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iI Edson Nery da Fonseca Introdução à Biblioteconomia Prefácio de Antônio Houaiss Segunda edição BRIOUET DF. LEMOS LIVROS © 2007 Edson Nery da Fonseca Direitos desta edição adquiridos por Lemos Informação e Comunicação Ltda. l.a edição: 1992. Todos os direitos reservados. De acordo com a lei n.° 9 610, de 19/2/1998, nenhuma parte deste livro pode ser fotocopiada, gravada, reproduzida ou armazenada num sistema de recuperação de informação ou transmitida sob qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico sem o consentimento do editor. Revisão: Maria Lucia Vilar de Lemos Antonio Agenor Briquet de Lemos Capa: Formatos Design Gráfico Ltda. Imagens da capa, da esquerda para a direita: O escribn ngachndo. Egito, ca. 2620-2500 a.C. Calcário pintado. Muséedu Louvre, Paris, E3023. O mundo e os livros, de José Pauto Moreira da Fonseca (1922-2004). Óleo sobre tela (1981). Coleção do artista. A biblioteca, de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992). Óleo sobre tela (1949). Musée National d'Art Moderne / Centre GeorgesPompidou, Paris. A leitura, de José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899). Óleo sobre tela. Pinacoteca do Estado de São Paulo. II bibliotecário, dc Giuseppc Arcimboido (1527-1593). Óleo sobre tela (ca. 1566). Skoklosters Slott, Bâlsta, Estocolmo. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Cll’) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil Fonseca, Edson Nery da, 1921- . Introdução à biblioteconomia / Edson Nery da Fonseca; prefácio de Antônio Houaiss. -- 2. ed. - Brasília, n r : Briquet de Lemos/ Livros, 2007. Bibliografia isiin 978-85-85637-32-3 1. Biblioteconomia i. Houaiss, Antônio, ii. Título. 07-3895 cnn-020 índices para catálogo sistemático: 1. Biblioteconomia 020 2007 Briquet de Lemos / Livros SRTS - Quadra 701 - Bloco O - Loja 7 Edifício Centro Multiempresarial Brasília, DF 70340-000 Telefones (61) 3322 9806 e 3323 1725 www.briquetdelemos.com.br cditora@briquetdelemos.com.br Este livro é dedicado à Biblioteca da Câmara dos Deputados e à Universidade de Brasília, pelas alegrias que me proporcionaram como bibliotecá rio e professor. Esta segunda edição é também de dicada à memória de Jannice Monte-Mór. http://www.briquetdelemos.com.br mailto:cditora@briquetdelemos.com.br Isso é a grandeza admirável da biblioteco nomia! Ela torna perfeitamente acháveis os livros como os seres, e alimpa a escolha dos estudiosos de toda suja confusão. Este o seu mérito grave e primeiro. Mário de Andrade. Biblioteconomia, 1937. Os fi lhos da Candinha. Sumário Prefácio, Antônio Houaiss xi Prefácio à segunda edição, e.n .f x v Introdução 1 1 O livro 21 1.1 A palavra livro 21 1.2 O livro como "forma de vida humana" 23 1.3 O livro como conflito 24 1.4 A base física do livro 26 1.5 O livro, sua autoria e seu conteúdo 31 1.6 O livro no Brasil 35 1.7 Referências bibliográficas 43 2 A biblioteca 48 2.1 A palavra biblioteca 48 2.2 Novo conceito de biblioteca 49 2.3 Diferentes categorias de bibliotecas 51 2.4 Bibliotecas no Brasil 56 2.5 Referências bibliográficas 59 3 Leitor/Ieitura 63 3.1 As palavras leitor e leitura 63 3.2 Leitor e não-leitor 66 3.3 Leitura 70 3.4 Leitor/Ieitura no Brasil 82 3.5 Referências bibliográficas 86 4 O bibliotecário 91 4.1 A palavra bibliotecário 91 4.2 Missões do bibliotecário 92 4.3 Formação do bibliotecário 97 4.4 Atualização do bibliotecário 99 4.5 O bibliotecário no Brasil 105 4.6 Referências bibliográficas 111 Apêndice antológico: Textos de escritores brasileiros 115 Apresentação 115 Biblioteconomia Mário de Andrade 121 Poesia e utilidade de Simões dos Reis Carlos Drummond de Andrade 123 Um bibliotecário Gilberto Freyre 126 Reflexões sobre a situação atual e futura do bibliotecário no Brasil Otto Maria Carpeaux 128 Um editor no céu Carlos Drummond de Andrade 133 Do leitor Augusto Meyer 135 O gladíolo no ramalhete Lêdo Ivo 140 O bibliotecário Emílio Carrera Guerra 144 Para uma feira do livro João Cabral de Melo Neto 145 índice 146 Se me fosse dado sonhar a relação ideal autor-obra, eu proporia três reptos: que o autor fosse — por sua vida de prático e por sua vida de teórico — senhor e mestre do tema, pois que isso o capacitaria para balanceá-lo como essência e es perança; que o tema fosse tratado como que inauguralmente, mas com tal clareza experimentada e tal lucidez de horizontes havi dos e havituros, que seus leitores haurissem a impressão de evi dência, lógica e racionalidade, estranhando (a estranharem algo) que o dito tema tivesse sido objeto de passadas sombras, penum bras, controvérsias e litígios; que a clareza expositiva, por sua eficácia incontrastável, se amenizasse de graça e doçura e hu mor, pois o autor já havería superado (se os tivesse tido) as amar guras e tropeços de sua caminhada para o fazer, o saber fazer, o saber fazer fazer. De tudo isso fica-me aqui a certeza dos três reptos integrados, após a leitura amorosamente minudente des ta Introdução à biblioteconomia. Porque, se outrem tivesse no Bra sil elaborado uma obra deste tipo, para mim — e para quantos! — ficaria provavelmente a impressão de que se trataria de uma usurpação, pois esse alguém estaria exercendo uma função que não lhe cabia. A maneira por que Edson Nery da Fonseca tem exercido sua biblioprática vem sendo, desde o início, a de um bibliósofo que chegaria a uma bibliosofia íntegra, de pés na terra — já que sabe de polpas de papel, de tintas, de caracteres, de composições, de manchas e ilustrações, de encadernações, de preservação, de res tauração, de armazenamento, de locais, de acondicionamentos ambientais — e de olhos no céu — já que busca para cada livro sua mensagem, seu conteúdo formativo, informativo, recreati vo, lúdico, sua adequação etária, seu curso de honra, sua inser ção na história: de permeio, entre os pés e os céus, quer, com o coração, que os livros sejam objetos amoráveis, como cimentos e tijolos de humanização, mesmo os ruins e as controvérsias que geram com seqüelas quase sempre de redenção; e com o fígado, que dele quer que se possam haurir alegrias retemperantes, even tuais rancores magoados mas superáveis, certos ímpetos correti vos, alguns temperos didáticos — fontes de vida havida, vida vivente e vida futura. Não me cabe 'provar' o que digo de Edson Nery da Fonseca: o seu currículo de vida prova-o à saciedade, convencendo não ape nas como argumento, mas como militância — oral, escrita, ativa, funcional, histórica —, dele fazendo um marco m iliar no derroteiro do livro (de um modo geral), do livro lusofônico (de modo especial) e do livro brasileiro (de modo particular). Dele dizer — com palavra neste texto por ele criada ad hoc — que é nm ser antropobibliocêntrico é fazer justiça, pois poucos sabem como ele que o Homem — como espécie e como indivíduo — se faz cada vez mais a si mesmo graças a um instrumento — o livro — de que derivam todos os instrumentos, físicos e mentais. A esse respeito, talvez me caiba sublinhar uma lição implícita e não raro explícita nesta obra: que o livro, ao contrário do que certa modernosidade busca impingir, está agora dando os seus melhores frutos de uma floração que perdurará pelos milênios por vir. Daí também me cabe rogar ao leitor que não perca, nesta exposição-narração-dissertação, os momentos de ira sacra com que Edson Nery da Fonseca se levanta contra a ignorância crassa de certas 'autoridades' ditas brasileiras no trato ou destrato do livro. Não nos esqueçamos de que, só com a escrita e seu vetor (o barro, a pedra, o mármore, a parede, o couro, o pergaminho, o papiro, o papel, a magnetofita), o Homem começou a História restritivamente dita, inventando a transmissão do saber institu cionalizadamente, fazendo de certas línguas de três mil palavras línguas de 600 mil, multiplicando as duas únicas profissões ini ciais nas 50 dos fins da Idade Clássica, nas 90 do fim do Antigo Regime, nas 420 do Romantismo, nas 30 mil de hoje em dia — graças em boníssima parte ao 'livro', qualquerque seja o seu suporte. X l l Este livro, assim, trata soberanamente do livro, como vetor e criador da modernidade — essa só que distingue o Homem ágrafo que existiu na Terra por quase dois milhões de anos do Homem gráfico, que há aqui e agora na Terra, mas ainda não planetizado, de apenas uns poucos — seis, cinco, quatro, três? — milênios para cá: só a sua universalização abrirá as portas a uma humani dade sem desenvolvidos, subdesenvolvidos, em vias de desen volvimento e em vias de subdesenvolvimento. Assim ainda, este livro, vocativamente, não pode deixar de ser lido, e relido, e rer- relido, pelos biblioteconomistas e bibliômanos em geral, e em especial pelos bibliopráticos e biblioteóricos. Mas que quem lê não se iluda: quem quer que já saiba ler lerá com encantamento esta introdução à biblioventura — e se enri quecerá de (pelo menos) esperança. Rio de Janeiro, 20 de julho de 1991 ANTÔNIO HOUAISS {xiii} Prefácio à segunda edição Eu já devia a Antonio Agenor Briquet de Lemos um agradecimento pela publicação — em 1988, quando era diretor do IBICT — do meu livro Problemas brasileiros de documenta ção. Sou-lhe novamente grato pelo interesse — agora como dinâ mico editor privado — na reedição desta Introdução à biblioteco nomia. Escrita em 1991, durante duas licenças sabáticas que me foram concedidas pela Universidade de Brasília — a segunda, aliás, interrompida, em dezembro daquele ano, pela aposenta doria por limite de idade — é natural que nela não apareçam a internet, o livro eletrônico e a informação digital. Não me ani mo, entretanto, a tratar de tão importantes invenções porque outros colegas poderão fazê-lo melhor do que eu, absorvido por assuntos mais adequados a uma idade já avançada, quando se experimenta o que Guimarães Rosa chamava "esta outra vida de aquém-túmulo". Não posso, entretanto, deixar de exprimir o que penso diante da pós-modernidade biblioteconômica que estamos