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Globalização e Turismo: Limites do Desenvolvimento Local na Ordem Contemporânea do Capital Rodrigo Meira Martoni*. Docente/pesquisador do quadro efetivo do Curso de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto/MG GT 09 – Epistemologia e análise crítica do turismo Resumo Ao abordar criticamente o posicionamento de dois autores representativos do turismo, o estudo evidencia a necessidade de se entender a realidade atual a partir das relações sociais subordinadas ao capital. Seguindo como eixo norteador o processo histórico da globalização, ressalta que em muitas regiões houve a intensificação da desigualdade, e questiona as propostas de desenvolvimento do turismo com bases locais quanto as suas efetivas possibilidades de aplicabilidade. Tal questionamento tem como princípio a lógica de constituição do turismo como “mercadoria” que, quanto mais se desenvolve, mais tem o poder de comprometer elementos tangíveis e intangíveis. Com isso, adverte-se que poucas são as análises que levam em consideração os parâmetros estabelecidos pelo capital para a teoria e prática do turismo comunitário. Palavras chave: capital; globalização; desenvolvimento local; planejamento. Considerações Iniciais O espaço comum às atividades diversas e parcelares, no quadro imposto da sociedade, se serve para tentar constituir-se em sistema, para atingir a coerência. Como? Mascarando suas contradições, aí incluídas as do próprio espaço, esse caráter ao mesmo tempo global e pulverizado, conjunto e disjunto (LÉFEBVRE, 2008, p.56). * Turismólogo e Mestre em Geografia, Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Estadual de Londrina, PR. Desenvolve pesquisas em políticas públicas de turismo, planejamento e desenvolvimento com bases locais. É co-autor do livro Caminhos Opostos: Turismo nas Estradas Reais de Minas Gerais, publicado pela Editora Livre Expressão/RJ. Endereço eletrônico: rodrigomartoni@gmail.com O processo de globalização engendrou movimentos de resistência, como, por exemplo, algumas propostas de desenvolvimento com bases locais. No campo do turismo esse discurso aparece como uma forma de promover localidades segundo suas potencialidades, incluindo os atrativos que as caracterizam (patrimônio natural, cultural e histórico) e as iniciativas de residentes locais. Considerando as diferenças sociais que marcam países como o Brasil, o planejamento turístico que segue esse enfoque aparece como forma de amenizar a produção e reprodução de desigualdades, além de resguardar a participação popular. Contudo, questiona-se os limites dessa proposta diante das relações sociais capitalistas: o desenvolvimento com bases locais encontra barreiras para se efetivar na própria constituição do chamado “produto turístico” pois, quanto mais este se dinamiza como mercadoria, maiores são as possibilidades de desconfiguração de uma organização coletiva local. Tal fato pode comprometer escalas locais e as deixam vulneráveis à lógica do capital, entendido como “valor que busca valorizar-se, expandir-se” (NETTO; BRAZ, 2008, p 169). A partir da crítica ao posicionamento de dois autores representativos no estudo do turismo, propõe-se iniciar a discussão levantando duas questões centrais: 1) qual a compreensão que se tem do termo globalização e os seus reflexos no campo do turismo? ; 2) quais os limites e possibilidades de aplicação prática da proposta de desenvolvimento com bases locais, tendo em vista a racionalidade econômica vigente? 1. Globalização: a mundialização do capital em benefício de quem? Para elaborar uma crítica à economia política do turismo na ordem contemporânea do capital, serão levantadas algumas colocações de dois estudiosos do turismo, no que se refere à globalização e ao planejamento para o desenvolvimento: Mário Beni e Sérgio Molina. Em seu livro, intitulado Globalização do Turismo, Beni coloca: O processo de internacionalização do capital, juntamente com a retomada e a expansão do capitalismo no mundo, ocorrem no final da segunda guerra mundial [...]