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QUEIXAS ESCOLARES: REVISANDO A PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA DE COLLARES & MOYSÉS Locimar Massalai1 Resumo O presente artigo tem o objetivo de fazer uma revisão da produção de Collares e Moysés a partir das provocações feitas nas leituras para seleção do Mestrado Acadêmico em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia/2011. Utilizamos como base de busca, o Google. O encontro com cada artigo possibilitou encontrar outros a partir da consulta de suas referências bibliográficas. Encontramos 32 trabalhos publicados em forma de capítulos de livros, livros inteiros, em revistas e online. Os primeiros textos foram publicados em 1985 e os últimos em 2010. Todos os trabalhos foram lidos e após análise foram agrupados nas seguintes categorias: a)Educação e Saúde, b)Medicalização da Aprendizagem, c)Merenda, desnutrição e Fracasso Escolar, d)Testes de Inteligência, Diagnósticos e Laudos; e)Conhecimento e Formação Continuada. Percebemos que as ideias defendidas pelas pesquisadoras e seus colaboradores continuam atuais no sentido de lutar por políticas educacionais que promovam o acesso e a permanência dos alunos na escola com qualidade social, a partir de olhar atento sobre o processo de escolarização como elemento principal desta qualidade. Palavras-chave: Queixas escolares. Processos de escolarização. Produção do conhecimento. INTRODUÇÃO: O ENCANTAMENTO PRIMEIRO COM A PRODUÇÃO DE COLLARES E MOYSÉS A primeira vez que ouvi falar em medicalização da aprendizagem foi quando estava procurando um artigo sobre dificuldade de aprendizagem no Google e encontrei um texto sobre a educação medicalizada. Este encontro marcou o início de um novo olhar sobre o fracasso escolar. Até então minha visão sobre tal problemática era justificada muito mais por 1Atua como Orientador Educacional em Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio. Pedagogo com Habilitação em Magistério do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental e Educação Infantil. Pedagogo com Habilitação em Orientação Educacional e Magistério. Especialista em Administração e Planejamento para Docentes. Especialista em Tecnologias e Educação pela PUC/RIO em parceria com a SEED/MEC. Bacharel em Serviço Social e Mestrando do Programa de Pós-graduação de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: locimassalai@gmail.com mailto:locimassalai@gmail.com 2 questões pessoais dos alunos, desestrutura familiar e problemas metodológicos por parte dos professores. Neste sentido, a formação inicial que recebi não me possibilitou outras leituras do fracasso escolar e a inserção em uma escola real intensificou um olhar estereotipado do mesmo. Dentro deste contexto, Collares e Moysés abordam esta questão no texto chamado “O profissional de saúde e o fracasso escolar: compassos e descompassos”, quando falam de como os professores entrevistados em pesquisa realizada em escolas municipais de Campinas em 1992, justificaram suas explicações para o fracasso escolar ou a não aprendizagem de seus alunos: Interessava-nos uma aproximação maior com as formas de pensamento do professor; por isso, a cada criança apontada como futura retenção, perguntávamos qual a causa e, para cada causa, tentávamos identificar o que era entendido sob aquele nome, onde havia estudado sobre o assunto, se havia tido algum contato durante a graduação, enfim, onde havia aprendido sobre aquilo que considerava causa da não aprendizagem. [...] Todas referem que jamais estudaram o assunto e que aprenderam com a prática, com a experiência e com o senso comum. (COLLARES; MOYSÉS, 1997, p.140-141) Ao entrar em contato com questões voltadas para a formação inicial e continuada de professores e lendo os textos de Collares e Moysés·, fui questionando minha formação inicial: onde estavam todas estas teorias e explicações críticas sobre o fracasso escolar quando da primeira formação em Pedagogia (Séries Iniciais e Educação Pré-Escolar), iniciada em 1990 e finalizada em 1994? Da mesma forma me questionava sobre a ausência das mesmas teorias e discussões em minha segunda graduação em Pedagogia (Orientação Educacional – 1998 a 2001). Provocado por estas novas leituras do fracasso escolar fui fazendo relações com minha prática como Orientador Educacional em uma escola pública e analisando os discursos das professoras e os meus, sob os argumentos apresentados por Collares e Moysés. Interessante ressaltar que em minha segunda graduação em Pedagogia – Orientação Educacional, um dos referenciais mais utilizados sobre psicologia escolar foi o livro de Célia Silva Guimarães Barros – “Pontos de Psicologia Escolar” que apresenta didaticamente teóricos da psicologia e sua aplicação na educação e logo em seguida aponta as dificuldades de comportamento e de aprendizagem, desvinculados de qualquer contexto social, como se existisse uma criança abstrata e universal descolada de seu tempo. Com estes referenciais, aprendi a olhar para as dificuldades de aprendizagem, como se fossem da única responsabilidade dos alunos e suas famílias. O segundo encontro com as produções de Collares e Moysés foi marcado pelas leituras dos textos recomendados à seleção do Mestrado Acadêmico em Psicologia/2011 pela 3 Universidade Federal de Rondônia. Textos estes, juntamente com os de Patto (2002), provocaram em mim entusiasmo e, ao mesmo tempo, assombro diante daquilo que desconhecia sobre a produção do fracasso escolar na história da educação brasileira em especial o livro Preconceito no cotidiano escolar: ensino e medicalização. A dinâmica do mestrado e suas provocações já começavam a surtir seus efeitos sobre o alargamento de nosso campo de visão sobre a educação e seus percalços. Escolher as produções de Collares e Moysés para fazer uma revisão não é apenas uma curiosidade diletante. A partir do momento em que tive contato com suas pesquisas e estudos, percebi que estas poderiam ajudar na compreensão das queixas escolares ou encaminhamentos escolares2 que são levados às Orientadoras Educacionais, temática central do projeto de pesquisa em desenvolvimento para dissertação do Mestrado em Psicologia. A partir de tais sentimentos e percepções defendo a importância deste trabalho de revisão produtiva de Collares e Moysés porque nos coloca frente a frente com questões temporais e discussões de 20 anos atrás, por exemplo, que continuam extremamente atuais e pertinentes e que aqui são compiladas para futuro aprofundamento e análise mais completa. Penso ser importante apresentar alguns dados das autoras para situar de quem estarei falando porque acredito que fazemos a história e somos feitos por ela. Cecília Azevedo Lima Collares é graduada em Pedagogia – Orientação Educacional – pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui mestrado em educação