Buscar

Sistema de planejamento econômico_ um estudo de caso da URSS e da China

Prévia do material em texto

Universidade de São Paulo 
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas 
 
 
 
Sistema de planejamento econômico: um estudo de caso da URSS e da China 
 
 
 
Luan Azevedo, NUSP - 9766237 
Lucas Cabral Zanoni, NUSP - 8593553 
 
História Econômica II – Profº Everaldo de Oliveira Andrade 
 
 
 
 
 
 
São Paulo 
2019 
 
 
 
 
 
Dentro do campo teórico marxista, alguns poucos autores foram tão influentes quanto 
Leon Trotsky, cujas ponderações buscaram analisar o desenvolvimento do capitalismo na Rússia 
e os rumos a serem tomados pela revolução. Contudo, a centralização do Estado soviético nas 
mãos de Stalin levou o processo revolucionário para um caminho diferente do proposto 
originalmente. 
Tendo isso em mente, a pesquisa buscou relacionar a teoria trotskista do desenvolvimento 
desigual e combinado com os apontamentos de Roman Rosdolsky, almejando compreender três 
elementos no sistema de planejamento econômico da China e da URSS, quais sejam, a obtenção 
e processamento de informações, a relação com o mercado e o processo de tomada de decisões. 
1 - Trotsky: desenvolvimento desigual e combinado 
No texto em que discorre sobre a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, 
Michael Löwy afirma que o pensamento elaborado por Leon Trotsky é, provavelmente, o mais 
significativo na tentativa de romper com o evolucionismo e a ideologia de linearidade dentro do 
campo marxista. 
Por escrever num período prévio ao imperialismo, a obra de Marx não pode abarcar os 
problemas provindos da expansão mundial do capital. Há, contudo, uma passagem de Introdução 
à crítica da economia política na qual o autor diz que "em todas as formas de sociedade, é uma 
produção específica que determina todas as outras". Essa formulação pode ser utilizada, como 
explicita Löwy, para compreendermos a dominação exercida pelo capital nas formações sociais 
em que há relações pré-capitalistas. A teoria pensada por Trotsky, apesar de não remeter 
diretamente à citação de Marx, é uma tentativa de explicar as modificações ocorridas nessas 
formações sociais. 
O primeiro esboço da teoria encontra-se presente no livro 1905, publicado por Trotsky 
em 1909, em que o autor faz um estudo mais detalhado sobre o desenvolvimento do capitalismo 
russo. Ele faz uma análise econômica, social e cultural do país e observa que lá tem 
todos os estágios da civilização: desde a selvageria primitiva das florestas 
setentrionais onde alimentavam-se de peixe cru e faziam suas preces diante de 
um pedaço de madeira, até as novas condições sociais da vida capitalista, onde o 
operário socialista se considera como participante ativo da política mundial e 
 
segue atentamente... os debates do Reichstag. A indústria mais concentrada da 
Europa sobre a base da agricultura mais primitiva​. 
Essas diferenças de estágio não estão somente lado a lado, numa coexistência, elas se articulam e 
se combinam, de modo que os elementos locais (atrasados) aliados aos elementos gerais 
(avançados), engendrados pelo capitalismo, determinam, segundo a fórmula de Marx em seu 
texto de 1857, todas as outras relações e o seu lugar e importância. 
Esse paradoxo existiu graças à entrada de capital europeu no território russo, que 
possibilitou a configuração de um tipo de desenvolvimento do capitalismo em que as metrópoles 
russas possuíam, em certos aspectos, índices mais elevados que as grandes cidades ocidentais. 1
Por mais que a teoria de Trotsky seja baseada no contexto específico da Rússia, a análise 
feita por ele pode ser aplicável a um conjunto de formações sociais situadas na periferia do 
capitalismo. Para o autor, com a ascensão do capitalismo a um sistema mundial, as sociedades 
menos desenvolvidas têm a obrigação de adotarem certos traços avançados, possibilitando saltos 
às etapas intermediárias: 
Os selvagens renunciam ao arco e flecha, para logo tomarem os fuzis, sem 
percorrer a distância que separava, no passado, estas diferentes armas. (...) O 
desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz, 
necessariamente, a uma combinação original das diversidades. A órbita descrita 
toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado​. 
É importante pensar que uma das consequências desse desenvolvimento desigual é aquilo 
que Löwy nomeia de "privilégio dos retardatários": aqueles que chegam mais tarde, os 
periféricos, "atrasados" dentro de uma lógica evolucionista, podem virar a vanguarda da 
transformação seguinte. Como exemplos, Trotsky utiliza a França, que "fracassou" na Reforma 
protestante e acabou sendo o primeiro país a fazer uma revolução não-religiosa, e a Rússia, que 
tinha traços pré-capitalistas no campo e pulou a revolução democrático-burguesa direto para a 
revolução socialista. 
Esse conjunto de perspectivas trotskistas rompe com três tendências teóricas: com o 
economicismo que permeava o marxismo ortodoxo; com a visão evolucionista da história, em 
que os países estavam sujeitos a uma sucessão de etapas rigidamente pré-determinadas; e com a 
1 Trotsky alega que no começo do século a porcentagem de operários trabalhando em grandes fábricas 
(mais de mil empregados) era de 38,5% na Rússia, em comparação com apenas 10% na Alemanha. 
 