. A globalização é um processo irreversível e, como toda criação humana feita por grupos de poder, apresenta regras – tanto as que impelem ao progresso de todos, repartindo benefícios e assegurando perspectivas de médio e longo prazo, como as limitadoras e forçosamente injustas quando cerceiam a livre concorrência de mercado (BENI, 2003, p. 18). E ainda: A globalização provocou uma mais ampla disponibilização e acessibilidade em amplitude mundial dos produtos, das instalações e dos serviços turísticos [...]. O turismo, que antes parecia ater-se a um punhado de países altamente especializados na excelência da oferta diferencial, passou há pouco a ser visto como o único meio de permitir às nações mais pobres viabilizarem sua integração à economia mundial. Considerando os efeitos ampliadores da globalização, surgiram estratégias globais para identificar, desenvolver e comercializar o turismo de base local em clusters e redes corporativas de empresas, como, por exemplo, operadoras turísticas, empresas de transporte aéreo, cadeias hoteleiras e um pool promocional de pequenas e médias empresas agregadas à cadeia produtiva do turismo (BENI, 2003, p.27,28). Efetivamente trata-se de um movimento irreversível, pois é inerente ao sistema do capital em sempre buscar graus mais elevados de acumulação. Mas não é um processo do século XX (final da segunda guerra mundial), pois a globalização opera desde quando a produção mercantil simples se vê deslocada para a produção mercantil capitalista, não em sua forma mais acabada, mas desde o estágio em que impera a expansão comercial, sendo emblemáticas as conquistas territoriais para além mar. José Paulo Netto e Marcelo Braz (2008, p.171) afirmam: “é então que [a partir do século XVI mais intensamente] começa o movimento de unificação da humanidade, que se concretiza quando se consolida o mercado mundial. [Por isso] é profundamente enganoso situar esse movimento como algo recente, tal como o fazem os ideólogos da globalização”. A globalização adquire formas conectadas com as etapas do capitalismo, tendo em vista os ajustes espaciais tão necessários para a manutenção e ampliação da dinâmica do sistema, já explicitado em 1848 por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: “impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, criar vínculos em toda parte” (1987, p.08). Para Istvan Mészaros (2006, p.64): [...] o processo de globalização, como de fato o conhecemos, [reforça] os centros mais dinâmicos de dominação (e exploração) do capital, trazendo em sua esteira uma desigualdade crescente e uma dureza extrema para a avassaladora maioria do povo, pois as respostas de um escrutínio crítico poderiam entrar em conflito com as políticas seguidas pelas forças capitalistas dominantes e seus colaboradores espontâneos no “Terceiro Mundo”. No entanto, com essa globalização em andamento, que se apresenta como muito mais benéfica, nada se oferece aos “países subdesenvolvidos”, além da taxa diferenciada de exploração. Beni enfatiza que existem dois lados: 1) a possibilidade do “progresso de todos, repartindo benefícios e assegurando perspectivas de médio e longo prazos”; 2) “as [regras] limitadoras e forçosamente injustas quando cerceiam a livre concorrência de mercado”. A necessidade de ampliação dos mercados, com base na produção de novos e diferentes produtos e serviços é inerente a uma organização sócio-econômica que, para se manter, carrega a necessidade de incrementar cada vez mais as possibilidades de exploração de recursos e pessoas. A globalização, compreendida como a mundialização do capital, a qual flui nas esteiras das políticas neoliberais, trabalha no espaço mundial no sentido de aumentar e/ouconservar a taxa de lucro, uma vez que, diante da competitividade, a manutenção de uma determinada empresa no mercado regional e global depende de alguns fatores apontados por José Paulo Netto e Marcelo Braz (2008, p.154): o barateamento do capital constante; a elevação da intensidade da exploração; a depressão dos salários abaixo do seu valor; o exército industrial de reserva; e o comércio exterior. Restam-nos as ações em nível local, as quais serão verificadas em momento posterior. É fato que, na dinâmica do modo capitalista de produção, não importando