Prévia do material em texto
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Regina Thaise Ferreira Bento Um estudo das geometrias prática e teórica presentes em The Pathewaie to knowledge de Robert Recorde: Possíveis diálogos DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA SÃO PAULO 2018 REGINA THAISE FERREIRA BENTO Um estudo das geometrias prática e teórica presentes em The Pathewaie to knowledge de Robert Recorde: Possíveis diálogos PUC-SP 2018 Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Educação Matemática sob a orientação do Prof. Dr. Saddo Ag Almouloud Banca Examinadora Prof. Dr. Saddo Ag Almouloud Profa. Dra. Bárbara Luthaif Bianchini Prof. Dr. Gerson Pastre de Oliveira Prof. Dr. José Messildo Viana Nunes Prof. Dr. Méricles Thadeu Moretti Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos, desde que citada a fonte. Assinatura: _______________________________Local e Data:_______________ Dedico este trabalho ao meu filho Guilherme e minha mãe Izabel. Sem vocês não haveria a inspiração necessária para a conclusão desta jornada. . Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). AGRADECIMENTOS Ao apoio institucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e à CAPES pelo auxílio financeiro. A todos os professores do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação Matemática da PUC-SP e, principalmente, a professora Dra. Bárbara Lutaif Bianchini, por manter suas portas sempre abertas. Agradeço em especial ao meu orientador, professor Dr. Saddo Ag Almouloud, por seu apoio, estímulo e gentileza, sempre. Aos professores Dr. Gerson Pastre de Oliveira, Dr. José Messildo Viana Nunes e Dr. Méricles Thadeu Moretti e a professora Dra. Bárbara Lutaif Bianchini por aceitarem compor a banca examinadora deste trabalho e por contribuírem com valiosas críticas e sugestões. Agradeço imensamente à Ana Rebeca Miranda Castillo. Não imaginaria esta trajetória sem seu apoio e confiança. Aprendi muito contigo e serei eternamente grata por ter se mantido sempre ao meu lado. Aos colegas da PUC, pelas inúmeras contribuições e, principalmente às amigas, Roseli Moura e Ângela Maria dos Santos e ao amigo Jorge Henrique Gualandi, por compartilharem de minhas aflições e sempre, com carinho e cuidado me aconselharem e principalmente...me ouvirem. À amiga Sandra Dower, minha irmã desta e de outras vidas. À amada amiga Lilian Ribeiro de Oliveira e ao amigo Cláudio Alves que não me esqueceram e não desistiram de mim, mesmo diante de tantas e repetidas ausências. À amiga de todas as horas Nádia El Kadri. Agradeço a todos os amigos do Centro Universitário Anhanguera Campo Limpo, em especial aos meus coordenadores Renato Matroniani e Viviane Miriam Cruz pelo apoio constante. Agradeço a todos os amigos da E.E. Prof. Dr. Lauro Pereira Travassos, em especial ao diretor Agenor Luis pelo carinho, incentivo e prontidão em ajudar...sempre. Aos meus alunos, que continuamente me motivaram e me deram a alegria e a vontade necessária de aprender cada vez mais para compartilhar com eles. Agradeço em especial à minha mãe Izabel e meu irmão Eder, com os quais eu pude contar incondicionalmente. Se esta jornada foi possível, sem dúvida, devo muito a vocês. Ao meu amado filho Guilherme, cujo sorriso e amor são os combustíveis da minha vida. E principalmente, a Deus, pai misericordioso que possibilitou a realização deste sonho e deu-me asas e força para voar. A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria. Paulo Freire O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. Jean-Paul Sartre Paciência: O intervalo entre a semente e a flor. Ana Jácomo BENTO, R. T. F. Um estudo das geometrias prática e teórica presentes em The Pathewaie to Knowledge de Robert Recorde: possíveis diálogos. 2018. Tese (Doutorado em Educação Matemática). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018. RESUMO Neste trabalho, apresentamos o matemático inglês Robert Recorde (1512-1558) e seu tratado sobre geometria entitulado The Pathewaie to Knowledge, escrito em inglês moderno e cuja primeira edição foi impressa no ano de 1551. Analisamos neste tratado a presença e possível diálogo estabelecidos entre os conhecimentos geométricos provenientes de antigas tradições ligadas à prática e a geometria teórica que era estudada nas universidades e baseada no tratado geométrico escrito por Euclides. Para tanto, analisamos o contexto no qual a obra e seu autor estavam inseridos, identificamos quais os conhecimentos matemáticos estão presentes nesse tratado e como se relacionam com as práticas matemáticas e o saber erudito da época. Além disso, procuramos indícios que nos permitissem evidenciar a presença de outras tradições geométricas. Esta análise utilizou-se da articulação entre três esferas: a historiográfica, a contextual e a epistemológica. Essa junção permitiu-nos um olhar ampliado sobre as possíveis motivações que teriam levado Recorde a escrever o tratado em questão. Verificamos que Recorde era um homem culto e atento às demandas de seu povo e de seu tempo. A Inglaterra do século XVI estava em um momento de transformação social, política e religiosa, havia uma grande demanda por investimentos nas ciências voltadas às questões práticas, tais como a artilharia, horologia, navegação e medição de terras. Assim, profissionais tais como os agrimensores e navegadores assumiram um papel determinante para o desenvolvimento da Inglaterra e necessitavam de maiores conhecimentos matemáticos para avançarem em suas práticas. Contudo, o acesso ao ensino era restrito para a maioria da população e o pouco material disponível era escrito em latim. Essa demanda por conhecimentos voltados às matemáticas praticadas neste período, tais como aritmética, álgebra e geometria fez com que profissionais que dominavam seus ofícios começassem a produzir materiais escrevendo-os na língua vernacular. Recorde, com sua formação privilegiada, foi o primeiro a elaborar uma coleção de livros textos em inglês com matemática básica voltada diretamente aos interesses desses profissionais. The Pathewaie to Knowledge foi o primeiro tratado sobre geometria prática escrito em inglês. Nesse período a geometria prática e teórica eram independentes. Com os resultados desse trabalho conclui-se que de fato Robert Recorde estabeleceu um diálogo entre as geometrias prática e teórica, contribuindo com a disseminação dos conhecimentos matemáticos especulativos e a validação da geometria utilizada há séculos pelos praticantes das matemáticas. Essa análise indica que a compreensão do processo que envolve a construção de conhecimentos matemáticos pode auxiliar de forma efetiva em uma aprendizagem mais crítica pelos educadores matemáticos. Palavras-chave: História da Matemática. Educação Matemática. Geometria Prática. Praticantes das Matemáticas. Robert Recorde. ABSTRACT In this work we present the English mathematician Robert Record (1512-1558) and his treatise on geometry titled The Pathewaie to Knowledge, written in modern Englishand whose first edition was printed in the year 1551. We analyze in this treatise the presence and possible dialogue established between the geometric knowledge from ancient traditions linked to practice and the theoretical geometry that is studied in the universities and is based on the geometric treatise written by Euclides. To do so, we analyze the context in which the work and its author were inserted, identify what mathematical knowledge is present in this treatise and how they relate to the mathematical practices and the scholarly knowledge of the time. In addition, we sought indications that would allow us to evidence the presence of other geometric. This analysis was made use of the articulation between three spheres: the historiographical, the contextual and the epistemological. This combination gave us a broader look at the possible motivations that would have led Recorde to write the treatise in question. We find that Record was a man cultivated and attentive to the demands of his people and his time. Sixteenth-century England was at a time of social, political, and religious transformation; there was a great demand for investments in the practical-oriented sciences such as artillery, horology, navigation, and land measurement. Thus, professionals such as land surveyors and navigators assumed a determining role for the development of England and needed greater mathematical knowledge to advance their practices. However, access to education was restricted to most of the population and the little available material was written in Latin. This demand for mathematical knowledge practiced in this period, such as arithmetic, algebra, and geometry, made professionals who mastered their craft begin to produce materials written in the vernacular. Recorde, with his privileged background, was the first to produce a collection of textbooks in English with basic mathematics aimed directly at the interests of these professionals. The Pathewaie to Knowledge was the first treatise on practical geometry written in English. At that time practical and theoretical geometry were independent. With the results of this work it is concluded that in fact Robert Record established a dialogue between practical and theoretical geometries, contributing to the dissemination of speculative mathematical knowledge and the validation of geometry used for centuries by mathematicians. This analysis indicates that the understanding of the process that involves the construction of mathematical knowledge can effectively aid in a more critical learning by mathematical educators. Keywords: History of Mathematics. Mathematical Education. Practical Geometry. Practitioners of Mathematics. Robert Recorde. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Esferas de análise....................................................................................................................... 22 Figura 2: Distância de Tenby a Oxford - Inglaterra ................................................................................ 27 Figura 3: Vista de Tenby no ano de 1586 ................................................................................................ 28 Figura 4: Imagem atribuída a Robert Recorde ....................................................................................... 29 Figura 5: Frontispício de The Pathewaie to Knowledge ........................................................................ 66 Figura 6: Croked e Right lines ................................................................................................................... 76 Figura 7: Ângulos retos ............................................................................................................................... 77 Figura 8: Sharpe angles .............................................................................................................................. 78 Figura 9: Croked Platte ............................................................................................................................... 79 Figura 10: Mixte Platte ................................................................................................................................ 80 Figura 11: Cubo e Globo ............................................................................................................................. 82 Figura 12: Figuras formadas por pontos .................................................................................................. 83 Figura 13: Plumbe-line ................................................................................................................................ 85 Figura 14: Bias Line ..................................................................................................................................... 86 Figura 15: Classificação de Paralelas ...................................................................................................... 86 Figura 16: Twiste e Spirall Line ................................................................................................................. 87 Figura 17: Matche Corner ........................................................................................................................... 88 Figura 18: Corda........................................................................................................................................... 89 Figura 19: Cantles ........................................................................................................................................ 89 Figura 20: Nooke cantle e Nooke plainlie ................................................................................................ 90 Figura 21: Egg e Tunne Fourmes ............................................................................................................. 91 Figura 22: Eye Fourme................................................................................................................................ 92 Figura 23: Classificação de triângulos...................................................................................................... 94 Figura 24: Classificação de triângulos...................................................................................................... 95 Figura 25: Classificação de triângulos com lados diferentes ............................................................... 95 Figura 26: Inner e Utter angles .................................................................................................................. 96 Figura 27: Tipos de quadriláteros .............................................................................................................. 96 Figura 28: Cinkangles.................................................................................................................................. 97 Figura 29: Squire .......................................................................................................................................... 97 Figura 30: Bodies ......................................................................................................................................... 98 Figura 31: Construção do triângulo equilátero ...................................................................................... 104 Figura 32: Cortar em dois o ângulo retilíneo dado ............................................................................... 106 Figura 33: Cortar em duas a reta limitada dada ................................................................................... 107 Figura 34: Traçado de uma reta perpendicular .................................................................................... 109 Figura 35: Traçado de uma reta perpendicular a um ponto próximo ao final da reta .................... 110 Figura 36: Construir um quadrado igual à retilínea dada ....................................................................113 Figura 37: Divisão de um arco em duas partes iguais ........................................................................ 114 Figura 38: Segunda sugestão de como dividir um arco em duas partes iguais ............................. 115 Figura 39: Terceira sugestão de como dividir um arco em duas partes iguais ............................... 116 Figura 40: Exemplos de figuras inscritas e não inscritas .................................................................... 118 Figura 41: Inscrição de um círculo em um triângulo dado .................................................................. 119 Figura 42: Inscrição de um círculo em um triângulo dado – Outro possível exemplo ................... 120 Figura 43: Circunscrição de um círculo em um triângulo dado.......................................................... 121 Figura 44: Traçar uma linha reta perpendicular à reta limitada dada, a partir do ponto dado, que não está sobre ela ...................................................................................................................................... 136 Figura 45: Pelo ponto dado, traçar uma linha reta paralela à reta dada .......................................... 138 Figura 46: Construção de um triângulo a partir de três linhas ........................................................... 139 Figura 47: Construção do ângulo reto .................................................................................................... 141 Figura 48: Construção de um quadrado a partir da linha dada ......................................................... 142 Figura 49: Construir um paralelogramo igual ao triângulo dado, no ângulo retilíneo dado .......... 143 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Divisão proposta em The Pathewaie to Knowledge ........................................................... 69 Quadro 2: Definições presentes na primeira parte do Livro I de The Pathewaie to Knowledge ... 72 Quadro 3: Construções ............................................................................................................................... 99 Quadro 4: Contruções presentes no livro IV de Os Elementos ......................................................... 117 Quadro 5: Construções que não constam em Os Elementos ............................................................ 122 SUMÁRIO Capítulo 1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....................................................................... 16 1.1 Metodologia ............................................................................................................................ 21 Capítulo 2 – ROBERT RECORDE E O CONTEXTO INGLÊS DO SÉCULO XVI ..... 27 2.1 Uma breve cronologia .......................................................................................................... 27 2.2 O Fundador da escola britânica de escritores matemáticos ..................................... 30 2.3 As influências políticas e religiosas na vida e obra de Robert Recorde ................. 34 2.4 O público-alvo dos tratados ............................................................................................... 44 2.5 Os tratados matemáticos de Robert Recorde ................................................................ 49 2.6 A Geometria prática e a Geometria Teórica ................................................................... 53 2.6.1 Os Elementos de Euclides ........................................................................................................ 56 2.6.2 Hugo de São Victor ..................................................................................................................... 60 2.6.3 Villard de Honnecourt ................................................................................................................ 61 Capítulo 3 – The Pathewaie to Knowledge ................................................................... 64 3.1 A obra ..................................................................................................................................... 64 3.2 A divisão proposta no tratado ........................................................................................... 