também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo cuja dissertação é sobre a Introdução de Orientação Educacional em Entidade de Iniciação Profissional de Menores. É doutora em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, cuja tese é sobre a Influência da Merenda Escolar no Rendimento em Alfabetização. Também possui o título de Livre Docente pela Universidade Estadual de Campinas com a tese sobre o Preconceito Escolar Patologizado. Tese que gerou o livro Preconceito no cotidiano escolar: ensino e medicalização, que se tornou um marco na discussão da medicalização da aprendizagem. Trabalhou como professora universitária e pesquisadora na Pontifícia Universidade Católica de Campinas de 1971 a 1972 e na Universidade Estadual de Campinas como professora universitária e pesquisadora de 1972 a 1998 onde é professora aposentada. Quanto à Maria Aparecida Affonso Moysés Possui graduação em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Tem doutorado em Medicina pela 2 Denominamos “encaminhamentosescolares” ao invés de “queixas escolares” porque assim são chamados os encaminhamentos que os professores das escolas estaduais de Rondônia encaminham aos Orientadores Educacionais sobre as dificuldades dos alunos nas suas mais diversas formas e conteúdos. 4 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Livre-Docência em Pediatria Social na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Atualmente é Professora Titular em Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Sua atuação em ensino e pesquisa é na área de Atenção à Saúde do Escolar, em especial nos campos de medicalização do comportamento e da aprendizagem, avaliação cognitiva; aprendizagem e desenvolvimento. Coordena o Laboratório de Estudos sobre Aprendizagem, Desenvolvimento e Direitos, no CIPED (Centro de Investigações em Pediatria) da UNICAMP. Publicou livros e vários artigos em periódicos científicos das áreas de Medicina, Psicologia e Educação; é autora do livro A institucionalização invisível: crianças que não aprendem na escola. É membro fundador do Fórum de Estudos sobre Medicalização de Crianças e Adolescentes, que tem articulado discussões, eventos e ações sobre a medicalização da vida e da educação. FALANDO DO CAMINHO E DAS BUSCAS Fiz uma verdadeira incursão no mundo dos textos de Collares e Moysés. O primeiro texto lido foi o do livro Preconceito no cotidiano escolar: ensino e medicalização. Uma atitude que sempre ajudou no processo de pesquisa foi olhar com cuidado as referencias bibliográficas no final da obra ou de artigos. Com este cuidado, consegui encontrar verdadeiras pérolas. Por exemplo, o texto “Rotular, classificar, diagnosticar: a violência dos laudos” escrito em 2002 no Jornal Tortura Nuca Mais, do Rio de Janeiro. Mandei e-mail, telefonei e consegui acesso ao mesmo. Conforme Zibetti (2011), o sucesso de uma pesquisa vem exatamente do saber onde encontrar os dados. A partir das inquietações advindas das leituras primeiras de Collares e Moysés, fui à busca de outras produções das autoras. Os textos apresentados na tabela 01 foram encontrados da seguinte forma: revista impressa, capítulos de livros em parceria com outros autores, em livro produzido por Collares e Moysés e online em diversos sites. Foram classificados por categorias e ano em que foram escritos. 5 A princípio tomei o caminho mais simples, aquele que tantas pessoas percorrem cotidianamente quando querem pesquisar algo na rede: acessei o www.google.com.br. Esta busca auxiliou muito a encontrar outros textos das pesquisadoras. Ao procurar os textos percebi que Pozo (2008) tem razão quando defende que a nova cultura da aprendizagem requer cinco capacidades para a gestão metacognitiva do conhecimento, a saber: competências para aquisição da informação, competências para interpretação da informação, competências para a compreensão da informação e finalmente, competências para comunicação da informação. Nesta busca encontrei 32 textos: 09 foram encontrados na forma de revistas impressas, 07 textos foram publicados como artigos em livros, 02 como livros completos e finalmente, 14 artigos foram na versão encontrados online. Os textos mais antigos são de 1985 e os mais recentes, de 2010. Tabela 1 – Textos organizados por categorias de análise e a partir do ano em que foram escritos EDUCAÇÃO E SAÚDE 1. Educação ou saúde? Educação x saúde? Educação e Saúde! Cecília de Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – 1985 2. Carências Nutricionais - Maria Aparecida Affonso Moysés - 1985 3. Educação, saúde e formação da cidadania na escola. Cecília de Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – 1989 4. O renascimento da saúde escolar legitimando a ampliação do mercado de trabalho na escola. Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés -1992 5. O profissional da saúde e o fracasso escolar: compassos e descompassos – Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés - 1996 MEDICALIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM 1. O papel do pediatra nas dificuldades escolares – Maria Aparecida Affonso Moysés, Ana Cecília Silveira Lins Sucupira e H. Maria Dutih Novaes - 1986 2. Diagnóstico da medicalização do processo ensino-aprendizagem na 1ª série do 1º grau no município de campinas - Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – 1992 3. A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília Azevedo Lima Collares. 1992 4. Ajudando a Desmistificar o Fracasso Escolar – Cecília Azevedo Lima Collares - 1992 5. O cotidiano escolar patologizado: espaços de preconceitos e práticas cristalizadas. Cecilia Azevedo Lima Collares – 1994 6. A Transformação do Espaço Pedagógico em Espaço Clínico - Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés - 1994 7. Preconceito no cotidiano escolar: ensino e medicalização – Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – 1996 8. Medicalização: elemento de desconstrução dos direitos humanos – Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – 2006 9. A Institucionalização invisível: crianças que não aprendem na escola – Maria Aparecida Affonso Moysés - 2008 10. A medicalização na educação infantil e no ensino fundamental e as políticas de formação docente: a medicalização do não-aprender-na-escola e a invenção da infância anormal - Maria aparecida Affonso Moysés e Cecília de Azevedo Lima Collares – 2008 11. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica – Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília Azevedo Lima Collares – 2010 12. Preconceitos no cotidiano escolar: a medicalização do processo ensino-aprendizagem – Cecília http://www.google.com.br/ 6 Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – 2010 13. Dislexia existe? – Questionamentos a partir de estudos científico - Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília de AzevedoLima Collares – 2010 14. Conhecimento científico, medicalização e os saberes escolares em saúde – Maria de Lourdes Spazziani e Cecília Azevedo Lima Collares – 2010 MERENDA, DESNUTRIÇÃO E FRACASSO ESCOLAR 1. Programa de Merenda Escolar – Cecília Azevedo Lima Collares – 1985 2. Saúde escolar e merenda: desvios do pedagógico? Cecília Azevedo Lima Collares, Maria Aparecida Affonso Moysés e Gerson Zanetta de Lima – 1985 3. Desnutrição, fracasso escolar e merenda: uma questão artificial? Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés– 1986 4. Aprofundando a discussão das relações entre desnutrição, fracasso escolar e merenda- Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés - 1995 5. Desnutrição, fracasso escolar e merenda – Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – 1997 TESTES DE INTELIGÊNCIA,DIAGNÓSTICOS E LAUDOS 1. Respeitar ou submeter: a avaliação de inteligência em crianças em idade escolar- Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – 1997 2. Inteligência abstraída, crianças silenciadas: as avaliações de inteligência– Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília de Azevedo Lima Collares – 1997 3. Rotular, classificar, diagnosticar: a violência dos laudos – Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília Lima Collares – 2002 CONHECIMENTO E FORMAÇÃO CONTINUADA 1. Construindo o sucesso na escola: uma experiência de formação continuada com professores da rede pública. Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés – relato de experiência – 1995 2. O buraco negro entre o conhecimento científico e o mundo real: um objeto essencial de pesquisa. Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés - 1996 3. Educação continuada: a política das descontinuidades - Cecília Azevedo Lima Collares, Maria Aparecida Affonso Moysés e João WanderleyGeraldi – 1999 4. As aventuras do conhecer: da transmissão à interlocução – Maria Aparecida AffonsoMoysés , João Wanderley Geraldi e Cecília Azevedo Lima Collares 5. Compaginar concepções: ciência e formação no horizonte de possibilidades de um projeto coletivo – Cecília Azevedo Lima Collares, Maria Aparecida Moysés e João WanderleyGeraldi – 2006 DISCUTINDO AS PRODUÇÕES Em cada categoria, escolhi textos que me pareceram mais representativos para a discussão o que não significa empobrecê-la. É que diante vasta produção das pesquisadoras, precisei fazer esta opção. Merenda, desnutrição e fracasso escolar No texto “Programa de merenda escolar”, de 1985, as autoras fazem uma distinção esclarecedora entre fome e desnutrição. Antes de analisar o texto, é interessante considerá-lo no contexto em que foi escrito e a partir da realidade pela qual passava o Brasil. 7 Descontextualizando-o perderia sua força de provocação. Tomando como base, elementos da análise de conjuntura, podemos dizer que os anos 80 foram considerados pelos analistas econômicos como a “década perdida” caracterizada por um quadro de profunda desigualdade social. Oliveira (1985) caracterizou bem esta situação chamando-a de regulação Keysiana sem direitos sociais, identificando o Brasil deste período como o “Estado do Mal-Estar” com desenvolvimento econômico sem participação da população nos benefícios sociais. Percebe- se que Collares tratou da merenda a partir deste contexto. Inicialmente ela diz que fome é uma situação transitória ou potencialmente transitória e que não dificulta qualquer atividade, inclusive as escolares. E a desnutrição é uma situação crônica, fruto de um empobrecimento gradual e perverso da população brasileira, e se ela “tem uma determinação econômica, somente mudanças nas políticas econômicas e sociais poderão combatê-la efetivamente” (1985, p.50). A autora também chama a atenção sobre a superficialidade dos discursos governamentais em relação à situação social em que vive a população brasileira: É importante ressaltar que não estamos preconizando uma ampliação do programa em termos de aporte nutricional a cada criança, mas demonstrando a irrealidade de muitos discursos que exaltam a merenda escolar como medida capaz de resolver o grave problema da desnutrição entre os escolares brasileiros. Tais discursos escamoteiam a realidade em dois níveis. Um, quando omitem os determinantes econômicos da desnutrição e a necessidade de transformações da sociedade; outro, quando preconizam a merenda como medida capaz de resolver também o fracasso escolar, isentando a escola de responsabilidades e impossibilitando esta mesma escola de se autocriticar. (1985, p. 50-51). Mais uma vez, a criança e a família são culpabilizadas por seus fracassos cuja causa principal é a ignorância na qual vive a população resultando desta visão propostas governamentais conservadoras e obsoletas quando se trata da educação nutricional. Collares destaca que em países como França, Inglaterra e Japão, a merenda não é vista como carência alimentar e sim para que as crianças que ficam muitas horas na escola não passem fome. Ao contrário do Brasil, em que a merenda é encarada como suplementação alimentar e mecanismo político camuflador das condições de vida da população. Aponta ainda alguns mecanismos políticos para que a merenda ganhe credibilidade: desvincular a merenda de outras verbas que vem para a educação para que se tenha clareza do que se está investindo na educação em geral e na merenda, porque do contrário haveria um inchamento artificial “escamoteando o pequeno orçamento destinado realmente à educação”; e a importância de se vincular a merenda às atividades pedagógicas. A atualidade da discussão desenvolvida pela autora no referido texto evidencia-se também na recomendação que fazia em 1985 para que fossem estabelecidas parcerias com produtores rurais da região para que se 8 respeitassem os hábitos alimentares da população. Esta prática está hoje sendo implementada como política de governo para estimular a agricultura familiar e melhorar a qualidade da merenda escolar. Vemos o texto onde ela fala desta parceria necessária para que se respeite a riqueza dos hábitos culinários de cada região: Assumindo-se a importância da inserção da merenda ao pedagógico, a utilização de alimentos in natura regionais teria duplo objetivo: intra e extra-escolares. Os objetivos intra-escolares estariam ligados a uma melhor qualidade nutricional que possibilitaria a criação de um cardápio que respeitasse os hábitos alimentares da região, além de subsidiar discussões em sala de aula sobre produção agrícola, alimentação, saúde e higiene. Quanto aos objetivos extra-escolares, que estão relacionados à integração da escola com a comunidade, pois a aquisição dos produtos naturais necessários deveria ser feita prioritariamente na própria região, aproximando a escola da produção. (1985, p.54) Percebemos na citação acima que autora defende a vinculação da merenda ao pedagógico da