tendência eurocentrista, aceitando a possibilidade de revolução em países na periferia do 
capitalismo. 
2 - Rosdolsky: Sementes do socialismo 
Assim como Trotsky argumenta que não existem etapas rigidamente pré-determinadas, 
ou seja, cada sociedade tem a sua própria realidade e são obrigadas a adotar certos traços 
avançados, Roman Rosdolsky compreende que, na medida em que os paradigmas do capitalismo 
vão se alterando com o passar do tempo, o socialismo precisa ser reformulado de acordo com 
esses novos cenários. 
Em The Making of Marx's Capital (1968), mais especificamente a Parte VI da obra, 
Roman Rosdolsky analisa mudanças no capitalismo durante o século XX e o destino do 
socialismo pós Stalin. Partindo da perspectiva de Marx em Crítica do Programa de Gotha (1875) 
de que "a nova sociedade deve levar os sinais da antiga da qual ela se origina. Quanto mais 
avançada a antiga sociedade, melhor o ponto inicial para se iniciar uma nova", o autor argumenta 
que as metamorfoses do capitalismo, particularmente suas revoluções tecnológicas, alteram as 
características do trabalho e reformulam a natureza, escopo e potencialidades do socialismo. Ou 
seja, mudanças no capitalismo criam novos pontos de partida para uma transição ao socialismo, 
sendo necessário identificar diferenças entre o período em que Marx vivia e os subsequentes. 
Além da compreensão de que os paradigmas de transição ao socialismo são reformulados 
com o desenvolvimento do capitalismo, Rosdolsky apresenta o conceito de "sementes do 
socialismo", argumentando que elementos surgidos dentro do sistema capitalista apresentariam 2
características do modo de produção subsequente e que a intensificação de tais elementos 
contribuiria para a transição ao socialismo. 3
Essa perspectiva se torna crucial para o debate sobre formas de planificação econômica 
socialistas no mundo contemporâneo, conforme destaca Durand e Keucheyan:2 O autor destaca como "sementes do socialismo" os sistemas de inovação, sistemas de bem estar social, 
sistema financeiro (sobretudo devido à possibilidade de trabalhadores tornarem-se proprietários de 
empresas a partir dos mercados de ações) e democracia. 
3 ALBUQUERQUE, Eduardo da Motta e. ​Visible Seeds of Socialism and Metamorphoses of Capitalism: 
Socialism after Rosdolsky​. Cambridge Journal of Economics 2015, 39, 783–805. 
 
