Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
INTRODUÇÃO Irremediavelmente marcada pela sociedade em que ela se insere, a ciência é portadora de todos os seus traços e reflete todas as suas contradições, tan- to em sua organização interna quanto em suas apli- cações. Portanto, não há "crise da ciência", mas somente aspectos específicos à ciência da crise so- cial geral. Apresentação do livro dirigido por A. Jaubert e Lévy-Leblond, Autocritique de la science _ ( 1973). O que é a ciênciaT A questão parece banal. As respos- tas, .. porém, são complexas e difíceis. Talvez a ciência nem possa-ser definida. Em geral, é mais conceituada do que pro- - priamente definida. Porque "definir" um conceito consiste em formular um problema e em mostrar as condições que o tor- naram formulável. No entanto, para os cientistas em geral, a verdadeira definição de um conceito não é feita em termos de "propriedades", mas de "operações" efetivas. Mesmo assim, definições não faltam. Para o grande público, ciência é um - conjunto de conhecimentos "puros" ou "aplicados", produzi- dos por métodos rigorosos, comprovados_. e objetivos, fazendo- nos captar a realidade de um modo distinto da maneira como a filosofia, a arte, a política ou a mística a percebem. Segundo essa concepção, os contornos da ciência são mal definidos. O protótipo do conhecimento científico permanece a física, em torno da qual se ordenam a matemática e as disciplinas bioló- gicas. A esse conjunto, opõem-se os conhecimentos aplicados e técnicos, bem como as disciplinas chamadas de "humanas". A verdadeira ciência seria um conhecimento independente dos sistemas sociais e econômicos. Seria um conhecimento que, ba- seando-se no modelo fornecido pela física, se impõe corno uma espécie de ideal absoluto. Mas há outras definições: umas são extremamente am- plas e vagas, a ponto de identificarem "ciência" com "espe- culação"~ outras são demasiadamente restritivas, a ponto de 9 excluírem do domínio propriamente científico, senão todas, pe- lo menos boa parte das disciplinas humanas. Algumas defini- ções podem ser classificadas como "idealistas", na medida em que insistem em reduzir a atividade científica à busca desinte- ressada do conhecimento ou da verdade; outras apresentam- se como "realistas", chegando ao ponto de identifjcarem pura e simplesmente ciência e tecnologia. Uma coisa 110s parece _ certa: não existe definição objetiva, nem muito menos neutra, daquilo que é ou não a ciência. Esta tanto pode ser uma pro- cura metódica do saber, quanto um modo de interpretar a rea- lidade; tanto pode ser uma instituição, com seus grupos de pressão, seus preconceitos, suas recompensas oficiais, quanto um metiê subordinado a instâncias administrativas, políticas ou ideológicas; tanto uma aventura intelectual conduzindo a um conhecimento teórico (pesquisa),- quanto um saber rea- lizado ou tecnicizado. . - -- Se perguntarmos, por outro lado, sobre o modo de fun- · cionamento da ciência, sobre seu papel social, sobre sua ma- neira de explicar os fenômenos e de compreender o homem no mundo, perceberemos facilmênte que as condições reais em que ·são produzidos os conhecimentos objetivos e racionaliza- dos, estão banhadas por uma inegável atmosfera sócio~políti~ co-<:ultural. :S esse enquadramento sócio-histórico, fazendo da ciência um pmduto humano, nosso produto, que Ieva_9s co- nhecimentos objetivos a fazerem apelo, quer queiram .quer não, a pressupostos teóricos, filosóficos, ideológicos oa axiológicos nem sempre explicitados. Em outros termos,. não há ciência "pura", "autônQma': .e "neutra", com~ se fosse possível gozar do privilégio de não se sabe que "imaculada concepção". Es- pontaneamente, somos levados a crer que o cientista é um in- divíduo cujo saber é inteiramente racional e objetivo, isento não somente das perturbações da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais. Contudo, se o examinarmos em sua atividade real, em suas condições concretas de traba- lho, constataremos que a ''Razão" científica não é imutável. Ela muda. E histórica. Suas normas não têm garantia alguma de invariância. Tampouco foram ditadas por alguma divfnda~ de imune ao tempo e às injunções da mudança. Trata-se de normas historicamente condicionadas. Enquanto tais, evoluem 10 e se alteram. Isso significa que, em matéria de ciência, não há objetividade absoluta. Também o cientista jamais pode dizer- se neutro, a não ser por ingenuidade ou por uma concepção mítica do que seja a ciência. A objetividade que podemos re- conhecer-lhe, não pode ser concebida a partir do modelo de um conhecimento reflexo. A imagem do mundo que as ciên- cias elaboram, de forma alguma pode ser confundida com uma espécie de instantâneo ~otográfico da . realidade tal como ela é· percebida. De uma forma ou de outra, ela é sempre uma in- terpretação. Se há objetividaae na ciência, é no sentido em que o discurso científico não engaja, pelo menos diretamente, a si- tuação existencial do cientista. A imagem que dele temos é a de um indivíduo ao abrigo das ideologias, dos desvios passio- nais e das tomadas de posição subjetivas ou valorativas. No entanto, trata-se apenas de uma imagem. Procuraremos desco- brir o que se oculta por detrás ·dela. Não se pode ignorar que '~-- ciên~i.a é ao mesmo_ tempo um poder material e espiri_tl:Jal. Não é essa procura desinteressa- da de uma verdade absoluta, racional e universal, independeo- . te do tempo e do espaço, que se distinguiria dos outros modos de conhecimento pela objetividade de seus teoremas, pela uni- versalidade de suas leis e pela racionalidade de seus resultados experimentais, cuidadosamente estabelecidos e verificados, e, portanto, -:-:-eficazes . .A produção -científica se . faz .numa soci~ dade determinada que condiciona seus objetivos, seus agentes e seu modo de funcionamento. ~-P~Qfu~~am~~te. marcada pe- la culturà em ·que se insere. Carrega em si os traços da socie- dade que a engendra, reflete suas contradições, tanto em sua organização interna quanto em suas aplicações. Talvez não se- ja exagero dizermos que o "poder do conhecimento" está trans- formando-se rapidamente em "conhecimento do poder''. Nesse sentido, a ciência contemporânea, herdeira experimental das religiões "alienantes", está impondo-se, através da "inteligên- . cia'', da "racionalidade", da "objetividade" e das "técnicas" de seus especialistas, como uma espécie de compensação da "estupidez" humana. Ela "canta" em cifras e em cálculos a grandeza do gênero humano, como se pudesse representar o ·· so~atório organizado e racionalizado de nossas ignorâncias e 11 alienações. Veremos como essa mentalidade conduz facilmen- te à mistificação. Em sua realidade concreta, a ciência é um poder exerci- do sobre as coisas e sobre os seres vivos. Esse poder torna-se tanto mais opressor quanto mais coincide com um saber-fazer, que apela, como a seu alterego, a tudo quanto não sabe pro- duzir: o poder de saber o que fazer. Somos levados a crer que o mundo esteja inflacionado de ciência, que ele padece de uma "doença" científica irreversível ou incurável. : Desde Descartes, ~.século XVII, a .ciência vem ensinando-nos a dominar a na- H~r.e~a. Parece ter conseguido seu intento com muito êxito, pois já trata de dominar o próprio homem. Todavia, ainda não conseguiu ensinar-nos como dqminar a dcminação. E quem acredita que ela, um dia, possa vir a desempenhar esse papel, está vivendo, no mínimo, uma ilusão. Ainda nos encontramos longe de pod~r "finalizar" o êxito científico-técnico por . um projeto capaz ·de restaurar,. para além d os saberes regionais e ' objetivados, um conhecimento ao mesmo tempo objetivante e de totalidade. Evidentemente, a _realização de semelhante pro- jeto não pode ser obra de um indivíduo, nem tampouco o re- sultado miraculoso de uma superteoria. Talvez seja o trabalho constante de um sem-número de práticas, de onde surgirãõ no- vas coerências, ou de outro tipo de teorização. Nesse domínio, é preciso ·· fazer uma escolha,correr riscos e adotar atitudes críticas. Porquê, sem tais posturas, a ciência poderá esmagar- nos sob o peso de seus sucessos e de seus benefícios. Atualmente, a atividade científica defronta-se com sérios desafios internos e externos. De um ponto .de vista coletivo, os descontentamentos sociais ligados à introdução de inúme- ras inovações tecnológicas (da poluição industrial aos horro- res . das guerras químicas e eletrônicas), estão levando a um questionamento da equivalência entre ciência e progresso, en- tre tecnologia e bem-estar social. As manifestações objetivas dessa crise de confiança aparecem na redução dos investimen- tos em pesquisas, no número crescente de cientistas e de téc- nicos que se vêem condenados ao desemprego, e na crescente tomada de consciência, por parte dos próprios cientistas, das condições sócio-culturais em que são realizados seus trabalhos. A lguns colocam em questlio a escolha das prioridades nas ·pes- 12 quisas, enquanto outros começam a fazer um crítica ideológi~ c a à prática social da ciência. Podemos compreender essa cri- se como. um desafio ao conceito de "racionalidade científica" e aos sistemas de valores culturais, intelectuais, sociais e éticos que se construíram sobre esse conceito. Essa questão será e~~ clareei da a propósito da "ética do conhecimento objetivo". O que podemõs perguntar, desde já, é se não seria teme- rário entregar o homem às decisões constitutivas do saber científico. Poderia ele ser "dirigido" pela "ética do saber obje- · tivo"? Poderia ser "orientado'' por esse tipo de racionalidade? Não se trata de um "homem" ideal. Estamos falando desse homem real e concreto que somos nós; desse homem cujo pa- trimônio genético começa a ser manipulado; cujas bases bio- lógicas são condicionadas por tratamentos químicos; cujas ima- gens e .pulsões estão sendo entregues aos sortilégios das técni~ cas publicitárias e aos estratagemas dos condicionamentos de massa; cujas escolhas colet~as e o querer comum cada vez mais se transferem para as decisões de tecnocratas onipotentes; cujo ps.iquismo .consciente e inconsciente, individual e coleti~ vo, toma-se cada vez mais "controlado" pela ciência, pelo cálculo, pela positividade e pela racionalidade do saber cientí- fico; desse homem, enfim, que já começa a tomar consciência de qt,~e, doravante, pesa sobre ele a ameaça constante de um Apocalipse nuclear, cuja realidade catastrófica .