escola, postulado que ainda hoje, sonhamos ser concretizado em nossas escolas públicas. No outro texto de 1985 de autoria de Collares, Moysés e Lima, intitulado “Saúde escolar e merenda: desvios do pedagógico?” algumas ideias são retomadas em relação ao texto anterior. Apontam como fenômeno crescente a tendência de explicar através de causas biológicas e respostas médicas problemas eminentemente sociais. O discurso político e científico que defendia a merenda escolar como instrumento capaz de resolver tanto a desnutrição como o fracasso escolar é criticado pelas autoras. Apontam a necessidade de considerar a desnutrição integrante de um “complexo social”, em que um grande número de variáveis se relacionam de maneira extremamente complexa tornando imperativo desmascarar o discurso hegemônico que, desloca subliminarmente através de propaganda oficial, a questão da desnutrição como uma irresponsabilidade e incapacidade da família de “saber comer”. Desfazer essas relações tão simplistas e revelar os aspectos estruturais mais complexos que as permeiam é uma das tarefas que se impõem ainda hoje à Educação. É preciso entender bem a importância da merenda escolar em nosso país, não como a responsável pela erradicação ou mesmo a minimização da desnutrição infantil, mas sim, como uma medida de intervenção que é capaz de matar a fome de escolares num período de aproximadamente quatro horas. Que a criança escolar é virtualmente desassistida; são raros os centros de saúde em que são atendidas de forma rotineira pela desarticulação entre os programas de educação, saúde e assistência social. Constato que neste ínterim, as reflexões das autoras continuam (tristemente) atuais. 9 Educação e saúde Ao tratar de questões relacionadas à “educação e saúde”, as grandes discussões das autoras perpassam pela formação em primeiro lugar dos professores e também dos médicos ou outros especialistas da saúde. No texto “Educação ou saúde? Educação x Saúde? Educação e Saúde” aparecem críticas a uma formação deficitária: A ausência de contato com questões sociais dentro de uma perspectiva crítica e histórica, a valorização exagerada das especialidades no mercado de trabalho, a formação baseada em literatura inglesa sem a necessária revisão de conceitos para nossa realidade, a falta de discussões sistematizadas sobre o papel social da medicina, tornam o médico bastante receptivo, acriticamente à difusão de novas teorias sobre novas doenças. (COLLARES; MOYSÉS, 1985, p. 10) Ou quando busca encontrar na criança, uma causa orgânica que justifique seu mau rendimento na escola. Visão esta preconceituosa e estreita e profundamente a – histórica: [...] esta criança é encaminhada a um serviço médico, geralmente com recursos precários, onde é atendida por um médico imbuído dos mesmos preconceitos da professora. Um médico que, embora na maioria dos casos sem formaçãoadequada, não hesita em atribuir à criança, sem a mínima avaliação, um retardo mental. E justifica esse retardo pela desnutrição. Para a criança pobre, assim, fracasso escolar é sinônimo de deficiência intelectual. (COLLARES; MOYSÉS, 1985, p.11) E propõem que esta discussão seja feita nos cursos de formação tanto de professores, quanto de médicos e outros especialistas da saúde a partir de uma abordagem interdisciplinar: Parece-nos chegado o momento de a educação assumir que estas questões são importantes e pertinentes também à escola, incluindo-as dentro de uma perspectiva histórica nos cursos de formação de professores. Frente a todo o exposto, consideramos fundamental que profissionais da Educação e da Saúde com uma percepção mais crítica destas questões se unam em um trabalho conjunto, para a construção de um corpo específico de conhecimentos, relativos a esta área interdisciplinar. (COLLARES; MOYSÉS, 1985, p.15-16) Acreditamos que se nos cursos de formação fossem discutidos estes temas, teríamos certamente outro olhar sobre as queixas escolares. 10 Apontam que a escassez de uma produção científica e crítica sobre as relações entre educação e saúde colaboram com a formação acrítica do médico e sua percepção medicalizada do fracasso escolar. Criticam a forma como o setor da saúde incorpora elementos e discursos da educação e esta, da saúde, aplicando-lhe seu raciocínio clínico tradicional, privilegiando relações causais lineares e explicações fisiopatológicas. O resultado mais gritante é a medicalização do fracasso escolar. É a partir deste círculo vicioso que explicam o processo de medicalização da aprendizagem: Consiste na busca de causas e soluções médicas, a nível organicista e individual, para problemas de origem eminentemente social. Este processo ocorre na educação quando, frente às altas taxas de fracasso escolar, tenta-se localizá-lo na própria criança, explicando-o através de doenças. Isentam-se, assim, de responsabilidade a instituição escolar e o sistema social. A medicalização é uma resposta que atende a uma demanda da própria sociedade e é exatamente por isso e por seu caráter simplificador que se difunde tão rapidamente. (COLLARES; MOYSÉS, 1985 p.10- 11). Assim, médicos e professores acreditando que as crianças não aprendem por doenças, físicas ou emocionais, as encaminham para os serviços de saúde. E daí, desloca-se o eixo das discussões de um viés institucional e coletivo para aquele que culpabiliza a criança e sua família por sua situação de pobreza, miséria, sujeita e dificuldade de aprender na escola. Essa prática ocorre porque a figura do médico, a fala do médico em nossa sociedade ter um peso imenso. Interessante lembrar que nos primeiros cursos de psicologia alguns professores eram médicos e como tais, considerados os donos do saber. O texto “O profissional de saúde e o fracasso escolar: compassos e descompassos”, publicado em 1997, no livro “Educação especial em debate”, discute também a questão da inserção do psicólogo na educação e de como ela deveria ser feita da seguinte maneira: Compartilhamos da posição defendida dentro da própria psicologia de que, para que esse profissional possa atuar adequadamente em um ambiente, na dinâmica das relações interpessoais, é essencial que não esteja diretamente vinculado a esse ambiente. Para trabalhar as relações em uma escola, o psicólogo não pode estar lotado na própria escola; o distanciamento é condição primordial para sua atuação. (COLLARES; MOYSÉS, 1997, p.154) As autoras defendem no texto acima citado, que a discussão da inserção ou não do psicólogo diretamente no espaço escolar não pode ficar apenas na luta pela ampliação de espaços de trabalho ofuscando assim as discussões relacionadas ao fracasso escolar a partir de um olhar contextualizado. 