as “características particulares das economias nacionais, em todos os espaços em que se desenvolveu e desenvolve a acumulação capitalista, o resultado é sempre a polarização riqueza/pobreza” (NETTO; BRAZ, 2008, p.137). Assim, no campo do turismo global, a polarização e suas amplas repercussões são tratadas por Beni no plano da aparência, justamente por realizar a leitura do turismo de forma sistêmica, ou seja, apresentando uma estrutura passível de harmonização, a depender dos elementos de entrada, do funcionamento e da relação entre os itens constituintes. Ao fazer um recorte da realidade, não trabalha a totalidade concreta, pois desconsidera as determinações sócio-econômicas como suas contradições (principalmente a produção socializada e apropriação privada com vistas ao lucro crescente e suas repercussões). Tendo em vista que a polarização social é um fato concreto do capitalismo, os resultados da produção não podem atender a todos de forma igualitária, ou seja, os benefícios não são generalizáveis em nível local, regional ou global. Se, com a evolução das forças produtivas, avançaram os modais de transporte, as vias de acesso e as formas de hospedagem, as relações de produção fazem com que somente grupos específicos possam se beneficiar de forma mais direta de tais inovações, seja no cotidiano, seja nos momentos de lazer. Istvan Mészaros (2006, p.68) enfatiza: Sob o sistema do capital estruturado de maneira antagonista, a verdadeira questão é a seguinte: qual é a classe dos indivíduos que realmente produzem a “riqueza da nação” e qual a que se apropria dos benefícios dessa produção; ou, em termos mais precisos, que classe de indivíduos deve ser confinada à função subordinada da execução e que indivíduos particulares exercem a função de controle – como “personificações do capital”. Assim, resta saber quem são os beneficiários das políticas neoliberais globalizadas e os marginalizados pelo processo. Por um lado, com o neoliberalismo (e, não raras às vezes, com o empresariamento da máquina estatal) viabiliza-se no campo prático a instalação de empreendimentos de capital nacional e internacional que atribuem um valor de troca a potencialidades/atratividades (naturais, urbanísticas, históricas, culturais, paisagísticas) e beneficiam-se de mão de obra abundante e barata, além da falta de organização de classe (comum no setor de turismo). Nesse mercado global, a estratégia de acumulação de grupos oligopolistas se vale da falta de regulamentação e da porosidade política ao capital, sendo comum, por exemplo, que rendimentos com investimentos no Brasil viabilizem instalações no México ou qualquer outro local do planeta, desde que seja interessante do ponto de vista econômico, mas sempre sem estabelecer “raízes” com o local. François Chesnais (1996, p. 115,116) comenta sobre a competitividade na arena global: O caráter mundializado da concorrência afeta todas as empresas. Para as empresas puramente nacionais e para as pequenas e médias empresas [...] a concorrência mundializada é uma ameaça que, em certos casos, pode ser bem precisa e identificável, mas, muitas vezes, permanece anônima [...] Para os grandes grupos que operam em setores industriais concentrados no plano mundial, as coisas não se passam da mesma forma. Esses grupos conhecem seus rivais. No caso deles, a mundialização da concorrência não é anônima. Pelo contrário, ela assume a forma de uma situação em que eles se encontram com seus rivais e, às vezes, se chocam com eles [...]. Mas é sempre explorando, o melhor possível, as desigualdades nacionais, e até reconstituindo-as, que os oligopolistas levam a concorrência. Independentemente das pessoas dos sujeitos sociais, mas de acordo a função social que tais sujeitos representam, é certo que o empreendedor que não se empenha na obtenção de lucros será aniquilado diante do mercado competitivo. No entanto, há de se considerar a escala em que ocorre essa competição. Certamente, quanto mais acirrada, mais bem pensadas e operadas devem ser as estratégias para se incrementar a taxa de mais valia (absoluta e relativa): “Ora, aqueles capitalistas que mais acumulam encontram-se melhor