~o constitui ai@.a objeto de refle~ãõ:· Uma reflexão, · mesmo sumária, sobre-c ponto de partida .dos saberes científicos constituídos, e cúlminando em técnicas bastante eficazes, leva-nos facilmente a perceber que as ciên- cias, em sua vertigem crescente de objetividade e de raciona- lidade, conduzem aqueles que as praticam a um esquecimen- to progressivo e rápido dos pontos de partida e das decisões constitutivas de seu saber. Ora, uma retomada de consç_iência dessas "condições de origem" irá permitir-nos conjugar uma reflexão do homem aos saberes sobrt o homem. Ao biólogo "redutor", por exemplo, que declara: "o homem é apenas um sistema regulado de funções biológicas", poderíamos dar a se- guinte resposta: "considerado do ponto de vista biológico, e segundo o_ tipo de enfoque caracterizando tal epistemologia biológica, ele aparece como um sistema regulado de funções 13 biológicas". E da nova consciência desse "considerado do pon- to de vista biológico" que surge a tarefa propriamente refle- xiva. Trata-se de uma tarefa cultural ainda irrealizada. Será levada a efeito pacientemente no interior de cada disciplina científica. Em seguida, nas pesquisas interdisciplinares. O ob- jetivo é atingir uma reflexão sobre as decisões constitutivas dos diversos saberes, quer dizer, retomar reflexivamente os resul- tados obtidos, as ligações descobertas, as inteligibilidades es- truturais, no interior de um saber reflexivo coerente do homem para ele mesmo. A esse respeito, impõem-se duas observa- ções. a) f. dessa forma que as ciências humanas, por exemplo - cada uma segundo sua abstração metodológica própria -, poderão cooperar para que o llomem redescubra uma nova consciência .d~ si ou reelabore uma nova antropologia reflexi- va, não mats,tonstituída por introspecção ou por metodologia .... transcendental, mas por um coptacto direto com as ciências humanas, num diálogo interdisciplinar constante. ~ preciso que se parta das positividades elaboradas pelas ciências, para que se efetue uma retomada reflexiva da5Juilo que a razão cogni- tiva não cessa de se dar, em vários níveis conceituais, e de objetivar em saberes parciais. Ao ingressar num diálogo vivo, tr!lnqüilo ou polêmico, com as disciplinas que, de um modo ou de outro, tomam o homem como objeto de estuào, a an- tropologia reflexiva, num total respeito à autonomia de cada disciplina, e aproveitando-se das certezas já adquiridas, forne- cerá ao homem atual uma nova consciência de si, dessa vez apta, como deseja Jacques Monod, a suprimir "a alienação do homem ~oderno em relação à cultura científica". b) A segunda observação consiste em responder à seguin- te questão: podemos fazer do conhecimento objetivo, como preconiza Monod, o único valor, a única ética digna do ho- mem atual? Evidentemente, o conhecimento objetivo pode bas- tar ao biólogo, ao psicólogo, etc., mas seria capaz de bl\Star ao homem? Talvez o problema seja mais bem elucidado se concebermos uma passagem do "saber sobre o homem" a um "saber-querer do homem", este, sim, capaz de dirigir sua ação. Porqu~ _ _p_ão _é na _ ciência, mas numa antropologia reflexiva, 14 que iremos encontrar o discurso do homem sobre ele mesmo. Só esse discurso pode revelar, como originária e constitutiva do homem, essa dialética do "saber" e do "querer", do fato e do valor, do ser e do dever-ser. Ela é esse lugar onde aqui- lo que foi conquistado à maneira do ''fato", faz valer seus direitos em revestir-se da modalidade do "valor" e do "sen- tido". Com esse "saber-querer", a biologia, a psicologia, a so- ciologia, etc., não somente podem, mas devem coop_erar, sob o controle do pensamento livre, para a definição de uma ética da ciência. Por isso, não podemos admitir que o conhe- cimento objetivo possa constituir a única finalidade, o único valor. Porque, não sendo capaz de fundar uma ética, torna- se incapaz de constituir o valor supremo do homem. Os _yalo- res não podem surgir de um saber sobre o homem, mas de um querer do homem, ser inacabado -e sempre aberto às · pos- sibilidades futuras. Depois dessas rápidas considerações introdutórias, con- vém apresentarmos sucintamente, não somente o conteúdo, mas as intenções do presente trabalho. Este não pretende ser outra coisa senão uma coletânea de elementos e de instrumentos in- trodutórios a uma reflexão mais. aprofundada e crítica por par- te dos eventuais leitores de um livro de iniciação a certos pro- blemas de ordem epistemológica. Trata~se, pois, de um con- junto de textos preparaàos e utilizados pelo autor em seus cur- sos de epistemologia na PUC do Rio de Janeiro. Aos textos originais foram feitas as necessárias alterações para fins de pu- blicação. Esses textos foram · escritos com o objetivo preciso de responder a preocupações bem determinadas, relativas a um contexto de ensino, melhor ainda, de seminários de estudos. Razão pela qual conservam sua linguagem por vezes polêmica, atendendo ao objetivo tanto de estimular a reflexão dos alu- nos sobre alguns pressupostos filosófiços presentes e atuantes nos processos de formação, de elaboração e de estruturação dos conhecimentos fornecidos pelas ciências humanas, quan- to de proporcionar-lhes certas bases eonceituais para a com~ preensão desse "fundo de saber" ("solo" ou "horizonte~· epis- temológicos) sobre o qual se constroem certas teorias da ra- 15 cioMlidade cóntemporânea. Portanto, trata-se de textos que, na origem, não estavam destinados a serem congregados. Don- de a ausência de uma ordenação lógica rigorosa, cada um po- dendo sertomado como um todo. No entanto, todos se inscre- vem dentro de uma proJ>lemática fundamental: a das relações entre a ciência objetiva e alguns de seus pressupostos, isto é, entre a corrente de racíoMlidade que se exprime no movimen- to da industrialização. e da planificação, e o dinamismo de na- tureza ética, em interação -com a racionalização, embora autô- nomo em relação a ela. Assim, a unidade dos vários capítulos do presente volu- me só pode ser a de uma perspectiva, não a de uma compo- sição orgânica e logicamente concatenada. Portanto, não se de- ve esperar dele uma análise ou uma reflexão cerradas ou sis- temáticas sobre-o modo .como as ciências se articulam com as grandes dimensões da aventura humana. Os capítulos que o compõem sãOl apenas enfo([Uit!s parciais e ocasiotraL:s, ainda bas-- tante incoati~os, de certos aspectos desse grande problema. São propostos apenas a titulo de ensaios provisórios, sugerindo al- ~mas pistas de reflexão. Eles • tentam, sem excessiva preocu- pação de rigor metodológico, exprimir uma preocupação, mui- to mais do que estabelecer conclusões ou eixos seguros de pen- samento. Razão pela qual não quis sobrecarregá-los com cita- ções em -demasia, remetendo o leitQI_ à piblíografia fundamen- tal sobre o assunto. No entanto, seus capítulos obedecem a um certo -no condutor, religando a ciência objetiva a uma ética do ·saber objetivo, passando pelos pressupostos axiológicos das ciências humanas e por um esboço de crítica ao princípio da "neutralidade científica". O primeiro capítulo é uma tentativa de colocar o proble- ma da o.bjetividade científica e de detectar os principais pres- supostos axiológicos presentes no - processo de constituição e de desenvolvimento das ciências humanas. O segundo visa ·a enfatizar o caráter cada vez mais praxeológico ou "intervencio- nista" dessas disciplinas. O terceiro tem por objetivo elucidar os fundamentos epistemológicos responsáveis pela atitude cien- tificista diante de todas as formas de conhecimento da reali- dade. O quarto é uma tentativa de mostrar que a "ciência ob- jetiva", apesar de n!io conseguir fundar uma "ética do conhe- 16 cimento", não pode prescindir de uma ética que o funde. No quarto, tento situar o problema que hoje se coloca sobre a possibi!idade cada vez mais crescente de se construir uma epis- temologia científica, afirmando-se como "ciência da ciência" ou como "organização racionatt' da atividade científica. Os capítulos 3 e 4 visam a mostrar, entre outras coisas, que o progresso dos conhecimentos não aparece mais, em nos- sos dias, como uma condição necessária e suficie_nte para a prosperidade humana e, menos ainda, como a garantia de um melhor bem-estar social e da felicidade dos indivíduos. O que se pode dizer é que tudo parece recolocado em questão: os meios de que a pesquisa científica dispõe, e, sobretudo, os fins que os justificam. Em outras palavras, a pesquisa fundamental ou teórica não pode ser mais vista como a condição neces~ária e suficiente do processo de inovação e de melhoria das condi- ções humanas de vida. Ao invocarem os "objetivos sociais" de suas pesquisas, os cientistas não têm mais o. direito de esta- rem seguros de que podem cumprir aquilo que vêm prometendo desde o século XVIII: a ciência para o bem da humanidade. F inalmente, achei por bem incluir um capítulo sobre a peda- gogia ·das ciências humanas. Batizei-o com o nome de ''O Papel do Educador da Inteligência". Poderá ser tomado à guisa de apêndice, pois só indiretamente está em linha de con- tinuidade com· os demais capítulos. Por conseguinte, que ·o leitor, ao analisar criticamente este pequeno livro, não veja nele uma argumentação objetiva e sistemática, acabada ou dogmática, isenta de falhas e de toda ilusão. As formas de pensamento e de expressão utilizadas não estão isentas de pressuposições e de partis pri3 por vezes injustificados. Razão pela qual ficaria muito grato em receber críticas e sugestões. Estou consciente rias lacunas e da não- isenção, bem como do fato de nem sempre ter visto, pelo menos explicitamente, a contingência, a relatividade e as limi- tações de certas afirmações. Ademai!i, estou consciente de não ter emprendido uma reflexão exaustiva sobre os temas pro- postos à discussão, nem tampouco de ter apreendido de modo verdadeiro todos os problemas centrais referentes às relações da ciência com seus pressupostos axiol6gícos. Minha preocupa- ção fundamental, repito, foi a de expressar uma intençao: in- 17 tenção de tentar comprender, de situar e de captar a lógica interna de uma tensão que se inscreve no cerne da atividade científica. Sobretudo, intenção de assumir essa tensão, de modo ao mesmo tempo vivido e refletido, não na perspectiva fala- ciosa de propor reconciliações indevidas, mas na esperança de abrir um caminho capaz_ de conduzir a uma reflexão mais aprofundada e mais bem embasada. Aquilo que se deixa entre· ver, através da evocação dos problemas analisados, é um momento de grande simplificação, em que não haverá mais nem enigma das ciências, nem questão de ética, mas o suspense de uma palavra unificada, dessa vez capaz de engendrar a verdade. 