11 Aparece com clareza a crítica feita a uma expropriação daquilo que deveria ser papel e função do professor: “Qualquer um é competente para solucionar o problema, menos o professor, na verdade o único profissional com condições reais de transformar sua própria prática pedagógica, em busca do sucesso escolar. Um profissional que está sendo expropriado da competência e área de atuação.” (COLLARES E MOYSÉS, 1997, p. 156). Estas ideias, de uma forma ou de outra, perpassaram todos os textos em que foram tratadas as relações entre “saúde e educação” e que, por força de provocar reflexões, mostram o grau de sua validade. A Educação Medicalizada O elemento central que mais aparece nesta categoria é a discussão voltada para a questão da medicalização da aprendizagem via diagnósticos. Duas grandes questões aparecem nos textos: de que maneira ocorre a patologização do fracasso escolar? Como diferenciar uma criança disléxica, ou com qualquer outra dificuldade de aprendizagem, daquela mal alfabetizada? O texto mais antigo, “Diagnóstico da medicalização do processo ensino- aprendizagem na 1ª série do 1º Grau no Município de Campinas”, de 1992 é uma pesquisa com professores de escolas estaduais de Campinas e o mais atual, “Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica” questiona a existência ou não da dislexia desde o olhar da ciência e é de 2010. Algumas ideias comuns perpassam todos os textos, como por exemplo: A escola espera por um aluno ideal, sem qualquer dificuldade. Para a criança concreta, real, os professores parecem considerar muito difícil, se não impossível, ensinar. O fracasso escolar é motivado por questões referentes à criança e à sua família. Não existem dúvidas, não existem opiniões divergentes. Ninguém questiona problemas de ordem pedagógica, por exemplo. E daí a razão do deslocamento do eixo das questões político-pedagógicas para questões biológicas, médicas e de saúde gerando o que as autoras chamam de patologização da aprendizagem porque os professores e diretores consideram que a presença de doenças prejudica a aprendizagem. 12 Da mesma forma, todos os médicos, psicólogos e fonoaudiólogos afirmam que a saúde é fundamental para a aprendizagem. Fala-se também, como na categoria anterior da precariedade da formação inicial e continuada dos professores que os condiciona a olhar a criança e sua família, de forma preconceituosa e superficial, atribuindo-lhes a total responsabilidade pelo fracasso: Cursos compactados, voltados a uma aplicação rápida das novas teorias; o imediatismo e a ingenuidade de pretender vencer um grave problema estrutural como o fracasso escolar através de medidas emergenciais; a transformação de teorias científicas em soluções mágicas, em redenção para a escola pública brasileira; a transformação de um problema político-pedagógico em mera questão de método... De tudo isso, decorrem cursos de reciclagem mais voltados à resolução imediata dos problemas do que à melhoria do nível de conhecimentos na área pedagógica. Na maioria das vezes, nesses cursos o objetivo não é permitir ao professor o contato e o domínio de novas teorias científicas, mas o domínio do "método" correspondente à teoria. E surgem, assim, sem que os próprios autores nomeados saibam, o "método Montessori", o "método Piaget", o "método da Emília Ferrero"... Ao transformar teorias em simples métodos, nega-se ao professor a possibilidade de, pelo conhecimento e entendimento de uma teoria, modificar efetivamente sua prática pedagógica. Enquanto "métodos", todos são iguais. (COLLARES E MOYSÉS, 1992, p. 19) Então, o processo pedagógico que deveria ser objeto de reflexão e mudança, fica mascarado pelos diagnósticos feitos e tratados de forma singularizada, uma vez que o mal está sempre localizado no aluno. E o processo de culpabilização da vítima é a persistência de um sistema educacional perverso, com alta eficiência ideológica. O trabalho pedagógico, desqualificado, cede terreno para o trabalho de outros profissionais,estimulados pela necessidade de mercado de trabalho. O espaço escolar, voltado para a aprendizagem, para a normalidade, para o saudável, transforma-se em espaço clínico, voltado para os erros e distúrbios. Estes olhares aparecem nos documentos oficiais, nas políticas públicas e vão causando estragos por onde passam, contribuindo para a propagação de informações equivocadas para a população em geral. Em nossa visão, um dos textos mais provocadores dentro desta categoria é a “Medicalização: elemento de desconstrução dos direitos humanos”, de 2006, que faz toda uma análise a partir de Foucault (1980) sobre o poder do discurso médico sobre o corpo a partir de uma estratégia biopolítica. A medicalização desloca problemas coletivos para a esfera do individual; problemas sociais e políticos para o campo médico. E o que significam esses deslocamentos? A biologização e, conseqüentemente, a naturalização desses problemas.. Esse paradigma, ainda hegemônico em todos os campos da ciência, enxerga, cada vez mais, o ser humano quase como um corpo apenas biológico, determinado por seus genes. A esse paradigma, contrapõe-se um outro, em que o social é concreto, histórico, construído pelos homens, portanto mutável; nele, o processo saúde e 13 doença é apreendido como resultante da inserção social das pessoas, da qualidade (ou falta de) de suas vidas. Aqui não há espaço para a medicalização; tenta-se combatê-la, ou ao menos minimizá-la, com todos os desafios postos pelo fato de que, como já apontado, uma crítica à medicalização costuma significar um ato medicalizante, especialmente se realizado por um profissional da saúde. (COLLARES; MOYSÉS, 2006, p. 14) Olhando cuidadosamente vamos perceber então que a medicalização é um processo perverso e altamente ideológico de desconstrução dos direitos humanos. E como a constituição dos direitos humanos é uma questão história, também sua desconstrução. Os textos sobre dislexia vêm acompanhados de algumas questões provocadoras: O polo das pessoas que têm maior dificuldade para aprender é reflexo da diversidade dos seres humanos ou consequência de uma doença neurológica chamada dislexia?Quais as evidências científicas de que exista essa doença neurológica chamada dislexia?Qual é a definição oficial da dislexia? O que caracteriza esta doença? Como ela é diagnosticada?Como se identifica a criança que não consegue ler e escrever bem, por doença neurológica, no meio de outras cem que também não conseguem ler e escrever bem? Em outras palavras, como se faz o diagnóstico de uma doença neurológica cuja única manifestação é a dificuldade para lidar com a leitura e a escrita? E a estas provocações, os textos vão dando respostas dizendo que existem algumas doenças comprovadas, que podem comprometer muitos aspectos da vida da pessoa, com conseqüências claras, perceptíveis, facilmente detectadas e que podem dificultar também a aprendizagem. Como existem pessoas que aprendem com a maior facilidade e pessoas que aprendem com muita dificuldade. Eu só quero