posicionados para enfrentar a concorrência” (NETTO; BRAZ, 2008, p.130). Uma exemplificação pontual no turismo é a da CVC que, ao buscar a expansão vertical de suas atividades, além de operar, passou a vender no varejo, transportar e hospedar. Nesse contexto, onde estão situadas pequenas e médias empresas, a instabilidade é proporcional a competitividade (principalmente quando se adota estratégias nem sempre éticas) e também às crises inerentes ao sistema econômico. Quanto às forças “limitadoras e forçosamente injustas quando cerceiam a livre concorrência de mercado”, Beni certamente se referiu a uma das características do capitalismo que se intensifica e faz parte do mercado global, ou seja, não será a constatação de sua injustiça que colocará barreiras ao processo. Sobre isso, José Paulo Netto e Marcelo Braz esclarecem: “na escala em que a concentração [massa de capital acumulada] e a centralização [formação de cartéis, holdings] se desenvolvem, fica cada vez mais distante da realidade econômica a imagem do capitalismo como o regime da ´livre concorrência´ e da ´livre iniciativa´ [...] (2009, p.131). Verificamos, então, a impossibilidade do progresso de todos, uma vez que, para a viabilização da acumulação, é necessária a separação forçada entre meios de produção e trabalhadores, além das estratégias de competitividade que não se restringem ao mercado global, mas também ao local e regional: É inegável que a introdução do turismo na periferia acabou por gerar várias “ilhas de prosperidade”, criando um circuito privilegiado de consumo e produção. Mas essa prosperidade restringiu-se a poucos [...]. E mesmo todo o esforço empreendido pelas elites periféricas (isenções, incentivos, doações de terra, etc), durante mais de cinqüenta anos, foi incapaz de alterar a estrutura turística mundial da economia turística. A OMT [Organização Mundial do Turismo] prescreve para o turismo a mesma receita genérica de abertura total e indiscriminada de mercados, relativa a outros setores da economia, que significa a capitulação final das políticas nacionais de desenvolvimento da periferia, substituídas pela dominação pura e simples dos grandes grupos industriais e financeiros internacionais (OURIQUES, 2005, p.96- 99). Por isso o turismo é encarado como uma nova forma de colonização em diversas regiões do país, tornando-se uma colônia de férias não somente para turistas estrangeiros, mas, principalmente, para o capital internacional. Por outro lado, estão o seres laborantes, que nada mais tem a comercializar do que as suas possibilidades de trabalho e acham-se desamparados por governos adeptos a políticas públicas que focalizam a classe empresarial em termos de ajustes, benefícios e negociações. Trata-se do Estado e suas parcerias com a iniciativa privada, que beneficiam, em primeiro plano, o grande capital. David Harvey cita o Relatório do desenvolvimento humano das Nações Unidas para ilustrar o grau de polarização promovido pelo livre mercado em nível global: No tocante às classes [o relatório] afirma que “entre 1960 e 1991, a parcela dos 20% mais ricos passou de 70para 85% da renda global – enquanto a dos mais pobres declinou de 2,3 para 1,4%”. À altura de 1991,”mais de 85% da população mundial recebia apenas 15% da renda”, e o valor líquido da renda das 358 pessoas mais ricas, os bilionários do dólar, equivale à renda combinada dos 45% mais pobres da população mundial – 2,3 bilhões de pessoas [...]. Essa polarização é espantosa, esvaziando a extraordinária alegação do Banco Mundial de que a integração internacional associada ao liberalismo do livre mercado e aos baixos níveis de interferência do governo é a melhor maneira de promover o crescimento e de aumentar o padrão de vida dos trabalhadores (Relatório Banco Mundial, apud, Harvey, 2009, p. 65). Assim, ao desconsiderar a incontrolabilidade do capital, Beni apresenta o turismo como único meio de permitir às nações mais pobres viabilizarem sua integração à economia mundial. Trata-se de uma integração assaz excludente e sua face torpe não é levantada pelo autor. É como se a competitividade fosse colocada entre iguais, o coletivo fosse destituído e o