68 3.3 Primeira parte do livro I - The definicions of the principles of Geometrie .............. 71 3.4 Segunda Parte do livro I - The practike woorkyng of sondrie conclusions geometricall .................................................................................................................................. 99 3.4.1 Comparação com o Livro I de Os Elementos...................................................................... 103 3.4.2 Comparação com o Livro II de Os Elementos .................................................................... 111 3.4.3 Comparação com o Livro III de Os Elementos ................................................................... 113 3.4.4 Comparação com o Livro IV de Os Elementos ................................................................... 116 3.4.5 As construções que não constam em Os Elementos ....................................................... 122 Capítulo 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 124 REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 130 ANEXO A: Construções de The Pathewaie to Knowledge referentes ao livro I de Os Elementos. .................................................................................................................... 136 16 Capítulo 1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS O estudo de conceitos geométricos pode ser associado a diversas pessoas que contribuíram com o desenvolvimento desse campo ao longo do tempo. Muitos nomes são comumente citados em livros didáticos e materiais acadêmicos reconhecidos. Porém, existem outros nomes na história que se destacaram por suas realizações e por vezes recebem um papel secundário pela historiografia tradicionalmente conhecida. Esse é o caso de Robert Recorde (1512-1558) e seus inúmeros tratados matemáticos produzidos durante o século XVI na Inglaterra. Nascido em Tenby (Inglaterra), Recorde foi um homem culto, filho de prósperos comerciantes. Com uma formação privilegiada, ele frequentou as universidades de Cambridge e Oxford, formando-se médico. Além disso, foi conhecido da côrte inglesa e exerceu funções variadas, tais como o de agrimensor geral nas minas Irlandesas. Suas contribuições com a divulgação e ensino das matemáticas vigentes no século XVI concedem a ele um lugar especial na história e justificam as pesquisas que acrescentem informações sobre sua biografia. Normalmente, ele é lembrado por ser o criador do sinal de igual (=) tal como conhecemos hoje. Porém, seus feitos e sua contribuição com a história vão muito além disso. Em uma Inglaterra em que o idioma oficial nas publicações acadêmicas era o latim, Recorde foi o primeiro a escrever em inglês uma série de livros sobre as matemáticas vigentes no período, com representações esquematizadas e ênfase na aplicação prática dos conhecimentos matemáticos utilizados em sua época. Quanto ao entendimento do que eram as “matemáticas” nesse período, devemos destacar, conforme Saito (2015) que: [...] a ‘matemática’ como área autônoma e unificada de ‘conhecimentos matemáticos’ só surgiu em finais do século XIX. Antes disso, esses conhecimentos matemáticos encontravam-se ‘pulverizados’ e eram parte integrante de outros segmentos de conhecimento, tais como a astronomia, a música, a agrimensura etc., que eram conhecidas como ‘matemáticas’. (SAITO, 2015, p. 29) Assim, durante esse período, conhecido como Renascimento, não haviam disciplinas como conhecemos hoje. Bromberg e Saito (2010) esclarecem que as matemáticas estavam coligadas com outras áreas do saber. Segundo Roux (2010), para uma melhor compreensão do que eram as matemáticas,devemos observar que 17 elas estavam diretamente ligadas às atividades com características práticas, tais como os ofícios dos marinheiros e agrimensores. Também ocorria seu estudo e aprendizado nas universidades, porém enfatizando uma dimensão teórica distante das atividades desses trabalhadores. Consoante com esse caráter prático, os tratados de Robert Recorde dedicados às matemáticas abordaram aritmética, geometria, astronomia e álgebra. Nesta pesquisa investigaremos o seu tratado dedicado à geometria: The Pathewaie to Knowledge, destinado à agrimensura, que contou com três edições e foi publicado pela primeira vez em 1551. Analisaremos o livro I da segunda edição1, escrito em inglês moderno e datado de 1574. Alguns estudiosos, tais como Comarck (2006) e Gillispie (1970-1980), classificam The Pathewaie to Knowledge como uma tradução simplificada de Os Elementos (tratado de Euclides dedicado à geometria). Porém, seu estudo indica muito mais que uma tradução. The Pathewaie to Knowledge é um reflexo das demandas vivenciadas pela Inglaterra no século XVI. De fato, essa obra expõe parte do trabalho de Euclides, mas apresenta divergências em conteúdo e forma. Muitos pesquisadores, tal como Hownson (1982) e Johnson (1935) concordam que possivelmente, essas diferenças representam uma resposta de Recorde para as necessidades do público a quem esse tratado se dirigia. Sendo The Pathewaie to Knowledge fruto das necessidades de uma época, para compreendê-lo foi necessário buscar indícios a respeito dos possíveis interesses que motivaram sua elaboração. Nota-se que a vida de Recorde é singularmente diferente ao que se costuma associar a um típico escritor. Hownson (1982, p. 8) observa, por exemplo, que alguns de seus tratados matemáticos foram escritos enquanto ele servia à monarquia em postos oficiais2. Recorde vivenciou o reinado dos Tudor (1485-1603). Nesse período, a Inglaterra, assim como outros países, passava por grandes modificações. Além das 1 Optamos por analisar a segunda edição de The Pathewaie to Knowledge, porque segundo Lipscombe (2012), ela foi utilizada como alternativa ao tratado sobre geometria de Euclides: Os Elementos, traduzida para o inglês moderno por Henry Billingsley (1530? – 1606) em 1570. 2 Para saber mais consulte: Hownson (1982) e Gillispie (1970-1980). 18 questões voltadas à expansão territorial, também houve o rompimento com a Igreja Católica e a fundação da Igreja Anglicana da Inglaterra. Além disso, a Inglaterra passava por um movimento de expansão, envolvendo questões ligadas as navegações, cartografia, questões territoriais e de defesa, entre outros aspectos. Também, a agrimensura e o cálculo de impostos exigiam grande atenção nesse período. Os tratados de Recorde indicam que ele estava atento a essas demandas. The Pathewaie to Knowledge, por exemplo, é escrito em um momento em que a agrimensura ganha um novo impulso, devido à necessidade de se medir os territórios recém adquiridos pelo rei. Cabe ressaltar que nesse período, havia uma significativa separação na classificação dos conhecimentos. Os saberes empregados nos ofícios diretamente vinculados ao trabalho manual (tais como marinheiros, agrimensores e artesãos) pertenciam às artes mecânicas, e o conhecimento contemplativo, de caráter mais acadêmico era vinculado às artes liberais3, estudadas e ensinadas nas universidades. O programa de ensino estudado nas universidades, que compunha as artes liberais era dividido entre o Trivium e o Quadrivium4, sendo amplamente valorizado e voltado para a contemplação e o estudo de antigos textos escritos em latim. No entanto, as artes mecânicas eram desvalorizadas pela sociedade vigente, e seus praticantes eram menosprezados e considerados servis. De acordo com Debus (1978), devido esse cenário de expansão, que demandava conhecimento prático, a desvalorização das artes mecânicas sofreu uma modificação importante durante o século XVI. Consequentemente, isso causou um aumento no número de pessoas interessadas em dominar essas artes, que como mencionamos até então eram desprezadas. Segundo Ash (2004) esse movimento ocasionou uma busca por tratados matemáticos tanto em geometria quanto em astronomia, pois esses conhecimentos 3 As sete artes liberais eram compostas pelo Trivium e Quadrivium. Essas artes eram ensinadas em latim e grego e tinham como característica principal uma plena e total dedicação ao estudo, livre de qualquer esforço. (RUGIU, 1998) 4 O Trivium era composto pela retórica, gramática e lógica, sendo destinado à uma educação mais refinada. O Quadrivium contemplava as áreas de aritmética, música, geometria e astronomia e era destinado à uma educação mais informativa, voltada para algum tipo de aplicação profissional. (BORGES FILHO, 2005) 19 estavam fortemente vinculados à prática. Além disso, Saito (2014) observa que a geometria também ganhara novo status devido ao reconhecimento de suas possíveis aplicações em ofícios variados, tais como, por exemplo, agrimensura, navegação e assuntos militares. Porém, a despeito dessa necessidade, a maioria do material para estudo que estava disponível à época era escrito em latim e esse idioma era dominado por poucas pessoas. Assim, apesar da valorização das artes mecânicas decorrente da necessidade de se obter conhecimentos práticos gerada por esse movimento de expansão, a maioria dos ingleses tinha grande dificuldade em ter acesso e compreender os materiais teóricos disponíveis. É nesse contexto, em que o conhecimento prático se sobressai, que as obras de Recorde ganham destaque. Esse contexto propiciou um movimento de produção de manuais práticos, que começaram a ser escritos pelos praticantes das artes manuais que dominavam seus ofícios. Esses profissionais eram chamados de praticantes das matemáticas5 e é para esse público, em grande parte, que Recorde escreveu seus tratados. Segundo Taylor (1954), esse era um grupo de profissionais que exerciam seu ofício empregando conhecimentos matemáticos ligados à prática. Atento a esse contexto e atendendo a essa demanda, Recorde elaborou tratados matemáticos voltados à prática, muito associados as navegações e consequentemente à agrimensura, como observado em The Pathewaie to Knowledge que é dedicado aos praticantes das matemáticas e em especial aos agrimensores. Seus tratados foram escritos em linguagem vernacular, de forma simples e organizada (JOHNSON, 1935). Esse caráter prático nas obras de Recorde, e o público para quem esses estudos eram direcionados são comumente citados em vários artigos. No entanto, não podemos afirmar que a elaboração de livros que são apontados por muitos autores como didáticos6, tenha sido a preocupação de Recorde, ou ao menos a única. A escrita desses tratados demonstrava sua proficiência no 5 Para saber mais sobre os praticantes das matemáticas, consulte Harkness (2007) e Taylor (1954). 