para a escolha, sim (e.g., “São Paulo tem mais vagas de emprego que Salvador”). Linguagem e sofrimento humano Os fundamentos da RFT, apresentados na seção anterior, possuem implicações importantes para compreender a relação entre a linguagem e o sofrimento psicológico humano. Ao integrar o repertório da pessoa, o RRAA é prontamente favorecido pela comunidade verbal em função de suas vantagens, tanto para a cultura quanto para o indivíduo (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001). Afinal, ele permite que a pessoa responda indiretamente ao ambiente, através de suas relações com outros estímulos. E, consequentemente, responda a contingências aversivas sem se machucar; e a contingências improváveis ou em um futuro distante antes que elas ocorram. Ademais, a derivação permite aumentar drasticamente a curva de aprendizagem a partir do estabelecimento de poucas relações. Portanto, é comum observar cuidadores reforçando diversas respostas relacionais da criança (e.g., “Isto mesmo, antes de atravessar a rua sempre olhe para os dois lados”); e, portanto, aumentando a frequência deste comportamento. Com o tempo, o controle sobre o responder relacional deixa de ser exclusivamente social. A criança passa a se engajar nesse comportamento porque, através da transformação de função, ele permite que ela lide de modo mais efetivo com o mundo ao seu redor (e.g., “Antes de atravessar a rua sempre olhe para os dois lados” altera a capacidade da rua de evocar respostas de observação e, consequentemente, evitar acidentes). Nesse contexto sócio-verbal, o responder relacional é altamente favorecido, ao ponto da pessoa tornar-se extremamente fluente em estabelecer relações arbitrárias entre estímulos e emitindo este responder encoberta ou abertamente, pensando e falando, com uma rapidez impressionante. Deste modo, o indivíduo passa a responder ao seu ambiente cada vez mais indiretamente, com base nas relações verbais aprendidas e derivadas. Porém, apesar das vantagens decorrentes desse processo, ele também pode acarretar em sofrimento psicológico. Em primeiro lugar, o caráter indireto do responder relacional pode diminuir a sensibilidade do indivíduo às contingências (Villatte, Villatte & Hayes, 2016). Para ilustrar, retomemos o exemplo do Marcos. Ao olhar para a história de vida dele, é nítido que o pensamento “Se eu mostrar meus sentimentos para as pessoas, elas vão me julgar” é produto das contingências de punição social. O relato de Marcos também indica que, ao ter esse pensamento, sua probabilidade de se expor a situações de vulnerabilidade interpessoal, que já era baixa, torna-se ainda menor. Portanto, é mais provável que ele adote uma postura fechada durante a interação ou ainda evite o contato social. Ambas as respostas permitem que ele se esquive com sucesso de eventuais punições sociais, fortalecendo não somente a resposta de esquiva/fuga como também a resposta verbal (i.e., o pensar) e a transformação de função decorrente. Caso esse padrão continue, Marcos permanecerá respondendo predominantemente ao mundo verbalmente construído, na qual interações sociais são eventos a serem temidos e evitados. O problema é que as relações verbais estabelecidas não necessariamente refletem as contingências sociais em que Marcos está inserido: seus amigos podem se mostrar muito acolhedores no momento em que ele expressar seus sentimentos. Entretanto, ao fugir rigidamente (i.e., frequentemente, em muitos contextos) dessas situações, ele pode nunca entrar em contato com essa contingência – no caso, com o acolhimento dos amigos. E, mesmo que ele tenha essa experiência de acolhimento em determinado momento, a transformação de função por relações verbais pode ser tão forte que impeça que esse contato com as contingências altere a função aversiva de expor os sentimentos. A breve experiência de conexão social é muito menos impactante do que a longa história contingências verbais envolvendo julgamento. Consequentemente a probabilidade de ele ser influenciado pela nova contingência e modificar seu padrão de resposta, se expondo a pessoas que irão acolhê-lo, é baixa. Além da insensibilidade, outro problema decorrente do responder relacional é a expansão do escopo de estimulação aversiva existente (Villatte, Villatte & Hayes, 2016). Ao ser punido após expressar suas emoções, os efeitos desta consequência poderão ser generalizados para muitos outros estímulos através de relações arbitrárias. Assim, outras pessoas, situações, as respostas de Marcos (como a expressão emocional e a ansiedade) e até a própria como pessoa como um todo (i.e., o “Eu”) podem adquirir função aversiva para ele. Ademais, durante uma interação social agradável, Marcos pode relembrar situações passadas na qual foi punido ao se expor ou imaginar consequências futuras aversivas que podem ocorrer caso o faça, experienciando esses eventos como se eles estivessem ocorrendo agora. Assim, ele traz o sofrimento decorrente destas situações para o presente verbalmente e, portanto, sente ansiedade no aqui e agora. Em conjunto, esses processos garantem que a aversividade estará cada vez mais presente na vida de Marcos, inclusive em situações seguras e em seu próprio comportamento. Diante de