empreendedorismo se constituísse como a última saída para o sucesso na arena do mercado. O setor de serviços pode ser um exemplo desse tipo de integração excludente, não somente no Brasil, mas também em países tidos como desenvolvidos. Harvey aponta as transformações no mercado de trabalho em Baltimore, nos Estados Unidos, como uma das conseqüências do processo de globalização e, dentre elas, a criação de vagas no setor terciário: As circunstâncias que regulam os salários e as condições de vida em Baltimore passaram por ponderáveis alterações a partir do final dos anos 1960. Uma grave desindustrialização da economia [...] levou a algumas mudanças radicais na circulação do capital variável na região metropolitana. Além do disseminado desemprego estrutural [...], o efeito foi o de afastar o emprego dos operários do setor industrial (em larga medida homens brancos e sindicalizados) e de criá-los numa ampla gama de atividades de serviços, particularmente as vinculadas ao chamado “setor de hospitalidade” (hotéis, turismo, convenções, museus), que formaram a base do esforço de redesenvolvimento de Baltimore. O resultado [...] foi um amplo desemprego estrutural de longo prazo e a passagem ao emprego não-sindicalizado e feminino em tarefas “não-especializadas” de baixos salários [...] Pagando apenas salários mínimos e recorrendo com freqüência ao trabalho temporário que remunerava ainda menos por semana (sem benefícios em termos de assistência à saúde, seguridade ou aposentadoria), o desenvolvimento desse tipo de emprego gerou um número crescente de “pobres empregados”. Fica evidente a desigualdade promovida também pelo turismo, pois, ao dinamizar a existência de “pobres empregados”, muitos são os empreendimentos que contribuem com a produção e/ou reprodução da desigualdade, de forma mais nítida em países periféricos. Inerente ao processo de ampliação do capital, a polarização extremamente desigual é um reflexo da racionalidade econômica defendida no processo de globalização, ou seja, de competitividade em um mercado que deixa cada vez mais de ser local a partir do momento em que investidores vislumbram a sua transformação/reordenação para se auferir lucros com o turismo (ou outro setor). A ênfase na elaboração de estruturas (enfoque sistêmico) com vistas a otimizar o “funcionamento” do turismo em uma destinação/região tem sido a tarefa de um número expressivo de autores que, conectados e comprometidos com o livre mercado, buscam levantar tendências no sentido de otimizar os serviços e, por extensão, a comercialização. Trabalha-se nos parâmetros do e para o capital, criando-se em algumas regiões estruturas de lazer incondizentes com a realidade sócio-econômica do seu povo e inacessíveis aos próprios trabalhadores que propiciam sua manutenção no mercado e fazem o lucro do investidor. Harvey (2009) traduz essa tendência como a “utopia do livre mercado” que imprime suas marcas no espaço, ao viabilizar ambientes físicos artificiais, sem conflitos, fantasiosos e harmônicos. Por isso, Zygmunt Bauman (1999, p.101) expressa a desigualdade na forma de turistas e vagabundos. Para os primeiros a acessibilidade aos lugares utópicos é permitida (para morar ou passar as férias). Aos segundos, restam-lhes os locais desprovidos de maior cuidado pelo Estado: “o que se aclama hoje como globalização gira em função dos sonhos e desejos dos turistas. Seu efeito secundário [...] é a transformação de muitos outros em vagabundos”. Como forma de otimizar a aparência, em seu anuário 2008 a revista Exame apresenta uma listagem contendo 150 novos empreendimentos hoteleiros no Brasil (diversos pertencentes a cadeias internacionais), com um investimento de aproximadamente 7 bilhões de reais e a possibilidade de geração de 41 mil empregos. Trata-se da retórica do desenvolvimento turístico brasileiro. Considerando as observações anteriores, é possível imaginar as formas adotadas para se incrementar a extração do valor excedente gerado pelos trabalhadores, visando o retorno do capital investido e a maximização da taxa de lucro ou, ao menos, sua manutenção. 