O que é possível aprender com esses dispositivos para poder implementar um 
planejamento socialista no século XXI? Ele será apenas uma extensão do 
planejamento capitalista ou repousará em outra lógica? As novas tecnologias, 
que, como vimos, desempenham um papel central no planejamento futuro, 
nasceram dentro do capitalismo. Pode ser que o socialismo, tal como sugere a 
tendência 'aceleracionista', resulte da radicalização de tendências já existentes 
no sistema atual. Afinal, uma das suposições de Marx vê o socialismo como um 
virtualidade presente no capitalismo tardio. 
Os mesmos autores destacam uma "tripla falha" no modelo de planejamento soviético, 
quais sejam, o processo caótico ("discrepância significativas entre as previsões e os resultados, as 
quais eram fontes de enormes desperdícios, requerendo incessantes ajustes e acordos informais 
entre as empresas"); o sistema de preços ("Os preços não funcionavam apenas como unidades de 
conta para organizar a produção, mas desempenhavam também um papel na alocação de 
recursos"); e a ausência de um caráter democrático no processo de tomada de decisões ("longe de 
alcançar a abundância, a escassez tornou-se o princípio regulador das economias planejadas. [...] 
O caráter autoritário - em certos períodos 'totalitários' - do partido-Estado soviético aparece 
aqui", ou seja, investimentos eram direcionados para despesas que não representavam as 
necessidades da população). 4
A partir desses três fatores mencionados, o presente relatório busca apresentar uma breve 
exposição dos problemas relacionados aos sistema de planejamento econômico na China e na 
URSS, para então descrever como as novas tecnologias ou "sementes do socialismo" poderiam 
contribuir para a superação da "tripla falha" do planejamento econômico soviético. 
3 - A "tripla falha​" 
3.1 - O problema da informação 
Na URSS, a Gosplan (Comitê Estatal de Planejamento) era o principal órgão de 
planejamento econômico, centralizando informações recebidas de diferentes ministérios, órgãos 
republicanos e agências regionais. O fluxo de informações se dava, sobretudo, através de duas 
fontes: pedidos ou "recuos" (zayavki), ou seja, requisição de recursos por outros agentes; e 
4 DURAND, Cédric; KEUCHEYAN, Razmig. ​Pós capitalismo na era do algoritmo​. Trad. Eleutério S. M. 
Prado. 
 
"normas" ou coeficientes baseados em experiências passadas. Conforme destaca Alec Nove, um 
dos problemas centrais no fluxo de informações recebido pelas autoridades planejadoras era a 
capacidade de previsão de eventos futuros: 
This noteworthy that the Soviet planning experts are now more conscious of the 
consequences not uncertainty. Stalin denounced the notion of 'plan-guesslimale', 
preferring the view that Soviet plans are orders with legal force. Now, however, 
the need for incorporating 'prognosis' is explicitly recognized, particularly in the 
context of technical progress, but also because of inevitable imperfection of 
information. This Fedorenko, the head of Central Economics-Mathematics 
Institute, has written: 'Economic phenomena can often be better and more 
accurately described in the language of stochastic models than in determined 
models. Therefore probability-theory methods should in the future be much 
more widely used'. 5
 
3.2 O problema do mercado na China 
Os grandes teóricos do estado operário russo, dentre eles Lênin e Trotsky, defendiam que 
a “coexistência pacífica” só deveria existir como uma mera trégua na questão social. Conceber a 
integração da economia pública estatal com o mercado mundial é, conforme apontado por Mário 
Pedrosa, um revisionismo, “significa colocar no plano econômico o cotejo dos dois regimes, o 
cotejo entre as duas grandes hipóteses de organização da sociedade de massa nos próximos 
tempos”. 6
No período pós revolucionário chinês, principalmente sob a liderança de Deng Xiaoping, 
a economia chinesa passou a ser fortemente influenciada pelos Estados Unidos, graças aos 
desacordos com a URSS. Apesar do relativo crescimento produtivo, o país tem grande parte dos 
seus produtos exportados e é latente a exploração do seu operariado. A dependência cada vez 
maior do ocidente e ​o número de concessões feitas ao mercado tornam a China um país com 
política econômica capitalista sob a regência de um partido comunista, contrariando os 
pressupostos econômicos traçados com a revolução. 
5 NOVE, Alec. ​The Soviet Economic System​, Boston: Unwin Hyman, 1987. P. 25 
6 PEDROSA, M. ​A opção imperialista​. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, P. 201-202 apud 
ANDRADE, E. O. ​Mário Pedrosa e o debate sobre a planificação econômica socialista no Brasil​. 
Diálogos v. 20 n. 1 (2016), 117-135. P. 126 
 