6 Adotaremos o termo “didático” quando usado por autores de nossas fontes secundárias, com o objetivo de manter a interpretação do conceito empregado, mas ressaltamos que esse termo ainda não existia no século XVI. 20 assunto, também necessária para ser reconhecido pela monarquia e ser indicado a cargos oficiais, como os que ele assumiu durante sua vida. Em nossa análise, identificamos em The Pathewaie to Knowledge a presença de conhecimentos propedêuticos provindos de Euclides e também conhecimentos vinculados à prática, possivelmente advindos de outras antigas tradições. Assim, essa inédita junção entre ambas as geometrias em um tratado dedicado à geometria, fez emergir nosso interesse em analisar este que pode ser um dos primeiros diálogos estabelecidos entre as geometriasprática e teórica presentes no século XVI. Diante de um contexto tão amplo, optamos por analisar o livro 1 do The Pathewaie to Knowledge. Nessa análise, identificamos os conhecimentos geométricos que faziam dessa parte do tratado, que continha 4 livros, buscando responder a seguinte questão: Quais são os traços que nos permitem evidenciar um possível diálogo entre a geometria teórica e a geometria prática em The Pathewaie to Knowledge? Embora possa nos parecer uma pergunta de fácil resposta, cabe ressaltar que nesse período ainda não estava institucionalizado um diálogo entre ambas as geometrias pois, não havia uma dependência entre a geometria prática e a teórica, isto é, elas existem de forma independente sendo desenvolvidas de acordo com os propósitos a que se destinavam. A geometria teórica estava presente nas universidades e a geometria voltada à prática, muitas vezes, era aprendida por meio de corporações dedicadas a ensinar o ofício, utilizando o conhecimento transmitido de geração em geração, frequentemente por meio da oralidade. Com isso, a análise desse tratado buscará indícios que possibilitem tecer conjecturas sobre o porquê da elaboração dessa obra pioneira por Recorde, Assim sendo, definimos os seguintes objetivos específicos para o desenvolvimento de nossa pesquisa: 1) Identificar o contexto no qual a obra e seu autor estavam inseridos. 2) Identificar, a partir desse contexto, quais os conhecimentos matemáticos estão presentes nesse tratado e como se relacionam com as práticas matemáticas e o saber erudito da época. 3) Examinar se há indícios que nos permitam evidenciar a presença de outras tradições geométricas. 4) Confirmar ou não se de fato há indícios de que The Pathewaie to Knowledge estabelece um diálogo entre as geometrias prática e teórica. 21 Para tanto, iniciamos o capítulo 2 discorrendo sobre a biografia de Recorde e suas obras, com vistas a apresentar o contexto em que a Inglaterra se encontrava e que possivelmente o teria influenciado na escrita de seus tratados. No capítulo 3, apresentamos e analisamos a obra The Pathewaie to Knowledge, identificando as diferentes geometrias presentes no tratado e buscando tecer uma análise desse conteúdo, procurando semelhanças e diferenças com a geometria presente na obra Os Elementos, além da presença de outras antigas tradições geométricas. Contudo, a comparação entre essas obras restringe-se basicamente ao caráter prático presente em ambos os tratados. Para estabelecer esse diálogo com Os Elementos, utilizamos a atual versão brasileira, transcrita por Bicudo (2009). 1.1 Metodologia Não encontramos nenhuma pesquisa concluída no Brasil que discorra sobre a vida e obra de Robert Recorde. A maioria dos documentos encontrados provêm de países que utilizam a língua inglesa. Ainda assim, os trabalhos existentes indicam que pouco se sabe sobre sua biografia. De acordo com Smith (1921), grande parte do material que está disponível sobre Recorde encontra-se em Londres, no Public Record Office of Great Britain, departamento responsável por guardar os arquivos nacionais da Inglaterra. Também buscamos referências em bibliotecas e analisamos dados em periódicos internacionais disponibilizados em sites especializados. Para ampliar nossa busca, palavras-chave como agrimensura, geometria, geometria prática, cartografia, produção de almanaques, protestantismo, praticantes das matemáticas e demais questões ligadas ao século XVI foram de grande auxílio. Para compreender o texto em análise, isto é The Pathewaie to Knowledge, realizamos uma análise historiográfica documental, além de tecermos uma análise documental por interpretadores de Robert Recorde. Para tanto, estabelecemos um diálogo entre fontes primárias e secundárias 7 , obtendo assim uma malha de informações que nos permitiram contextualizar o documento em questão. 7 Conforme Beltran, Saito e Trindade (2014, p. 18) referindo-se as fontes primárias e secundárias entendemos que “[...]os originais podem ser textos, imagens ou documentos da cultura material (objetos físicos) que chegaram a nossos dias trazendo registros de conhecimentos elaborados, transmitidos, 22 Segundo Alfonso-Goldfarb e Ferraz (2013), para que um documento seja devidamente contextualizado, de modo a restituí-lo à malha histórica, é necessário que consideremos três níveis, ou esferas de análise. Observamos na Figura 1 que essas esferas são a epistemológica, historiográfica e contextual. Figura 1: Esferas de análise Fonte: Beltran, Saito e Trindade, p. 17, 2014 Goldfarb (2008)8 destaca ainda a importância de se construir uma análise a partir da interseção dessas esferas, de modo a escrever uma história sem anacronismos, isto é, evitando analisar o período em estudo com a percepção dos dias atuais, sem levar em consideração as diferenças presentes em cada período, compreendendo as motivações que muitas vezes não podem ser percebidas pela análise isolada do documento. Assim, o desenvolvimento desta pesquisa fez-se na interface entre as três esferas de análise. Corroborando essa ideia, Saito (2014, p. 16) acrescenta que a construção do objeto de pesquisa acontece na interface entre a epistemologia, a história e o contexto. A esfera epistemológica refere-se à análise epistêmica dos principais conceitos e argumentos que se encontram internos ao texto. É o conjunto de ações e adaptados em outros tempos e culturas. [...] já a literatura secundária abrage trabalhos sobre o tema focalizado, escrito por estudiosos contemporâneos.” 8 Mais a respeito das três esferas de análise, vide A.M. Alfonso-Goldfarb (2008) e Beltran, Saito e Trindade (2014). Epistemológica ContextualHistoriográfica 23 conhecimentos compartilhados pelos contemporâneos de Recorde. Com essa análise procuramos compreender a dimensão interna do documento. Assim, com essa leitura cruzada entre literatura primária e secundária, buscamos estabelecer um diálogo entre as fontes, identificando e compreendendo o conhecimento geométrico que estava disponível e era praticado no século XVI e como ele está presente no tratado objeto de nosso estudo. A esfera historiográfica concerne às várias formas por intermédio das quais já se analisou um determinado documento, analisando e evidenciando os critérios da escrita da história. A terceira esfera trata do contexto histórico em que o documento foi produzido, considerando as circunstâncias que levaram à sua construção (ALFONSO- GOLDFARB; FERRAZ, 2013, p. 45). Pois, conforme Saito (2015), compreendemos que a matemática não é mera contadora da história passada, mas é propulsora de acontecimentos, motivada em seu desenvolvimento pelas necessidades apresentadas em cada época. No que tange à esfera contextual propriamente dita, a análise das origens de Recorde em Tenby, sua família, seu desenvolvimento acadêmico em Oxford e Cambridge, seu relacionamento com a côrte e o contexto da Inglaterra nesse período foram de fundamental importância para entender seu envolvimento com questões ligadas ao conhecimento matemático. Tudo isto está diretamente ligado ao “fazer matemático” daquela época, no que se refere ao Quadrivium e mais especialmente em sua ligação com a geometria, sempre analisando aspectos que podem ter influenciado a escrita de The Pathewaie to Knowledge. Toda essa análise foi feita à luz da nova historiografia, que conforme esclarecem Bromberg e Saito (2010, p. 53): “busca reconstruir a história da matemática em seu contexto, levando-se em consideração não só os aspectos internos, mas também externos ao desenvolvimento do conhecimento matemático. ” Neste viés, Bloch (2002), afirma que deve-se ter um cuidado redobrado ao trabalhar com um tempo passado que já não temos mais acesso,buscando pequenos detalhes que frequentemente estão ocultos na escrita literária. 