estímulos aversivos, é comum que as pessoas tentem modificar a situação, emitindo respostas de fuga, esquiva ou contra-controle. Quando esses eventos aversivos são as próprias respostas privadas do indivíduo (pensamentos, sentimentos, memórias), é comum que a pessoa tente alterar sua forma, frequência ou intensidade. Este comportamento é denominado de esquiva experiencial (Hayes, Strosahl& Wilson, 2012). No caso de Marcos, ele pode fazer isso evitando a situação que gera ansiedade, não saindo com seus amigos; ou anestesiando seus sentidos temporariamente, inclusive a sensação de ansiedade, ao consumir algum tipo de droga. Porém, apesar da esquiva experiencial ser uma prática favorecida pela cultura e frequentemente efetiva em curto prazo, quando adotada de forma rígida (isto é, em todos os contextos, indiscriminadamente), ela acarreta em problemas ao indivíduo. Isto porque ela comumente se mostra ineficaz em longo prazo: o sentimento de ansiedade de Marcos retornará na próxima possibilidade de interação social. E, mesmo quando o indivíduo é bem-sucedido na esquiva experiencial, o custo dela costuma ser muito alto. Para fugir da ansiedade, Marcos deverá estar constantemente preocupado em monitorar sua experiência psicológica à procura dela, reduzindo sua capacidade de focar na interação social conforme ela ocorre. Ele também deverá restringir o escopo de ações possíveis, limitando seu repertório ao afastamento social e abuso de substâncias, prejudicando sua capacidade de se conectar com outras pessoas. Desse modo, a linguagem acaba por tornar o sofrimento psicológico inevitável (Hayes, Strosahl & Wilson, 2012). Modelo terapêuticoe raciocínio clínico A seção anterior ofereceu uma breve análise funcional, informada pela RFT, de como o comportamento verbal pode contribuir para o desenvolvimento e manutenção de problemas psicológicos. A proposta da ACT deve ser compreendida no contexto desse cenário. Apesar de existirem outros modos de apresentar o modelo da ACT (como o Hexaflex e a Matriz), o formato adotado neste capítulo foi selecionado por favorecer a conexão entre as implicações da RFT para a psicopatologia e para a intervenção; e entre cada componente do pacote terapêutico em um todo coerente. É fundamental ressaltar que o raciocínio do terapeuta deve ser analítico- funcional. Em outras palavras, a utilização de qualquer intervenção deve ser uma escolha feita com base na análise funcional do caso (Bach & Moran, 2008), que indicará quais repertórios devem ser o foco do trabalho terapêutico com aquele cliente específico e quais os processos comportamentais que permitirão o desenvolvimento do repertório em questão. Sem a análise funcional, a ACT torna-se um conjunto de técnicas descontextualizadas, impossíveis de serem empregadas de modo flexível e ideográfico para cada caso. O modo como o repertório é desenvolvido em sessão também está relacionado ao modo como a RFT entende a linguagem. Na ACT, o papel de intervenções voltadas para discutir e interpretar os problemas trazidos pelo cliente é minimizado (Hayes, Strosahl & Wilson, 2012). Afinal, discutir como o controle verbal diminui a sensibilidade ao ambiente pode levar, paradoxalmente, a aumentar o controle verbal, impedindo a mudança clínica almejada. Assim, as intervenções da ACT são, em sua grande maioria, experienciais e metafóricas. Em outras palavras, elas favorecem o contato com as contingências relevantes e a oportunidade de emissão de respostas alternativas; e fazem uso de linguagem não-literal, como metáforas, que reduzem a probabilidade dos problemas ocasionados pela linguagem do dia-a-dia, buscando assim atingir o que seria um dos principais objetivos da ACT: diminuir a governança verbal quando esta se mostra ineficaz ou produtora de maior sofrimento. Valores: escolhendo a direção da terapia Qual a importância dentro do modelo terapêutico? A perspectiva da inevitabilidade do sofrimento humano demanda uma mudança no modo de pensar a psicoterapia. Mais especificamente, no modo de pensar os objetivos terapêuticos. Se a vida humana é baseada tanto na alegria, na satisfação e no prazer quanto na amargura, no temor e na irritação, faz sentido buscar eliminar a todo custo a tristeza, a ansiedade, a raiva, os pensamentos obsessivos, a ideação suicida? E basear o sucesso ou fracasso terapêutico na eliminação destes sintomas? Caso a resposta seja não, é necessário esboçar uma alternativa. Afinal, deve haver critérios para que terapeuta e cliente possam, em conjunto, direcionar o rumo da terapia e avaliar os progressos feitos no processo, e não ficar à deriva. Influenciada pelas psicoterapias humanistas, a alternativa proposta pela ACT é que esses critérios sejam os valores do cliente. Dessa forma, ainda que a vida não seja composta somente por momentos de felicidade, ela pode ser repleta de satisfação pessoal e significado (Hayes, Strosahl & Wilson, 2012). É importante notar que todas as outras intervenções da ACT só fazem sentido no contexto dos valores do cliente. Afinal, algumas delas envolvem que o indivíduo entre em contato com eventos encobertos dolorosos; outras que ele se engaje em atividades com um alto custo de resposta. Sem valores que deem significado a essa árdua