18- I OBJETIVIDADE CIENTÍfiCA E PRESSUPOSTOS AXIOLOGICOS Toda realidade social- é constituída ao mesmo tempo de fatos materiais, de fatos intelectuais e afetivos que estruturam, pot sua vez, a consciência do pesquisador e que implicam, naturalmente, valorizações. Donde parece-nos impossível um estudo rigorosa, mente objetivo da..Sociedade. L. GOLDMANN Tudo se passa como se o empirismo ·radt- cal propusesse, como ideal, ao sociólogo, anular-se enquanto tal. A sociologia seria me- nos vulnerável às tentações do empirismo caso lhe fosse lembrado, com Poincaré, que "os fatos não falam". Talvez a desgraça das ciên- cias humanas esteja no fato de lidarem com um objeto que fala. P. BOURDIEU 1 . Problemas epistemol6gicos Falar da objetividade científica, é colocar ·um problema epistemoió"gico. Problema epistemológico, e não simplesmente metodológico. Porque aquilo que comumente chamamos de · ''metoãologia", não passa de um domínio da· interrogação epis- temológica. Assim, não podemos fazer um estudo crítico dos princípios das diversas ciências, de seu valor e de seu alcance, sem nos interrogarmos ao mesmo tempo sobre a nálureza e ·o valor dos procedimentos pelos quais elas se constroem e che- gam a um conhecimento objetivo. Ademais, a reflexão episte- mológica surge sempre co~Q. uma imposição das ~<crises" de$ta oll-daquela disciplina científica. E essas crises são ·o resultado de uma lacuna dos métodos anteriores, que deverão ser ultra- passados pela .invenção de novos métodos. Por outro lado, o método não pode ser estudado independentemente das pesqui- sas em que ele é empregado, a não ser que se faça um estudo abstrato, morto e incapaz de fecundar o espírito. Aliás, como já dizia Comte, em seu Cours de philosophie positilAe, tudo o que podemos dizer de real sobre o método, quando considerado abstratamente, reduz-se a generalidades vagas e sem qualquer i11fluência sobre o regime intelectual. Os procedimentos {ógi.cos ou metodológicos não podem ser satisfatoriamente explicados independentemente de suas aplicaçõe~. Por sua vez, o emprego dos métodos pressupõe a sua posse. Por conseguinte, falar da objetividade científica, é falar de um problema epistemológico. Trata-se de saber, no fundo, 21 qual a significação do termo ciência. A epistemologia atual reco- nhece que ~'a" ciência não existe mais. O que existe .sãos "as" ciências. Talvez fosse mais adequado falar de práticas cienti- ficas. Porque falar de "a" ciência, é adotar, no ponto de par .. tida, uma tese idealista e abstrata. E quando falamos de "sig- nificação" da ciência, queremos fa!ar da ciência enquanto prá- tfca humana. Nesse septido, a objetividade da ciência significa, antes de tudo, a int~nção subjetiva do cientista, que se carac- teriza pela busca do conhecimento. Em segundolugar, significa as intenções implícitas ou explícitas daqueles que elaboram a "política" científica ou que, direta ou indiretamente, orientam a pesquisa, procurando estabelecer os critérios de sua valida· ção. Assim compreendida, e em nosso contexto, a significação da objetividade científica, ou simplesmente da ciência, refere-se ao creicimenJo racionalizado da produção. Evidentemente, a função desse crescimento não é de ordem científica nem, por- tanto, objetiya. . O que a reflexão epistemológica atual mostra é cjue aquilo que comumente chamamos de "metodologia das ciências'', não passa de uma disciplina meram~nte instrumental. Em outros ter- mos, a metodoJogia não tem um fim em· si mesma. Ela é apenas um meio para atingir determinado fim. Os métodos são instru~ mentos que possibilitam ao cientista alçançar determinado ob- jetivo cognitivo. Hoje em di~, há uma tendência metodologi- zante que, de tanto discutir sobre os métodos, não consegue fazer uma análise dos conteúdos nem tampouco explicar os fenômenos. Donde o caráter abstrato de certos metodólogos que se deixam levar e envolver por uma teia de tecnicismos formais, apresentando-se como formalistas sem imaginação criadora. Ora. o estudo da realidade humana (educacional, psicológica, social~ etc.) deveria primar sobre as questões puramente metodoló- gicas. Aliás, é pelos problemas metodológicos que poderemos determinar a mediocridade ou a seriedade dos pesquisadores. Nesse domínio, é bastante comum a confusão entre "meto- dologia" e "técnicas" de pesquisa. Exemplifiquemos com o caso da educação. Ningu6m coloca em d6vida que o conceito de pesquw «lucacional tenha a pretensão de ser um trabalho cien- tífico sobre a realidade educacional. Todavia, para atingirmos essa realidade, há dois caminhos possíveis: a) o primeiro con- 22 siste na formulação de técnicas de coleta de dados: se uma pesquisa educacional nada nos "informa", certamente "defor- ma". Vale dizer: o estudo da realidade educacional supõe um contacto com ela, não podendo permanecer no domínio da pura especulação. Situam-se aqui ·os progressos realizados no campo da observação controlada, das escalas de medida, da estatístka, dos levantamentos, das análises de conteúdo, etc. b) O segundo caminho se refere à preocupação propriamente teó- rica em torno dos dados: a empiria, por si mesma, não asse- gura caráter científico à pesquisa; esta tem necessidade de um quadro teórico de contextuação. Evidentemente, essa perspectiva nega a filosofia empirista que acredita na evidência dos fatos, como se a realidade devesse impor-se ao sujeito. O vetor episte- mológico iria do real à razão, e nâo do racional ao real. Con- tudo, isso não quer dizer que a preocupação teórica tenha por finalidade desprezar a preoéupação empírica. Pelo contrário, a pesquisa.. científica deve integrar ambas as perspectivas, muito embora a perspectiva teórica tenha o primado -epistemológico de poder construir seus objetos científicos. Nessas coP.dições, a distinção entre "metodologia" e "téc- nicas" de pesquisa não passa de uma divisão artificial . do trabalho em torno do problema 6nico: pesquisá educacional, por exemplo. Essa divisão do trabalho especifica um nível em- pírico ··e um nível teórico. Ela dá a entender que, para um estudo da realidade educacional, a coleta estatística dos dados só adquire significaçãu- real quando for construída ou elabo- rada por um enquadramento teórico. :.N.ã.o. J~m !Il~ito sentido epistemológico a distinção entre "metodologia empírica,. ( cha4 mada d~ "técnicas") e "metodologia teórica" (chamada de método) . Trata-se de uma distinção cuja desvantagem reside no dualismo teoria-empiria, que ela apresenta ou sugere. Muitos consideram a preocupação teórica como uma fuga da reali· dade. Mas a diferenciação teoria-empiria não passa de resquí- cio saudosista de um dualismo já ultrapassado. Se a métodologia é válida e necessária para a formação dos pesquisadores em educação, parece-nos que o é muito mais enquanto uma discipUna instrumental, disciplina de indagação e de questionamento sobre a maneira como o pesquisador deve conhecer seu objeto. Por isso, não compreendemos metodo~gia 23 alguma que não se faça acompanhar de um fundo epistemoló- gico. ~ nesse sentido que gostaria de propor algumas conside- rações epistemológicas sobre o conteúdo da metodologia educa- cional, mas que poderão estender-se às demais disciplinas hu- manas. A. Em primeiro lugar, a atitude epistemológica, eminen- temente crítica, ·obriga todos aqueles que elaboram métodos educacionais a se questionarem sobre a cientificidade ou. obje- tividade de sua própria disciplina. Ademais, leva-os a se inter- rogarem criticamente sobre o valor científico de seus produtos intelectuais. Porque é a reflexão epistemológica que fornecerá as condições reais e as condições de possibilidade, permitin- do limitar ou demarcar aquilo que, na ordem âo saber, é ati- Vidade científica propriamente dita. Esta, em princípio, deve ser diversa de t~a atividade do- senso comum, da percepção ime,. diata, das acividades ideológicas ou especulativas: .a atividade científica deve estar isenta e · liberta de todas as aderências subjetivas e . "opinativas". Ess~ problema da demarcação colo- ca problemas estritamente epistemol9gicos: relação entre sujeito e objeto de conhecimento, objetividade, subjetividade, objeto construído, conceito, teoria, categorias de análise, etc. Sem o suporte de uma epistemologia, o metodólogo cai fatalmente num tipo de- atividade mecânica e pouco inteligente, porque acrílica. Nesse domínio, falar de epistemologia, é falar da neces- - sidade de fazer uma sociologia do conhecimento e, até mesmo, uma sociologia da ciência. Em nossos dias, há todo um esforço de relativizar a ciência. A demarcação científica variou bas- tante através dos tempos. Atualmente, tomou-se praticamente impossível sustentar a existência de uma "verdade" científica. Um pouco de epistemologia histórica revela que aquilo que já foi considerado <iumamente científico, foi posteriormente ridicula- rizado. Por outro lado, se tomamos nosso exemplo da educação, _ não podemos negar a existência de várias "escolas", com teo- rias contrárias ou antagônicas. Isso vem mostrar claramente que a atividade científica não pode ser considerada como um templo sagrado. Ela é uma atividade humana e social como qual· 24 quer outra. Está impregnada de ideologias, de juízos de valor, de argumentos de autoridade, de dogmatismos ingênuos, che- oando mesmo a ser desenvolvida em instituições fechadas, ver- jareiras "seitas" científicas, com suas linguagens próprias, para uão dizer "dialetos". A educação, enquanto disciplina com pre- tensões científicas, ilustra bem o que acabamos de dizer. Na verdade, ela é uma disciplina que até hoje procura definir-se, autodeterminar-se, estabelecer seu estatuto de cientificidade, quer no interior das demais "ciências humanas", quer por oposição às influências da filosofia. Na prática, porém, ela não passa de um amontoado de "escolas", com um objeto de investigação bastante diversificado em múltiplas práticas educativas. Há o educaáor que pratica pesquisa educacional unicamente no nível metodológico, estatístico e de planejamento; há o educador que é herdeiro da filosofia educacional e humanista, produtor de altas teorias, mas sem caráter de operacionalidade; há os edu- cadores críticos que se julgam os avaliadores dos -sistemas edu- cacionais, não tendo dificuldades em propor soluções a curto ou a longo prazo para seus males. No entanto, ao nos deparar- mos com as " teorias" dos vários "pedagogos", somos quase que forçados a reconhecer que os profissionais da · educação se relevam profundamente incapazes de delimitar ou demarcar aquilo que constitui propriamente a realidade. educativa ou aquilo em que consiste a educação como disciplina científica que pretende ser. Não podemos ser ingênuos a ponto · de ignorarmos que todo sistema educacionalcarrega as marcas da sociedade que o ins- taura. Tampouco podemos desconhecer que ele participa, direta ou indiretamente, do problema de dominação próprio a todo sistema social. ,As "ciências" da educação, à medida que ten- tam eliminar as ideologias, para se tornarem científicas, são prodtaoras de ideologias· e de sistemas valorativos. E a razão é a seguinte: nenhuma ciência humana pode ter a pretensão de ser uma determinação epistemológica pré-dada, supra-histórica e invariá~el. Além dos conteúdos buscados na teoria do conheci- mento, a demarcação real de qualquer ciência humana · só po- derá ser levada a efeito no interior da sociedade em que ela é praticada. Em outros termos, aquilo que é científico nesta ou naquela disciplina, não é um parâmetro feito uma vez por 25 todas, atemporal, mas uma realidade essencialmente histórica, levando em seu bojo as marcas contínuas do conflito e das mutações sócio-culturais. ~ a essa realidade que chamamos de processualidade epis- tel7UJlógica das ciências. Nesse sentido, toda ciência é proces- - sual. Devemos passar da idéia de um conhecimentcrestado à idéia de um conhecimento-processo. E a epistemologia outra coisa não é senão essa atitude reflexiva e critica que permite submeter a prática científica a um exame ·que, diferentemente das teorias clássicas do conhecimento, se aplica não mais à ciência verdadeira - de que deveríamos estabelecer as condi- ções de possibilidade e de coerência lógica, bem como seus títulos de legitimidade ou de validação - , mas à ciência em vias de se fazer, em suas condições reais e concretas de reali- zação, dentro de determinado contexto sócio-cultural. Assim. uma das tarefas essenciais da epistemologia é a de revelar a f!!QÇJ?S~uolit)ade dm ciências. Em outros termos, a função 'âa epistemologia consiste, entre outras atribuições, em mostrar que à atividade científica é um produto humano e, por isso, uma realidade só~io-liístórica. Por definição, a atividade .científica encontra-se em estado de constante inacabamento. Ela está sempre fazendo-se e construindo-se. Jamais atinge um estado definitivo. Uma produção científica acabada é um absurdo epis- temológico. Deixaria de ser científica para converter-se em dÕg- ma imutável. E como todo dogma, seria objeto de crença, e não de saber racional..A idéia bacheiardiana de .. corte eoistemõ- lógico" revela que não podemos conceber uma fase ·final na produção científica. Ademais, mostra que toda teoria científica é ap~nas uma hipótese provisória à espera de outra mais fe- cunda: O critério de verdade de uma teoria, longe de estar em~ sua certeza, está em sua superação num futuro mais ou menos próximo ou distante. · A processualidade da ciência poderá ser mais bem enten- dida se levarmos em consideração certos elementos epistemoló- gicos, expostos a seguir. a) Se a ci~ncia é histórica, a ''verdade" cientifica não pode deixar de ser um conceito também histórico. A realiza- 26 ção de uma "verdade" só poderá ser uma aproximação maior ou menor dela. · . b) Sendo um produto humano, a ciência participa das vicissitudes da ação social. Não há ciência absolutamente isenta de valorações e de ideologias. Não existe a "imaculada concep- ção" da ciência. _ c) A definição daquilo que é científico não decorre de parâmetros ou critérios prévios e invariantes que servem de medida absoluta para qualquer atividade científica. Ela depende dos controles intersubjetivos, freqüentemente apresentados como o resultado de uma "descentração" relativamente ao ponto de vista próprio, em direção ao "sujeito epistêmico". ·-d) O que mais entrava o progresso científico são as posições dogmáticas. O erro, tão vituperado em lógica for- mal, significa certa -carência dentro de uma teoria. Contudo, Bachelard mostrou que o erro é um elemento essencial da - teoria, tendo sentido positivo. Teoria sem erro é teoria dogmá- tica. O "primado teórico do erro" significa: a objetividade será mais clara e distinta na medida em que aparece sobre um fundo de erros; o valor de uma idéia objetiva depende da superação das ilusões do conhecimento imediato; a objetivação procede de uma eliminação dos erros subjetivos e, psicologicamente. vale como consciência dessa eliminação . . e) Na realidade, tudo é objeto de discussão. O critério mais seguro de objetividade é a disposiçãõ crítica do cientista, pois não pode haver um critério interno que seja exaustivo e perenemente válido. A formulação de um critério absoluto de verdade é um absurdo. Donde a impossibilidade de conceber a existência de um conceito universal, a menos que seja imposto autoritariamente. A atividade científica baseia-se no campo fér- til do pluralismo · das çoncepções, e não nu~a conêepção-mo- delo, parâmetro universal de objetividade. · B. Um dos conteúdos mais importantes da epistemolo- gia consiste no questionamento da construção do objeto cientí- fico. Se admitimos que "o ponto de vista cria o objeto" (Saus- sure), devemos reconhecer que a epistemologia demonstra o caráter meramente instrumental da metodologia para a pes- quisa científica. E essa afirmação epistemológica, segundo a 27 qual o objéto da ciência é "construído", significa que, no pro- cesso do conhecimento, vamos do racional ao real, e não, como pensam os empiristas, do real ao racional. Todavia, essa posi- ção não significa uma recaída no idealismo clássico que con- feria um primado à idéia sobre o concreto. O objeto real existe independentemente de nosso conhecimei!tO, quer pensemos nele quer não. Contudo, a ciência não se interessa pelo objeto real em seu estado bruto. O objeto real só se torna objeto cientí- fic.o quando for retirado de seu estado "natural", vale dizer, quando for "construído", elaborado, pensado por uma teoria, ou seja, quando .for enquadrado por um ponto de vista teórico. Em outras palavras, o simples "acontecer" só atinge o nível do conhecimento científico quando for reconstruído teoricamen- te. E competi!_ à epistemologia revelar como a ciência constrói seus objetos. ~ de sua alçada mostrar por que os cientistas dão preferênci~ a este ou àquele tema em detrimento de outros, bem coriiofmostrar quais as categorias de análise_ (instrumental conceitual de uma teoria) que são empregadas. Ora, se definimos uma· teoria como um sistema de con- ceitos desenvolvidos sob fotma coerente e consistente, deve- mas reconhecer que tais conceitos aparecem estratificados· na forma idealizada de uma pirâmide: alguns são mais essenciais do que outros; entre os essenciais, alguns são mais fundamen- tais. Todo cientista gira em torno de certas _ç_ategorias de aná- - lise. E a epistemologia-· leva-nos a refletir .sobre tais categorias. Leva-nos ainda a questionar os pontos- de partida infundados. os axiomas gratuitos. as seletividades arbritárias e as prefe- rênc~as E~ssoais decorrent~s .de opções valorativas. Ademais, leva-nos a identificar as aderências ideológicas teóricas, os va- zios analíticos, e a situar o cientistas dentro do processo de pro- dução científica geral. Enfim, a epistemologia lança o desafio ·de comprovação concreta daquilo que é tido como científico: se pensaqtos fazer ciência, devemos saber fundamentar essa crença; se acreditamos que outras pessoas não fazem ciência, precisamos comprovar tal negação. E é por isso que a episte- mologia pode ser considerada como uma verdadeira "catarse intelectual": assim como a descoberta do fundo inconsciente de nossos problemas psíquicos conduz a um alívio psicológico, da mesm_!l forma uma depuração de nossa atividade científica;- até 28 c;uas raízes inconscientes, poderá reverter-se numa maior fh- ~eza teórica, numa definição mais clara de nossos enfoques, numa clarificação decisiva de nossos instrumentos conceituais c .·numa atitude mais modesta e aberta face à complexidade Jesconcertante · do esforço científico. 