24 Inicialmente analisamos o desenvolvimento da geometria ao longo da história e parte dos diferentes conhecimentos geométricos reconhecidos durante o desenvolvimento da sociedade inglesa. O resultado desses estudos é apresentado no capítulo 2. Na sequência, nossa pesquisa dedicou-se a compreender a Inglaterra do século XVI em seus múltiplos aspectos, incluindo, entre eles, os reinados, questões religiosas (catolicismo e o protestantismo), domínio da Igreja Romana na Inglaterra, sistema de educação vigente, divisões sociais, impostos, agrimensura, guerras, entre outros aspectos. Concomitantemente a essas pesquisas, iniciamos a leitura e a tradução do tratado The Pathewaie to Knowledge. Este tratado está escrito, como já foi dito, em inglês moderno, idioma utilizado na época. As diferenças gramaticais e ortográficas encontradas na leitura e tradução deste tratado são destacadas por Roberts (2016): A ortografia do Early Modern English era semelhante a de hoje, mas a ortografia era instável. Impressoras precoces consideravam as letras "i" e "j" como variações intercambiáveis da mesma letra e, da mesma forma, as letras "u" e "v" não foram consideradas distintas ou separadas. O uso da forma longa da letra "s", que os leitores modernos, muitas vezes confundem com a letra "f", podem ser particularmente problemático. Impressoras frequentemente faziam uso de abreviações não encontradas em livros modernos, e capitalização, pontuação e hifenização foram geralmente ao acaso. Tudo isso pode fazer a leitura do Early Modern English cansativa para alguém desacostumado a ortografias do século XVI e convenções tipográficas.9 (ROBERTS, 2016, p. xi, tradução nossa) Essa tradução e posterior análise tiveram por objetivo identificar os conhecimentos geométricos presentes neste tratado, analisando-o junto à obra Os Elementos. Elencamos também as possíveis diferenças existentes entre estes tratados geométricos. Com tal cuidado, buscamos identificar indícios de que Recorde estivesse utilizando conhecimentos geométricos provindos de outras tradições. Pois, conforme observa Saito (2014, p. 29) “[...] diferentemente do que costumamos pensar, muito do conhecimento geométrico, compartilhado por artesãos, eruditos e outros 9 Em ingles lê-se: “The orthography of Early Modern English was similar to that of today, but spelling was unstable. Early printers regarded the letters ‘i’ and ‘j’ as interchangeable variations of the same letter, and similarly the letters ‘u’ and ‘v’ were not considered distinct or separate. The use of the long form of the letter ‘s’, which modern readers often confuse with the letter ‘f ’, can be particularly troublesome. Printers often made use of abbreviations not found in modern books, and capitalisation, punctuation and hyphenation were usually haphazard. All this can make reading Early Modern English tiresome for anyone unaccustomed to sixteenth-century spellings and typographical conventions.” (ROBERTS, 2016, p. xi) 25 estudiosos de matemática do século XVI, não tinha por base apenas Os Elementos de Euclides, mas também outras obras ligadas às práticas matemáticas.” Essa análise contextual, feita a partir de fontes secundárias10, buscou também indícios que demonstrassem a motivação da escrita de seu tratado, ou seja, essa união entre o conhecimento teórico presente nas universidades e o conhecimento prático presente no cotidiano dos praticantes das matemáticas, sempre considerando que nesse período as geometrias existiam sem que houvesse dependência entre elas. Paralelamente, analisamos e confrontamos informações de documentos secundários que apresentam a biografia de Recorde, bem como sua participação em assuntos relacionados à época. Sobre isso, consideramos pertinente em nossa investigação fazer um estudo aprofundado do livro de Williams (2011). Também utilizamos a obra de Gordon Roberts, intitulada de Robert Recorde: The Tudor scholar and mathematician, publicado em 2016 pela universidade de Wales, e a tese de Thavit Sukhabanij, Mathematical Messiah: Robert Recorde and the popularization of mathematics in the sixteenth century, publicado em 1980 pela universidade de Denton, Texas. A análise de pesquisas biográficas sobre Robert Recorde mostrou-se necessária devido à escassez de materiais sobre Recorde e por propiciarem uma maior compreensão sobre as circunstâncias que possibilitaram e o conduziram a organizar e escrever os tratados matemáticos, em especial o tratado sobre geometria. Todos os documentos presentes no desenvolvimento desta pesquisa foram analisados considerando a interface entre as três esferas proposta pela historiografia atualizada. Com relação às traduções feitas ao longo deste trabalho, indicamos em notas de rodapé os escritos originais, nos casos que se referem ao tratado em estudo, isto é, The Pathewaie to Knowledge. Com esta pesquisa, esperamos contribuir com o estabelecimento de um diálogo entre a História e a Educação Matemática, colaborando para uma visão 10Entre as principais fontes secundárias utilizadas em nosso estudo estão: Ash (2004), Bennett (1991), Easton (1966), Fauvel (1987), Harkness (2007), Higton (2001), Hownson (1982), Johnson (1935), Lipscombe (2012), Roberts (2012), Roberts (2016), Rossi (1989 e 2001), Rugiu (1998), Smith (1917 e 1926), Shelby (1972) e Taylor (1954). 26 reflexiva que considera o indivíduo e suas necessidades ao longo de um processo histórico que envolve o desenvolvimento da Matemática como uma área autônoma e unificada, observando que os conceitos matemáticos amplamente estudados no sistema formal de ensino atual, frequentemente derivam entre diversos fatores das necessidades de uma época e, do contexto histórico nela implicado. Entendemos que, conforme observam Dias e Saito (2014, p. 1228), esses tratados dedicados às matemáticas, assim como The Pathewaie to Knowledge, foram deixados à margem pela tradicional historiografia da História da Matemática e seu estudo têm revelado novas evidências, dando-nos uma compreensão mais contextualizada do processo da construção do conhecimento matemático. Assim, sua análise permite construir uma visão diferenciada da história tradicionalmente contada, aproximando a história da Educação Matemática da história das pessoas. Além disso, ao apresentarmos outras tradições no trabalho com a geometria, ressaltando seu caráter humano, possibilitaremos o entendimento de que o estudo de conceitos geométricos está presente além da geometria de Euclides e em grande parte representam respostas às necessidades enfrentadas pela sociedade em seu desenvolvimento. Esse olhar humano poderá propiciar que os educadores sejam mais críticos na elaboração e construção de suas aulas e, da mesma forma, que os educandos também despertem para esse olhar diferenciado e investigativo sobre os conhecimentos matemáticos propostos em aula e muitas vezes compreendidos como sem significado para muitos deles. Assim, a utilização da história da Matemática enquanto recurso pedagógico possibilitará uma compreensão mais alargada da sociedade em que vivemos e da importância de entendermos nosso posicionamento diante dela. 27 Capítulo 2 – ROBERT RECORDE E O CONTEXTO INGLÊS DO SÉCULO XVI 2.1 Uma breve cronologia O inglês Robert Recorde nasceu na cidade portuária de Tenby11, pertencente à Pembrokeshire, ao oeste do País de Gales (Figura 2). A data de seu nascimento é incerta, sendo estimada entre os anos de 1510 e 151212. Sua morte ocorreu como prisioneiro no King’s Bench Prison13 (HOWSON, 1982) provavelmente, em 18 de junho de 155814. Ele foi o segundo filho de Rose Johns e Thomas Recorde. Sua família era de prósperos comerciantese seu pai foi prefeito em Tenby no ano de 1515. Figura 2: Distância de Tenby a Oxford - Inglaterra Fonte: www.google.com.br/maps/place/Tenby. Acesso em 29 de março de 2016 Segundo Roberts (2012), apesar de alguns historiadores não creditarem aporte cultural a esta localidade, Tenby (Figura 3) foi de grande influência na formação de Recorde, pois nesse período respondia como rota de navegação, sendo uma importante cidade portuária, responsável por grande fluxo de mercadorias. Assim, recebia constantemente navegadores, comerciantes e advogados, que com sua diversidade e riqueza de idiomas, culturas e negócios teriam influenciado em grande parte a formação e interesses futuros de Robert Recorde. Nascido em uma família de 11 Tenby está localizado a aproximadamente 400 km de Londres em rotas atuais. 12 Alguns pesquisadores como Ebert (1937), Roberts (2012), Gillispie (1970-1980) e Smith (1926) datam o nascimento de Recorde em 1510, porém essa data não é consenso. Outros pesquisadores como Howson (1982) e Comarck (2006) datam em 1512. Em sua lápide, na Igreja Paroquial de Tenby, consta a data de 1510 (SMITH, 1921, p. 296). Contudo, os documentos concordam que sua morte ocorreu em 1558. 13 The King’s Bench Prison era uma prisão em Southwark, sul de Londres, na Inglaterra, desde a época medieval até seu fechamento em 1880. Era responsável pelos casos de difamação, falência e outros delitos. Fonte: www.british-history.ac.uk/survey-london/vol25/pp9-21. Acesso em 09 de agosto de 2017. 