caminhada no processo terapêutico, estas intervenções tornam-se técnicas descontextualizadas, que promovem sofrimento psicológico sem favorecer uma vida que valha a pena ser vivida. Como definir conceitualmente? Mas como compreender “valores”, um termo carregado de bagagem do senso comum e de outras tradições psicológicas, na perspectiva analítico-comportamental? Antes de tudo, valores são descrições verbais de reforçadores. Em outras palavras, são consequências desejadas, verbalmente construídas. Ainda que um dos principais focos da ACT seja minar o controle verbal excessivo, ineficaz, visa também construir um controle verbal alternativo, que leve o cliente a viver perseguindo uma direção valorada por ele (Hayes, Stroshal & Wilson, 2012). Nem todos os reforçadores podem ser tidos como valores. Para ser considerado um valor, capaz de direcionar o processo terapêutico, uma descrição verbal deve obedecer a outros três critérios. Em primeiro lugar, ela deve descrever um reforçador positivo. Apesar do papel central do reforçamento negativo na vida humana, o objetivo de utilizar os valores do cliente para direcionar a terapia é construir uma vida que valha a pena ser vivida e não uma vida isenta de sofrimento. E se enfatizássemos a fuga e a esquiva de estímulos aversivos, estaríamos mais alinhados com a segunda perspectiva (Plumb, Stewart, Dahl & Lundgren, 2009). No caso de Marcos, isto impede que “não sentir ansiedade ao interagir com outras pessoas” seja adotado como um valor. Em segundo lugar, o reforçador positivo descrito deve decorrer naturalmente do engajamento constante em um padrão de ação amplo. Isto significa que um valor nunca é plenamente alcançado (Plumb, Stewart, Dahl & Lundgren, 2009). Ao contrário, o indivíduo deve continuamente realizar ações específicas que contribuam para trazer e manter esse reforçador em sua vida; não fazê-lo implica em um distanciamento de seus valores. Dessa forma, valores se diferenciam de objetivos, que podem ser atingidos. E embora alcançar objetivos específicos esteja relacionado aos valores pessoais, eles não são valores em si. Assim, caso Marcos afirme valorizar “relações íntimas”, ele deve constantemente engajar-se em ações que construam uma relação com essa qualidade (e.g., escutar e compreender os amigos; compartilhar aspectos pessoais com eles; ajudá- los em momentos de necessidade) para estar vivendo de acordo com seu valor. Ao adotar atitudes de distanciamento, sua sintonia com o valor de intimidade automaticamente diminui. Em terceiro lugar, a expressão de valores não deve ser um comportamento controlado exclusivamente por consequências sociais. Isto significa que Marcos não deve afirmar valorizar intimidade porque as pessoas próximas dele valorizam isto, porque é socialmente esperado que ele o faça ou porque o terapeuta acredita que isto seria o melhor para o cliente; mas sim porque as consequências naturais do contato íntimo são reforçadoras para ele (Plumb, Stewart, Dahl & Lundgren, 2009). Como fazer na prática? Considerando que os valores são produtos de uma escolha do cliente, o primeiro passo da clarificação destes é simplesmente perguntar-lhe diretamente o que é importante para ele. Para facilitar a compreensão do que está sendo pedido, algumas metáforas podem ser empregadas. Frequentemente, a figura de uma bússola é utilizada para ilustrar uma vida baseada nos valores pessoais, na qual estamos sempre caminhando na direção escolhida (e.g.,, norte). A metáfora da bússola também ilustra o que não são valores: rotas de fuga (nunca andamos pra fugir do sul, mas sim para nos aproximar do norte) e objetivos (nunca alcançamos um lugar específico denominado “norte”). Apesar de compreenderem o significado de valores, muitos clientes ainda terão dificuldade em responder a essa pergunta em função de algumas barreiras comuns. De um lado, o cliente pode não estar sensível aos seus valores pessoais, sendo incapaz de discriminá-los quando perguntado. É possível que ninguém, inclusive ele próprio, tenha lhe perguntado o que é importante para ele. Nessa situação, o terapeuta pode induzir o cliente a relembrar e reviver em sessão alguns momentos nos quais ele teve sensações de vitalidade e propósito, usualmente associadas a situações onde valoresestão presentes. E, durante este exercício experiencial, observar a demonstração destes sentimentos em sessão, que indicam que o cliente está de fato entrando em contato com aquilo que é importante para si. Do outro lado, a dificuldade do cliente pode advir do fato de que sua expressão de valores está sob controle de contingências aversivas e/ou sociais. Nesse caso, o terapeuta pode auxiliar o cliente eliminando verbalmente estas barreiras na interação. Suponha um cliente que, quando questionado sobre seus valores, afirme “Quero parar de sentir ansiedade”. O terapeuta pode remover a ansiedade da equação momentaneamente, com outra pergunta como “O que você faria se não sentisse tanta ansiedade?”