3.3 O problema da democracia na China 
Além da política econômica de alinhamento ao capitalismo, a falta de representantes 
populares no poder é um dos grandes problemas presentes na China. Em 1949, o Partido 
Comunista Chinês tomou o poder através do Exército de Libertação Nacional e, por mais que 
eles tivessem amplo apoio popular, ​organizações sociais como sindicatos não foram chamados 
para exercer o poder diretamente. Podemos notar que, ao longo dos anos, foi formando-se um 
Estado excessivamente burocrático em que o exercício do poder ocorria verticalmente, sendo 
intolerante com iniciativas independentes. 
Não podemos acreditar, contudo, na passividade das camadas populares nesse 
processo. Ao longo dos anos, a população chinesa organizou inúmeras greves e manifestações 
contra a burocracia estatal e a invasão de empresas imperialistas. Como principal exemplo, 
podemos citar o protesto organizado na Praça Paz Celestial, em 1989, em que milhares de 
estudantes foram às ruas de Pequim exigir uma democracia socialista mais ampla. 
4 - "Sementes do socialismo" para o planejamento econômico no Século XXI 
4.1 Big Data 
Conforme destacam Durand e Keucheyn, o Big Data tem despertado atenção daqueles 
que estudam o planejamento econômico socialista. O tratamento, análise e obtenção de 
informações a partir de um grande banco de dados oferece novos paradigmas para as ciências 
sociais e econômicas. Na medida em que a tecnologia de dados se desenvolve, torna-se possível 
superar diversos dos obstáculos enfrentados por modelos de planejamento socialista do Século 
XX a respeito de informações, incluindo a previsibilidade das ações de agentes, tema que 
recebeu grande atenção da Escola Austríaca. 
Levando-se em consideração a perspectiva de um "pós-capitalismo" onde o planejamento 
é uma realidade, questiona-se não mais sobre a sua possibilidade, mas sobretudo a respeito de 
sua forma. A utilização do Big Data vem se desenvolvendo em diversos setores, gerandoatenção 
para a discussão sobre quais seriam as melhores arquiteturas de sistemas de informações. 
In the Digital Era, most economic and social behaviors leaves behind a huge 
digital footprint, which is incipiently being used with nowcasting and 
forecasting purposes. Despite the enormous potential of these data, integrating 
 
and analyzing the wide variety of heterogeneous sources cannot be tackled with 
the traditional methods used in economics and social sciences. To succeed in 
this purpose, it is mandatory to carefully plan and implement the whole process 
of data extraction, transformation and analysis. This is the point in which the 
Big Data and data lifecycle paradigms arise as helpful perspectives on how to 
deal with this process. 7
 
4.2 Democracia 
A tomada de decisão democraticamente seria uma das tendências do capitalismo que os 
novos modelos socialistas devem incorporar no século XXI. Como propostas a serem pensadas, 
Durand e Keucheyan sugerem a criação de uma assembleia com um tempo maior de mandato, 
possibilitando um planejamento a longo prazo e cuja participação esteja acessível à sociedade 
civil, organizações não governamentais e sindicatos. 
Os autores também questionam quem deveria dominar a vastidão de informações 
disponíveis na atualidade, em que empresas de tecnologia dos Estados Unidos - o GAFA 
(Google, Apple, Facebook e Amazon) - dominam os dados de grande parte da população 
mundial. Talvez, uma das estratégias cabíveis seja a expropriação dessas empresas por parte do 
Estado. 
5 - Referências bibliográficas 
ALBUQUERQUE, Eduardo da Motta e. ​Visible Seeds of Socialism and Metamorphoses of 
Capitalism​: Socialism after Rosdolsky. Cambridge Journal of Economics 2015, 39, 783–805. 
ANDRADE, E. O. ​Mário Pedrosa e o debate sobre a planificação econômica socialista no Brasil​. 
Diálogos v. 20 n. 1 (2016), 117-135. 
BLAZQUEZ, Desamparados; DOMENECH, Josep. ​Big Data sources and methods for social and 
economic analyses​. Technological Forecasting and Social Change, v. 130, p. 99-113, 2018. 
NOVE, Alec. ​The Soviet Economic System​, Boston: Unwin Hyman, 1987. 
7 BLAZQUEZ, Desamparados; DOMENECH, Josep. ​Big Data sources and methods for social and 
economic analyses​. Technological Forecasting and Social Change, v. 130, p. 99-113, 2018. 
 
LÖWY, Michael. ​A teoria do desenvolvimento desigual e combinado​. Revista Outubro, Ed 1-06, p. 73- 
80.

Continue navegando