chamar a atenção que o que está posto aí como características dessa doença neurológica são elementos detectáveis por meio da leitura e da escrita, exclusivamente, e são elementos que vão aparecer em toda pessoa que tiver dificuldade com leitura e escrita. Toda pessoa mal alfabetizada vai ter isso, dificuldade de fluência, dificuldade de decodificação, tudo isso só adquirimos quando não aprendemos a ler bem, quem não sabe ler bem ou tem qualquer dificuldade para ler, vai se enquadrar nessas características. (COLLARES; MOYSÉS, 2010, p.11) Na dinâmica acima citada, nega-se a possibilidade de que a pessoa humana aprende de várias formas. Cada um tem lá sua estratégia, seu jeito de aprender: “não somos todos absolutamente iguais, padronizados, robotizados”. E as autoras lembram também que uma doença neurológica não pode ser apenas diagnosticada com leitura e escrita. E questionam a existência da doença chamada dislexia: 14 [...] a existência dessa doença chamada dislexia é muito questionada pela própria Medicina, desde o início; não é tranquilo nem inquestionável, e não é apenas no Brasil, é em todo o mundo; aliás, no Brasil é onde tem menor questionamento. A quantidade de publicações e de autores no mundo todo questionando é muito grande; trata-se de uma das questões mais controvertidas na medicina. (COLLARES; MOYSÉS, 2010, p.13) Defendem finalmente, após todas as críticas, o direito que as crianças têm de aprender e que a escola seja capaz de identificar, conhecer as crianças e conhecer também quais os processos cognitivos que usam para aprender e que a escola e as professoras sejam capazes de avaliar as possibilidades e as necessidades de cada criança, acolher e ajudá-las a superar os seus próprios limites. Testes de inteligência, diagnósticos e laudos O primeiro texto que vou trabalhar nesta categoria que trata de questões relacionadas com o processo de avaliação psicoeducacional é “Respeitar ou submeter: a avaliação de inteligência em crianças em idade escolar”, escrito em 1997 e publicado no livro Educação Especial em Debate, assinado por Moysés e Collares. O texto tem o objetivo maior de aportar reflexões sobre como as crianças são avaliadas intelectualmente. Logo no início, as autoras nos trazem algumas questões provocadoras: é possível avaliar o potencial intelectual de alguém? Como avaliar a inteligência descontextualizada da vida, isto é, tornada abstrata? E a partir delas, seguem dando respostas e provocando. Apontam como em outros textos sobre a patologização da aprendizagem, que nas pesquisas educacionais em geral o fracasso escolar foi tratado essencialmente como culpa do aluno e de sua família. Desde esta base questionam os testes de inteligência. Afirmam que os testes padronizados trazem equívocos conceituais decorrentes de sua própria concepção, ou seja, a crença na possibilidade de se avaliar o potencial intelectual de uma pessoa em particular, elegendo uma única forma de expressão que merece ser considerada, desconsiderando que da mesma forma que o desenvolvimento das possibilidades é histórico, o olhar dirigido às possibilidades de pensamento de uma criança necessita ser historicamente focalizado. 15 Não se pode ignorar que tudo a que temos acesso, também no campo de inteligência, cognição, aprendizagem, resume-se a expressões. Expressões que trazem em si, indeléveis, as marcas da história de vida da pessoa e de sua inserção social. Ao assumir que as expressões das classes sociais privilegiadas são as superiores, as corretas, o que se está assumindo é uma determinada concepção de sociedade e de homem, fundada na desigualdade e no poder, em que alguns homens são superiores a outros, algumas raças são superiores a outra. (COLLARES; MOYSÉS, 2010, p. 128-129) Após terem feito estas considerações, as autoras passam a dizer como os profissionais deveriam agir em relação ao trato com as questões das avaliações psicoeducacionais. Afirmam que seria preciso: Em vez de buscar o defeito, a carência da criança, o olhar procura o que ela já sabe e o que teme o que pode aprender a partir daí. O profissional tenta mais que tudo,encontrar o prisma pelo qual a criança olha o mundo, para ajustar seu próprio olhar. Sabendo que existem limites para seu olhar, que está sujeito a erros, pois não está lindando com verdades absolutas. (COLLARES; MOYSÉS, 2010, p. 132) Finalizam o texto argumentando que esta proposta de avaliação exige profissionais muito mais competentes e com conhecimentos mais sólidos e profundos sobre o desenvolvimento da criança, conceitos de normalidade, por exemplo. Profissionais que considerem que todos os homens são de fato iguais, tornados desiguais por uma sociedade dividida em classes. Profissionais que compartilhem o respeito por cada homem, por seusvalores, por sua vida. E que profissionais com esta formação são também capazes de perceber a relação entre a criança e eles com uma relação entre dois sujeitos historicamente determinados. O segundo texto “Rotular, classificar, diagnosticar: a violência dos laudos”, publicado em 2002 fala da violência dos laudos, e aponta como em outros textos, a má formação dos profissionais para olhar a pessoa em seu contexto e em sua complexidade: E os profissionais, com sua formação acrítica e a - histórica, exercem, a maioria sem se dar conta, seu papel de vigilantes da ordem. Crentes nas promessas de neutralidade e objetividade da ciência moderna, não sabem lidar com a vida, quando se defrontam com ela. Sem disponibilidade para olhar o outro, protegem-se se ancorando em instrumentos padronizados de avaliação. Sem preocupação com as conseqüências de seus laudos para a vida do outro, o profissional nem mesmo se permite perceber que a classificação não decorre do diagnóstico, e este de uma avaliação adequada, como lhe ensinaram. Os rótulos se urdem já nas primeiras impressões, no olhar preconceituoso; rótulos que classificam e embasam diagnósticos que os confirmam. (COLLARES; MOYSÉS, 2010, p. 2-3) O que as autoras evidenciam nesses textos é que os testes só têm servido para classificar e rotular crianças absolutamente normais e com este procedimento elas acabam ficando doentes 16 mesmo. Fundamentados numa visão eugenista tratam os sujeitos como seres abstratos, descontextualizados e baseando-se quase que unicamente sobre os defeitos das crianças. Conhecimento e formação continuada Os textos desta categoria tocam na questão da formação dos professores que já foi muito criticada por elas em outros textos, ou seja, a má formação inicial e continuada que recebem. Se lá elas são contundentes em afirmar que a má qualidade da formação dos professores resulta em uma prática estereotipada e preconceituosa em relação à aprendizagem de seus alunos, aqui elas apontam soluções para esta formação e o fazem a partir de um olhar crítico de como isto aconteceu nas políticas