2 . Neutralidalle científica e juízos de valor O problema epistemológico da objetividade científica co--loca, quer queira quer não, a questão da neutralidade dos cien- tistas relativamente a todo e qualquer tipo de valoração e de engajamentos pessoais. Talvez não haja muito sentido epistemo- lógico em querermos deCidir, de modo claro e definitivo, algo sobre · esse problema extremamente co~pplexo e confuso. Não obstante, trata-se de um problema epistemelógico bastante rele- vante, sobretudo porque a objetividade sempre foi o ideal epis- temológico de toda disciplina c~m pretensões a passar do estádio pré-científico ao estádio propriamente científico, isto é, à aut(l- determinaçlio epistemol6gica no campo do saber. Já-se escreveu muito sobre essa questão. Não vamos aqui fazer uma síntese de tudo o que já se disse a respeito. Tampouco é nossa intenção dar uma contribuição original. Queremos apenas focalizar al- ·guns elementos relevantes,-passíveis de elucidar melhor a pro- blemática da objetividade científica ~ de seus pressupostos axio- Jógicos ou valorativos. No processo de objetivaçao, a presença dos juízos de valor não é uma simples anomalia epistemológica, mas um dos elementos constitutivos do acesso ao saber obje- tivo. Este continua sendo o ideal das ciências humanas. Epist~ mologicamente falando, toda ciência constr6i seu objeto, ela- bora seus dados e seus fatos. O fato puro não existe. Todo fato 6 construído. E a objetividade sempre se perde em pres- supostos que estão longe de ser objetivos. · O problema da objetividade nas ciências humanas, tal como Max Weber o colocou, situou-se no clima em que se debatia a metodologia -das ciências humanas no ,fim do século XIX. Com efeito, em 1883, com a publicação da Introdução · às Ci~nclas do Espfrito de Dilthey, a questão metodológica que se colocava era bastante complexa. Tratava-se de saber se havia uma dlfe- 29 . rença entre as ciências da natureza e as ciências humanas. Se eram distintas, qual era a diferença entre essas duas categorias de ciências? Trabalhavam sobre o mesmo objeto ou sobre um objeto diferente? De um lado, havia a realidade física, deixando- se determinar quo.ntitativamente e submetendo-se a leis escritas; do outro, havia a realidade psíquica, de caráter qualitativo e singular. Teria · sentido esse dualismo, ou será que o objeto seria o mesmo em ambos os setores de conhecimento, emb.ora considerado sob pontos de vista- distintos, de sorte que a distinção entre os dois tipos de ciência seria apenas metodoló- gica? Caso admitamos uma distinção entre os dois campos do saber, qual é o método próprio das ciências humanas. tendo em vista que. para a maioria dos teóricos dessa época, o mé- todo das ciências naturais escapava à discussão, seus procedi- mentos estando como que definitivamente estabelecidos? Por conseguinte, uàtava-se, em ge~al, de descobrir o mesnio rigor · metodológico para as ciências humanas. Uns acreditavam poder encontrar na psicologia a disciplina capaz de desempenhar o mesmo papel que a mecânica &sempenhava nas ciências na- turais. Outros insisti am na impossibilidade de eliminar a ética e os juízos de valor. Outros, ainda, procuravam um meio de investigação original, próprio às ciências humanas, fuHdado na distinçªo entre explicar e compreender: as ciências naturais e;;plicariam .seus fenômenos, as ciências humanas compreende- rÜJm os seus. Por sua vez, a noção de compreensão dava mar- gem a controvérsias: seria ela de natureza puramente intuitiva ou, pelo contrário, exigiria, para ser válida, ser controlada pe- los processos da explicação causal? Essas questões -suscit aram outras: quais são as disciplinas que pertencem às ciências hu- mana? Será que diversos aspectos dessas disciplinas não se deixariam apreender ~los procedimentos naturalistas, e outros por procedjmentos interpretativos? Assim, o problema epistemológico central consistia em determinar os limites e o alctmce dos conhecimentos fornecidos pelas ciências humanas. Esse problema revelava uma crise nas ciências humanas, dando inclusive lugar a uma intemperança crítica e dogmática que afastou os cientistas de seu verdadeiro objetivo epistemológico. Havia uma verdadeira epidemia_ meto- 30 dológica. Em quase todos os seus estudos, os cientistas sen- tiam a necessidade de acrescentar observações de ordem meto- dológica. Eles queriam, cada um para sua disciplina, afirmar o caráter de cientificidade de seu conhecimento. Para Weber, não se tratava, com o fim de chegar à objeti- l"idade nas ciências humanas. <ie impedir que os cientistas pro- pusessem soluções ou fizessem avaliações. J:: até mesmo fre- qüente -que aqueles que pretendem abster-se de qualquer juízQ de valor, são os primeiros a ser infiéis à sua resolução, quer porque se tornam vítimas de instintos, de simpatias e antipa- tias incontroladas, quer porque consideram como verdade cientí- fica a doutrina que triunfa no momento ou que tende a impor- se. E tudo ·1sso, como se a objetividade se deixasse decidir pelo domínio do mais forte sobre o mais fraco! No campo, per ex-emplo, da economia, a grande dificuldade consiste em discerni! quando uma proposiçác se origina da ciência econô- mica ou simplesmente da política econômica. Com efeito, con- siderada como ciência, a economia visa a explicar e a analisar a realidade econômica e, como tal, é "internacional", isto é, universal como toda ciência .. A~sim comprendida, ela está a ser~'-.... viço da verdade, seja porque estuda as condições objetivas da situação econômica de um país ou de uma época determinada, seja porque aprofunda o fenômeno econômico em si mesmo ou seu desenvolvimento . ..bistórico. A esse título, ·ela não pode t<Mnar-se profécia nem anunciar a manifestação de qualquer fim último. Dizer, por··exemplo, que a eco~omia deve favorecer a paz entre os homens, já é fazer um juízo de valor que nada tem a v~r com um enunciado científico. A política econômica. ao contrário, não pode pretender à universalidade. Ela deve ater-se ao particular, pois permanece ligada aos recursos dispo- níveis de um país determinado, dependendo das instituições e do regime de cada nação. E nesse contexto que se coloca o problema do valor da ciência. Para Weber, nenhum valor, nem mesmo o da ciência, pode ser compreendido empiricamente. O objetivo da ciência é a procura indefinida e o progresso do conhecimento por si mesmo. Seus resultados só são verdadeiros em virtude das nor- mas lógicas de nosso pensamento. Evidentemente, a ciência pode ser colocada a serviço de interesses econômicos, políticos, 31 médicos, técnicos e outros. Todavia, o valor de cada um desses fins é imposto de fora, não tendo justificação na própria ciên- cia. Ademais, do ponto de vista empírico, o valor da ciência "pura", entendida como pesquisa, permanece problemática e contestável. Ele pode ser combatido por motivos políticos ou religiosos: Contudo, o indivíduo que dá primazia ao llalor da vida sobre o valor do conhecimento, pode tornar·se adversário do conhecimento na medida em que o julga como uma ameaça à existência do homem. Inversamente, o negador da vida tam- bém pode opor-se à ciência, quer vendo nela uma manifestação sempre mais rica da vida, quer achando que ela pode aniqüi- Iar a vida. Nenhuma dessas atitudes é necessariamente con- traditória: a· glorificação e a depreciação da ciência supõem a adesão a valores. Portanto, nessas condições, a significação da ciência, para a cultura, bem como a significação da cultura, considérada -como nm crescimento de valor, não se deixaQ:t fundar cientificamente. Pelo contrário, são sempre pontos dé vista axiológicos e, por conse~inte, discutíveis. Assim, nossos juízos sobre a ciência e a cultura são juízos de seres civilizados e -que, como tais. estão familiarizados com uma escala de valores que outros homens podem rejeitar, sem por isso se tor- narem degradados ou inferiores. Todas essas posições são filosóficas e exprimem a intromissão do caráter inteligível na realidade empírica através do disface de · normas .éticas. _ Depois dessasconsiderações de ordem histórica; recolo- quemos o problema epistemológico da neutralidade científica: qual a relação entre as ciências humanas e os juízos de valor? No clima da sociologia alemã, onde o problema surgiu de modo mais explícito no início de nossos século, duas posições se defrontam: de um lado, situam-se os defensores da neutra- lidade científica; do outro, os partidários de um engajamento por parte dos cientistas. Os .. "11eutros" acham que os "engaja- dos" a~abam por envolver-se no sistema social vigente e por jysti_fic_ª-lo. Qs "engajados" acusam os "neutros'' de absen- teísino: quem ~a, consente; e o silêncio contra o regime é uma forma de justificá-lo. Em ambos os casos, há uma justificação do nacional-socialismo: uns prostituem as ciên- cias sociais por seu engajamento; outros as prostituem por sua neutralidade, que nada mais é do que uma forma de 32 oportunismo. f: nesse contexto que se situa o pensamento de Max Weber. Determinaremos, em primeiro lugar, as rea- ções entre a noção de "independência face aos valores" t Wertfreiheit) e a tentativa weberiana de dar um fundamento ~bjetivo às ciências sociais. Em seguida, mostraremos se essa noção ainda pode ser aplicada atualmente. Situaremos o pro- blema num plano meramente epistemológico, deixando de Lado toda referência explícita à obra histórica e sociológica de Weber. - A ) A independência face aos valores Segundo Weber, a independência face aos valores está vinculada ao seguinte fato: a ciência, em geral, _e as ciências sociais, em particular,. devem limitar-se a um papel puramente explicativo. Nesse sentido, não devem determinar as -modalidades do comportamento humano, nem tampouco devem definir nor- mas políticas, econômicas, morais ou outras. A exclusão dos juízos de valor constitui a condição externa da objetividade das ciências sociais. A condição interna está na possibilidade da explicação causal. Essas duas condições constituem