2. Do global ao local: o discurso do planejamento para o desenvolvimento com bases locais Muito provavelmente devido aos efeitos nefastos da polarização promovida pelo sistema do capital em seu processo de mundialização, fala-se atualmente do desenvolvimento com bases locais. Beni enfatiza: “Considerando os efeitos ampliadores da globalização, surgiram estratégias globais para identificar, desenvolver e comercializar o turismo de base local em clusters e redes corporativas de empresas [...]” (2003, p.28). Sérgio Molina, em seu livro “Turismo: metodologia e planejamento”, contempla diversas vantagens e desvantagens que o turismo pode propiciar a uma região. Ao realizar uma leitura mais ampla dos aspectos latino-americanos no que se refere a dominação e exclusão, este autor aponta o planejamento como uma forma de romper com a ordem estabelecida e, assim, promover um turismo com equidade social: [...] para que o planejamento do turismo tenha natureza e caráter orgânicos, é necessária a participação ativa, tanto quanto influente, negociadora, dos planejadores, das comunidades locais receptoras, dos membros do setor privado com interesses no turismo e dos próprios turistas [...]. No planejamento do turismo, conforme o enfoque da TGS [Teoria Geral de Sistemas] o processo de baseia no consenso de todos os envolvidos. Numa palavra: todos planejam, todos são especialistas (MOLINA, 2005, p.43). Mas quais suas possibilidades e limitações? Molina dá a entender que a análise cultural pode sobrepujar a economia política e, através da conexão de saberes, estabelecer um ambiente harmônico entre os diversos colaboradores da cadeia produtiva (por exemplo: empresários que acumulam e empregados que nem mesmo possuem uma moradia digna, unidos em prol do capital privado). Ao não compreender a sociedade como um conjunto de relações (antagônicas e/ou complementares, de acordo com as classes sociais) entre seus membros em um processo histórico de constantes transformações, o autor deixa de verificar algo essencial: para um entendimento da sociedade e sua interação (entre o gênero humano e desse com a natureza) que se pretenda consistente, deve-se levantar elementos concretos para “se buscar as legalidades objetivas que se verificam na sociedade, isto é, o conjunto de tendências [que se constituem] no movimento da vida social, independentemente da vontade dos membros da sociedade”. (NETTO; BRAZ, 2008, p.151). Esse conjunto de tendências, atrelado ao movimento da vida social, diz respeito às contradições próprias da dinâmica capitalista. Ao serem levantadas (na aparência), mas não serem compreendidas (em essência), os chamados diagnósticos turísticos dão margema propostas de cunho idealista, ou seja, muito interessantes teoricamente, mas sem aplicabilidade prática. Dentre as contradições, José Paulo Netto e Marcelo Braz (2008, p. 163/164) apontam algumas fundamentais: 1ª a contradição entre a progressiva racionalidade que organiza a produção nas empresas capitalistas (planejamento, cálculo das relações custo/beneficio, etc) e a irracionalidade do conjunto da produção capitalista (a ausência de um planejamento global dessa mesma produção); 2ª a contradição entre a necessária ação de cada capitalista para maximizar seus lucros e o resultado objetivo dessa ação, a queda da taxa de lucros; e 3ª o crescimento da produção de mercadorias sem um correspondente crescimento da capacidade aquisitiva [...]. Ao passo que pode ser verificado um planejamento das unidades produtivas, dificilmente é possível verificar o mesmo processo nas chamadas cadeias produtivas regionais. Trata- se de uma condição que se potencializa com a ampliação dos mercados. Por isso, “as contradições do espaço não advêm de sua forma racional, tal como ela se revela nas matemáticas. Elas advêm do conteúdo prático e social e, especificamente, do conteúdo capitalista” (LEFEBVRE, 2008, p.57). As tentativas de planejamento com bases locais devem levar em consideração as contradições apontadas, mas qualquer proposta limita-se a própria evolução do capital em uma localidade turística. Se compreendemos a instância local como lugar de deliberações, não podemos desconsiderar que nesses locais há diferenças promovidas pelas classes sociais. Uma