vivendo nes te alvorecer do século XXI. Sempre lutei contra especialistas fe chados em suas especializações, defendendo uma interdiscipli- naridade que acabou se impondo aos estudiosos de todas as áre as do conhecimento científico, tecnológico e humanístico. Quando pesquisadores esclarecidos informavam que elemen tos já existentes em meados do século passado permitiam prever o advento de uma rede mundial de computadores, ainda havia entre nós quem afirmasse — parafraseando conhecida boutade de Lenin — ser o interesse pelas máquinas 'doença infantil da biblioteconomia'. Faltou quem respondesse ao antiquado biblio tecário que 'doença infantil' é o receio de outras especializações além da nossa. Pois o que hoje se impõe é um brado muito dife rente daquele ouvido em 1922 pelas 'margens plácidas' do ria cho Ipiranga: Interdependência ou morte! Interdependência tanto entre nações como entre especializações. Em livro recentemente publicado no Brasil — Eremita em Pa ris (Companhia das Letras, 2006) — o escritor italiano ítalo Calvino deu-nos o exemplo ao declarar sua paixão por uma cultura global, a recusa da íncomunicabilidade da especi alização para manter em vida uma imagem de cultura como um todo uni tário, do qual fazem parte todos os aspectos do conhecer e do fazer, e no qual os diversos discursos de cada pesquisa e produção específica fazem parte daquele discurso geral que é a história dos homens que temos de conseguir dominar e desenvolver em sentido finalmente humano (p.171- 172). A nova missão do bibliotecário Estava o apóstolo Paulo perante o Sinédrio — o tribunal dos an tigos judeus em Jerusalém — contando ao rei Agripa a sua con versão: aquela misteriosa cena da estrada de Damasco em que ouviu a voz de Cristo mandando-o pregar o Evangelho. Quando falou na ressurreição dos mortos foi interrompido por Pórcio Festo, governador da Judéia, que exclamou: "Estás louco, Paulo! As muitas letras te fazem delirar" (Atos 26:24). Faltava a Festo a visão sobrenatural de Paulo. Mas, na verda de, o excesso de leituras pode levar ao delírio. Fala-se, por exem plo, em delírio filosofante dos que discorrem especulativamente, com ares eruditos, sobre temas vagos e pretensamente filosófi cos. Noto que ocorre presentemente uma espécie de delírio infor- matizante, que pode ser diagnosticado nos que proclamam o fim do livro, impressionados com bancos de dados interativos, siste mas informatizados de hipertextos, minidiscos laser, ondas ele tromagnéticas e fibras ópticas. Um professor de cinema, rádio e TV da Universidade de São Paulo demonstrou, em artigo publicado há vários anos num gran de jornal paulista, uma curiosa animosidade contra o livro, con siderando-o como "suporte da rotina acadêmica"; esta, segundo ele, somente poderia ser superada por programas radiofônicos. Incluo-me, porém, entre os que pensam que programas de rádio e televisão podem ser tão imbecis como certos livros. Nem al guns programas de canais de assinatura escapam da imbeciliza- ção em massa que domina tanto a televisão brasileira como a norte-americana. (xvij O que parece estar havendo entre os defensores da mídia ele trônica é um simplismo muito comum entre especialistas. Falta- lhes a visão holística da realidade, pois estão prejudicados por uma especialização à outrance. Veem tudo fragmentariamente, com antolhos unidisciplinares. Pois como já mostrou o poeta e jornalista Nelson Ascher, eletrônica e escrita não são excludentes, mas complementares. Com o mesmo simplismo, alguns profetas anunciaram a mor te do teatro quando surgiu o cinema e o fim do cinema no adven to da televisão. Entretanto, o teatro — inclusive o grego e o elisabetano — está muito vivo e o cinema, em vez de substituir o teatro, se encarrega de sua difusão, da mesma maneira que a televisão exibe os clássicos do cinema e o DVD permite-nos ver tudo isso em nossas casas, além de óperas, concertos e grandes espetáculos de balé. Até grandes espíritos como o nosso Sílvio Romero sucumbi ram ao simplismo de uma modernidade capenga. Em 1875, pres tando concurso para obtenção do grau de doutor pela Faculdade de Direito do Recife, o grande sergipano disse que a metafísica estava morta. O professor Coelho Rodrigues, que o examinava, perguntou se fora ele quem dera o tiro... E a pergunta que me ocorre fazer aos anunciadores da morte do livro: foram os senhores que o mataram? Como Sílvio Romero respondeu irritado a seu examinador que a metafísica havia sido morta pela ciência e pelo progresso, os pregoeiros da morte do livro estão atribuindo-a à mídia eletrônica. Esta, entretanto, con vive tranqüilamente com o livro, assim como o teatro convive com o cinema e este com a televisão. Apropria metafísica convi ve com a modernidade, como prova a existência de filósofos con temporâneos do alto nível de Heidegger, W ittgenstein ou Habermas. Em conferência lida na New York Public Library e publicada no caderno Mais! da Folha de S. Paulo de 15 de abril de 2002, o historiador norte-americano Robert Darnton — professor da Princeton University e autor de vários livros especializados em história das mentalidades — lamentou que o projeto original para o novo campus da Califórnia State University, em Monterey, não inclui uma biblioteca. E explicou: {xvii} Imaginamos as bibliotecas como o núcleo de nossos campi, mas esse seria um novo campus sem uma biblioteca. Os projetistas julgaram que os com putadores seriam suficientes, supostamente porque acreditavam que os li vros nada mais fossem que recipientes de informação. Hoje muitos estu dantes adotam essa atitude, e não só na Califórnia. Acham que pesquisar é surfar. Quando escrevem trabalhos costumam surfar na internet, baixar os arquivos, recortar, colar e imprimir. Comentando o texto do professor Robert Darnton, a Folha de S. Paulo da mesma data escreveu em editorial o seguinte: [...] por mais perfeitas que se tornem as bibliotecas virtuais, alguém que realmente goste de livros tende a preferir o livro físico, com cheiro,forma e mecânica de livro. Não é a mesma coisa adormecer com um bom romance na cama ou com um incômodo laptop, ainda por cima ligado à rede elétrica. Concordamos com o comentário, mesmo correndo o risco de ser mos chamados de luditas. A palavra vem do nome do operário inglês Ned Ludd, que induziu seus colegas a destruírem máqui nas têxteis, entre 1811 e 1816, por julgar que elas, economizando trabalho, fossem responsáveis pelo desemprego. Não queremos ser como os luditas. Não pregamos a destrui ção dos computadores. Queremos, isto sim, que sejam utilizados como veículos complementares dos livros: complementares e não substitutos. Tanto que o pretensamente substituto se chama e- book, o livro eletrônico. Lembro a definição de livro como "obra em prosa ou verso de qualquer extensão". O fenômeno é o mes mo desde a mais remota Antiguidade: alguém exprime, em pro sa ou verso, o que vê ou imagina; a expressão, gravada num su porte que foi pedra, cerâmica, papiro, pergaminho ou papel, é hoje magnetizada em disco rígido de computador. E claro que o hipertexto com seus links enriquece muito a men sagem, assim como a gravura ilustra a mancha tipográfica e a transmissão do som dá mais vida à imagem. Tudo, portanto, obe dece à lei da complementariedade que é, segundo ouço falar, uma das bases da física moderna. A missão do bibliotecário continua sendo a de orientar os lei tores ou, se quiserem, os usuários da informação. Em sua edição de 18 de junho de 2001, a revista Time publicou (páginas 58-59) o anúncio da empresa h p invent com este título; "O que a internet {xviii} precisa é de uma bibliotecária ultrapassada". A gravura mostra a bibliotecária Eugenie Prime entre pilhas de livros e o texto diz: Encontrar o que você deseja na iveb devia ser mais fácil do que encontrar um livro na biblioteca. Será assim se Eugenie encontrar a solução. Ela está trabalhando para criar um padrão de identificação e catalogação de infor mação online — inclusive todos os 2,7 bilhões de páginas da web — um sistema decimal de Dewey virtual, se vocês quiserem. Portanto você gasta rá menos tempo utilizando a informação que deseja. Não sei se notaram que estou citando neste prefácio matérias publicadas em jornal e semanário. O problema de informação não é hoje discutido somente em revistas especializadas: ele che gou à imprensa semanal e diária. É um problema de interesse geral e não apenas dos técnicos. Nós, bibliotecários, temos de evitar o que chamo de erro biblioteconomizante: o de pensar que a biblioteca existe para o bibliotecário. Abiblioteca existe para ser vir aos que procuram formação, informação e recreação. E os bibliotecários devem estar a serviço dessa assembléia de usuári os da informação, mesmo que esta forneça — como pretende a projetada universidade da Califórnia em Monterey — em vez de livros, terminais de computadores. Note-se que expressão livro eletrônico é constituída pelo subs tantivo livro e pelo adjetivo eletrônico. O suporte eletrônico não elimina o livro como "obra em prosa ou verso de qualquer ex tensão". Outros suportes existiram, como a placa de cerâmica, o rolo de papiro, a folha de pergaminho e o sobrevivente papel. O livro não deixa de ser livro quando muda o suporte, assim como a biblioteca não deixa de ser biblioteca ao tornar-se virtual. Con- seqüentemente, o bibliotecário não precisa mudar de nome para exercer a sua nova missão. O que ele necessita é de uma forma ção em nível de pós- graduação. Mas de uma pós-graduação sem antolhos unidisciplinares. A interdisciplinaridade deve ser a ca racterística da nova missão do bibliotecário. Revendo as provas da segunda edição, verifiquei, gratificado, que, Antonio Agenor Briquet de Lemos, corrigindo lapsos e atu alizando referências, tornou-se não apenas publisher, mas tam bém editor (no sentido inglês da palavra) deste livro. {xix} De minha parte, acrescento às leituras recomendadas no ca pítulo 3.4 (Leitor/leitura) o recente livro de Gilda Maria Whitaker Verri Tinta sobre papel: livros e leituras em Pernambuco no século xvm, 1759-1807 (Recife: Governo do Estado e Editora Universitária da u f p e , 2006. 