as re- gras gerais do método científico. Segundo Weber, as ciências sociais, para serem objetivas, devem excluir os juízos de valor. Por outro lado, a C<?mprovação dos fatos j~ permite a de- dução de normas de comportamento, nem tampouco aprecia- ções referentes a essas normas. Porque não se pode deduzir um juízo de valor de um juizo fático. A segunda condição da objetividade consiste na possibilidade de explicação- causal: as ciências sociais devem estabelecer as relações existentes entre os fatos e determinar as condições que as tomam p<?ssíveis. Assim, segundo Weber, há uma distinção fundamental en- tre o conhecimento .. daq~ilo que _ê" e o conhecimento "daquilo que deve ser'". Uma colocação fundada núm · juízo de valor deve ser rejeitada, pois a tarefa das ciências experimentais não consiste em aferir normas e ideais obrigatórios para que deles decorram receitas para a prática .. Contudo, o fato de as ciênclas sociais excluírem os valores não -significa que não se relacio- nem com eles. Pelo -contrário, não somente podem tomar os 33 valores como· objeto de suas investigações, mas também uma de suas tarefas principais consiste em determinar as condições de sua realização. Elas podem atribuir um caráter normativo aos valores, isto é, determinar se um valor deve ou não ser considerado como regra de conduta ou como base de aprecia- ção. Mas elas podem e devem determinar os meios que permi- tem realizar os valores, bem como as conseqüências que deri- vam dessa realização e do emprego dos meios. Assim, o estudo das relações entre o meio e o fim, e o estudo entre a realização e as conseqüências convertem-se no fundamento de um exame crítico e técnico dos valores. Essa maneira de encarar o problema está manifestamente clara em "A Objetividade do Conhecimento nas Ciências So- ciais e nas Ciências Políticas" (Esrais sur la théorie de la scien- ce, Paris, 1965). Vejamos -as posições essenciais de Weber. 1 . "Toda análise reflexiva que diz respeito aos elementos últimos da átividade humana racional. está, antes de tudo, vinculada às categorias do 'fim' e dos 'meios' ( ... ) Aquilo que, antes de tudo, é imediatamente acessível ao exame científico, é a questão da conformidade dos meios quando é dado ·o fim . Uma vez que estamos em condições de estabelecer de modo válido quais são os meios aptos ou não a conduzir ao objetivo que _ nQ~ representamos, também podemos, por esse caminho, aquilatar as chances de consegüTr uin fim determinado, com o auxílio de determinados meios colocados à nossa disposição. Portanto, dentro desse contexto, podemos criticar indiretamente a intenção como praticamente razoável ou não razoável, se- gundo as condições históricas". Estamos, aqui, diante de um dos problemas centrais: a separação dualista ·entre meio e fim. A demarcação do fim entra no domínio da decisão polí- tica, especificamente valorativa; por sua vez, a questão dos meios, e somente elas, torna-se acessível ao domínio científico. 2. Também podem ser determinadas, além da realização eventual do fim visado, "as conseqüêncim que o emprego dos meios indispensáveis poderia acarretar", tendo em vista o con- texto global dos acontecimentos. Por conseguinte. a descrição das conseqüências !ie coloca fora do engajamento relativamente .. ao fim em questão, uma vez que este não se toma objeto de 34 escolha decisória, mas é tomado como um dado pressuposto. Ademais, é preciso que seja levado em conta o conhecimento da significação daquilo que se quer: os fi1ts são conhecidos e escolhidos de acordo com o contexto e a significação que se pretende. Em outros termos, os fins são escolhidos quando se pode indicar e desenvolv~r, de modo logicamente correto. quais são as "idéias" que estão, ou poderiam estar, subjacentes ao fim concreto. Porque "uma das tarefas mais importantes de toda ciência da vida cultural humana consiste em abrir a com- preensão intelectual às "idéias" pelas quais os homens lutaram ou continuam lutando". E Weber mostra que isso não ultra- passa os limites da ciência. Esta deve buscar "a ordem pen- sante da realidade empírica" e os meios que servem para a explicitação desses valores mentais. 3 . Weber crê na possibilidade de estudar os próprios íuízos de valor como objeto científico. O sujeito pode estudar cientificamente os valores sem se comprometer com eles, quer dizer, permanecendo isento de suas ·contaniinações. Por exem- plo, pode estudar a legitimidade ideológica de certo regime po- lítico, do ponto de vista de um valor vigente, sem no entanto sentir·se obrigado a tomar posição valorativa pró ou contra tal regime. E o que faz a sociologia do conhecimento, quando estuda o fundo social que dá origem e contexto a certo valor ou a certa· idéia valorativa. Por exemplo, a problemática social subjacente aQ. valor segundo o qual a mulher deve trabalh?r na sociedade industrial, é uma questão que depende do querer e da consciência pessoais, e não do saber científico. De um modo geral, "uma ciência empírica não pode ensinar a ninguém aquilo que ele deve fazer, mas somente aquilo que ele pode e, em cer- tas condições, aquilo que ele quer fazer". CQmo podemos notar, a distinçlo we~tiana entre meio e fim · é bastante nuançada. Ele reconhece que nossas cosmovi- sões pessoais costumam atuar ininterruptamente no domínio das ciências. A argumentação científica pode realmente ser distorcida por f".Ssas cosmovisões. Elas contribuem para avaliar diferentemente "o peso dos argumentos científicos, inclusive no esfera da descoberta das relações causais simples, segundo o resultado aumente ou diminua ·as possibilidades dos ideais pes· 35 soais". Contado, é bastante clara a postçao de Weber em favor da isenção dos valores nas ciências: só é científica a disciplina que proscreve a interferência dos juízos de valor. Todavia, a vida cultural sempre coloca o problema do sentido 4ue ela pode ter. Por isso, o juízo de valor sempre emerge ua argumentação científica. Mas Weber procura a todo custo, como um de.versagrado,- evitar que o juízo de valor seja tomado como s~ fosse um argumento científico. Chega mesmo a falar de um dever cientifico de procurar e atingir a verdade dcs f a-- tos. Essa verdade deve ser a mesma para todo mundo, indepen- dentemente do tempo e do espaço. Weber não esconde que ele mesmo é animado por dois juízos de valor que se convertem em dois deve!es para todo cientista: Primeiro dewr: o cientista social deve, "a cada instante, explicitar escrupulosamente à sua própria consciência e à <!e se.us leitores, quais são as medidas de valor que ser-: - vem pata medir a realidade, e das quais o juízo de valor é deduzido, ao invés de cultivar, como ocorre demasia- do freqüentemente, as iluSões em torno dos conflitos de ideais por uma combinação imprecisa de valores de na- tureza bastante diversa, tentando "contentar todo mun- do". Segundo devu: o cientista social deYe explicitar a si mes- mo e ao leitor aquilo sobre o que fala o pesqUisador; deve - - tornar claro onde e quando cessa a pesquisa do cientista e onde e quando o homem de vootaae se põe a falar; deve "indicar em que momento os argumentos se dirigem à razão e quando se dirigem aos sentimentos. A confu- sã-o permanente entre discussão científica dos fatos e ar- razoados valorativos é uma das particu1aridades mais freqüentes, mas também mais prejudiciais aos trabalhos de nossa disciplina. E é unicamente contra essa confusão que se dirigem nossas observações anteriores, e não con- tra o engajamento em favor de um ideal pessoal. Não há afinidade interna alguma entre ausência de doutrf.na e objetividade cientt!ica". Essa ~ltima afirmação tornou-se famosa: a neutralidade científica é vista como um valor, embora não seja colocada 36 neutramente. Weber fala constantemente de "dever científico" na busca da objetividade, apesar de reconhecer a impossibili- dade de uma total isenção do sujeito relativamente ao objeto. Nem por isso, ele deixa de postular uma atitude neutra, para que não seja subvertido aquilo que chama de "a ordem pen- sante" das ciências empíricas. A neutralidade é um postulado metodológico que, como qualquer postulado, depende de uma tomada de posição valorativa. E é justamente nesse ponto do "dever" que Weber é mais contestado, sobretudo por Marcuse, que vê nele uma espécie de Marx do capitalismo. Segundo Marcuse, Weber teria colo- cado a ciência à disposição da economia política e, conseqüen- lemente, inteiramente a serviço do sistema, uma vez que re- nunciou a discutir o próprio sistema, em cujo contexto apa- rece a questão de seus fins e de seus valores. Não podemos esquecer, no entant.Q,_ o momento histórico vivido por Weber: os marxistas queriam chegar à cátedra, e tentavam transfor- má-la em púlpito de pregação doutrinária. Weber considera- va essa pretensão uma derrocada de suas concepções científi· cas e a entrega- da ciência às mãos de "bandoleiros". Daí, sua reação violenta contra toda interferência; na ciência, dos sis- lernas valorativos e ideológicos. O que não quer dizer · uma tomada de ~sição anética, pois a atitude ética é até mais im- portante do que a ciência, simples constatação de fatos logi,. camente ordenados. Weber pretende apenas separar as duas instâncias: a ·· ciência, isenta dos valores, atingiria melhor os fatos, ao passo que o jÚízo de valor se colocaria fora das ques- tões científicas. Para estudar as relações entre os valores e a ciência, Weber utiliza a distinção introduzida por Rickert entre "juízos de valor" e "referência a valores". Nessa última noção está contido um princípio de seleção que possibilita. nas ciências sociais, a delimitação do campo das investigações segundo os casos específicos. Assim definida, a "referência aos valores" se confunde com o "ponto de vista'' em que nos situamos para proceder à investigação. A função metodológica dos va- lores consiste no fato de serem critéri~ de seleção chamados a determinar a orientação e o domínio das