educacionais. O texto intitulado “Educação continuada: a política da descontinuidade”, publicado em 1999 e assinado por Collares, Moysés e Geraldi ajuda a refletir sobre as concepções de sujeito e de conhecimento que estão por trás das propostas de educação continuada de professores e o caráter de descontinuidade das políticas brasileiras para este setor da educação básica. Com muita firmeza, Collares, Moysés e Geraldi falam que as políticas de formação continuada possuem um elemento forte de descontinuidade porque estão começando sempre “do tempo zero”: Embora a expressão ‘continuada’ recoloque a questão do tempo – e nesse sentido poderia enganosamente remeter à irreversibilidade e à história –, pratica-se uma educação continuada em que o tempo de vida e de trabalho é concebido como um “tempo zero”. Zero porque se substitui o conhecimento obsoleto pelo novo conhecimento e recomeça-se o mesmo processo como se não houvesse história; zero porque o tempo transcorrido de exercício profissional parece nada ensinar. A cada ano letivo, uma nova turma, um novo livro didático, um novo caderno intacto. Zerado o tempo, está-se condenado à eterna repetição, recomeçando sempre do mesmo marco inicial. (COLLARES, MOYSÉS; GERALDI, 1999, p. 211) Ao longo do texto, os autores apontam algumas alternativas para romper com este continuísmo: ajudar os professores a aproximar conhecimentos apreendidos na formação inicial às vivências da prática pedagógica. Possibilitar-lhes espaços para que narrem suas experiências para que assumam lugares de enunciadores e, consequentemente, “estabelecerem uma relação de construção de interpretações e compreensões sobre o que lhes acontece. Assumir o lugar de onde se fala é constituir-se como sujeito, múltiplo, polifônico e único”. 17 Gestar uma política pública de educação contínua não como suplência de carências e sim como direito. O texto “Compaginar concepções: ciência e formação no horizonte de possibilidades de um projeto educativo”, escrito pelos mesmos autores do texto anterior, retomam algumas de suas idéias, aprofundando outras. Alargam a abrangência do texto e não se referem mais a formação continuada de professores apenas, mas acrescentando neste, a formação dos profissionais da saúde: Especificamente na área educacional, a geração de professoras e professores que iniciou suas atividades nas escolas públicas a partir de meados dos anos 70 talvez tenha sido aquela que mais foi chamada a “qualificar-se”. Na saúde, este movimento tendeu a ocorrer posteriormente e em menor intensidade, adquirindo maior significação à medida que as questões de saúde deixaram de ser um campo de conhecimento ocupado por profissionais "acima de qualquer suspeita" e novas vozes se fizeram ouvir no terreno de seus discursos. (COLLARES, MOYSÉS; GERALDI, 2006, p. 48). Apresentam a necessidade de se contrapor o caráter coletivo das instituições ao individual e afirmam que as formas de avaliação dos programas de formação continuada privilegiam a individualização e a conseqüente culpabilização de cada um, ou seja, profissionais, alunos e pacientes. Entendem que por detrás deste processo de culpabilização se escondem intenções de se destruir projetos coletivos. Defendem os projetos coletivos onde os profissionais tanto da área da educação quanto da saúde se percebam como sujeitos históricos em processo e inconclusos. Quanto aos processos formativos os autores apontam a necessidade de: Redefinir radicalmente o modo de relação do sujeito com o conhecimento e dos sujeitos entre si, de modo a introduzir no conceito de formação a fluidez dos processos constitutivos. Como nem sujeito nem conhecimento são fixos e a- históricos, é preciso tomar o constante movimento – a história – como lugar de constituição de ambos. (COLLARES, MOYSÉS; GERALDI, 2006, p.60). Conclamam todos os responsáveis pela formação inicial e continuada em educação e saúde que sejam capazes de desafiar futuros profissionais e aqueles que já estão no mercado de trabalho a aprender a lidar com a complexidade de nosso tempo, respeitando os saberes da experiência e de aliar questões do mundo das ciências aos imprevistos e acontecimentos que fazem a vida fluir no tempo. PARA CONCLUIR A PROSA 18 Como Orientador Educacional e também Mestrando em Psicologia, fazer esta incursão nos textos de Collares e Moysés foi importante porque possibilitou perceber a evolução da produção destas pesquisadoras e sua relação com a história da educação brasileira e suas políticas, provocando questionamento em relação ao papel da escola e o lugar que ela ocupa na produção do conhecimento. Possibilitou-me compreender melhor a escola enquanto instituição atravessada por questões nem sempre claras, mas profundamente marcantes no sentido de promoção ou não de cidadania, vida e crescimento na vida das crianças e adolescentes. Percebi que as duas autoras buscaram sustentar seus discursos desde uma base teórica sólida. Utilizam Ariés para tratar da história da infância a partir do livro História social da criança e da família. Outro autor que tem destaque em seus textos é Foucault tratando do poder dos discursos nos laudos e diagnósticos. Os livros mais utilizados de Foucault são: A ordem do discurso, Vigiar e Punir, O nascimento da Clínica e Microfísica do Poder. Quando tratam do cotidiano, utilizam Agnes Heller com seu livro, O cotidiano e a história. A teoria de Heller permite olhar a historicidade da vida na escola enquanto realidade complexa, intersubjetiva e concreta. Aponta um individuo real, que pode se alienar ou subverter a ordem do cotidiano. Ajuda perceber o sujeito social fazendo história e sendo feito por ela. Os postulados de Heller são elementos de quepossibilitam o estudo da vida cotidiana com local privilegiado de apreensão dos processos históricos. Outra referência que aparece muito principalmente nos primeiros textos das autoras é Patto, pioneira nas discussões sobre a produção do fracasso escolar. Seus primeiros textos publicados em 1985 falam da relação entre saúde, educação e merenda escolar dentro do contexto da época. Apresentam a escola como local que só consegue trabalhar com alunos “normais” e que vai justificando tal escolha por uma série de questões relacionadas sempre ao indivíduo ou a sua família, não dando conta de lidar com as diferenças e tampouco considerando que tais dificuldades são geradas pelas condições sociais de vida mesmo fruto também de um empobrecimento acentuado da população. Os textos publicados nos anos 90 vão falar aberta e claramente sobre a medicalização da aprendizagem e de como este processo foi sendo construído na educação e na saúde. Falam da má formação dos profissionais nestas duas instituições e ponderam que, se fosse feita uma formação inicial mais interdisciplinar, certamente tais profissionais olhariam para as dificuldades