14 Para maiores detalhes sobre sua morte ler: Smith (1921; 1926). http://www.google.com.br/maps/place/Tenby http://www.british-history.ac.uk/survey-london/vol25/pp9-21 28 comerciantes, certamente muito de seu conhecimento resulta dessa troca constante de informações. Em face desse contexto, alguns pesquisadores, tal como Willians (2001), atribuem às origens de Recorde ao interesse verificado em seus tratados por questões ligadas as navegações. Figura 3: Vista de Tenby no ano de 1586 Fonte: Roberts, 2016, p. 8 Pesquisas recentes indicam que não há registros comprovadamente legítimos sobre sua fisionomia. Roberts (2016) observa que Recorde não tem nenhum retrato conhecido, infelizmente e contrariamente ao que é indicado em pesquisas anteriores sobre sua biografia, como a de Smith (1921), que até poucos anos indicava que um retrato feito em um painel de carvalho durante o século XVI pudesse representar a imagem de Recorde. Porém, mesmo sua imagem não sendo conhecida, existe uma comumente atribuída a ele que inclusive, estampa seu túmulo (Figura 4), em sua cidade Natal, Tenby. 29 Figura 4: Imagem atribuída a Robert Recorde Fonte: http://b-c-ing-u.com/2016/05/14/22790/. Acesso em 30/4/2017 Muitas informações sobre sua vida são desconhecidas. Essa lacuna é indicada por Smith (1926) ao observar o fato de que diante de tantas contribuições em áreas diversas, tais como matemática e literatura médica, a quantidade de informações sobre Recorde é muito pequena e imprecisa em muitos pontos. http://b-c-ing-u.com/2016/05/14/22790/ 30 Essa imprecisão é notada, por exemplo, em sua formação acadêmica. Grande parte dessas informações é pontual, sem muitos detalhes. Sabemos que seus estudos foram privilegiados devido às instituições nas quais ele estudou. Recorde iniciou seus estudos em Oxford no ano de 1525, graduando-se bacharel nas artes liberais em 1531, mesmo ano em que se tornou “fellow” do All Souls College, fundação dedicada ao estudo de teologia, medicina e leis. (GILLISPIE, 1970-1980). Prosseguindo em seus estudos, licenciou-se em medicina no ano de 1531 e formou-se mestre nas artes liberais em 1534 (HOWNSON, 1982, p. 6). Segundo Roberts (2012), Recorde iniciou os estudos em Cambridge em 1535 e em 1545 obteve o título de doutor em medicina. 2.2 O Fundador da escola britânica de escritores matemáticos Essa sólida formação acadêmica possibilitou que Robert Recorde contribuísse para o estudo e divulgação das matemáticas na Inglaterra do século XVI. O grande valor e pioneirismo atribuído aos seus tratados matemáticos permitem que pesquisadores como Smith (1926) o considerem o fundador da escola britânica de escritores matemáticos. De fato, a análise dos materiais pesquisados sobre sua vida e obra indica que a contribuição de Recorde com a história da Matemática foi extensa e profícua. A relevância dos seus tratados está diretamente vinculada às demandas da Inglaterra durante o século XVI. Assim, a perspicácia de Recorde, ao elaborar esses tratados, permite que historiadores como Cajori (1922) afirmem que “Robert Recorde é a estrela da manhã da literatura matemática inglesa, o primeiro escritor a usar a língua inglesa como o veículo do pensamento em aritmética, álgebra e geometria.” Dentre suas contribuições com o ensino, Smith (1921) observa que Recorde é reconhecido como o primeiro matemático a publicar trabalhos na língua inglesa, fato que como veremos adiante, foi de grande relevância para grande parcela dos ingleses. Além disso, Cajori (1922, p. 298) observa que ele foi o primeiro inglês a adotar os sinais de soma (+) e subtração (-) em escritas matemáticas. Também Francis (1935) referindo-se ao The Pathewaie to Knowledge, confirma que ele foi o primeiro autor de um tratado sobre geometria escrito em inglês a utilizar a obra de Euclides como referência. Sua inovação também é notada em demais áreas de conhecimento. A esse respeito, Sanford (1957) relata que Recorde foi um dos precursores dos estudos sobre 31 o campo da álgebra na Inglaterra. Essa inovação na escrita também é notada por Cajori (1922) ao afirmar que seu tratado sobre álgebra: The Whetstone of Witte foi o precursor na Inglaterra em qualquer linguagem. Toda essa erudição permitiu que Recorde inovasse também nos termos empregados em seus tratados. De fato, como veremos adiante, em The Pathewaie to Knowledge verifica-se a presença de uma grande quantidade de neologismos, possivelmente criados por Recorde com o objetivo de facilitar a compreensão de alguns conceitos matemáticos para seu público-alvo. Um de seus neologismos mais famosos é o desígnio do sinal de igual (=) tal como conhecemos e utilizamos atualmente. Essa definição aparece em 1557, em sua obra The Whetstone of Witte. Recorde, ao justificar a escolha do símbolo designado para igualdade, observa que: E para evitar a tediosa repetição destas palavras: é igual a: vou estabelecer como frequentemente faço no trabalho, um par de paralelas, ou linhas gêmeas de mesmo comprimento, assim: = porque não pode haver 2 coisas que possam ser mais iguais. (RECORDE, 1556 apud SANFORD, 1957, p. 258, tradução nossa)15 Segundo Sukhabanji (1980) Recorde introduziu 35 novos termos matemáticos que são utilizados até hoje. Além disso, alguns de seus neologismos foram usados posteriormente por outros pesquisadores. Cajori (1921) observa que Isaac Newton utilizou a palavra pricke, para designar ponto. Esse termo foi apresentado por Recorde em seu tratado dedicado à geometria, The Pathewaie to Knowledge em 1551. E, dentre muitas de suas realizações que discutimos nessa tese, podemos apontar que ele foi o autor da primeira sequência de livros “didáticos” (textbooks) em inglês. De fato, Recorde inovou pela publicação de uma sequência de tratados matemáticos, que cobriram grande parte deste conteúdo, mas também se destacou pela forma como o fez, tanto na linguagem quanto nas opções de escrita. Uma das características de sua escrita mais abordada pelos pesquisadores e um dos 15 Em inglês lê-se: “To avoide the tediouse repetition of these words: is equalle to: I will sette as I doe often in woorke use, a paire of paralleles, or gemowe lines of one lengthe: = because noe 2 thynges, canbe moare equalle.” (RECORDE, 1556 apud SANFORD, 1957, p. 258) 32 diferenciais em seus tratados, é o formato como o conteúdo era apresentado, com uma proposta de diálogo entre o mestre e o aprendiz. Muitos pesquisadores, assim como Fauvel (1987), afirmam que todas as suas obras, com exceção da publicação sobre geometria (The Pathewaie to Knowledge), estão nesse formato. Howson (1982) e Johnson (1935) concordam que provavelmente o tratado sobre geometria não foi escrito no formato de diálogo por uma adequação de conteúdo. Gillispie (1970-1980) observa que essa opção pelo uso do diálogo seria mais uma característica que indicaria a inclinação didática de Recorde. Observa-se tal cuidado no prefácio de The Ground of Artes, no qual ele justifica sua opção pelo diálogo: "Porque eu julgo que é a maneira mais fácil de instrução, quando o escolar pode perguntar cada dúvida de forma ordenada, e o Mestre pode responder a suas perguntas claramente." (RECORDE, 1542 apud EBERT,1937, p.110, tradução nossa)16 Em seus diálogos observamos uma antecipação por parte do professor das possíveis dificuldades que poderiam ser apresentadas em cada conteúdo. Cajori (1922) especula que essa habilidade indicaria que Recorde tinha grande desenvoltura como professor. Tal questão é relevante ao avaliarmos que seus tratados, assim como The Pathewaie to Knowledge, alcançaram um sucesso expressivo na Inglaterra, o que pode estar relacionado a uma possível didática, presente em suas obras, além de um reflexo de sua experiência docente. A esse respeito, Hownson (1982) observa que há indícios de que Recorde teria lecionado algumas das disciplinas matemáticas na universidade. Smith (1921) corrobora essa informação ao afirmar que provavelmente, ele teria ensinado matemática em aulas particulares tanto em Oxford quanto em Cambridge. Apesar de existirem poucas informações sobre esse período na vida de Recorde, Roberts (2012) sugere que sua familiaridade com o ensino das matemáticas voltadas à prática pode ser notada desde sua passagem por Oxford. Segundo ele: 16 Em inglês lê-se: “Because I judge that to be the easiest way of instruction, when the Scholar may ask every doubt orderly, and the Master may answer to his questions plainly.” (RECORDE, 1542 apud EBERT, 1937, p.110) 33 Durante seu tempo em Oxford sua reputação como um claro elucidador das matemáticas, enfatizando a aplicação prática, é notada, em particular, por Wood em sua passagem sobre ele: ‘Ele ensinou publicamente aritmética e os fundamentos da matemática, com a arte do verdadeiro cálculo. Tudo ele tornou tão claro e óbvio para aprender, que ninguém nunca fez semelhante antes dele na memória do homem’ (ROBERTS, 2012, p. 127, tradução nossa).17 Outra possibilidade, é que sua experiência docente, vamos assim dizer, pode ter sido adquirida por meio de seu trabalho como tutor, o que era muito comum nesse período. Howson (1982) observa que Recorde fora tutor de uma das vinte e cinco crianças de Richard Whalley (1498-1583), a quem inicialmente dedicou seu primeiro livro voltado às matemáticas, The Ground of Artes. Um aspecto relevante nas escritas vernáculares de Recorde apontado por Sukhabanji (1980) e verificado em The Pathewaie to Knowledge foi provavelmente a sua habilidade de articular seu conhecimento abstrato em prosa inglesa clara e simples. Essa habilidade possibilitou que parte dos ingleses compreendesse e utilizasse conhecimentos matemáticos em seus ofícios. Além de sua ampla formação nas matemáticas, Recorde também era reconhecido como um homem culto. Gillispie (1970-1980) detalha o interesse de Recorde por textos medievais, antiguidades britânicas e manuscritos. Ele também era familiar com o grego e foi um dos primeiros estudantes do idioma anglo-saxão. De fato, como analisamos adiante, em The Pathewaie to Knowledge, verifica-se a introdução de neologismos que derivam destes idiomas. Essa percepção de homem