investigações cien- tífi_cas: E n·a referência aos· valores que se situa a "significa- 31 ção" dos processos que constituem o objeto das ciências so- ciais. Na origem dessas disciplinas estão sempre presentes pressupostas axialógicos, condicionados historicamente pelo contexto cultural em que surge a investigação científica. Tais pressupostos são "subjetivos, , pois constituem um ponto de partüia extracientífico, não derivando da investigação objetiva. No entanto, a influência das circunstâncias históricas e a pre- sença dos pressupostos axiológicos não impedem que as ciên- cias sociais -cumpram seu papel explicativo e, portanto, cientí- fico: as relações de fato podem ser determinadas objet.ivamen- te através da experiência e independentemente da adoção des- te ou daquele pressuposto axiológico. Em toda investigação científica, são inevitáveis os pressu- postos axiológicos. Contudo, o importante é que seu emprego deve estar submetido a certas regras. Píetro Rossi enumera três regras que seriam válidas para o conjunto das ciências sociais: - · 1 • os pressupostos axiológicos devem ser enunciados for- malmente, a fim de que fique bem claro que se trata de apreciações; 2. devem ser utilizados como hipóteses de trabalho e postos à prova no decorrer da ~nvestigação; 3 . devem converter-se em "modelos explicativos" que se- rão conservados ou afastados segundQ_a experiência (Presencia de -Max Weber, Talcot Parsons y otros, 1971 ). Evidentemente, embora sejaDf todas indispensâvels, essas regras não têm o mesmo valor, nem tampouco a mesma fun- ção. A primeira é puramente formal; é insuficiente, pois o fa- to de se admitir um pressuposto axiológico não garante que seja bem fundado, embora impeça que seja confundido com os fatos. A segunda se refere ao método e estabelece o cará- ter hipotético dos pressupostos axíológicos: hipóteses que po- derão ser refutadas ou confirmadas pela investigação científi- ca. A terceira determina a relação entre os pressupostos axio- lógicos e o processo explicativo, reconh~ndo que a referên- cia à experiência se toma decisiva _para a adoção ou a rejeição 38 de uma hipótese explicativa. Consideradas em conjunto, as tr~s regras conseguem dar nova forma à noção de "indepen- dência face aos valores" e estabelecem o "modo de emprego" Jos pressupostos axilógicos. Em suma, qual a função dessa rejeição dos juízos de va- lor nas ciências sociais? Ralf Dahrendorf mostrou recentemen- te que existem pelo menos seis pontos de contacto do cientis- la social com os juízos de valor. Em síntese, são os que se -:cguern: I . O primeiro ponto se refere à escolha do tema. Nessa escolha, entram em jogo juizos de valor re1ativos à importância do tema. Mas isso não tem nada a ver com os juizos implicados no referido tema. pois po- demos dar-lhe um tratamento "objêtivado", muito embora ele possa ser escolhido segundo preferências pessoais. 2. O segundo é a seletividade da abordagem: em nossa investigação, devemos conservar certos pontos de vis- ta. O contexto teórico escolhido para "!ratar" o te- ma já· contém elementos seletivos. Ao lançarmos uma hipótese, sempre lhe acrescentamos certos dados e procuramos a teoria que melhor possa confirmá-la. Ninguém lança ..uma hipótese na espe@nça de-rejei- tá-Ia. Aliás, é o= que também ocorre nas diScussões: escolhem~ no adversário os seus pontos fracos, pa- ra melhor refutá-los. Assim, ao analisar o capitalis- mo, Weber destacou demais a influência do calvinis- mo, dando pouquíssima importância às invenções téc- nicas. Até certo ponto, ajeitou os fatos à sua aborda- gem teórica. Saussure já dizia que "o ponto de vista cria o objeto." 3. O terceiro diz respeito à relação entre o objeto da so- ciologia e os valores, quer dizer, aos valores como objeto: todo comportamento humano está regulado por normas sociais, por- convenções, por regras de costume, de etiqueta ou de direito. 4. O quarto consiste no esforço que tende a apresentar os postulados práticos ou políticos corno hipóteses39 científicas. Trata-se do problema da desfiguração ideológica: tentativa de fazer passar por colocações científicas posições valorativas pessoais. A desfigu- ração ideológica aparece como a inoculação sub-rep- ticia de elementos espúrios na ciência. Exemplo: a partir do fato de estªr desaparecendo a família pa- triarcaJ, um cientista conservador pode concluir que a família está desaparecendo. A razão de tal juízo pseudocientífico é o pressuposto, aceito sem provas, · de que a família patriarcal é a única forma de famí- lia ou sua forma "natural". Também um cientista "li- beral" pode profetizar o fim da família, por ser in- capaz de elaborar uma tipologia das diferentes for- mas de família. Nos dois casos, trata-se de um dog- matismo injustificado. 5 . O quinto consiste em ·saber se o cientista é capaz de passar da teoria à prática. Trata-se da aplicação da ciê!icia à prática. Weber ensina que jamais se pode demonstrar que um modo de agir deriva necessaria- mente dos dados da investigação. O que se pode afir- mar é que, em certas condições, certas conseqüências são previstas; em outras condições, outras conseqüên- cias. Não se pode dizer definitivamente que tal so- lução prática é justa e esta outra é falsa. 6 . o último ponto se refere à funçáQ social do sociólo-- go. Trata-se de saber se é da sua alçada tomar deci- sões práticas. Seria justificável a distinção preconcei- tuosa entre o homem de ciência e o homem de ação? O que Weber não queria era a confusão. Mas acei- tava as tomadas de posição em favor dos valores como preparativos à ação. Como Durkheim, não jus- tificava o simples interesse teórico das ciências . Da- va-Jhe uma atenção especial a fim de melhor resol- ver os problemas práticos. B) Dicotomias Fato/Valor e Meio/Fim Do ponto de vista epistemológico, há uma dicotomia en- tre fato e valor, quer dizer, não ·há uma ponte de dedutibili- 40 Jade entre ambos: de um fato não se segue um valor; tam- 1,0uco de um valor se segue um fato. Do valor, por exemplo, ~c:gundo o qual a mulher deve trabalhar, não se deduz logica- fll\!nte que ela trabalhe de fato. E mesmo que seja um fato lJtiC ela tr~balha,, não se .P~e deduzir que deva trabal~ar. À primeira v1sta, ha uma dJVJsao estanque entre esses dms ele- mentos. Não obstante, na vida real, fato e valor não se disso- ciam. Segundo a terminologia weberiana, fato diz respeito àqui- lo que é, enquanto valor se refere àquilo que deve ser. Con- tudo, essa distinção não leva a uma demarcação radical en- tre algo puramente factual e algo puramente valorativo. Para alguns autores, um fato é um .fato; para outros, ele é prenhe de valor. E_ valor é tudo o que diz respeito à opção pessoal, ; 1 preferência subjetiva e- aos elementos volitivos - da pessoa. Enquanto fenômeno, o fat~ permanece exterior à pessoa. En- quantõ acontecimento valorativo, está ligado a_ela por um in- teresse. Nesse sentido, o fato não é neutro, pois, de algum modo, envolve a pessoa. Todo conhecimento, enquanto pro- cesso de apreensão de um objeto por um sujeito, inclui o tra- balho do sujeito sobre o objeto: lo sujeito seleciona o que lhe interessa na realidade. 'E. por isso-· que todo ·fá to· é de algum modo valorado. ·se não· é valorado, é porque não é conhecido, isto é, não despertou interesse no sujeito. E,ste só vê na reali- ~ dadc os pontos- que .Jbe interessam. Weber reconhece que todo sistema social de ação i~pn:. ca múltiplas idéias valorativas. Também o sistema da ciência segue i~_§ias de valores : ! idéia de verdade ou de objetividade científica. Assim, o descompromisso de Weber não passa de um compromisso indireto. Sua rejeição de todo juízo de valor é apenas uma reação antimetodológica. Ao aceitar o valor "ver- dade'', adere a outros valores: os que correspondem aos mé- todos da ciência, da lógica, etc. De sorte que a dicotomia fa- tojvalor só-se dá no campo da lógica. Na reaHdade, · O Iato é resultado de uma valoração. Nesse sentido, o conceito de neu- tralidade é irieaJ: i 'um modo de conferir valor a uma atitu- de de preferência a outras. O mesmo ocorre com a- disjunção meiojfim. O meio não se s_itua no domínio objetivo, mas é função de um fim prees.: 41 tabelecido. Pode o fim ser abstraído e desconsiderado? Ouan~ do se escolhe os meios para se atingir o fim, a propriedade do fim repercute na escolha: a aptidão do meio é julgada con- forme o que se queira no fim. Este está presente na escolha dos meios. Assim, relativamente ao fim, a neutralidade não é uma isenção, mas um modo específico de tomar posição. A distinção entre meio e fim é artificial. A neutralidade é uma . atitude ética. Não se discute uma atitude anética, mas o tipo de ética em questão. A ideologia que comanda o fim pas~a para · os meios. O exemplo clássico é o da tecnologia: enquan- to técnica, ela é neutra, podendo ser usada para qualquer fim, pois não prescreve nenhum. Mas como a tecnologia está sem- pre vinculada a certos interesses, e como a racionalidade dos meios é sempre a racionalidade do sistema, os instrumentos de execução não podem ser puros instrumentos. Factualmen~ te, um revólver é um instrumento de lançar projéteis. Herme- neuticamente, porém, pressupõe a t&nica da morte. Por sua vez, a bomba atômica é factualmente um instrumento neutro de explosão. Todavia, no contexto de seus pressupostos, e que lhe conferem sentido, é um val<?!::_ ·Quase todas as éticas adotam o princípio segundo o qual os fins não justificam os meios. Se estes fossem neutros, nem se colocaria o problema de sua justificação. Na medida em que são escolhidos em função de sua maior ou menor aptidão para se atingir o . fim, é porque neles está presente o valor do fim. Evidentemente, enquanto tal, um meio pode ser neutro. Acontece, porém, que esse meio não existe. Só existe no con~ texto dos pressupostos que lhe conferem sentido. A razão pe- Ja qual se escolhe este e não aquele meio, pelo menos em nos~ sa sociedade atual, é a racionalidade da