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TÓPICOS EM SAÚDE E DIREITOS Carla Aparecida Arena Ventura Gustavo D’Andrea Ricardo Gonçalves Vaz de Oliveira Marinêz de Fátima Ricardo (Organizadores) Sociedade Brasileira de Comunicação em Enfermagem Ribeirão Preto, 2017 INFORMAÇÕES EDITORIAIS © 2017 by Carla Aparecida Arena Ventura et al. E-mail para contato com os organizadores: direito@gmail.com Capa: Carla Cristina Barizza Serviço de Criação e Produção Multimídia Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP/USP) Imagens gratuitas: www.pixabay.com/pt (Licença Creative Commons CC0). Página deste livro na Internet: bit.ly/livrosaudedireito2017. Ficha Catalográfica feita pelos organizadores T674 Tópicos em Saúde e Direitos / Carla Aparecida Arena Ventura… [et al.], organizadores. — Ribeirão Preto: Sociedade Brasileira de Comunicação em Enfermagem, 2017. ISBN 978-85-64922-08-2 1. Direito. 2. Saúde. 3. Relações entre Direito e Saúde. I. Ventura, Carla Aparecida Arena. II. D’Andrea, Gustavo. III. Oliveira, Ricardo Gonçalves Vaz. IV. Ricardo, Marinêz de Fátima. V. Título. CDU: 342.7:61 Mergulho em você mesmo Temos medo de estarmos conosco, mergulharmos em nosso interior. O silêncio e sua prática nos leva a esta possibilidade de encontro profundo e revitalizador. Com o silêncio, encontramos a paz e o amor incondicional vem com toda a força transformadora. O amor é a força mais sutil do mundo. O mundo está farto de ódio. E é este ódio irracional e distante da força criadora que destrói, corrompe e ensurdece a humanidade. Pare! Recomece! Reprograme-se... O silêncio pode ser o ponto chave desta nova caminhada. Pratique-o diariamente e transforme um pouco nosso mundo. Ouça-se. Temos de nos tornar a mudança que queremos ver no mundo. Você tem que ser o espelho da mudança que está propondo. Se eu quero mudar o mundo, tenho que começar por mim. Pratique diariamente o silêncio da paz. Respire profundamente algumas vezes. Inspire e sopre lentamente até ir relaxando e mergulhando dentro de si mesmo. Feche os olhos e silencie seus medos, preocupações e ansiedades diárias, por alguns momentos. Dê a chance à sua paz e a paz do mundo. Faça a sua parte, doe-se sem medo. O que importa mesmo é o que você é... Mesmo que outras pessoas não se importem. Atitudes simples podem melhorar sua vida. Você nunca sabe que resultados virão da sua ação. Mas se você não fizer nada, não existirão resultados. Espalhe esta ideia. Transforme o mundo, a partir de você. Seja a mudança que você deseja para o mundo. — Mahatma Gandhi SUMÁRIO TÓPICO: DIREITO À SAÚDE APRESENTAÇÃO 7 AUTORES 10 Direito à saúde no Brasil: do processo constituinte aos desafios à efetivação Erika Maria Sampaio Rocha, Rita de Cássia Duarte Lima, Joel Hirtz do Nascimento Navarro, Alexandre Andrade Alvarenga, Eliane de Fátima Almeida Lima, Maria Angélica Carvalho Andrade 15 O “estado de coisas inconstitucional” e o papel da Enfermagem na concretização do Direito à Saúde Augusto Martinez Perez Filho, Gustavo D’Andrea 33 O direito ao não convencional: sobre terapias complementares e práticas populares em saúde Marcela Jussara Miwa 47 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ TÓPICO: DIREITO À SAÚDE MENTAL TÓPICO: DIREITOS DE GRUPOS VULNERÁVEIS DA POPULAÇÃO TÓPICO: DIREITOS HUMANOS E PARTICIPAÇÃO SOCIAL Pessoas com transtornos mentais e garantias de direitos: uma reflexão sobre instrumentos e documentos internacionais relativos à Saúde Mental Bruna Sordi Carrara, Raquel Helena Hernandez Fernandes, Carla Aparecida Arena Ventura, Isabel Amélia Costa Mendes 60 A Enfermagem e os Direitos Humanos das pessoas com transtornos mentais e dependentes de álcool, crack e outras drogas Marciana Fernandes Moll, Cheila Cristina Leonardo de Oliveira Gaioli 76 A judicialização da internação psiquiátrica: contexto histórico e panorama atual no Brasil Rachel Torres Salvatori e Carla Aparecida Arena Ventura 88 O resgate de direitos sociais dos moradores de Serviços Residenciais Terapêuticos Vanessa Vieira França, Iracema da Silva Frazão 110 Infância e Adolescência: direitos e transtornos Marinêz de Fátima Ricardo, Michelle Andrea Marcos 129 Políticas públicas em saneamento básico: o controle social como subsídio à concretização Ricardo Gonçalves Vaz de Oliveira, Thiago Luiz da Silva 152 !5 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ TÓPICO: ÉTICA, BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS Autonomia do paciente: uma discussão bioética Bruno de Paula Checchia Liporaci 166 !6 APRESENTAÇÃO O Direito é produto das relações sociais. Nesse sentido, relações de caráter emancipador ou conservador