. Caso as contingências aversivas estejam muito fortes no momento, o cliente pode não ser capaz de responder nada além da vontade de eliminar a ansiedade. Nesta situação, o terapeuta pode alterar a perspectiva temporal, pedindo que o cliente imagine, o mais vividamente possível, o que era importante para ele no passado, antes desse sentimento predominar, ou como ele gostaria de ser lembrado em seu funeral, por exemplo. Aceitação: renunciando à luta com si próprio Qual a importância dentro do modelo terapêutico? Uma vez que os valores do cliente foram clarificados e, consequentemente, a direção da terapia foi escolhida, é necessário percorrer esse caminho. Durante esse trajeto, é natural que surjam eventos privados desagradáveis. Afinal, ao escolher uma vida baseada em relações íntimas, Marcos necessita se comprometer a engajar-se em ações com alto custo de resposta e que podem não surtir o efeito desejado, como se expor a situações de vulnerabilidade interpessoal. Situações que, portanto, podem trazer consigo sentimentos e cognições difíceis de lidar, como a ansiedade e pensamentos de fracasso. O modo como ele responde a esses eventos privados pode favorecer o engajamento nessas ações valorizadas ou, pelo contrário, atuar como uma barreira, impedindo-o de se aproximar de seu valor e construir relações significativas. Como mencionado anteriormente, um destes obstáculos possíveis é a luta que o indivíduo se engaja com seus próprios eventos privados na tentativa de mudar sua forma, frequência ou intensidade: a esquiva experiencial. Além de ser ineficaz em longo prazo, a esquiva experiencial geralmente acarreta um custo muito alto para a pessoa. Neste contexto, a aceitação surge como uma alternativa à esquiva experiencial e seus efeitos deletérios. Ela envolve uma mudança de postura do cliente em relação à sua experiência psicológica: ao invés de se fechar para ela por meio da evitação e de tentativas de controle, ele se abre para seus sentimentos, pensamentos, memórias e sensações, estando disposto a entrar em contato com eles e vivenciá-los conforme ocorrem. Como definir conceitualmente? A mudança de postura mencionada acima significa dizer que aqueles eventos privados que costumavam evocar respostas de fuga, esquiva e/ou contra-controle agora passam a evocar respostas alternativas de aproximação (Cordova, 2001). Isto implica que estes estímulos tiveram sua função alterada, de forma que agora são capazes de evocar um repertório alternativo, composto por respostas de observação, descrição e validação, mais prováveis de serem reforçadas positivamente em longo prazo. No caso de Marcos, a aceitação envolve permitir que a ansiedade e as preocupações surjam durante a interação com outras pessoas sem lutar contra elas, identificando-as conforme ocorrem, compreendendo-as como respostas naturais dada a sua história de vida e a situação em que ele se encontra no momento e se engajando em interações sociais ainda que na presença destes encobertos. Como fazer na prática? O desenvolvimento da aceitação pode ser uma tarefa bastante difícil, uma vez que ela é contrária a uma prática amplamente sustentada pela cultura. Além disso, as tentativas de alterar ou interromper eventos privados aversivos se mostraram eficazes a curto prazo, na própria experiência do cliente. Portanto, muitas vezes será necessário que o terapeuta crie um contexto em sessão que aumente a sensibilidade do cliente ao custo desta estratégia e sua efetividade em longo prazo, deixando-o mais receptivo a formas alternativas de responder aos seus eventos privados. Em outras palavras, realize em conjunto com o cliente, uma análise funcional de suas respostas de esquiva experiencial. Este contexto construído em sessão é chamado de desesperança criativa. Durante esse processo, a postura adotada pelo terapeuta é de extrema importância. Em primeiro lugar, o terapeuta deve guiar o cliente a se atentar às consequências de suas tentativas de controle e evitação, mas permitir que o cliente responda sobre a efetividade e os custos delas com base na sua própria experiência. Esta postura evita um embate racional entre a visão do terapeuta e do cliente sobre a melhor forma de lidar com os eventos privados e enfatiza a funcionalidade de suas ações (isto é, se elas contribuem ou não para o cliente atingir seus valores). Em segundo lugar, o terapeuta deve ser muito empático durante o processo, uma vez que para diversos clientes será muito doloroso compreender as consequências de seu padrão rígido de esquiva experiencial e será muito fácil que eles adotem uma postura fatalista e autodepreciativa (e.g.,, “Então nada do que faço dá certo. Eu sou um fracasso”). Ao acolher a dor e enfatizar o fracasso da estratégia adotada e não do cliente como pessoa, o terapeuta pode tornar a desesperança criativa um momento extremamente humano, de aproximação empática entre terapeuta e cliente; e poderoso para mudança clínica, ao deixar o cliente mais propenso a tentar outras estratégias para lidar com seus eventos privados. Para consolidar os aprendizados durante a desesperança criativa, algumas metáforas e pequenos exercícios podem ser empregados. Pare alguns segundos e pense na sua comida favorita, tentando imaginá-la. Agora tente, a todo custo, suprimir e não pensar nela. Não imaginar sua aparência; não sentir seu cheiro; nem saborear seu gosto. Esse rápido exercício, que pode ser utilizado com os clientes, enfatiza a ineficácia da esquiva experiencial: a