2 v.). Olinda, outubro de 2006/março de 2007 E.N.F. {xx} Introdução 0.1 A palavra biblioteconomia é composta por três elementos gre gos — biblíon (livro) + théke (caixa) + nomos (regra) — aos quais jun tou-se o sufixo ia. Etimologicamente, portanto, biblioteconomia é o conjunto de regras de acordo com as quais os livros são organiza dos em espaços apropriados: estantes, salas, edifícios. 0.2 Organizar livros implica tanto ordená-los segundo um sis tema lógico de classificação dos conhecimentos e conservá-los para que resistam a condições desfavoráveis de espaço e de tempo, como torná-los conhecidos — por meio de catálogos, bibliografias, resu mos, notícias, exposições etc. — paraquesejamutiíizadospelo maior número possível de pessoas interessadas nos elementos formativos, informativos, estéticos ou simplesmente lúdicos neles contidos. A organização começa antes mesmo do ingresso dos livros nas bibli otecas — que se faz por compra, doaçãooupermuta — através de uma seleção cuidadosamente atenta aos perfis dos respectivos usuários. Ò.3 No Vocabularium bibliothecarii da Unesco estão indicadas as seguintes palavras ou expressões correspondentes ao português bi blioteconomia em cinco línguas: librarianship na Inglaterra e library Science nos Estados Unidos da América; bibliothéconomie na França; Bibliotheksioissenschaft, Bibliothekswesen ou Bibliotheksfach na Alema nha; bibliotecología na Espanha e em países hispano-americanos; e bibliotekoveãenie ou bibliotechnoe delo na Rússia (transliteração do cirílico ÔHÕJiHOTeKOBefleHHe e 6h6jiho r e hhoe flejio)} 0.4 Em relação à palavra bibliotecología impõe-se o esclarecimento de que é usada mais na América hispânica do que na Espanha, onde biblioteconomia está consagrada em títulos de livros, revistas e insti tuições. O bibliotecário argentino Domingo Buonocore tem razão ao proclamar que, etimologicamente, bibliotecología é denominação mais abrangente que biblioteconomia, pois em grego o logos é muito mais amplo que o nomos.2 0.5 O que me leva a pensar na obra O logos heraclítico, do erudito franciscano teuto-brasileiro frei Damião Berge: obra na qual se in- Introdução À Biblioteconomia 1 forma que o logos "é a palavra, o discurso, a coligir o saber a respei to da physis, a tomar visível, em sua enunciação, a physis invisível".3 E como não há lógica na tradição lingüística, a palavra bibliotecono mia consagrou-se, tanto na Espanha e em Portugal como no Brasil, como 9 ramo da bibliologia que trata da organização e administra ção de bibliotecas. 0.6 A disciplina Introdução à Biblioteconomia não figurava nos cursos brasileiros de formação de bibliotecários, que se graduavam, conseqüentemente, com uma visão fragmentária do fazer bibliote- conômico: aquisição, classificação, catalogação, referência etc. É ver dade que nas disciplinas História do Livro e Organização e Admi nistração de Bibliotecas poderia o estudante captar o elemento unificador. Mas dependia dele mesmo ou do professor. 0.7 Coube à Universidade de Brasília a primazia em considerar Organização e Administração de Bibliotecas menos como disciplina do que como matéria, desdobrada esta em tantas disciplinas quantas são exigidas pelo aumento da produção bibliográfica e conseqüen- te complexificação dos serviços bibliotecários: Documentação é uma delas; Reprografia outra; e Introdução à Biblioteconomia, da qual nos encarregamos^ Disciplina cujo objetivo é mostrar ao futuro bi bliotecário as relações tanto entre os di ferentes processos técnicos e informativos — relações intradisciplinares — como entre ela e as demais disciplinas bibliológicas — relações transdisciplinares — e até entre a bibliologia e os conhecimentos científicos e humanísticos — relações interdisciplinares. 0.8 Trata-se, portanto, de uma disciplina integradora,que pro cura unificar o que na prática administrativa e didática se oferece de modo disperso; que procura uma visão de conjunto e, portanto, uma filosofia da biblioteconomia. 0.9 Comecemos, portanto, procurando situar a biblioteconomia no quadro geral dos conhecimentos. Para tanto, necessitamos de um pouco de fenomenologia. Não da fenomenologia no sentido filosó fico dado à palavra por Edmund Husserl em sua obra Investigações lógicas; e sim num sentido mais genérico, como "pura descrição da quilo que aparece", pois em grego fenômeno significa 'o que aparece'. 0.10 Olhando para a realidade que nos rodeia e de que somos parte, verificamos que, de um lado, existem as coisas e os fenôme 2 Edson Nery da Fonseca nos: coisas e fenômenos que vemos ou testemunhamos; de outro lado, existem os conhecimentos dessas coisas e desses fenômenos: conhecimentos que resultam de uma sistematização do que nossas inteligências aprendem de modo fragmentário; ainda em outro pla no, existem os registros dos conhecimentos, resultantes de nossa necessidade de comunicação. Teilhard de Chardin denominou os dois primeiros planos biosfera (conjunto dos seres vivos) e noosfera ("o invólucro pensante");4 e Antônio Houaiss cunhou a palavra gra- fosfera, definindo-a como o "envoltório escrito".5 0.11 Os conhecimentos acumulados pelo homem através dos tempos foram pela primeira vez sistematizados na China antiga; os gregos, porém, deram maior ênfase a essa sistematização, princi palmente com a obra de Aristóteles, primeiro filósofo a tratar de matérias variadas, como a lógica, a física, a psicologia e a antropolo gia, a zoologia, a metafísica, a ética, a política, a retórica e a poética. 0.12 Até a Idade Média os conhecimentos estiveram mais ou me nos unificados na filosofia. Basta ver o número de tópicos compre endidos numa de suas subdivisões clássicas, a cosmologia ou filo sofia da natureza: leis gerais da natureza, espaço, tempo, movimen to, matéria, força e energia, quantidade e número. A partir do Re nascimento, começa a dispersão dos conhecimentos. 0.13 Dispersão e sucessão, porque uns geram ou tros, como a his tória natural, por exemplo, da qual saíram a biologia, a zoologia e a botânica. Da biologia, por sua vez, surgiram a citologia, a microbio- logia e várias outras disciplinas. A fragmentação disciplinar generali- zou-se de tal maneira que o pesquisador moderno passou a saber cada vez mais de cada vez menos coisas, como observou G.K. Chesterton. 0.14 Culturas pessoais como a de Aristóteles ou a de Leonardo da Vinci não são mais possíveis; entretanto, a unidade básica dos conhecimentos reponta nas relações tanto entre ciências do mesmo tronco — biofísica, bioquímica — como de troncos diferentes — psicolingüística, sociobiologia — e até entre conhecimentos cientí ficos e humanísticos, como sociologia da arte, cibernética. As pes quisas interdisciplinares ajudam o homem na recuperação da uni dade perdida.6 0.15 O que ocorre na noosfera projeta-se inexoravelmente na gra- fosfera, confirmando a observação de Mallarmé, para quem "tout, Introdução à Biblioteconomia 3 au monde, existe pour aboutir à im livre".7 Consequência da multi plicação das ciências e de suas aplicações tecnológicas é a explosão documental, fenômeno comparável à explosão demográfica. Não há exagero na comparação, pois segundo o Britannica world data foram publicados em 1985 mais de 700 000 livros e mais de 100 000 revis tas, calculando-se que tais números tendem a duplicar de dez em dez anos.8 0.16 Preocupados com este problema, os pesquisadores belgas Henri La Fontaine (1854-1943) e Paul Otlet (1868-1944) fundaram em Bruxelas, no ano de 1895, um Instituto Internacional de Biblio- ^eu objetivo era registrar em fichas a produção mundial de impressos: o Repertório Bibliográfico Universal, então inaugurado naquela cidade.9 ̂v 0.17 O desenvolvimento da ciência e o da tecnologia — que são mutuamente corolários — provocaram o advento de documentos não-impressos, como as patentes de invenções e as marcas de fábri cas, a que se juntaram os resultantes de aperfeiçoamentos nas técni cas de registro do som e da imagem. O norte-americano Thomas Alva Edison (1847-1931) — que durante sua vida registrou mais de mil patentes, inclusive as da lâmpada elétrica incandescente, do fonógrafo e do projetor cinematográfico — propôs a substituição da expressão 'bibliographic explosion' por 'documentation explosion'. Por ocasião de seu 10.° congresso anual (Haia, 1931), o Instituto In ternacional de Bibliografia passou a denominar-se Instituto Inter nacional de Documentação. Seis anos depois, fundava-se nos Esta dos Unidos o American Documentation Institute. Estava constituí da a nova ciência, sistematizada por Otlet em seu Trnité de áocumen- tation.10 0.18 Enquanto a matéria-prima da biblioteconomia sempre fora o texto impresso — avulso (livro) ou periódico (revista) — a docu mentação passou a interessar-se pelos documentos de qualquer na tureza, também chamados documentos não-convencionais. Mas docu mento é, por definição, o suporte da informação, cuja origem, trans missão e uso passaram a ser estudados por especialistas em dife rentes áreas do conhecimento científico e humanístico. 