impulsionam a criação e transformação da ordem jurídica. O direito, pensamento e prática jurídica comprometidos com os direitos humanos podem converter-se em pauta política, ética e social que embase a construção de uma racionalidade mais abrangente e inclusiva. Dessa forma, a ideia de universalidade dos direitos humanos pode representar um marco que permita a todos criar condições para que a concepção de dignidade humana um dia se torne possível. Em contextos caracterizados por grandes desigualdades sociais, ressalta-se o desafio de buscar formas plurais de garantia dos direitos humanos, especialmente do direito à saúde. A concepção de saúde como direito humano consolidou-se a partir da segunda metade do século XX, gerando embates econômicos, políticos e sociais, especialmente sobre o papel do Estado em sua garantia. No Brasil, o sistema de saúde passou por profundas transformações influenciadas pela concepção de saúde como direito, o que levou a avanços conceituais e organizacionais por meio da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), com a determinação de se oferecer à população um leque de ações integrais de saúde, com fundamento em uma compreensão mais global do indivíduo e em uma conceituação de saúde que ultrapassa a ideia de doença e envolve diferentes determinantes sociais. Esta obra reflete algumas das discussões empreendidas no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Desenvolvimento (GEPESADES) da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP), buscando compreender as interrelações entre os direitos humanos e a saúde e as possibilidades de atuação de profissionais da saúde, especialmente dos enfermeiros, em conjunto com os profissionais do direito e a comunidade, na garantia do exercício dos direitos humanos por grupos mais vulneráveis da população. O GEPESADES foi criado e cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em outubro de 2011 e iniciou suas atividades de estudo com reuniões para leitura na íntegra e discussão de diversas obras de Hannah Arendt, agora seguidas pelas obras de Michel Foucault. Nosso objetivo é estudar em profundidade diferentes referenciais teóricos que possam direcionar nossas pesquisas. Além das reuniões de estudos, também trabalhamos em conjunto com a Liga de Direitos Humanos e Saúde (LIDiHUS) e o Centro de Educação em Direitos Humanos e Saúde (CEDiHUS), ambos da EERP-USP, na organização e realização de atividades de extensão com a comunidade. Dentre as atividades desenvolvidas anualmente desde 2012, ressalto o Workshop Direitos Humanos e Saúde, com sua sexta edição realizada em 2017. Dessa forma, os capítulos do primeiro volume do Livro Tópicos em Saúde e Direitos foram construídos por membros do GEPESADES e também por pesquisadores convidados, e organizados sob a liderança e empreendedorismo do Professor Gustavo D’Andrea, com apoio dos co- organizadores, Professora Marinêz de Fátima Ricardo e Professor Ricardo Gonçalves Vaz de Oliveira. Agradeço imensamente aos trêspor toda a dedicação para a excelência desta obra. Agradeço também profundamente a todos os autores dos 11 capítulos publicados neste livro, que compartilharam conosco os resultados de seus estudos desenvolvidos na área. São dez capítulos subdivididos em cinco tópicos: Direito à Saúde (três capítulos); Direito à Saúde Mental (quatro capítulos); Direitos de Grupos Vulneráveis da População (um capítulo); Direitos Humanos e Participação Social (um capítulo); Ética, Bioética e Direitos Humanos (um capítulo). !8 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Optamos por incluir um tópico específico sobre saúde mental, uma vez que este representa o foco central da maioria das pesquisas desenvolvidas pelos membros do GEPESADES. A diversidade e abrangência dos temas discutidos nesta obra desvelam a complexidade de nossa área de pesquisa e atuação, assim como os grandes desafios a serem enfrentados para a efetivação da saúde como real direito de todas as pessoas. Nessa perspectiva, esperamos que a leitura destes artigos atue como disparador de reflexões, estudos e discussões profundas sobre possibilidades de ações provenientes da academia que, em conjunto com a comunidade, possam gerar mudanças em direção à maior equidade em saúde. Desejamos assim uma excelente leitura a todos! Carla Aparecida Arena Ventura Coordenadora do GEPESADES e CEDiHUS Tutora da LIDiHUS Novembro/2017 !9 AUTORES Alexander Andrade Alvarenga Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha (UVV); Mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pesquisador assistente em Saúde Global e Diplomacia da Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ). Augusto Martinez Perez Filho Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca – FDF, Master of Laws – LLM, pela Brigham Young University (EUA), Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP. Professor no curso de Direito da Universidade Paulista – UNIP, Campus Ribeirão Preto - SP e no Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto -SP. Advogado. Bruna Sordi Carrara Graduação em Psicologia (2013), pelo Centro Universitário de Franca (Uni- FACEF). Mestrado em andamento em Enfermagem Psiquiátrica (2016-2018) pela Universidade de São Paulo - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem). Bruno de Paula Checchia Liporaci Especialista em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Graduado em Direito. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/ USP) e do Grupo de Pesquisa: Direitos da Personalidade e as novas tecnologias da FDRP-USP (docente responsável: Profª. Drª. Lydia Neves Bastos Telles Nunes) Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Carla Aparecida Arena Ventura Possui graduação em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (1993), graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998), mestrado em Direito Internacional pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2001) e doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo (2004). Professor Associado do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Diretora do Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP). Cheila Cristina Leonardo de Oliveira Gaioli Enfermeira Doutora do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Eliane de Fátima Almeida Lima Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Curso de Graduação e Mestrado Profissional em Enfermagem da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória (ES), Brasil. Erika Maria Sampaio Rocha Médica graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). Mestra e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo(UFES), Vitória(ES), Brasil. Gustavo D’Andrea Advogado. Mestre em Ciências pela FFCLRP-USP (Psicologia). Doutor em Ciências pela EERP-USP (Enfermagem Psiquiátrica). Professor na Universidade Paulista (UNIP - Campus Ribeirão Preto). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP). Autor do livro “O que esperar da Faculdade de Direito”. Autor do blog Forense Contemporâneo. Criador da Forensepédia. Iracema da Silva Frazão Doutorado em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestrado em Nutrição (área de saúde pública) UFPE, Bacharelado em Enfermagem pela Universidade Federal da Bahia. Pós-doutorado em !11 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Enfermagem /UFBA em Ética na Formação Docente. Professor Associado do Departamento de Enfermagem da UFPE / Centro de Ciências da Saúde. Atua no curso de graduação em Enfermagem na área de Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental, professora dos cursos de mestrado e doutorado do quadro permanente do Programa de Pós-graduação em Enfermagem/UFPE. Coordenadora local do Edital PROCAD UFC/UFPE/UFPI. Líder do grupo de pesquisas Saúde Mental e Qualidade de Vida no Ciclo Vital. CNPq/desde 2007. Isabel Amélia Costa Mendes Graduada em Enfermagem (1968) e Enfermagem de Saúde Pública (1969) pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto USP (EERP-USP), Mestre em Ciências da Enfermagem UFRJ (1975), Doutor (1986) e Livre-docente em Enfermagem (1989) pela EERP/USP. É Professor Titular da EERP/USP desde 1991 e Pesquisadora 1A do CNPq. Foi Diretora da EERP/USP em 2 mandatos (1994-1998 e 2002-2006), Vice-diretora (1990-1994) e nos mesmos períodos Diretora do Centro Colaborador da OMS para Pesquisa em Enfermagem. Presidiu a Rede Pan-Americana de Centros Colaboradores da OMS para o Desenvolvimento da Enfermagem (PANMCC) de 2003 a 2005. Diretora do Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem de agosto de 2006 a maio de 2017. Em julho de 2007 foi eleita Secretária Geral da Rede Global de Centros Colaboradores da OMS para Enfermagem e Obstetrícia. Mandato: 2008/2014. Joel Hirtz do Nascimento Navarro Fisioterapeuta graduado pelo Centro Universitário Metodista do Sul, do IPA. Mestre em Gerontologia Biomédica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sula(PUCRS), doutorando em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo(UFES), Vitória(ES), Brasil. Marcela Jussara Miwa Graduada em Ciências Sociais pela Unicamp. Mestre em Ciência Política pela Unicamp. Doutora em Ciências pela USP. Pós-doutora pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP. Áreas de interesse: Sociologia e