maioria das pessoas não consegue suprimir o alimento com sucesso; e os que são bem-sucedidos direcionam toda sua atenção e energia para a supressão, impedindo-os de fazer qualquer outra coisa além de suprimir. Outras intervenções podem ser utilizadas para salientar o alto custo do controle e da evitação. Entre elas está a metáfora do convidado indesejado. O terapeuta pede que o cliente imagine a seguinte situação: ele está organizando uma festa em casa e convidou todas as pessoas mais importantes da vida dele. A festa está indo muito bem e todos estão se divertindo. Até que uma pessoa que o cliente não gosta chega à festa, sem ser convidada. Não só ele não foi convidado, como também é uma péssima visita: incomoda os convidados, suja a casa, quebra objetos e se recusa a ir embora. Diante desse cenário, o cliente tem duas opções. De um lado, focar sua atenção no convidado indesejado e tentar controlar aonde ele vai e o que ele faz, na tentativa de impedir que ele cause maiores danos e, se conseguir, expulsá-lo da festa. Mas ao fazê-lo, ele negligencia os demais convidados e não aproveita a festa; e mesmo que consiga expulsá-lo, terá que ficar próximo da porta para garantir que ele não retorne. Do outro lado, o cliente tem a opção de focar sua atenção nos seus entes queridos e aproveitar a festa, ainda que isso signifique permitir que o convidado indesejado permaneça nela. A metáfora do convidado indesejado também traz consigo uma postura alternativa ao controle: desistir da luta e estar disposto a entrar em contato com seus eventos privados, inclusive os mais desagradáveis. Essa noção será contra-intuitiva e até pavorosapara muitos clientes, mesmo para aqueles sensíveis aos custos e a ineficácia do controle e da evitação. Afinal, eventos privados desagradáveis ainda possuem uma função aversiva muito forte. O processo de validação (Linehan, 1997) pode contribuir para alterar isto. Ao comunicar para o cliente que a resposta dele é natural e compreensível dentro do contexto de sua história de vida e das condições atuais, o terapeuta demonstra aceitar o cliente como ele é e, com isso, altera as relações verbais existentes ao redor dos eventos privados. De um lado, ele minimiza as relações de coordenação com juízos de valores (por exemplo, raiva é ruim). Do outro lado, ele favorece relações de causalidade entre a resposta do cliente e eventos ambientais (por exemplo, rejeição causa raiva); e de inclusão entre a resposta do cliente e características compartilhadas pela humanidade (por exemplo, raiva é uma resposta natural à rejeição). Ademais, ao se engajar em validação durante a sessão, o terapeuta oferece um modelo para o cliente, favorecendo que ele comece a validar a si mesmo (Linehan, 1997). Tanto a sensibilidade às consequências em longo prazo da esquiva experiencial quanto a validação podem contribuir para que o indivíduo responda de outro modo a seus eventos privados. O contexto de terapia é ideal para que o cliente comece a responder de forma diferente, uma vez que é um lugar mais seguro e no qual o terapeuta pode auxiliá-lo no processo. Com isso em mente, o terapeuta pode utilizar o raciocínio clínico da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) e favorecer a disposição ao evocar respostas de observação e descrição de eventos privados em sessão; bloquear tentativas de controle e evitação; e consequenciar a aceitação do cliente (Callaghan, Gregg, Marx, Kohlenberg, & Gifford, 2004). Desfusão cognitiva: reduzindo o impacto verbal Qual a importância dentro do modelo terapêutico? Outro obstáculo comum entre o cliente e uma vida baseada em seus valores é derivado da implicação da RFT de que a dominância verbal leva as pessoas a responderem a uma grande parte dos estímulos em função de suas relações verbais com outros estímulos. E, apesar de não ser necessariamente ruim, isto se torna prejudicial quando acarreta em padrões de comportamento insensíveis ao contexto atual e desconectados de seus valores pessoais. Isto é o caso quando a probabilidade de Marcos se engajar em ações que favoreçam intimidade é ainda mais reduzida após o pensamento “Se eu falar o que sinto, eles vão rir de mim”. Diante deste cenário, a desfusão cognitiva surge como uma opção de intervenção. Diferentemente da reestruturação cognitiva, seu objetivo não é modificar o conteúdo das cognições do cliente, mas sim o impacto destas. Em outras palavras, a desfusão cognitiva almeja que o cliente permita que seus pensamentos ocorram naturalmente, inclusive aqueles tidos como “irracionais” ou difíceis de lidar. Mas que ele também impeça que esses pensamentos, quando ocorrerem, influenciem o seu comportamento a ponto de afastar o cliente de seus valores. No exemplo de Marcos, isso envolve que, ainda que ele tenha o pensamento “Se eu falar o que sinto, eles vão rir de mim”, ele possa agir de acordo com os seus valores, interagindo com os seus amigos e criando laços significativos. Por último, é importante ressaltar que desfusão cognitiva e aceitação estão intimamente conectadas dentro do modelo terapêutico. Ambos constituem modos alternativos de responder aos próprios eventos privados. De um lado, estar disposto a entrar em contato com os eventos privados é