culto e estudioso é notória na descrição feita a respeito de Recorde em 1619, pelo estudante católico John Pitts, em sua obra escrita em latim, intitulada De Illustribus Angliæ Scriptoribus: 17 Em inglês lê-se: “During his time at Oxford his reputation as a clear elucidator of mathematics, emphasizing practical application, is noted in particular by Wood in his passage on him: ‘He publicy taught arithmetic and the grounds of mathematics, with art of true accompting. All which he rendered so clear and obvious to capacities, that none ever did the like before him in the memory of man.” (ROBERTS, 2012, p. 127) 34 Um homem de gênio feliz e famoso por ensinar assuntos complexos. Um escritor polido e preciso, altamente qualificado em todas as artes liberais e nas ciências matemáticas. Ele era um filósofo famoso. Ele contemplou os movimentos dos corpos celestes, e alcançou conhecimentos consideráveis em astronomia. Ele sondou os segredos da filosofia natural, de plantas, ervas, raízes, dos elementos, e examinou com curiosidade os pontos fortes e as virtudes dos metais. Pode-se dizer com bom motivo que ele entrou nos céus e penetrou as entranhas da terra. (PITTS, 1619 apud ROBERTS, 2016, p.3, tradução nossa)18 Contudo, conforme observado por pesquisadores como Roberts (2016), a trajetória e contribuições de Robert Recorde tem sido longamente negligenciadas, pois, apesar de encontrarmos algumas pesquisas a seu respeito, ele ainda não é um nome frequente no estudo da história da Matemática. Nesse sentido, conforme discutiremos adiante, Gillispie (1970-1980, p. 339) afirma que um dos possíveis motivos de Recorde não ter alcançado reputação internacional foi por ter escrito em linguagem vernacular (inglês) e em um nível elementar. 2.3 As influências políticas e religiosas na vida e obra de Robert Recorde Algumas possíveis motivações para a escrita de seus tratados, assim como em The Pathewaie to Knowledge, são melhores compreendidas quando analisamos o contexto no qual ele estava inserido. Por isso, para o estudo do tratado em análise, segundo as esferas propostas pela historiografia atualizada, é necessário compreender as ligações políticas e religiosas estabelecidas por Recorde, pois conforme verificamos em nosso levantamento biográfico e como observa Howson (1982), muito do que sabemos sobre ele está diretamente vinculado ao agitado contexto político da Inglaterra durante o século XVI. 18 Em inglês lê-se: “A happy man of genius, and famous for teaching complex subjects. A polished and accurate writer, highly skilled in all the liberal arts and the mathematical sciences. He was a most famous philosopher. He contemplated the motions of the heavenly bodies, and achieved considerable expertise in astronomy. He probed the secrets of natural philosophy, of plants, herbs, roots, of the elements, and examined with curiosity the strengths and virtues of the metals. It may be said with good reason, that he climbed into the heavens and penetrated the bowels of the earth.” (PITTS, 1619 apud ROBERTS, 2016, p. 3) 35 Robert Recorde vivenciou três reinados 19 durante a dinastia Tudor (1485- 1603). Esse foi um período turbulento na Inglaterra, marcado pela alternância entre as religiões católica e protestante. De acordo com Roberts (2016), Recorde estava estudando em Oxford, quando, o rei Henrique VIII, no ano de 1534, rompeu com o catolicismo20, decretando o Ato de Supremacia, tornando-se soberano em relação à Igreja Católica Romana, e chefe supremo da Igreja em seu país, fundando assim a Igreja da Inglaterra, conhecida também como Igreja Anglicana. Segundo Lipscombe (2012), havia também questões políticas e econômicas ligadas ao interesse do rei Henrique VIII em concretizar esse rompimento, pois,por essa época, a Igreja Católica era detentora da posse de uma grande porcentagem das terras inglesas, exercendo grande influência sobre as decisões tomadas pela monarquia, além de comandar o valioso comércio de relíquias sagradas. E assim, ao romper com a Igreja Católica, e expulsar seus representantes, o rei tomou posse de todos os seus terrenos e bens. Uma das consequências ao Ato de Supremacia foi a necessidade de medição desses terrenos para a divisão das terras desapropriadas. Também houve a necessidade de se calcular os impostos sobre a produção realizada nessas propriedades. Com isso, houve uma maior demanda por conhecimentos matemáticos que facilitassem esse trabalho, impulsionando o desenvolvimento da agrimensura. Cabe observar que é nesse contexto que sua obra sobre geometria, The Pathewaie to Knowledge foi escrita. Outro aspecto importante em nossa análise e que possivelmente impactou os tratados de Recorde são as guerras em que a Inglaterra estava envolvida nesse período. Sabemos que Henrique VIII também é conhecido pelas guerras que 19 Ele nasceu logo após Henrique VIII (1491-1547) ter sido coroado rei da Inglaterra, em 1509. Também presenciou os reinados de Eduardo VI e da rainha Maria I da Inglaterra. Segundo Cajori (1922) sua morte ocorreu pouco antes da ascensão da rainha Elizabeth I (1533-1603), em 1558. 20 Segundo Roberts (2016) esse rompimento com o catolicismo aconteceu devido o rei Henrique VIII desejar o anulamento do seu casamento com sua primeira esposa, Catarina de Aragão. Como a Igreja Católica impede tal procedimento, o rei teria rompido com a Igreja e fundado a Igreja Anglicana. Com tal medida, nomeada de ato de Supremacia, a Inglaterra obteve soberania jurídica das leis civis sobre as leis da Igreja Católica. E com isso, deixou de pagar impostos à Roma, bem como tomou posse das propriedades pertencentes à Igreja Católica, e a partir desse momento, o rei dispôs delas de acordo com seus interesses. 36 envolveram seu reinado21. Esse cenário de invasões e expansão territorial exigiu investimento em áreas diversas, tal como nas técnicas de navegação, que como veremos adiante, eram precárias na Inglaterra. Essas contendas e outros aspectos ligados à sociedade inglesa daquele período influenciaram de certa maneira a formação de Recorde, assim como também em sua produção literária, pois a análise de seus tratados bem como das pesquisas que o referenciam indicam que ele estava atento a esse cenário de modificações. Essa astúcia de Recorde pode ser observada em seu empenho para comprovar seus conhecimentos matemáticos necessários à época, por meio das dedicatórias feitas em seus livros. Seu tratado sobre geometria, The Pathewaie to knowledge, por exemplo, foi dedicado ao rei Eduardo VI. Também The Castle to Knowledge foi dedicado à rainha Maria I da Inglaterra. Além disso, alguns pesquisadores, como Howson (1982), observam que por Recorde ser um protestante assumido, essas dedicatórias foram uma importante e necessária precaução, pois devido sua amizade com protestantes radicais, tais como Edward Underhill (1512-1576?)22, haveria, por parte dele, o medo de ser capturado e morto, como tantos outros foram ao declararem-se protestantes. Recorde esteve ligado diretamente à nobreza. Ele é conhecido como provável médico do rei Eduardo VI e da rainha Maria I (SMITH,1926). Segundo Lipscombe (2012) o relacionamento de Recorde com a monarquia é atestado pelos registros que indicam sua participação em importantes julgamentos promovidos nesse período, 21 A Inglaterra invadiu a França em 1513 e 1544, e foi invadida pela Escócia no ano de 1513. Além disso, também disputou território com a Irlanda nesse mesmo período. 22 Edward Underhill era conhecido por ser um protestante radical. Ele foi preso durante o reinado da católica rainha Maria I da Inglaterra por ter participado de um grupo que a teria atacado por questões religiosas. Lipscombe (2012) esclarece que Recorde, também protestante, cuidou de seu amigo enquanto ele esteve preso e por isso era considerado tão protestante quanto Underhill, o que poderia ser muito perigoso durante reinados católicos. 37 como por exemplo, no ano de 1550 quando testemunhou contra o Bispo de Winchester23 e a favor do protestantismo24. Alguns pesquisadores, tal como Ebert (1937), indicam que essa relação com a nobreza teria se iniciado em 1547. Nesse período ele estava em Londres lançando seu primeiro tratado dedicado à medicina, intitulado Urinal of Phisyc25. Segundo Howson (1982) a aproximação de Recorde com a monarquia teria lhe rendido o posto de Controlador das minas de Bristol, em 1549. Foi por essa época que ele teria se envolvido em questões políticas 26 que o levaram a prisão e, posteriormente, à sua morte anos mais tarde27. Ainda segundo Howson (1982, p. 6), em 1551, devido sua boa relação com o rei Eduardo VI, ele teria sido nomeado para a função de agrimensor das minas e finanças da Irlanda, que nesse período pertencia aos domínios ingleses. É nesse momento que ele publica a primeira edição de The Pathewaie to Knowledge, tratado matemático justamente dedicado à agrimensura. Convém ressaltar que durante esse período, que marca o fim da idade média e o início da era moderna, conhecido como Renascimento, a sociedade inglesa, bem como o mundo passavam por inúmeras transformações. Um exemplo disso é o fato de Recorde ter sido contemporâneo de pensadores como Girolamo Cardano (1501- 23 Segundo Lipscombe (2012) durante a tentativa de anulamento do matrimônio com a rainha Catarina, o rei Henrique VIII contou com os serviços do bispo Stephen Gardiner. Como reconhecimento de seus esforços, o rei o teria nomeado bispo de Winchester. Porém, em 1550, após a morte de Henrique VIII, e ascensão do príncipe Eduardo VI, esse mesmo bispo teria se pronunciado contra as mudanças que estavam acontecendo na Igreja. Com isso, ele foi levado a julgamento pelo conselho privado e Recorde testemunhou contra ele e a favor do protestantismo. 