exemplificação foi o Programa Nacional de Municipalização do Turismo que, ao trabalhar diretamente com o local, tornou-se um mecanismo dos grupos mais influentes política e economicamente, ou seja, daqueles que detinham os meios de se posicionar, resguardando, não raras às vezes, interesses empresariais e não coletivos. Luzia Neide Coriolano e Sylvio Mello e Silva defendem formas alternativas de desenvolvimento e, dentre elas, apontam o turismo planejado por a para a comunidade: [...] a perspectiva do lugar e da região não significa desconhecer a presença do Estado e da mundialização do capital, pois não se trata de desconectar-se dessas realidades, mas implica voltar a política estatal para os interesses das economias populares dentro de lógicas alternativas. O nível regional/local representa uma instância onde esses grupos sociais podem realizar ações, vinculadas aos processos globais [...]. Nesse contexto, podem ser implementadas atividades complementares de geração de trabalho e ocupação, abrindo espaço para o turismo; não o turismo dos grandes empreendimentos, dos resorts, dos investimentos nos “não-lugares”, mas o turismo de pequenos negócios, que trazem resultados mais socializados e mais próximos das populações locais. No setor do turismo, as pessoas das comunidades inserem-se na cadeia produtiva do turismo, com maior facilidade em atividades de baixo valor, como, por exemplo, pequenas pousadas, restaurantes, venda de souvenires (2005, p. 145/146). Está colocada aqui a perspectiva de uma maior e mais plena responsabilidade sócio- ambiental desde que considerada a escala local. Mas é preciso levar em conta também que movimento e choques são elementos inerentes as sociedades, fazendo com que esta escala não seja fixa. Ao aparecer viável do ponto de vista da produção e ampliação do capital, a escala certamente irá se redefinir, expressando, em maior ou menor grau, as relações sociais estabelecidas na ordem contemporânea do capital. Não é possível falar em cultura, arte, política ou religião, sem considerar as formas de produção material da vida, pois a produção é viabilizada pela atividade de trabalho e este deve ser entendido como o elemento fundante das relações sociais. No capitalismo, essas relações são antagônicas e, tendo em vista a concorrência sem limites como uma imposição de manutenção das unidades produtivas, a escala local pode perder referência e, com ela, a questão social vislumbrada por seus idealizadores. O sistema de acumulação traz consigo a desigualdade social. Atualmente há uma produção de mercadorias e serviços fantásticos, mas há também uma miserabilidade impressionante. Os pesquisadores José Paulo Netto e Marcelo Braz (2008, p.139) evidenciam: “ora, a `questão social´ é determinada por essa lei [lei geral de acumulação]; tal `questão´ [...] ganha novas dimensões e expressões à medida que avança a acumulação e o próprio capitalismo experimenta mudanças”. Diante das interessantes propostas de desenvolvimento comunitário e seu enfoque social, algumas perguntas devem ser respondidas: como manter pequenos empreendimentos de moradores se o local torna-se atrativo para investidores externos e o Estado representa e resguarda o capital? Se o capital é um valor que está posto sempre para aumentar e nunca para diminuir, quais as lutas a serem travadas pela coletividade? Se os próprios residentes experimentarem um crescimento expressivo com a intensificação da chamada “cadeia produtiva”, como é possível não reproduzir as contradições do sistema nessa e em uma nova configuração de escala? Quais são os elementos da sociedade para que a soberania do capital não seja recriada em âmbito local e o sentido consistente de comunidade não se dissolva pelo ar? Evidentemente que não é possível apresentar uma homogeneidade global na questão da luta de classes, sendo que diferentes movimentações podem ser observadas em contextos diversos. É obvio, também, que travar lutas na conjuntura local é algo mais factível do ponto de vista da articulação (dependendo dos anseios e representantes do capital). Mas não é possível desconsiderar as determinações históricas do capitalismo, pois