necessário para que seja possível reduzir o impacto dos pensamentos. Do outro lado, diminuir a força dos pensamentos torna menos difícil se aproximar deles com uma postura aberta. Como definir conceitualmente? No exemplo acima, a resposta relacional “Se eu falar o que sinto, eles vão rir de mim” estabelece uma relação causal entre expressão e humilhação. A influência deste pensamento sobre outros comportamentos do cliente está diretamente relacionada à sua capacidade de transformar o ato de falar em um estímulo aversivo, gerando respostas de ansiedade e esquiva. Uma vez que a transformação de função do responder relacional é controlada pelo contexto funcional, alterações contextuais podem interromper esse processo sem afetar a relação estabelecida entre os estímulos (Blackledge, 2007). No caso, diminuir a transformação de função entre os estímulos “humilhação” e “expressão” sem alterar a relação de causalidade formada ao estabelecer um novo contexto. Então, respostas alternativas ao conteúdo do pensamento, mais compatíveis com a construção de relações de intimidade, podem ser favorecidas mais facilmente. Como fazer na prática? O trabalho de aceitação promove um contexto favorável para a desfusão cognitiva. Ao abdicar da luta com seus eventos privados, o indivíduo está mais apto a entrar em contato com seus pensamentos, observando-os e descrevendo-os. Além disso, ao ser capaz de validar suas próprias cognições, o cliente as entende como reações naturais dentro de sua história de vida e situação presente; e não como ocorrências do acaso ou produtos de ações voluntárias. A familiarização com o processo de pensar, iniciada com a observação, descrição e validação de seus pensamentos, é aumentada quando o cliente é capaz de identificar elementos do pensar e como eles se repetem em padrões previsíveis ao longo de sua vida. Seja pelo tipo de cognição (avaliação, julgamento, racionalização, comparação) ou pelo seu conteúdo (fatalismo, preocupação, ruminação, auto depreciação). Ao sinalizar esses padrões, de modo empático e validante, conforme eles ocorrem na fala do cliente, o terapeuta aumenta a probabilidade que o cliente também se atente a eles. Ao ser capaz de compreender seus próprios pensamentos como eventos dinâmicos, porém fruto de contingências históricas e atuais, o cliente está mais apto a verbalmente re-contextualizar o pensar de diferentes modos. E, ao fazê-lo, reduzir a transformação de função resultante destas relações verbais (Blackledge, 2007). Em primeiro lugar, ele pode estabelecer uma relação de hierarquia entre o Eu e os seus eventos privados (Törneke, Luciano, Barnes-Holmes & Bond, 2016). Isto significa dizer que sensações, sentimentos e pensamentos fazem parte de quem a pessoa é, ainda que ela não possa ser reduzida a essas experiências. Para este fim, são utilizados exercícios experienciais que permitem ao cliente observar a multiplicidade de experiências psicológicas e sua dinâmica ao longo do tempo, e contrastá-las a uma perspectiva única a partir da qual esses eventos são experienciados. Ou também o emprego do prefixo “Estou tendo um pensamento de que...” antes de cognições específicas. Por exemplo, transformando a frase “Eu sou um fracasso” em “Eu estou tendo um pensamento de que sou um fracasso”. Em segundo lugar, o cliente pode ser levado a construir verbalmente uma distância espacial entre si e seus pensamentos. Seres humanos têm uma tendência a serem mais afetados por eventos que acontecem próximos a eles do que aqueles distantes em espaço e tempo. Qual o impacto de uma tragédia que ocorreu há 50 anos em outro continente em comparação com uma similar em magnitude, porém que aconteceu ontem, ao nosso lado? Esta tendência a desvalorizar eventos espacialmente distantes pode ser usada para reduzir o impacto de pensamentos. Na ACT, isto é feito através de exercícios que transformam os pensamentos do cliente em objetos físicos, separados do indivíduo. Seja ao compará-los a folhas que caem em um rio e seguem o fluxo da correnteza; ou ao pedir que o cliente selecione um pensamento e descreva seu tamanho, formato, peso, cor, textura e outras propriedades físicas atribuídas por ele. Em terceiro lugar, cliente e terapeuta podem contextualizar o emissor das relações verbais. Estaé uma prática comum nas relações interpessoais. Ao estabelecer o falante como alguém honesto/mentiroso, inteligente/burro, bom caráter/mal- intencionado; são/senil, o impacto de sua fala é modulado: suas palavras adquirem maior ou menor capacidade de influenciar o comportamento do ouvinte. No âmbito intrapessoal, essa prática é mais rara; porém, o processo comportamental é similar. Contextualizar o cliente como alguém capaz de elaborar uma narrativa coerente, porém arbitrária, criativa e enviesada (análogo a um roteirista de histórias), é capaz de reduzir o impacto de seus próprios pensamentos. Apontar essas características no fluxo de pensamentos do cliente e incentivá-lo a fazer o mesmo contribuirá para tornar essa analogia fundada na experiência do cliente e, portanto, mais poderosa. Uma vez que o indivíduo re-contextualiza seus pensamentos como parte de quem ele é, espacialmente distantes, ou produtos de um emissor particular, a influência