24 Um dado histórico largamente citado quando se estuda a história da Inglaterra e que pode dar pistas do posicionamento e importância de Recorde em seu relacionamento com a nobreza, seria sua participação no julgamento de um feiticeiro que havia previsto a morte do rei Henrique VIII. Segundo pesquisadores, tal como Lipscombe (2012), é nesse momento (1550), que Recorde teria conhecido o protestante Edwards Underhill, tornando-se posteriormente seu amigo e se aproximando do convívio real. 25 Tratado sobre os benefícios e métodos de exame da urina com o objetivo de determinar a saúde ou doença do paciente. Foram publicadas dez edições entre 1547 e 1665 e foi dedicado à Companhia de Cirurgiões. Para maiores informações ler: Lipscombe (2012), Gillispie (1970-1980) e Sanford (1957). 26 Segundo Howson (1982) Recorde esteve envolvido em intrigas enquanto controlador dessa mina, pois teria se negado a desviar dinheiro para financiar o exército comandado pelo Conde de Pembroke. Por isso, mais tarde foi acusado de traição contra o rei Eduardo VI. Sanford (1957) acrescenta que como punição Recorde teria ficado preso durante 6 dias. 27 Maiores detalhes encontram-se em Gillispie (1970-1980), Howson (1982) e Smith (1926). 38 1576) e Tartaglia28 (1499-1557). Acompanhando esse movimento de descobertas, em 1543, Nicolau Copérnico (1473-1543) publicou seu tratado De Revolutionibus Orbium Celestium. É também em 1450 que a imprensa iniciou seus trabalhos com Johannes Gutenberg (1400-1468)29. Consoante com essas tranformações encontrava-se a necessidade iminente do desenvolvimento das navegações, bem como da marinha mercante e de outras áreas, tal como a agrimensura, que se expandia coma descoberta de novas terras. Nesse contexto, Saito (2014) observa que a arte de medir tornava-se cada vez mais necessária e importante para os governantes e isso exigia um aprofundamento nos conhecimentos matemáticos disponíveis, inclusive no que se refere à geometria: Descobertas e mapeamentos de novas terras, a busca de métodos para localização das naus em alto-mar, a divisão de terras para o cultivo da agricultura e pecuária, a construção de fortificações, a organização bélica e militar de diferentes regiões da Europa, bem como da recém-descoberta América e da Ásia, foram um conjunto de fatores que fomentou o desenvolvimento de novas técnicas de medição. (SAITO, 2014, p. 35) Nesse viés, cabe ressaltar que, segundo Saito (2012, p. 6) a agrimensura deve ser entendida como um conjunto de práticas que envolviam não somente técnicas de medida, mas também de agricultura. Saito (2013-b) observa ainda que essa necessidade de desenvolvimento fez com que príncipes, comerciantes, banqueiros e outros investissem no conhecimento matemático necessário para atingir o desenvolvimento adequado para lidar com a nova ordem econômica e social que surgia não somente na Inglaterra, mas também na Europa. Esse investimento é ressaltado por Taylor (1954), ao observar que as demais nações estavam investindo no desenvolvimento científico em várias frentes, como por exemplo, por meio do aprimoramento dos métodos de navegação, publicação de almanaques, estudo da variação e do mergulho da agulha magnética e investindo no estudo para a determinação da longitude, que ainda representavam mistérios para matemáticos e outros cientistas. 28 Nicolo Fontana, também conhecido como Tartaglia (1499-1557). 29 Johannes Gutenberg (1400-1468) é o inventor da prensa com tipos móveis. Seu primeiro impresso é conhecido como Bíblia de Gutenberg sendo publicada inicialmente no ano de 1452. 39 Contudo, Sanford (1957) observa que a Inglaterra ficou para trás nessa corrida pelo desenvolvimento científico. Essa precariedade é evidenciada, por exemplo, em relação a navegação, que desempenhava um papel importante para os londrinos, por deter responsabilidade tanto na expansão do território inglês, quanto por sua defesa, e ainda assim era praticada baseada em experiência, senso comum e bons marinheiros. Essa falta de diálogo é apontada por Taylor (1954) ao ressaltar que na Inglaterra havia um divórcio entre a prática e a teoria. Segundo ela, os marinheiros não conheciam a matemática formal, e os matemáticos não conheciam a aplicação prática desses conceitos e isto dificultava o progresso técnico. Essa falta de articulação atingia outras áreas além da navegação, tais como a agrimensura, a cobrança de impostos, a artilharia e mesmo a relojoaria. Enquanto esse entrosamento entre teoria e prática não acontecia, a prática avançava, porém não no ritmo que poderia se ambas caminhassem juntas. Esse contexto de buscas e desejadas inovações também é comentado por Harckness (2007) ao afirmar que os londrinos buscavam novidades, projetos e técnicas fáceis para utilização de instrumentos de navegação, agrimensura ou assuntos militares. Essa valorização do estudo das matemáticas, segundo Johnston (1994), deve- se ao reconhecimento de sua utilidade prática, acontecendo devido o entendimento de que sua aplicação era imprescindível em áreas como perspectiva, mecânica, e astronomia, além de ser necessário para realizar estudos de fortificação e melhoria das estruturas, desenvolvimento e aperfeiçoamento de artilharia, design de navios e estratégias para ordenação de tropas. Além de sua possível aplicação em melhorias no comércio e as contas dos comerciantes, para cronometragem e calendário; para a arquitetura; o levantamento de terra; medição de materiais; técnicas de navegação oceânica, entre outros ofícios. Nesse viés, Johnston (1994), afirma ainda que, no final do século XVI, as ciências matemáticas eram vistas como responsáveis por avanços em variados aspectos. Diante deste cenário, cabe-nos indagar o motivo desta falta de entrosamento entre o conhecimento prático e o teórico. Verificamos em nossas pesquisas que a falta do emprego de um conhecimento geométrico mais refinado pelos navegadores, agrimensores e demais profissionais ligados às artes manuais provavelmente se devia 40 ao fato da educação formal ser reservada a uma pequena parcela da população. Quanto à isso, Taylor (1954) observa que durante o século XVI, o ensino oferecido em escolas inglesas se restringia basicamente ao estudo de latim. A pouca matemática ensinada referia-se ao ensino de aritmética simples e ainda assim era reservada inicialmente aos clérigos. Além disso, na Inglaterra,a maioria absoluta das pessoas estava fora do sistema oficial de ensino, como observa Hownson (1982) que estima que da população de cerca de 5 milhões ao tempo da dissolução dos mosteiros, somente 26.000 estavam na escola. Sobre o sistema de ensino, Hownson (1982) esclarece que: [...] A classe média, os agricultores, os detentores de terra menores e comerciantes prósperos tendem a fornecer os alunos das escolas secundárias; os filhos da nobreza e aristocracia poderiam ter tido um tutor ou foram acolhidos em um mosteiro, enquanto suas filhas, se foi sentida a necessidade, foram educadas por um professor particular ou ocasionalmente foram enviadas para conventos para a sua educação; para as classes mais baixas, as escolas de música e de caridade forneciam uma forma de educação elementar. (HOWNSON, 1982, p.8, tradução nossa)30 Borges Filho (2005, p. 161) observa que, inicialmente, a educação formal era oferecida pelas escolas monásticas31. Essas tinham sua localização no mundo rural, distante das aglomerações das cidades, formando leigos, cultos, filhos da nobreza e de seus servidores, que aprendiam o estudo do latim, o Trivium e o Quadrivium. Ao longo dos anos as escolas monásticas foram sucedidas pelas escolas episcopais, universidades e corporações de ofício 32 . O currículo ensinado nas universidades era o que abrangia as artes liberais. Além disso, na Inglaterra, existiam exatamente as duas universidades em que Recorde estudou, ou seja, Oxford e Cambridge. 30 Em inglês, lê-se: “The middle class, farmers, lesser land-holders and prosperous tradesmen tended to supply the students of the grammar schools; the sons of the nobility and gentry might have had a tutor or been boarded in a monastery, whilst their daughters, if the need was felt, were educated by a private tutor, or occasionaly were sent to nunneries for their education; for the lower classes, the song and charity schools provided a form of elementary educacion. Yet, despite such provisions, it has been estimated that of the population of about 5 million at the time of the dissolution of the monasteries, only 26,000 were at school. Schooling was still a rare commodity.” (HOWNSON, 1982, p.8) 31 Segundo Borges Filho (2005) as escolas monásticas inicialmente tinham por objetivo formar os futuros monges. Porém, com o tempo também encarregaram-se de formar os filhos da nobreza e de seus servidores. 32 Para mais informações sobre o sistema de ensino vigente durante o século XVI na Inglaterra ler: Rugiu (1998) e Borges Filho (2005). 41 A geometria ensinada na universidade estava de acordo com o plano de ensino estabelecido pelo Quadrivium, no qual prevalecia um cunho teórico, sendo baseada principalmente nos textos de Boécio33, que como discutiremos adiante, representavam uma tradução de fragmentos da obra de Euclides. Também havia, por exemplo, a presença de textos de Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Frontino (c. 40-103) e Gerberto (946-1003). Contudo, segundo Taylor (1954), mesmo diante da importância de seu estudo e aprofundamento, o tratamento