as relações sociais nesta organização societária configuram-se como uma artilharia pesada contra costumes e práticas locais. Ou seja, quanto mais se desenvolve o turismo como produto, maiores as chances de desconfiguração de uma localidade e marginalização das classes menos favorecidas. Viabilizar um turismo pautado em relações sociais não burguesas é algo extremamente difícil, visto que a imposição da mercadoria é latente e, com ela, as relações de exploração. Esse fato torna, mesmo as comunidades mais longínquas, vulneráveis a lógica do capital, como são exemplos as tribos indígenas Pataxó no sul da Bahia. O desenvolvimento com bases locais somente tem possibilidades de ser pensado em longo prazo se três elemento básicos forem efetivamente considerados no conjunto de pequenas comunidades: 1) a consciência de classe e também quanto às diferenças promovidas pelas relações sociais na ordem do capital; 2) o poder da mercadoria em transformar relações entre pessoas em relações entre coisas; 3) e as formas de intervenção do grupo social como possibilidade de acentuar as contradições do sistema do capital. O último item requer uma atuação de classe que vai além da localidade e, articulada com outros grupos, tenha condições de trazer a tona a questão da precariedade social e ambiental promovida pelo sistema do capital. Por meio da conscientização, organização e movimentação de grupos dos quais o Estado se divorciou, é possível defender um desenvolvimento local que somente encontrará bases sólidas de sustentação para além do capital. Ao apresentar o utopismo dialético como possível saída, David Harvey (2009, p.239) enfatiza: “toda luta contemporânea para conceber uma reconstrução do processo social tem de enfrentar o problema de como derrubar as estruturas que o próprio livre mercado produziu [...]” Considerações Finais A verificação das influências da mundialização do capital em diferentes escalas constitui- se em um vasto campo de pesquisa. Especificamente no turismo, o discurso da globalização, bem como o do planejamento comunitário baseado na teoria dos sistemas,merecem estudos mais aprofundados. Somente é possível compreender os processos concretamente na conjuntura da economia política atual e, então, explicar possíveis desdobramentos que se manifestam de diversas formas, seja por graus mais elevados de exclusão social, com a constituição de grandes empreendimentos capitalistas, seja com a organização da coletividade em prol do turismo de base comunitária. O desenvolvimento local não pode se apartar dos ditames do capital na ordem estabelecida pelo capitalismo. Conhecidos os parâmetros do sistema é possível vislumbrar o que se pode alcançar, considerando sempre as contradições e o contexto onde estas podem se acentuar ou atenuar. Estar atento às relações sociais que regulam o processo econômico é um elemento chave para se compreender a turistificação local/regional/nacional e se constitui na base referencial da crítica a planos de desenvolvimento turístico - o ponto de partida para ultrapassar uma ordem estabelecida com propostas alternativas. É certo que, tais alternativas, somente podem brotar das contradições. Assim, abordar um desenvolvimento local que seja efetivamente válido do ponto de vista da superação, ou seja, como um movimento para além do capital, significa: 1) compreender as relações sociais sob o domínio do capital; 2) constituir movimentos que estabeleçam planos de baixo para cima; e 3) lutar não somente por uma democratização política, mas também social e econômica. Tais pressupostos básicos apresentam-se como saída quando se vislumbram as necessidades da coletividade e não somente as individuais. Referências BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BENI, Mário Carlos. Globalização do Turismo: megatendências do setor e a realidade brasileira. São Paulo: Aleph, 2003. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. Tradução de Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 1996. CORIOLANO, Luzia Neide Menezes Teixeira; MELLO E SILVA, Sylvio C. Bandeira. Turismo e Geografia: abordagens críticas. 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