dessas cognições no comportamento diminui. De modo que é mais fácil que ele se engaje em ações que não condizem com o conteúdo de seus pensamentos e tenha suas respostas reforçadas ao fazê-lo. Alguns exercícios são utilizados para propiciar essa experiência de incongruência entre ação e pensamento em sessão. Alguns deles são mais estruturados e envolvem, por exemplo, pedir para o cliente pensar e acreditar com todas suas forças que é incapaz de fazer determinada ação física; e em seguida realizá- la. Outras se aproveitam de pensamentos trazidos pelo cliente durante a interação terapêutica (e.g., “Não consigo mais falar deste assunto”) para evocar e consequenciar respostas diferentes (e.g., continuar a conversar sobre o assunto difícil). Aqui e agora: sensível às contingências presentes no momento Qual a importância dentro do modelo terapêutico? Como apontado anteriormente, um dos problemas gerados pelo controle verbal é que, ao responder indiretamente ao ambiente, a pessoa pode tornar-se pouco sensível a alguns aspectos dele. E, em algumas situações, estes elementos podem ser extremamente importantes para que o indivíduo responda de forma coerente com o contexto presente e de acordo com seus valores pessoais. No caso de Marcos, o pensamento “Se eu falar o que sinto, eles vão rir de mim” é capaz de aumentar sua sensibilidade a pequenos sinais de julgamento e crítica dos outros, tornando mais provável que ele fuja do contato social ou, pelo menos, de situações de vulnerabilidade. Paralelamente, o foco no próprio pensar e em possíveis ameaças do outro diminui sua sensibilidade à sua experiência psicológica (e.g.,, preocupação, ansiedade, memórias de humilhações passadas), impedindo que ele seja capaz de empregar as habilidades intrapessoais aprendidas durante o trabalho de aceitação e desfusão cognitiva. Ela também impede que Marcos esteja centrado na interação social, reduzindo a probabilidade dele perceber possíveis demonstrações de abertura e acolhimento do outro; e de utilizar seu repertório social adequadamente. No final, Marcos dificilmente tomará atitudes em sintonia com o que está ocorrendo no momento e acordo com seus valores, com respostas de aproximação ao outro. Neste caso, o controle verbal acaba por limitar o escopo de ações que aproximariam o cliente de seus valores. Em tal cenário, a desfusão cognitiva pode ser utilizada para reduzir o controle verbal, diminuindo o impacto desse pensamento no comportamento de Marcos. Entretanto, o comportamento não deixa de ser controlado pelas contingências: ao reduzir uma fonte de influência, outra surgirá para controlar o comportamento. Ao favorecer que Marcos seja capaz de expandir sua atenção para diversos eventos presentes no momento (como sinais de interesse do outro), é mais provável que seu comportamento seja controlado pelas contingências em vigor. Consequentemente, suas respostas serão mais sensíveis ao contexto atual, com maior probabilidade de emissão de serem efetivas e estarem sintonia com seus valores pessoais. Como definir conceitualmente? Estar em contato com o momento presente implica alterar o controle de estímulos. Em primeiro lugar, isto é feito através da expansão da atenção do cliente para outros eventos ambientais e novas propriedades de estímulos que, apesar de estarem presentes no ambiente, não estavam influenciando o comportamento do cliente previamente. Especialmente relevante são aquelas funções de estímulos que não foram verbalmente adquiridas. Entretanto, não é suficiente adotar uma postura centrada; é importante permanecer nela. A fluência da pessoa em estabelecer relações entre estímulos continuará a redirecionar a atenção dela para aspectos do ambiente que tiveram sua função transformada verbalmente: avaliar, comparar e justificar o mundo ao seu redor. E, com isso, aumentar a probabilidade de tomar atitudes em desacordo com seus valores pessoais. Portanto, nesta situação, é importante que o indivíduo consiga novamente redirecionar sua atenção para o contexto atual. Como fazer na prática? Em função da tendência de as relações verbais dominarem e exercerem influência de forma a limitar o repertório do cliente, permanecer centrado no momento, sensível ao contexto atual, é uma habilidade que requer muita prática. Porém, existe um vasto número de eventos e propriedades em cada dado momento, permitindo oportunidades para treinar essa habilidade em todas as situações vividas. Esses eventos e propriedades podem estar no ambiente físico externo ao indivíduo. Se você parar a leitura deste capítulo e observar o seu entorno com atenção e curiosidade, com certeza será capaz de notar dez aspectos dele que não havia percebido anteriormente. Seja a textura da página do livro; detalhes no formato do objeto ao seu lado; o contorno das sombras desses objetos; ou ruídos de fundo que pareciam não existir. Esse mesmo tipo de atividade pode ser feita com o cliente, tanto dentro quanto fora de sessão. Pedir para que ele se atente às propriedades provenientes dos seus cinco sentidos ao observar um objeto específico, desenhar, comer ou cozinhar e as descreva é um bom modo de expandir sua sensibilidade ao contexto atual. Da mesma forma, o cliente pode ser levado a observar