0.19 Já em 1924 começara a funcionar em Londres uma Associa- tion of Special Libraries and Information Bureaux (ASLIB), sob os 4 Edson Nery da Fonseca auspícios de instituições de pesquisas metalúrgicas. Em 1958 fun dou-se na mesma cidade o Institute of Information Scientists. E dez anos depois o American Documentation Institute transformava -se em American Society for Information Science. Estava institucionali zada a ciência da informação, chamada por alguns informatologiaA 0.20 Temos, portanto, uma visão pessoal do relacionamento en tre a biblioteconomia, a documentação e a ciência da informação. Jamais aceitamos a idéia — tão definida, na década de 1960, por bibli otecários norte-americanos e brasileiros — de ser a documentação um nome novo para tarefas que a biblioteconomia já vinha desem penhando secularmente: para sermos exatos, desde 1627, quando o médico francês Gabriel Naudé (1600-1653) publicou seus Aâvis pour dresser une bibliothèque. Também consideramos inaceitável que a ci ência da informação tenha surgido para substituir a documentação. Cada uma delas tem seus objetivos, devendo, porém, atuar "de mãos dadas", como o poeta Carlos Drummond de Andrade recomendava aos homens do "tempo presente": um tempo de interdependência — entre indivíduos, instituições, nações e especializações — e de unifi cação, de integração e harmonia, de visão holística do mundo.12 0.21 A fundação, em 1937, do American Documentation Institute (ADl) desmistificou uma falácia utilizada por certos bibliotecários brasileiros: a de que a documentação surgira na Europa em face da ineficiência das bibliotecas daquele continente no estabelecimento de sistemas de armazenagem e recuperação da informação (Infor mation storage and retrieval). Ficou famosa a frase de mn autor norte- americano citado por Suzanne Briet: "a ciência encontrou seu Waterloo nas bibliotecas".13 Nos Estados Unidos — argumenta vam — a documentação jamais seria acolhida, por causa da eficiên cia das bibliotecas desse país. É verdade que houve reações à docu mentação da parte de bibliotecários estadunidenses assustados com o advento dos documentalistas. A palavra documentação tomou-se para eles um verdadeiro tabu. Ainda em 1951, em obra coletiva da importância histórica de Bibliographic organization, procurou-se evi tar a palavra como que maldita — maldita, certamente, por sua ori gem européia — com esta curiosa entrada remissiva no índice: 'do cumentation; see bibliographic organization'.14 0.22 O receio da palavra documentação parece ter passado logo, Introdução à Biblioteconomia 5 tanto que no ano seguinte o bibliotecário Mortimer Taube fundava em Washington a empresa Documentation Incorporated, vitoriosa até sua morte,em 1965, a julgar pelo número e importância de seus associados — mais de 500 — dois dos quais a National Aeronautics and Space Administration (NASA) e a United States Air Force (USAF) !5 E em 1956 os mesmos organizadores da obra Bibliographic organization publicavam outra obra coletiva já com o título Docu mentation in action.'6 0.23 Mortimer Taube foi dos primeiros bibliotecários norte-ame ricanos que tiveram a corajosa lucidez de aceitar a documentação como exigência natural de nossa época, tanto quanto como fenô meno comum na história das ciências, desconhecendo conflitos en tre juristas, sociólogos e psicólogos em face do advento da crimino- logia, ou entre biólogos e químicos diante do nascimento da bioquí mica, ou entre engenheiros e fisiologistas por causa da cibernética etc.: apenas alguns exemplos de novas disciplinas resultantes de outras.17 Taube talvez tenha sido também o último desses bibliote cários corajosos e lúcidos, pois pouco depois de sua morte o ADI mudava seu nome para American Society for Information Science (ASIS), hoje American Society for Information Science and Tech nology (ASIS&T). E quase ninguém mais falou em documentação naquele país. 0.24 A ciência da informação surgiu em conseqüência de um acordo tácito entre bibliotecários e documentalistas, tendo estes acei to a nova denominação e aqueles imposto a palavra biblioteca, do que resultou a frase hifenizada por George E. Bennett library-and- information Science:18 frase consagrada, sem os hífens, tanto nos no mes de várias escolas de pós-graduação como nos títulos de impor tantes obras de referência. Uma delas, a monumental Encyclopedia oflibranj and information Science, cujo corpus principal, em 36 volu mes, vem sendo permanentemente atualizado por suplementos.19 0.25 Tudo parecia consolidado, quando Jesse Shera — conside rado por Curtis Wright como "uma ponte entre a biblioteconomia e a ciência da informação" — faz esta surpreendente declaração, na quele que talvez tenha sido o último dos inúmeros textos por ele escritos: "Há vinte anos, eu achava que aquilo que hoje se chama ciência da informação proporcionava as bases intelectuais e teó 6 Edson Nery da Fonseca ricas da biblioteconomia; agora, porém, estou convencido de que estava errado."!20 . . , 0.26 É oportuno analisar, mesmo de passagem, o itinerário des sa figura exponencial da biblioteconomia. Oprimeiro livro de Shera é uma exaltação da biblioteca pública: The foundahons ofthe pubhc library.2' Mas em 1953, ao escrever, em colaboração com Margaret Egan, a longa introdução para a segunda edição da obra Documen tation, do inglês S.C. Bradford, ele recrimina as bibliotecas publicas por terem negligenciado os "problemas bibliográficos" da ciência e da tecnologia, para cuidar apenas da "cultura popular . 0.27 Já manifestamos, em outra oportunidade, nossa discordân cia dessa assertiva dos insignes autores, procurando mostrar que as bibliotecas públicas devem continuar dedicadas à cultura popular, à educação de adultos e à democratização da cultura, deixando os problemas bibliográficos da ciência e da tecnologia para as bibliote cas especializadas e os serviços de documentação.23 No mesmo ano da introdução ao livro de Bradford, Jesse Shera deixou de ser pro fessor da Graduate Library School da University of Chicago - uma escola de orientação tradicionalmente humanística — para dirigir a School of Library Science da Western Reserve University, que logo passou a denominar-se School of Library and Information Science. Problemas pessoais com James W. Perry, diretor do Center for Do cumentation and Communication Research da mesma universida de e seu colaborador na organização de várias obras coletivas, leva ram Shera a repudiar a ciência da informação.24 0.28 É um caso de sociologia da ciência e foi, como tal, magis- tralmente estudado por George E. Bennett em sua ja citadaobra Librarians in search of Science and identity: the ehisive profession. Quan do se fizer a história do relacionamento, no Brasil, da bibliotecono mia com a documentação e a ciência da informação, ver-se-a que, guardadas as distâncias, conflitos semelhantes ocorreram entre nos. Os rumos do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), por exemplo, teriam sido outros, se a orientação do consul tor da Unesco, Herbert Coblans, tivesse prevalecido sobre a de Lydia de Queiroz Sambaquy, com quem ele teve debates nada suaves (so bre o assunto existe dissertação de mestrado ainda inédita, de auto ria de Luiz Antonio Gonçalves). Outro exemplo: na origem da re- Introdução À Biblioteconomia 7 sistência que alguns bibliotecários de São Paulo opuseram à docu mentação nos anos 1950 estava o conflito entre a diretora da Biblio teca Central — nossa douta e saudosa amiga Maria Luisa Monteiro da Cunha — e o diretor do Serviço de Documentação da Universi dade de São Paulo, Guelfo Oscar Campiglia. 0.29 E claro que tais conflitos não devem perturbar nossa visão do problema. Eles retardam, mas jamais deterão o progresso da ci ência, que é inexorável. O fato de os norte-americanos terem substi tuído a documentação pela ciência da informação não deve obri gar-nos a adotar essa simplificação do problema, talvez decorrente de um complexo de superioridade que os leva a subestimar tudo o que é europeu, inclusive textos escritos em línguas neolatinas. Acon tece que os melhores textos sobre documentação são de autores dessas línguas, como o belga Paul Otlet, a francesa Suzanne Briet e os espanhóis Lasso de la Vega e López Yepes. 0.30 Repetimos que, para nós, a biblioteconomia, a documenta ção e a ciência da informação têm objetivos diferentes. Dentre os da primeira, podemos salientar a democratização da cultura — através de bibliotecas públicas —, a preservação e difusão do patrimônio bibliográfico de cada nação — tarefa das bibliotecas nacionais e das bibliografias nacionais correntes e retrospectivas — o apoio docu mental ao ensino e à pesquisa oferecido pelas bibliotecas universi tárias; à documentação compete fornecer resumos de pesquisas, em processo ou já concluídas, tanto quanto de artigos, comunicações a congressos, relatórios, teses, patentes etc., e, eventualmente, tradu ções e reproduções desses documentos, muitos dos quais não-im- pressos; a ciência da informação não veio substituir a documenta ção, eis que seu objetivo é estudar a gênese, transformação e utiliza ção da informação. 0.31 Não nos alongaremos a respeito da comunicação e da ciên cia da informação, porque este livro é uma introdução apenas à biblioteconomia, estruturada em tomo de seus elementos princi pais, que são o livro, a biblioteca, o leitor e o bibliotecário. No qua dro geral dos conhecimentos, ou das ciências no sentido mais am plo da palavra, a biblioteconomia aparece como parte das ciências documentológicas. Estas, por sua vez, se inserem no campo de uma ciência das ciências, proposta pelo físico irlandês John Desmond Edson Nery da Fonseca Bemal (1901-1971) em sua obra The social function o f Science.25 Enca ramos a ciência das ciências como um dos três ramos do conheci mento, que compreende as ciências da natureza, denominação pro posta, em 1878, por Du Bois-Reymond,26 e as ciências da cultura, como as chamava Rickert,27 ou ciências do espírito, denominação preferida por Dilthey.28 0.32 Classificamos a biblioteconomia entre as ciências documen tológicas aplicadas: ao lado, portanto, da arquivologia, da museolo- gia e dos serviços de documentação científica (a palavra documen tação é aqui usada em sentido restrito). As ciências documentológi cas de natureza histórico-descritiva são a bibliologia, a bibliografia e a bibliometria. Bibliologia é a ciência histórica do livro — como surgiu e se desenvolveu até nossos dias — havendo proposta re cente de que passe a denominar-se bibliomática, em face da aplica ção dejprocessos informatizados na produção e difusão do livro.29 Na visão original do sociólogo francêsVictor Zoltowski, bibliogra fia é a "ciência concreta [que] procura recensear o mundo dos livros na sua totalidade, da mesma forma pela qual a demografia procede recenseando a população".30 Bibliometria é a aplicação da análise estatística tanto à bibliografia geral — macrobibliometria — e à bi bliografia especializada — microbibliometria — como, a partir dos anos 1960, às citações contidas em textos científicos;31 mediante o cruzamento de documentos citados com documentos citantes, con segue-se aquela "estatística das idéias" com a qual sonhou Ortega y Gasset em 1935, ao atribuir ao bibliotecário do futuro a tarefa de "determinar com todo rigor o instante cronológico quando nasce uma idéia, o processo de sua difusão, o período exato durante o qual perdura como vigência coletiva e, por fim, a hora de seu declínio, de seu anquilosamento como mero lugar-comum, enfim, seu ocaso além do horizonte do tempo histórico".32 0.33 Essa tarefa, que vem sendo executada por Eugene Garfield e seus colaboradores do Institute for Scientific Information, em Fi ladélfia, é, para nós, o núcleo da ciência da informação.33 Em 1967 o ensaísta francês Henri Lefebvre retomou a idéia de Ortega, supo mos que sem conhecê-la.34 Elq fala na possível reconstituição de "ca deias de citações" que mostrariam "quão raramente se introduz nos textos uma idéia nova [...] onde determinada idéia foi introduzida, Introdução à Biblioteconomia 9 por quem, aquilo que ela se tornou, como ela se metamorfoseou, onde morreu, onde está seu túmulo”. Lefebvre desconhecia que as cadeias de citações' são, desde 1963, uma esplêndida realidade, com os principais produtos do Institute for Scientific Information: o Sci ence Citation Index (1963- ), o Social Sciences Citation Index (1973- ) e o Arts and Humanities Citation Index (1978- ). * 0.34 Este livro não é um manual, como foram, no passado, os dos franceses Naudé (1627) e Namur (1834) e dos alemães Petzholdt (1866) e Graesel (1893) ou como são, modernamente, os da mexica na Juana Manrique de Lara ou da brasileira Heloísa de Almeida Prado. Os manuais de biblioteconomia ensinam a organizar e ad ministrar bibliotecas. Esta introdução procura oferecer uma visão panorâmica da biblioteconomia, seguindo, com nossas limitações, os exemplos dos pioneiros Pierce Butler (1933), A. Broadfield (1949) e S.R. Ranganathan (1949) e, mais recentemente, A.K. Mukherjee (1966), Jesse H. Shera (1976) e Donald Urquhardt (1981). O esclare cimento é necessário, porque existem títulos enganadores, como o da obra de Edmund Corbett, que, sendo um manual, se intitula An introduction to librarianship.35 A bibliografia que, a seguir, recomen damos, procura ser exaustiva em relação à filosofia da bibliotecono mia, mas é muito seletiva quanto à documentação e à ciência d? informação. * 0.35 Agradecemos ao então Departamento de Biblioteconomia da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados da Universidade de Brasília, hoje Departamento de Ciência da Informação e Docu mentação da Faculdade de Economia, Administração, Contabili dade e Ciência da Informação e Documentação da mesma uni versidade, as duas licenças sabáticas que me foram concedidas para redação desta obra; a Cordélia Robalinho Cavalcanti a leitura críti ca do datiloscrito e o fornecimento de textos modernos sobre a ma téria, e a Antônio Houaiss, tanto por seu generoso prefácio como pela honrosa atenção com que paciente e competentemente revi sou os originais. O; ;10 Edson Nery da Fonseca C IÊ N C IA D A IN FO RM A Ç Ã O D O C U M EN TA Ç Ã O BI BL IO TE C O N O M IA Quadro 1. Biblioteconomia, documentação e ciência da informa ção: objetivos, instrumentos e ciências conexas OBJETIVOS INSTRUMENTOS CIÊNCIAS CONEXAS Formação, informação Organização e adminis- Bibliografia e recreação através tração de bibliotecas Bibliologia de todos os tipos nacionais, públicas, Administração de documentos infantis, escolares, universitárias e especializadas Bibliografias nacionais Catálogo coletivo Intercâmbio nacional e internacional de publicações ISBN Organização e métodos Psicologia História da civilização Documentação Ciência da informação Informática Arquívologia Muscologia Apoio documentai à Organização e adminis- Bibliografia pesquisa científica, tração de serviços de Biblioteconomia humanística e tecno- documentação Bibliometria lógica, através da Publicações secundárias Artes gráficas indexação, tradução e terciárias Ciência da informação e resumo de publi- Reprografia Lingüística cações primárias Normas técnicas Bases de dados Disseminação seletiva Serviço de alerta iSSN Informática Arquivologia Museologia Gênese e comunicação Estatística da produção Bibliografia da informação bibliográfica Estatística Emergência de novas Bibliomctria Informática disciplinas índices de citações Lingüística Interdisciplinaridade Colégios invisíveis História da ciência Biblioteconomia Documentação Introdução à Biblioteconomia 11 Quadro 2. A biblioteconomia no universo dos conhecimentos / Ciências da natureza Exatas e descritivas / matemáticas físicas , químicas biológicas mistas Í médicas agronômicas engenharias* Humanidades / Ciências da cultura \ Ciências sociais I filosóficas teológicas psicológicas letras artes plásticas \ música / lingüística* antropologia cultural sociologia / economia história educação* t administração* (teoria da informação* teoria geral dos sistemas* metodologia* Ciência das ciências Documento- lógicas / bibliografia* bibliometria* bibliologia* I biblioteconomia* arquivologia museologia documentação (sentido restrito)* observação . A biblioteconomia presta serviços a todas as ciências (interdisciplinaridade de contribuição) e se utiliza das assinaladas com asterisco {interdisciplinaridade de utilização). 12 Edson Nery da Fonseca 0.36 Referências bibliográficas 0.36.1 Das citações 1 THOMPSON/Anthony. Vocnbularitim bibliothecarii. 2. ód. Paris: Unesco, 1962, p.151. WERSIG, Gernot; Neveling, Ulrich. Terminologi/of documentation. Paris: Unes co, 1976, p. 99. 2 BUONOCORE, Domingo. Diccionario de bibliotecología. 2. cd. aum. Buenos Ai res: Marymar, 1976, p. 90. 3 BERGE, Damião, O.F.M. O logos heraclítico; introdução no estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro: instituto Nacional do Livro, 1969, p. 87. 4 CUYPERS, Hubert. Vocabulário de Teilhard. Tract. de frei Eliseu Lopes. Petró- polis: Vozes, 1967, p. 16,17 e 76. 5 HOUAISS, Antônio. Elementos de bibliologia. Rio de Janeiro: Instituto Naci onal do Livro, 1967, v. 2, p. 3. 6 APOSTEL, Léo et nl. (ed.) Llnterdisciplinarité; problèmes d'enseignement et de recherche dans les universités. Paris: Organisation de Coopóration et de Déve- loppement Economiques, 1972, p. 9 et passim. JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: ímago, 1976, p. 182-203. 7 MALLARMÉ, Stéphane. Le livre, instrument spirituel. Em suas: Oeuvres com pletes. Texte ótabli et annoté par Henri Mondor et G. Jean-Auvry. Paris: Galli- mard, 1945, p. 378-382. O artigo é de 1895. Sobre as diferentes versões da frase, ver: FONSECA, Edson Nery da. "Tudo o que no mundo existe começa e acaba em livro." Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 1, p. 5-11, 1981. Reproduzido em Ser ou não ser bibliotecário e outros manifestos contra a roti na. Brasília: ABDF, 1988, p. 108-117. 8 E n CYCLOPAEDIA B r íTANNICA. 1990 Brilannica book o f lhe \/ear. Chicago, 1990, p. 888-893. PRICE, Derek de Solla. A ciência desde a Babilônia. Trad. de Leônidas Hegenberg e Octanny Mota. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1976, p. 143-171, 9 OTLET, Paul. Traité de docwneutation; le livre sur le livre; théorie et pratique. Bruxelles: Editiones Mundaneum, 1934, p. 404-406. Bradford, S.C. Fifty years of documentation. Em seu: Documentation. 2nd ed. London: Crosby Lockwood, 1953, p. 132-143. Ed. brasileira: Docu m entação.Trad. de M.E. de Mello e Cunha. Rio de Janeiro: Fundode Cul tura, 1961, p. 180-195. 10 Otlet, Paul, Traité de documentation. Op. cit., n." 9. 11 Oten, Klaus; DEBONS, Anthony. Towards a metascience of information: informatology. Journal o f the American Socictt/ for Information Science, Washing ton, v. 2, n. 1, p. 89-94, Jan./Feb. 1970. Fo n s e c a , Edson Nery da. Informatologia. In: Enciclopédia Mirador internaci onal. Rio de Janeiro: EncyclopaediaBritannica do Brasil, 1975, v. 11, p. 6114- 6115. Introdução à Biblioteconomia 13 12 Andrade, Carios Drummond de. Mãos dadas. Em sua: Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964, p. 111. Deste poema, do qual disse Otto Maria Carpeaux que o ajudou a suportar o exílio, ousamos fazer uma paráfrase. Ver FONSECA, Edson Nery da. Paráfrase de Carlos Drummond de Andra de. Revista da Escola de Biblioteconomia da LíFMG, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 93-100,1972. Reproduzido em: Ser ou não ser bibliotecário. Op. cit., n." 7, p. 77-81. 13 Briet, Suzanne. Qu'cst-ceque ladocumentation? Paris: Éditions Documentai- res, Industrielles et Techniques, 1951, p. 10. 14 Sl-IERA, Jesse H.; EGAN, Margaret E. (ed.) Bibliographic organizalion. Chica go: University of Chicago Press, 1951, p. 270. 15 WHITE, Herbert S. Taube, Mortimer. In: ALA zoorld encyclopcàia o f library and informatiou Service. Chicago: American Library Association, 1980, p. 555-556. 16 SHERA, Jesse II. et al. (ed.) Documentation in action. New York: Reinhold; London: Chapman & Hall, 1956. 17 Lemainf., Gerard et al. (ed.) Perspectives on the emergcnce ofscientific discipli nes. The Hague: Mouton; Paris: Maison des Sciences de l'Homme, 1976. 18 BENNETT, George E. Librarians in search o f Science and identih/: the elusívepro- fession. Metuchen: Scarecrow, 1988, p. 9 etpassim. 19 Kent, Alen; LANCOUR, Harold (ed.) Encyclopedia o f library and Informati on Science. New York: M. Dekker, 1968. 