de aprendizagem com outros ‘óculos’. Os textos também explicam como historicamente, problemas sociais foram transformados, via processo de culpabilização em 19 problemas de pessoas, das famílias, colocando a culpa do fracasso escolar tão só e unicamente nos alunos não questionando a escola enquanto produtora de tais fracassos. Quanto aos textos mais recentes, as pesquisadoras continuam falando do processo perigoso, doloroso e excludente que é a medicalização de crianças e adolescentes através dos diagnósticos de dislexia e TDAH. Interessante dizer que em todos os textos, duas reflexões se repetiram, acentuando seu caráter de urgência e atualidade: a necessidade de compreender a escola, os processos de escolarização e as políticas públicas desde um olhar contextualizado e a necessidade de se repensar a formação inicial e continuada dos profissionais destas áreas. Entrar em contato com os textos de Collares e Moysés foi sem dúvida um grande desafio por duas razões: em primeiro lugar, localizá-los e em segundo lê-los e interpretá-los organizando-os por categorias de análise, porque em muitas situações, uma categoria caberia bem dentro da outra. As categorias organizadas como estão neste texto, foi uma opção minha. O arranjo das categorias bem poderia ser diferente. Procurar ler todos os textos e fazer de fato uma incursão não somente nos discursos das autoras, bem como situá-los no contexto onde foram escritos e situá-los dentro da realidade da educação brasileira e suas políticas não foi tarefa fácil. Pondero que um dos grandes ganhos deste trabalho foi a tentativa de organizar as produções das autoras favorecendo assim uma visibilidade didática das mesmas e desta forma evidenciar a riqueza de seus arrazoados para se entender a história da educação brasileira, principalmente quando se trata dos processos de escolarização em suas relações com as Políticas Educacionais. Como atividade de análise tem suas fragilidades e certamente poderia ter sido mais aprofundada principalmente quando se trata de evidenciar o contexto histórico e político das produções. Esta é uma possibilidade para aprofundamento de outros pesquisadores. A provocação foi feita. Optei por alguns textos que para mim eram mais significativos. Foi uma escolha subjetiva, certamente. Outro pesquisador escolheria outros textos e faria outras combinações que provocariam outras análises. O caminho está começado! Deixo como palavra final uma provocação das pesquisadoras em sua teimosa luta por denunciar o que se esconde por detrás das doenças do não-aprender e do comportamento: “resistir é preciso, pois viver é preciso”. 20 QUEIXAS ESCOLARES: REVISANDO A PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA DE COLLARES & MOYSÉS Resumo O presente artigo tem o objetivo de fazer uma revisão da produção de Collares e Moysés a partir das provocações feitas nas leituras para seleção do Mestrado Acadêmico em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia/2011. Utilizamos como base de busca, o Google. O encontro com cada artigo possibilitou encontrar outros a partir da consulta de suas referências bibliográficas. Encontramos 32 trabalhos publicados em forma de capítulos de livros, livros inteiros, em revistas e online. Os primeiros textos foram publicados em 1985 e os últimos em 2010. Todos os trabalhos foram lidos e após análise foram agrupados nas seguintes categorias: a)Educação e Saúde, b)Medicalização da Aprendizagem, c)Merenda, desnutrição e Fracasso Escolar, d)Testes de Inteligência, Diagnósticos e Laudos; e)Conhecimento e Formação Continuada. Percebemos que as ideias defendidas pelas pesquisadoras e seus colaboradores continuam atuais no sentido de lutar por políticas educacionais que promovam o acesso e a permanência dos alunos na escola com qualidade social, a partir de olhar atento sobre o processo de escolarização como elemento principal desta qualidade. Palavras-chave: Queixas escolares. Processos de escolarização. Produção do conhecimento. Referências3 BARROS, Célia Silva Guimarães. Pontos de psicologia escolar. 3ª Ed.. São Paulo: Ática, 1993. COLLARES, C.A.L. Programa de merenda escolar. São Paulo: Cortez/Cedes, nº 15, p.48- 54, 1985. COLLARES, C.A.L.; MOYSÉS, M.A.A. Educação ou saúde? Educação x Saúde? Educação e Saúde. São Paulo: Cortez/Cedes, nº 15, p.7-16, 1985. ___________. Saúde escolar e merenda: desvios do pedagógico? São Paulo: Cortez/Educação e Sociedade, nº 20, Jan./Abril de 1985. 3 Para não deixar o texto muito extenso, optei por citar somente a referência dos textos nos quais me detive com mais particularidade. Os interessados nos demais textos fazer contato pelo e-mail: locimassalai@gmail.com mailto:locimassalai@gmail.com 21 ___________.Diagnóstico da medicalização do processo de ensino-aprendizagem na 1ª série do 1º grau no Município de Campinas. Em Aberto, n. 53, ano 11, Brasília, Jan/Mar, p. 23-28, 1992. ___________. Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez/Unicamp, 1996. ____________.O Profissional de Saúde e o Fracasso Escolar: Compassos e Descompassos. In: MACHADO, Adriana Marcondes. (Org.). Educação especial em Debate. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. ___________. Respeitar ou submeter: a avaliação de inteligência em crianças em idade escolar. In: MACHADO, Adriana Marcondes. (Org.). Educação especial em Debate. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. ___________. Educação continuada: a política da descontinuidade. São Paulo: Cortez/ Educação e Sociedade, ano XX, nº 68, p. 202-19, 1999. ____________. Rotular, classificar, diagnosticar: a violência dos laudos. Jornal do GTNM- RJ (Grupo Tortura Nunca Mais), agosto 2002. ___________. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.). Medicalização de Crianças e Adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. ___________. Medicalização: elemento de desconstrução dos direitos humanos. In: CRP-RJ (Org.). Direitos Humanos: O que temos a ver com isso? Rio de Janeiro: CRP-RJ, 2006. Disponível em: < http://www.crprj.org.br/documentos/2006-palestra-aparecida-moyses.pdf>. Acesso em 29 de Out. de 2011. COLLARES, C.A.L.; MOYSÉS, M.A.A. ; GERALDI, J. W. Compaginar concepções: ciência e formação no horizonte de possibilidades de um projeto educativo. Cuiabá: EduFMT/Revista Polifonia, nº 01, p. 47-64, 2006. FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: históriasde submissão e rebeldia. 2.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. POZO, Juan Ignacio. A sociedade da aprendizagem e o desafio de converter informação em conhecimento. In: SALGADO, Maria Umbelina Caiafa. ; AMARAL, Ana Lúcia. (Orgs.). Tecnologias na Educação: ensinando e aprendendo com as TIC. Brasilia: MEC, 2008. http://www.crprj.org.br/documentos/2006-palestra-aparecida-moyses.pdf 22
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