e descrever sua própria experiência conforme ela ocorre no momento. Esta pode incluir sensações físicas (e.g., dor, temperatura, pressão, alongamento, frequência cardíaca, ritmo de respiração), cognições, tendências a ação e movimentos do corpo. Exercícios estruturados de mindfulness, que facilitam esse contato com si mesmo, são muito empregados. Neles, o cliente é solicitado a adotar uma postura confortável, muitas vezes de olhos fechados, e observar uma parte específica da sua experiência ou deixar sua atenção flutuante, observando o fluxo dessa experiência. O terapeuta também pede para que, quando ele sentir que novamente em contato maior com a experiência verbal, que observe essa experiência e retorne aos eventos que estão ocorrendo no momento. Além disso, a relação terapêutica é uma ótima situação para praticar a atenção ao aqui e agora durante uma interação social. Durante a sessão, o terapeuta pode direcionar o cliente a atentar para o seu próprio corpo, e como ele se sente durante momentos específicos da interação. Ou direcionar a atenção dele para a própria figura do terapeuta e suas características físicas, sua postura, seu tom de voz, sua expressão facial, o conteúdo da sua fala. Unindo tudo e percorrendo o caminho As seções anteriores acompanharam Marcos enquanto ele construiu verbalmente seu valor pessoal de intimidade, que dá significado à sua vida e direção à sua conduta. Elas também tornaram o seu repertório intrapessoal maior e mais flexível ao ensinar modos alternativos de responder a seus eventos privados, como pensamentos, sentimentos e memórias. De um lado, isso envolveu cessar a luta contraeles, reduzindo a frequência de respostas de fuga, esquiva e contra-controle; e agir de maneira oposta, aproximando-se desses eventos através da observação, descrição e validação. Do outro lado, ele aprendeu a observar o processo de pensar como um comportamento, fruto de contingências históricas e atuais; contextualizar o pensar de diversos modos; e responder de forma incongruente aos seus pensamentos. Ademais, Marcos também expandiu sua observação a uma gama maior de estímulos e sua sensibilidade a diferentes funções destes, aprendendo a atentar-se e a responder a elementos do ambiente que melhor regularão sua conduta com flexibilidade, de acordo com o contexto presente e seus valores. Com seus valores clarificados, uma postura aberta em relação aos eventos privados e centrado no contexto presente, resta a Marcos percorrer o caminho para uma vida que valha a pena ser vivida. Isto significa, em primeiro lugar, identificar objetivos e ações que estão relacionados ao valor clarificado. Em seguida comprometer-se a realizar essas ações. E, por fim, superar os obstáculos que aparecerem no caminho. Nesse processo, as estratégias utilizadas pelo terapeuta ACT são muito semelhantes às adotadas pela Clínica Analítico-Comportamental de modo geral, como exposição, bloqueio de esquiva, reforçamento diferencial, treinamento de habilidades sociais, análise de contingências, entre outras. Portanto, elas não serão discutidas em maior profundidade aqui. Linhas de pesquisa Desde o surgimento da ACT, seus proponentes demonstraram preocupação em obter evidências empíricas para sustentar sua proposta terapêutica. Isto é claramente observado no número de ensaios clínicos randomizados realizados. Entre 1986 e 2016, 155 estudos comparando a eficácia da ACT com outros tratamentos ou lista de espera foram concluídos. Apesar de algumas questões metodológicas em alguns destes estudos, o impressionante número acima contribuiu para que a ACT seja atualmente considerada uma psicoterapia baseada em evidências, com forte apoio empírico para dor crônica e apoio moderado para depressão, ansiedade, TOC e psicose (APA Presidential Task Force on Evidence-Based Practice, 2006). Apesar da importância dos ensaios clínicos randomizados para responder se a ACT funciona como tratamento psicológico, eles não auxiliam responder outra pergunta, também importante: “Como a ACT funciona?”. Para isso foram realizados outros tipos de pesquisa. Um conjunto destas estudou o efeito de componentes da ACT (como aceitação ou desfusão cognitiva) isolados do restante do pacote terapêutico (Levin, Hildebrandt, Lillis & Hayes, 2012). Outro grupo buscou identificar mediadores do tratamento, observando se mudanças em medidas específicas durante o andamento da terapia estavam relacionadas ao resultado final do tratamento. Por fim, um terceiro conjunto de pesquisas buscou identificar o impacto de breves intervenções da ACT em medidas análogas ao sofrimento psicológico relatado pelos clientes (Ruiz, 2010), como dor e esquiva em uma situação de estimulação aversiva (e.g., choques elétricos, frio). Leituras recomendadas Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (2012). Acceptance and Commitment Therapy: The process and practice of mindful change, 2nd Ed. New York: Guilford Press. Luoma, J. B., Hayes, S. C., & Walser, R. D. (2007). Learning ACT: An Acceptance and Commitment Therapy skills-training manual for therapists. Oakland: New Harbinger. Perez, W. F., Nico, Y. C., Kovac, R., Fidalgo, A. P., & Leonardi, J. L. (2013). 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