20 Sl-IERA, Jesse H. Librarianship and information Science. In: MACULUP, Fritz; MANSFIELD, Una (ed.) The study o f informatiou: interdisciplinary messages. New York: Wiley, 1983, p. 383. Ver sobre o assunto: WRIGUT, H. Curtis. Shera as a bridge between librarianship and information Science. Journal o f Library History, v. 20, n. 2, p. 137-156, Spring 1985; Bennett, George E. Librarians in search ofidentity. Op. cit., n." 18. 21 SHERA, Jesse H. Foundations o f the public library. Chicago: University of Chi cago Press, 1949. 22 SHERA, Jesse H.; EGAN, Margaret E. A review of the present state of librari anship and documentation. In: Bradi-ORD, S.C. Documentation. Op. cit., n." 9, p. 11-45. Ed. brasileira: p. 15-60. 23 FONSECA, Edson Nery da. Importância da biblioteca nos programas de alfa betização e educação de base. Revista do Serviço Público, Rio de Janeiro, v. 94, n. 3, p. 99-108, jul./set. 1962. Reproduzido em: Problemas brasileiros de documentação. Brasília: IBICT, 1988, p. 129-138. 24 Bennett, George E. Librarians in search o f Science and identih/: the elusive pro- fession. Op. cit., n." 18. 25 BERNAL, John Desmond. The social fituction o f Science. Cainbridge, Mass.: MIT Press, 1939. Ver LÓPEZ YEPES, José. Teoria de la docu-mentación. Pam- plona: Universidad de Navarra, 1978, p. 14. Ver também, de Bernal, Historia social de Ia ciência. 3. ed. Barcelona: Península, 1973. 26 Du BoiS-REYMOND, Emil I-Ieinrich. Kulturgeschichte und Natunoissenschaf- ten. 1878. Apud ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mes tre Jou, 1962, p. 130. 27 RiCKHRT, Hcinrich. Logik der Kultunvissenschaften. 1942. Apud ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Op. cit., n." 26, p. 130. 14 Edson Nery da Fonseca 28 DrLTUOY, Wilhelm. Einleitung in dieGeisteswissenschaften. Apud Amarai,, Ma ria Nazaré de Camargo Pacheco. Dilthey: um conceito de vida e uma pedago gia. São Pauio: Perspectiva: Editora da USP, 1987, p. xvn. 29 BATICLE, Robert L. Propos sur la bibliomatique. Revue de Bibliologie, Schéma et Schématisation, Paris, v. 24, p. 13-18; v. 25, p. 69-74, 1986. 30 ZOLTOW SKI, Victor. Les cycles de 1a création intellectuelle et artistique. L'Année Sociologique 1952. Paris: Presses Universitaires de France, 1955, p. 163-206. Ed. brasileira: Os ciclos da criação intelectual e artística. Trad. de Ivanilda Fernandes Costa Rolim, rev. por Cordélia Robalinho Cavalcanti. In: FONSECA, Edson Nery da (ed.) Bibliometria, teoria e prática. São Paulo: Cultrix: Editora da USP, 1986, p. 71-111. 31 FONSECA, Edson Nery da (ed.) Bibliometria, teoria e prática. Op. cit., n.” 30. 32 O r t e g a y G a s s e t , José. Misión dei bibliotecário y otros ensayos afines. 2. ed. Madrid: Revista de Occidente, 1967, p. 88. Para outras edições, ver adi ante, em 'D e obras recomendadas'. 33 Garpield, Eugene. Historiographs, librarianship, and the history of Sci ence. In: Rawski, Conrad E. (ed.) Tozonrdsa theory o f librarianship. Metuchen: Scarecrow, 1973, p. 380-402. Ed. brasileira: Historiógrafos, biblioteconomia e a história da ciência. Trad. de José Paulo Paes. In: FONSECA, Edson Nery da (ed.) Bibliometria, teoria e prática. Op. cit., n." 30, p. 113-135. GARFIELD, Eugene. Cilation indexing, ils theory and application in Science, technology, and humanities. New York: Wiley, 1979. 34 L e f e b v r e , Henri. Posição: contra os tecnocratas. Trad. de T.C. Netto. São Paulo: Documentos, 1969, p. 182. 35 CORBETT, Edmund V. An introduetion to librarianship. Cambridge: J. Clarke, 1963. 2nd ed. completely rev. and enl. vvith supplement, 1969. 0.36.2 De obras recomendadas BRIET, Suzanne. Qu'est-ce que la documentation? Op. cit. n." 13. Quarenta e cinco anos depois, ainda é um texto válido, embora com dados superados. B u t i .e r , Pierce. An introduetion to library Science. Chicago: University of Chica go Press, 1933. 2nd ed. with an introduetion by Lester Asheim. Chicago: University of Chicago Press, 1961. (Phoenix books, 59). Ed. brasileira: Intro dução à ciência da biblioteconomia. Trad. de Maria Luiza Nogueira. Rio de Janeiro: Lidador, 1971. Esta obra é um dos primeiros produtos da Graduate Library School da University of Chicago, que renovou a biblioteconomia nos Estados Unidos, dando-lhe orientação humanística. O autor (1886-1953) disserta inicialmente sobre a natureza da ciência e aborda a bibliotecono mia sob os aspectos sociológico, psicológico e histórico, concluindo com considerações de ordem prática. Não concordamos com o titulo da edição brasileira porque library Science em nossa língua é biblioteconomia. B r a d f o r d , S.C. Documentation. Op. cit., n." 9. Formado em química, o autor (1878-1948) deixou-se atrair pela documentação ao estudar na biblioteca do Science Museum, de Londres, no qual passou a trabalhar. Os ensaios reunidos Introdução à Biblioteconomia 15 neste volume são baseados na prática bibliotecária de um entusiasta da Clas sificação Decimal Universal e do Instituto Internacional de Bibliografia. BROADFIELD, A. Philosophy o f librarianship. London: Grafton, 1949. Quinze anos depois do 'apelo' de J. Periam Danton "por uma filosofia da bibliotecono mia" (ver adiante), este autor inglês publicou o primeiro livro sobre a matéria. COBLANS, Herbert. Librarianship and documentation, an inlernational perspective. London: A. Deutsch, 1974. Doutor em físico-química e bibliotecário o autor foi, durante dez anos, diretor do serviço de informação científica da Orga nização Européia de Pesquisa Nuclear (CERN) em Genebra. Como consultor da Unesco, projetou vários serviços informatizados de documentação, como o INIS em Viena e o AGR1S em Roma. Obra muito importante, pela visão internacional do autor. CURRÁS, Emilia. Lns ciências de la documentación: bibliotecología, archivologia, do cumentación, infonnación. Barcelona: Mitre, 1982. DANTON, J. Periam. Plea for a philosophy of librarianship. Libran/ Quarterly, Chicago, v. 4, n. 4, p. 527-551, Oct. 1934. Professor da Graduate Library School da University of Chicago, já referida no comentário ao livro de Pierce Butler (vide supra), o autorfoi quem primeiro falou em filosofia da biblio teconomia, embora reconheça que em trabalhos anteriores possamos vis lumbrar uma abordagem filosófica da matéria. Ele cita as obras de Pierce Butler e S.R. Ranganathan (ver adiante). ESCARPIT, Robert. Théorie généralc de Tinformation et de la communication. Paris: Hachette, 1976. Obra indispensável pela abordagem humanística de assun tos geralmente estudados sob o aspecto estritamente tecnicista. Recomen damos especialmente os capítulos 8 — L'information et ic document (p. 118-145) — e 9 — Les problòmes documentaires (p. 146-164). ESTIVALS, Robert. La bibliologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1987 (Que sais-je? 2374). O que escrevemos de Escarpit pode ser dito de Estivais e de sua ampla e lúcida visão de assuntos técnicos. Esta é uma síntese ma gistral das idéias do autor, expostas em obras anteriores, algumas já difí ceis de encontrar. f e d e r a ç ã o INTERNACIONAL DF. DOCUMENTAÇÃO. Gnide de la Fédération Interna tionale de Documentation. La Haye, 1955. GATES, Jean Key. Introdnction to librarianship. New York: McGraw-Hill, 1968. 2nd ed. 1976. Em três capítulos a autora oferece uma história das bibliote cas, fala da biblioteconomia como profissão e indica as categorias de bibli otecas e de serviços por elas prestados. HAYES, Robert M. The history of library and information Science: a commenta- ry. Journal o f Library History, v. 20, n. 2, p. 173-178, Spring 1985. Comenta as comunicações apresentadas à mesa-redonda sobre história da biblioteco nomia promovida pela American Library Associationpor W. Boyd Rayward, H. Curtis Wright e Francis L. Miksa (ver pelos nomes destes autores). HOUAISS, Antônio. Elementos de bibliologia. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1967. Quase meio século depois da publicação do Traité de docu mentation de Paul Otlet (ver adiante), surge em nossa língua o segundo tra 16 Edson Nery da Fonseca tado sobre a matéria. O título é modesto para a importância tratadística da obra, escrita por um dos mais vigorosos ensaístas brasileiros e ensinando tudo a respeito do livro: como pensá-lo, redigi-lo, ilustrá-lo, datilografá-lo, imprimi-lo, revisá-lo, citá-lo e referenciá-lo. KEMP, D. A. The nature ofknowleâge, an introdnction fo r librarians. London: Bin- gley; Hamden, Conn.: Linnet Books, 1976. LASSO DE la V ega, Javier. Manual de biblioteconomia. Madrid: Mayfc, 1952. O capítulo inicial sobre a biblioteconomia é, ainda hoje, de grande interesse. -------, Bibliotecário y documentalista, una fricción y un problema. Revista de Archivos, Bibliotecas y Museos, Madrid, v. 60, n. 2, p. 451-476, jul./dez. 1954. O melhor estudo sobre as relações da biblioteconomia com a documenta ção. Por nossa iniciativa foi traduzido e publicado no Brasil: Bibliotecário e documentalista: uma divergência e um problema. Trad. de Lygia N. Fernan des. Revista do Serviço Público, Rio de Janeiro, v. 86, n. 3, p. 137-155, mar. 1960. -------. Manual de documentación. Barcelona: Labor, 1969. LÓPEZ YEPES, José. Teoria de la documentación. Pamplona: Universidad de Na- varra, 1978. MIKSA, Francis L. Machlup's categories of knowledge as a framework for viewing library and information Science history. Journal o f Library History, v. 20, n. 2, p. 157-172, Spring 1985. MUKHERJEE, A.K. Librarianship, its philosophy and history. Bombay: Asia Pu- blishing House, 1966. Considerando a biblioteconomia como ciência social, o autor destaca suas funções de ensino, pesquisa e recreação. Também são analisadas as relações da biblioteconomia com a história, as ciências bási cas, as ciências sociais, a educação, a literatura, a ética e a psicologia. O último capítulo é um comentário das cinco leis de Ranganathan (ver adiante). NlTECKl, Joseph Z. Metaphors of librarianship: a suggestion for a metaphysical model. Journal o f Library History, v. 14, n. 1, p. 21-42, Winter 1979. -------. The concept of information-knowledge continuum: implications for li brarianship. Journal o f Library History, v. 20, n. 4, p. 387-407, Fali 1985. ORTEGA Y GASSET, José. Misión dei bibliotecário. Revista de Occidente, Madrid, mayo, 1935. Também nas Actas y trabajos dei li Congreso Internacional de Bibli otecas y Bibliografia. Madrid: Librería de Julián Barbazán, s. d., p. 100-122. Obras completas. Madrid: Espasa-Calpe, 1943, v. 2, p. 1297-1322. El libro de las misiones. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina, 1940, p. 11-50. Misión dei bibliotecário y otros ensayos afines. Madrid: Revista de Occidente, 1962, p. 59-98. Ed. brasileira: Missão do bibliotecário. Trad. e posfácio de Antonio Agenor Briquet de Lemos. Brasília: Briquet de Lemos / Livros, 2006. Amais profunda reflexão sobre "o livro como conflito" e o bibliotecário "como um filtro que se interpõe entre a torrente de livros e o homem". Só um filósofo poderia fazê-la e um ensaísta literário escrevê-la. Ortega era as duas coisas. Ele previu o advento do computador e sua aplicação nas bibliotecas ao falar de "uma nova técnica bibliográfica, de um automatismo rigoroso". Sobre este ensaio existe sugestiva interpretação do professor H.J. de Vleeschauwer, da University of South África: Méditation sur un discours. Pretória: Université Introdução à Biblioteconomia 17 de 1'Afrique du Sud, 1961 (Mousaion, 45). Ver, ainda, sobre o mesmo en- saio as pagnias que lhe dedica José López Yepes em Teoria de ia documenta- cion (vide referencia supra), p. 75-78. ° ™ ' PauI' l Yf úé de documentation; le livre sur 1c livre; théorie et pratique Bruxelies: Editiones Mundaneum, 1934. Obra ao mesmo tempo teórica e pratica, como indica o subtítulo, o tratado de Otiet, além de notável para a época, ainda hoje pode ser lido com proveito. Pioneiro na formulação de vanos conceitos, como o de documento amplamente considerado e o de bibliometna, do qual autores de língua inglesa quiseram se apropriar. Ver a proposito, nosso artigo: Bibliografia estatística e bibliometria: uma reivin- dc Pnorióades. Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 5- —. Documentos e documentação. Trad. de Francisco Martins Dias Filho. Rio e Janeiro: Departamento Administrativo do Serviço Público, 1947. 31 p. (Publicação avulsa n.'* 254), Scparata da Revista do Serviço Público, Rio de Í ! r !T ' T i ' T \ ? \ 28; 31' mar- 1946; v- 2' n- p- 43-49, abr. 1946. Síntese magistral do Traite de documentation, este discurso no Congresso da Docu- mentaçao Universal (Paris, 1937) desenvolve o conceito amplo de documen- o. Merece a mais ampla divulgação, sendo sua leitura indispensável à com- preensao do relacionamento da biblioteconomia com a documentação Ranganatnan, S.R. Tive laius oflibranj science. Delhi: University of Delhi 1931 2nd ed. Bombay: Asia Pubüshing House, 1963. Parecendo insistir sobre o obvio o autor indiano formado na Inglaterra toca em pontos importantíssi mos da biblioteconomia moderna. Eis as cinco leis: Livros são para uso; Cada leitor seu livro; Cada livro seu leitor; Poupe o tempo do leitor; Biblio teca e um organismo em crescimento. A primeira lei aponta para o livro como um meio e nao como tendo um fim em si mesmo; a segunda para a seleção de acordo com o perfil do leitor; a terceira para a importância da divulgação do livro, antecipando a estética da recepção; a quarta para o hvie acesso as estantes, o serviço de referência e a simplificação dos proces sos técnicos; a quinta lei decorre da explosão bibliográfica que exige atua- hzaçao das coleçoes e previsão do crescimento da área ocupada pela biblioteca . 1 reface to library Science. Delhi: University of Delhi 1949 RAWSKi Conrad H. (ed.) Tozvard a theonj oflibrarianship; papers in honor ofjesse Hauk Shera. Metuchen: Scarecrow, 1973. Obra coletiva de múltiplo e perma- nente interesse, inclui na parte li os seguintes textos de interesse para uma ílosofia da biblioteconomia: The interdisciplinarity of librarianship (Conrad ÍÍVRiâ ST1. /P‘ 6:? 46; The nature of Information Science (B.C. Vickery),p. 147-168 The contribution of classification to a theory of librarianship (D J Foskett), p. 169-186. FV J IÍAYWARD, W Boyd. Library and information Science: an historical perspecti ve. Journal o f Library History, v. 20, n. 2, p. 120-136, Spring 1985 ROBREDO, Jaime; Cunha, Murilo Bastos da. Documentação de hoje e de amanha- urna abordagem informatizada da biblioteconomia e dos sistemas de informação 2 ed. rev. e ampi. Brasília: Edição dos Autores, 1986. Nova edição: Robredo, 18 Edson Nery da Fonseca Jaime. Documentação de hoje e de amanhã: uma abordagem revisitada e contempo rânea da ciência da informação e de suas aplicações biblioteconômicas, documentá rias, arquívísticas e museológicas. 4. ed. Brasília : Edição do Autor, 2005. SARACEVIC, Tefko (ed.) Introduction to information science. New York: R.R. Bowker, 1970. SHERA, Jesse H.; EGAN, Margaret E. Exame do estado atual da biblioteconomia eda documentação. In: Bradford, S.C. Documentação. Op. cit., n." 9, p. 15-60. ____ . Introduction to library science; basic elements o f library Service. Littleton, CO: Libraries Unlimited, 1976. Uma das melhores, senão a melhor introdução à biblioteconomia, este livro de Jesse Shera é altamente estimulante. Como o tratado de Otiet, esta é uma obra ao mesmo tempo teórica e prática, sendo a biblioteconomia do título completada pelo serviço bibliotecário do subtítu lo. A abordagem histórica do primeiro capítulo se alonga na visão socioló gica do segundo. Vem a seguir um capítulo sobre livros e outro sobre bibli otecas, este de autoria de La Vahn Overmyer. No capítulo quinto o autor faz uma objetiva análise do relacionamento entre a biblioteconomia, a docu mentação e a ciência da informação. O capítulo sexto é dedicado à organi zação institucional e bibliográfica da biblioteconomia, e o sétimo ao ensino e à pesquisa. O último capítulo, dedicado ao planejamento nacional de ser viços de biblioteca e de informação, é de autoria de Margaret Anderson. -------. Librarianship, philosophy of. In: ALA world encyclopedia o f library and in formation Services. Chicago: American Library Association, 1980, p. 314-317. THOMPSON, James. Library power; a neto philosophy oflibrarianship. London: Bin- gley, 1974. A abordagem do autor é realmente nova, além de aliciante, A começar pelos títulos dos 12 capítulos curtos: "Imagem", "Contrapartida", "Elite", "Estrutura", "Atividades", "Sociedade", "Educação", "Cultura", "In fluência", "Compromisso", "Futuro", "Conclusão". Dentre os bibliotecári os ingleses e norte-americanos, Thompson é o primeiro que cita Ortega y Gasset através da tradução ao inglês de Misión dei bibliotecário: The mission of the librarian, Antioch Revieiu, v. 21,1961. Também cita muito seu patrício e predecessor A, Broadfield (ver supra). Leitura imprescindível! -------. A history o f the principies o f librarianship. London: Bingley, 1977. Com a mesma originalidade com que escreveu uma nova filosofia da biblioteconomia, apresenta o autor uma história dos 17 princípios que sumaria no último capítulo: 1) as bibliotecas são criadas pela sociedade; 2) as bibliotecas são conservadas pela sociedade; 3) as bibliotecas existem para armazenagem e disseminação do conhecimento; 4) as bibliotecas são centros de poder (co nhecimento é poder); 5) as bibliotecas são para todos; 6) as bibliotecas de vem crescer; 7) uma bibliotceca nacional deve reunir toda a iiteratura naci onal com as obras mais representativas de outras literaturas; 8) cada livro deve ser utilizado: 9) um bibliotecário deve ter boa formação intelectual; 10) um bibliotecário é um educador; 11) o papel do bibliotecário só pode ser importante quando integrado no sistema social e político predominante; 12) o bibliotecário necessita de treinamento e/ou formação profissional; 13) é dever do bibliotecário aumentar o acervo de sua biblioteca; 14) uma bibli- Introdução À Biblioteconomia 19 oteca deve ser organizada de acordo com normas, oferecendo uma lista do que contém: 15) desde que bibliotecas são armazéns do conhecimento, elas deveríam ser organizadas por assuntos; 16) a conveniência prática deveria determinar como os assuntos são agrupados numa biblioteca; 17) uma bi blioteca deve ter um catálogo por assuntos. UNESCO. Unisist: informe dei estúdio sobre la posibilidad de estnblecer un sistema mundial de infonnación científica. Montevideo: Oficina de Ciências de Ia Unes- co para América Latina, 1971. -------. National Information System (NATIS): objectivesfor nationnl and international action. Paris, 1974, URQUHART, Donald. The principies o f librarianship. Metuchen: Scarecrow, 1981. Tendo organizado e dirigido a National Lending Library for Science and Technology, o autor transforma sua importante experiência em princípios, incluindo sua passagem pela biblioteca do Science Museum. O primeiro desses princípios — as bibliotecas são para os usuários — é quase o mesmo estabelecido por Ranganathan na primeira de suas cinco leis da biblioteco nomia: os livros são para uso. Mas Urquhart não fala em Ranganathan, citando abundantemente trabalhos de sua própria autoria. Parece Descar tes no Discurso do método, fazendo tabula rasa de tudo o que se escreveu antes dele. Trata-se, entretanto, de uma obra que deve ser lida, por ser fruto daquele "saber só de experiência feito" a que se refere Camões. Tem obser vações interessantes, como a de que "no library is an island" [biblioteca alguma é uma ilha], título, aliás, do penúltimo capítulo, O autor esqueceu de esclarecer que apenas parafraseou o verso "no man is an island" [ho mem algum é uma ilha] de seu eminente patrício John Donne (1573-1631). VLEESCHAUWER, H.J. de. Ambiguitics in thepresent-dai/ librar\/. Pretória: Univer- sity ofSotuh África, 1960 (Mousaion, 36). . Library Science as a science. Pretória: University of South África, 1960 (Mousaion, 37-40). . The fundamental library phenomenon o f our time. Pretória: University of South África, 1964-1965 (Mousaion, 77-78). As obras do autor se caracteri zam pela predominância da teoria; são ensaios densamente filosóficos, nos quais não encontramos uma referência de ordem prática. As poucas cita ções de outros autores não são devidamente referenciadas. São, entretanto, importantes contribuições a uma filosofia da biblioteconomia, Wright, H. Curtis. Of mirrors, monkeys, and apostles. Journal o f Library His- tory, v. 13, n. 4, p. 388-407, Fali 1978. . Shera as a bridge between librarianship and information Science Oo cit., n." 20. ' ZAHER, Célia Ribeiro. Introdução à documentação. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Edi ção da Autora, 1968, 20 Edson Nery da Fonseca 1 Tout, nu monde, existe pour aboutir à itn livre. Stcphane Mallarmé. Le livre, instrument spirituel. Revue Btnnchc, 1895. (Repro duzido em suas Oeuvrcs completes. Paris, Callimard, 1945, p. 378.) 1.1 A palavra livro 1.1.1 Tanto em línguas neolatinas como nas anglo-saxônicas a etimologia da palavra livro indica o material com que se fabri cava o papel na Antiguidade, isto é, a entrecasca de certos vege tais que, transformada em pasta, adquire a forma laminada. Li vro em português, libro em espanhol e italiano, livre em francês têm a raiz latina liber, librí; book em inglês e Buch em alemão têm a raiz grega biblos e biblíon. Ensinam os lexicógrafos que a pala vra livro data, em nossa língua, do século Xiu. 1.1.2 Em conseqüência dessa etimologia, a palavra livro é de finida pelos dicionários como reunião de cadernos de papel con tendo um texto manuscrito ou impresso. Prefiro a boutade de Fernando Pessoa: no poema Liberdade ele disse que "livros são papéis pintados com tinta".1 A definição está de acordo com o vitalismo antiintelectualista e whitmaniano do poeta. 1.1.3 A palavra livro também é definida — definição mais apropriada —• como obra científica, literária ou artística; e ainda como parte desta obra (por exemplo, 'segundo livro da Eneida'). Os dicionários consignam também palavras derivadas de livro, como,por exemplo, os depreciativos livreco, livretc, livrório, livro- xada, bem como palavras compostas pela adjetivação de livro, como, por exemplo, livro falado ou falante (do inglês talking book), Introdução à Biblioteconomia 21 sendo como tal conhecidos, entre bibliotecários, os textos grava dos em discos fonográficos e em fitas magnctofônicas, para uso de deficientes visuais, pessoas hospitalizadas etc., tanto quanto por qualquer apreciador da voz dos poetas e dos grandes intér pretes. 1.1.4 Recorde-se ainda que a palavra livro é usada às vezes em sentido figurado, podendo ser citada, como exemplo, a ex pressão livro dn vida: " suposto livro em que está escrita a duração da vida de cada um", como a define Antenor Nascentes, em seu Tesouro da fraseologia brasileira.2 É neste sentido que a expressão aparece tanto no Velho como no Novo Testamento. Alguns exem plos: "Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e abriram-se livros. Também foi aberto outro livro, o da vida" (Apocalipse 20:12); "O vencedor se trajará com vestes bran cas e eu jamais apagarei seu nome do livro da vida" (Apocalipse 3: 5); "Entrarão somente os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro" (Apocalipse 21: 27); também São Paulo se refere aos que o ajudaram "na luta pelo evangelho, em companhia de Clemente e dos demais auxiliadores meus, cujos nomes estão no livro da vida" (Filipenses 4: 3). Ainda a propósito da expressão do livro da vida, vale a pena citar o comentário dos editores de A Bíblia de Jerusalém: "Os primeiros livros abertos contêm as ações boas ou más dos homens; o livro da vida contém os nomes dos predestinados".3 1.1.5 Também registra Nascentes a expressão livro do destino: "suposto livro em que se imaginam escritos todos os aconteci mentos que estão por vir". E acrescenta frases pitorescas, como abrir o livro sobre alguém — o mesmo que "soltar-lhe uma des compostura" — falar como um livro — que é "usar de palavras esmeradas e escolhidas — e isso é dos livros, significando "é regu lar, não oferece dúvidas".4 1.1.6 Para uma relação exaustiva de epítetos ou adjuntos ter minativos de que se faz acompanhar a palavra livro, consulte-se a obra de Antônio Houaiss Elementos de bibliologia;5 título modes to demais para um trabalho que só tem um símile em qualquer língua: o Traité de documentation, do belga Paul Otlet.6 22 Edson Nery da Fonseca 1.2 O livro como "forma de vida humana" 1.2.1 O livro que nos interessa estudar nesta obra não é o ar tefato de papel impresso das definições que acabamos de expor. Por isso, não apreciamos ahistória desse artefato — como surgiu e evoluiu até seu aspecto atual — mesmo porque essa história é objeto de outra disciplina do currículo de biblioteconomia. Inte ressa-nos, isto sim, o livro como "forma de vida humana", se gundo Ortega y Gasset: "tremenda realidade humana", como es creveu ainda o grande ensaísta espanhol.7 1.2.2 Recordo ter encontrado na Casa do Livro de Brasília — simpática livraria do casal Noemi (infelizmente já falecida) e Wil son Hargreaves, onde tive tantas alegrias bibliográficas — um volume bem-encadernado, em cuja sobrecapa está impresso este título enigmático: The nothing book.8 Comprei-o justamente para entreter-me com meus alunos sobre a "realidade humana" de que fala Ortega. Porque apenas a sobrecapa está impressa: na sólida encadernação, com guardas cor-de-rosa e no miolo ima culadamente branco, nada foi escrito; e só quando o abrimos se desvenda o enigma do título: é um livro de mentira, o livro de nada, como se diz na gíria de pessoas inócuas: "fulano não é de nada". 1.2.3 A rigor, The nothing book não é um livro, ou melhor, ain- , da não é um livro. Poderá sê-lo, se alguém escrever em suas pá- ginas uma obra científica, literária ou artística. Só então ele esta rá de acordo com a sabedoria soerática: livros são "dizeres escri- ■_ tos". A definição está no Fedro, um dos mais interessantes diálo gos de Platão, considerado como legítima continuação do Ban- j quetef E Ortega a enriqueceu de comentários em Misión ácl bibli otecario.'0 1.2.4 Definidos os livros como "dizeres escritos", Sócrates ensina Fedro a distinguir o verdadeiro do falso livro. O verda deiro é aquele cujo autor tem algo de novo a revelar. O discurso de Lísias, que tanto empolgara o jovem Fedro, devia ser despre zado por sua esterilidade: por não conter em si aquelas "semen tes que produzem novas sementes em outras almas". 1.2.5 Enunciada há vinte e três séculos, esta definição de li Introdução À Biblioteconomia 23 vro aponta para uma relação que parece nova: a do autor com o leitor. Para que exista livro, é indispensável que haja "dizeres escritos", que esses dizeres sejam;epifânicos-(como queria Joyce, que redescobriu esta palavra teológica) e enriqueçam os leitores. O livro é um dos veículos de comunicação e, como é sabido, no processo comunicativo o receptor da mensagem é tão importan te quanto seu emissor. Como observa Gaétan Picon, senão é para outrem que a obra é escrita, ela é "inseparável desse outro e a ele se entrega".11 Por isso existe hoje toda uma corrente de teoria literária em torno da estética da recepção. 1.3 O livro como conflito 1.3.1 Mais de uma vez recorro a Ortega y Gasset, agora inti tulando esta parte do primeiro capítulo com um dos subtítulos de seu ensaio-conferência Misión dei bibliotecário. Se os livros, como os definia Platão, são dizeres escritos que, uma vez lidos, se transformam em novos livros ad infinitum, podemos falar, sem hipérbole, em explosão bibliográfico, tão assustadora quanto a ex plosão demográfica, da qual é, ao mesmo tempo, origem e conse- qüência. Já tratamos do assunto em posfácio da coletânea Biblio- metria: teoria e prática, do qual reproduzimos os seguintes pará grafos.12 1.3.2 Sabe-se que a primeira explosão demográfica — ocorri da no período paleolítico, quando a população mundial era de 5 milhões — foi provocada pela generalizada utilização de instru mentos. Com um desses instrumentos o homem primitivo gra vou em pedra seus primeiros dizeres escritos: antecedentes re motíssimos do livro. 1.3.3 Devo esclarecer que, ao apontar os pictogramas como antecedentes do livro, estou falando em sentido amplo, porque a escrita — representação da linguagem verbal articulada — so mente surgiria muito depois: por volta de 3 100 a.C. E o alfabeto aparecería mais de mil anos depois, isto é, por volta de 1700 e 1500 a.C. Mas em sentido amplo — repita-se — podemos consi derar como escrita "qualquer sistema semiótico de caráter visu al e espacial", como ensina Antônio Houaiss.13 24 Edson Ncry da Fonseca 1.3.4 A segunda explosão demográfica — ocorrida quando, em oito mil anos, a população mundial multiplicou-se por cem — foi provocada pela revolução agrícola, denominação proposta por Vere Gordon Childepara substituir o termo neolítico. O aper feiçoamento da cerâmica é uma das peculiaridades tecnológicas desse período. E ninguém ignora a importância das placas de barro cozido como antecedentes do pergaminho, do papiro e do papel. 1.3.5 Finalmente, o desenvolvimento da ciência e da tecnolo gia, principalmente na área biomédica, aumentando a média de vida, fez a população mundial crescer assustadoramente, pre- vendo-se que, no ano 2013, poderá atingir sete bilhões. E o de- senvqlvimento científico e tecnológico é, ao mesmo tempo, cau sa e efeito da explosão bibliográfica, agora caracterizada menos em termos de livros do que de outros veículos textuais: artigos de periódicos, comunicações a congressos, relatórios de pesqui sas etc. 1.3.6 Em seu monumental Traité de documentation, de 1934, Paul Otlet estimou em 12 milhões o número de livros publicados no mundo após a invenção da imprensa de caracteres móveis (meados do século XV). A estimativa atual é de 50 milhões, por que houve outras revoluções além da que Gutenberg desenca deou. Um ano após a publicação do Traité de documentation, isto é, em 1935,
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