ação e do pensamen- to. A racionalidade provoca uma iluminação da consciência, que é o postulado básico de toda ação refletida e responsável. ~ por isso que Weber vê incompatibilidade entre a eleição da ciência e a falta de moralidade. A eleição da ciência é uma decisão moral que pode ser ditada por interesses particulares: deve ser tomada em função de um valor universal, a verda- de. Nesse sentido, Weber é cartesiano, pois só aceita as idéias fundadas na razão. O racionalismo é o melhor meio de se atingir a liberdade, pois não tem compromissos com a afetivi- dade nem com os condicionamentos psicossociais. No dizer de J. Haberrnas (La technique et la science comme "idéologie", 1968), Weber introduziu o conceito de ··racionalidade" para caracterizar "a forma capitalista da ati- ,·idade econômica, a forma burguesa das trocas no nível do direito privado e a forma burocrática da dominação. A racio- nalização designa, antes d~. tudo, a extensão dos domínios da ~m:íedade que estão submetidos aos critérios da decisão racio- nal. . . A ''racionalização" crescente da sociedade está ligada :'1 institucionalização do progresso científico e técnico". Nesse ~cntido, o fim de uma empresa capitalista é a eficácia: rnaxi- mização do lucro, acumulação de capital, consumo, investi- mento, etc. A racionalidade dos meios é proporcional ao fim visado. Num tipo de empresa que vê na produtividade o valor b;ísico do sistema industrial, a tecnologia é um instrumento c;'{celente, porque se presta melhor a tal objetivo. Ela não é puro meio, pois pressupõe a ideologia do fim. Em si mesma, é neutra. Acontece, porém, que a tecnologia, em si mesma, não existe, é pura abstração. Nesse nível, a neutralidade não pode significar isenção de valor. Ela é uma ideologia. Enquan- to tal, é um pensamento a serviço de algum interesse, pensa- mento justificador: racionalização ou justificativa racional dos _ interesses de um grupo. Para realizar-se, a ideologia assume um -tom moralizante e persuasivo, tentandodistorcer os fatos . em seu favor e sugerindo um "dever ser". Conclusões · 1 . Do que dissemos sobre o problema da neutralidade, o que está em jogo é o conceito de objetividade científica. Ora, a "objetividade" não existe. O que existe é uma "objeti- vação", uma "objetividade aproximada" ou um esforço de co- nhecer a realidade naquilo que ela é e não naquilo que gosta- ríamos que ela fosse. Bachelard fala de "éonhecimento apro- ximado". Sem dúvida, o projeto do conhecimento científico é atingir a realidade naquilo que ela é. Mas esse projeto é ir- realizável. Só conhecemos o real como nós ~ vemos: o sujei- 43 . to constrói o objeto de sua ciência. :A objetividade não passa de um ideal: nenhum sujeito o realiza. Donde o conceito de objetivação. Até mesmo a ideologia pretende atingir conheci4 mentos objetivos, pois não lhe interessam conhecimentos ideo4 lógicos, deturpando os fatos em favor de certos interesses. E -como todo conhecimento vem acompanhado de ideologias, corre o risco de ser arbitrário. A ciência não demole os va- lores. Por outro lado, não há critérios universalmente válidos de objetividade conferindo neutralidade para todos. Somente os critérios de objetivação poderão assegurar certa forma de aproximação da realidade, evitando as deturpações ideológicas. Dahrendod propõe três critérios: a) treinamento, com a ajuda da psicanálise e da socio- logia do conhecimento; para a produção objetivada dos conhecimentos; a psicanálise do saber. _()bjeti\-·o -( n.O sentido bachelardiano) consiste no esforço de lu- ta · contra as ideolog_ias; b) revelação sincera dos valores pelos quais se luta·· e que formam o. pano de 'fundo ou o ponto de partida da pesquisa; c) a crítica mútua como parâmetro de cientificidade. -2. A objetividade das Ciências e dos cientistas-é um va- lor de natureza ideológica que se acrescenta à atividade cientí- -fica e que surge de. um duplo processo de objetividade: a) a objetivação do produto dessa atividade, cujo desenvolvimento é interrompido para se fixar num saber que reproduziria uma "parte" do real; b) a objetivação do agente que "possui" esse saber, em troca de sua "'neutralidade" e de sua submissão ao real. Assim, as ciências objetivas forneceriam "verdades" in· dependentes da história e daqueles que a fazem; os cientistas objetivos, por sua vez, se limitariam a descobrir essas verda· des, apagando-se diante delas, fazendo "abstração" de sua subjetividade e elevando-se acima dos preconceitos, das ideo· logias, das paixões, etc. Ora, essa noÇão de objetividade não tem suporte epistemol6gico algum, apresentando-se como uma racionalização das crenças ingênuas no prestígio da ciência: crença na unidade-dos conhecimentos, em seu caráter absoluto 44 c a-histórico e na independência da realidade, que seria conhc- .:iJa de modo imparcial. Ora, a objetividade tira seu valor dos l'bjenos construídos e do poder dos modelos utilizados relati- ,·arnente aos dados da experiência: não é a reprodução fiel da ··rca•idade". Ela não está isenta de erros, nem tampouco de c~co!has. Se podemos falar de verdades científicas, é no sen- tido de uma conveniência entre os modelos e as predições, de um lado, e os fatos pertinentes que se prediz, do outro. Essa conveniência deve ser entendida como urna não-contradição. PMtanto, a objetividade se define pelo respeito às regras do 1,bjeto construído, e não por uma vaga adequação do espírito ;1 ' 'realidade". 3. 1:. nesse sentido que gostaria de citar um trecho de Bachelard, onde conceitua a objetividade científica como um processo constante de objetivação: Basta que falemos de um objeto, para nos conside- rarmos objetivos. Contudo, através de nossa escolha ini·· cial, é o objeto que nos designa, mais do que o designa- mos_._ E aquilo que imaginamos serem nossos pensamen- tos fundamentais acerca do mundo, não passa, muitas vezes, de confidências a respeito da juventude de nosso espírito. Acontece ficarmos extasiados diante de determi- nado objeto. Acumulamos hipóteses e divagações. Ela- boramos, assim, certos conceitos que têm o aspecto de um conhecimento. Todavia, a fonte inicial não é pura: a própria evidência de onde se partiu, não constitui uma verdade fundamental. De fato, a objetividade científica só é possível se, antes de tudo, fizermos abstração do objeto imediato, se recusarmos a sedução da primeira escolha e se contrariarmos os pensamentos nascidos da primeira observação. Toda objetividade, devidamente ve- rificada, desmente o primeiro contacto com o objeto. Ela deve, antes de tudo, criticar tudo: a sensação, o senso comum, até a prática mais vulgar, porque o verbo, que é feito para cantar e encantar, raras vezes corresponde ao pensamento. Ao invés de extasiar-se, o pensamento objetivo deve ironizar. Sem essa vigilância hostil, nunca atingiremos uma atitude verdadeiramente objetiva. Quan- 45 . do se trata de observar os homens ( ... ) • é a simpatia que encontramos na base do processo. Contudo, em face desse mundo inerte. que só vive através de nossa vida, que não sofre nenhuma de nossas penas nem se exalta com nenhuma de nossas alegrias, devemos dominar to- das as expansões e refrear nos~a pessoa. Os eixos da poesia e da ciência são, antes de tudo. inversos. Tudo o .que pode esperar a filosofia é tomar a poesia e a ciên. cia complementares, uni-Ias como dois contrários perfei· tos. Portanto, precisamos opor ao espírito poético expan •. sivo, o espírito científico taciturno, para o qual a antipa- tia prévia representa uma salutar precaução (Psychana- lyse du f eu) . 4. Finalmente, nesse· domínio tão vasto e complexo, na- da temos a concluir. Quisemos apenas elucidar um pouco a questão. Àssistimos hoje a · uma verdadeira ixnpregnação me- todológica. nas ciências humanas, de técnicas e de procedi- mentos estatísticos que nos fazem lembrar as questões meto- dológicas da época de Webêr. Toda essa produção metodoló- gica faz apelo à neutralidade dos cientistas. Essa neutralida- de axielógica surge como um meio excelente, pois, não se dis- cutindo os fins da sociedade, termina-se por justificá-la. Essa isenção aparece hoje sob a forma de um~ nova ideologia, a ideologia sistêmica, transformando a racionalidade dos meios na racionalidade do sistema. E a racionalidade científica trans forma-se em ideologia a partir do momento em que tenta im- po[-Se como a única forma . possível de racionalidade. A con- cepção a e ciência que clã pressupõe é a de um conjunto de realizações às quais o homem delega realmente o poder fun- dado sobre o saber. Trata-se de uma concepção tecnocrática da ciência: assim como o homem delega seus conhecimentos físico-qulmicos aos mísseis e foguetes. da mesma forma dele- ga seu saber aos computadores, aos programas, aos processos de automação e de cibernética social. Ora, esse processo de delegação de poder, por objetivação do saber numa técnica auto-regulada, é uma das características essenciais, diz Philipe_ Roqueplo (A.utocritique de la· science), da ciência contempo- râne_a . . Assim, .o dogma da racionalidade científica e -o da 46 neutralidade axiológica não passam de miragens mantidas a serviço de escolhas políticas ou ideológicas. Numa palavra, não passam de mistificações, pois hipnotizam o olhar crítico, como se os conflitos reais e as contingências do conhecimento racional e objetivo pudessem adquirir um estatuto apenas "re- sidual'' da Natureza. Donde a importância de analisarmos o caráter praxeológico das ciências humanas, pois, ao se conver- te rem em t~cnicas de intervenção, em estratégias de ação, des- 111ascara-se o mito da "neutralidade" de seus agentes e da "pu- reza"' objetiva de seus resultados. 47 II CIÊNCIAS HUMANAS E PRAXEOLOGIA As ciências humanas, tais como elas exis- tem, em ·suas condições reais de realização, apresentam-se como técnicas de intervenção na realidade, participando ao mesmo tempo do descritivo e do normatit•o: são praxeolo- gias. A análise
Compartilhar