Antropologia da Saúde; Terapias Complementares; Práticas Populares em Saúde; Direito à Saúde; Etnografia; Narrativas; Histórias de Vida. Marciana Fernandes Moll Graduada em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (1994), Especialização em Saúde Mental (2000), Mestrado em Enfermagem pela Universidade de São Paulo (2008), Doutorado em Ciências (2013), Especialização em Docência na Saúde (2015) e Pós- doutorado (em andamento com previsão de término em 2018). Atualmente é !12 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ enfermeira assistencial da Prefeitura Municipal de Uberaba, professora na Universidade de Uberaba (Graduação e Pós-graduação latu sensu) e Coordenadora de Cursode Pós-graduação latu sensu na Universidade de Uberaba. Tem experiência na área de Enfermagem, com ênfase em Enfermagem Psiquiátrica, atuando principalmente nos seguintes temas: Enfermagem, Rede de Atenção à Saúde, Esquizofrenia, Saúde Pública, Depressão, Direitos humanos, Residências terapêuticas e Cidadania de pessoas com transtornos mentais. Maria Angélica Carvalho Andrade Médica, Professora adjunta do Departamento de Medicina Social e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) – Vitória (ES), Brasil. Marinêz de Fátima Ricardo Graduanda em Pedagogia. Graduada em Letras. Mestre e Doutora em Estudos Literários. Professora na rede pública. Michelle Andrea Marcos Especialista em Direito Público. Advogada. Professora. Rachel Torres Salvatori Mestre em Enfermagem pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. Especialista em Saúde Suplementar pela Universidade de Brasília /UnB. Especialista em Regulação de Saúde Suplementar, com atuação na Diretoria de Fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Especialista em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca - ENSP/FIOCRUZ . Doutora em ciências pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - EERP/USP. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP). Professora do curso de MBA da Trevisan Escola de Negócios de Ribeirão Bonito. Raquel Helena Hernandez Fernandes Graduação em Direito (2010), pela Faculdade de Direito de Franca. Especialização em Criminologia (2015), pelo Instituto Paulista de Estudos Bioéticos e Jurídicos (IPEBJ). Mestrado em andamento em Ciências (2016-2018), pelo programa de pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem). Docente de cursos técnicos. !13 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Ricardo Gonçalves Vaz de Oliveira Mestrando pelo Programa de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP - USP). Especialista em docência no ensino superior (2013). possui graduação em Direito pelo Instituto Municipal Matonense de Ensino Superior (2012). Atualmente é escrivão de polícia da Delegacia Seccional de Polícia de Sertãozinho. Foi professor e coordenador do curso de extensão universitária de investigação criminal e ciências forenses do centro Universitário Moura Lacerda (2014). Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP) e do Observatório de Violência e Práticas Exemplares (FFCLRP/USP). Rita de Cássia Duarte Lima Enfermeira, Professora Titular do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória (ES), Brasil. Thiago Luiz da Silva Bacharel em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Pós- graduação lato sensu em História, Cultura e Sociedade pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto. Vanessa Vieira França Mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal de Pernambuco, Bacharelado em Enfermagem pela UFPE, Residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental pelo Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira - IMIP (2016-2017). Membro do Grupo de Pesquisas Saúde Mental e Qualidade de Vida no Ciclo Vital - CNPq. !14 Direito à saúde no Brasil: do processo constituinte aos desafios à efetivação Erika Maria Sampaio Rocha Rita de Cássia Duarte Lima Joel Hirtz do Nascimento Navarro Alexandre Andrade Alvarenga Eliane de Fátima Almeida Lima Maria Angélica Carvalho Andrade RESUMO O direito à saúde não está posto. Sua conquista se insere nas lutas cotidianas das arenas de disputas entre interesses e intenções diversas. Este texto traz uma reflexão sobre a complexidade da efetivação do direito à saúde no Brasil. Tem como ponto de partida as bases históricas das noções de direito à saúde Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ no Brasil e aspectos importantes do Movimento da Reforma Sanitária que culminaram na maior política de inclusão da América Latina, que é o Sistema Único de Saúde-SUS. Em paralelo, o capítulo aponta ameaças e desafios éticos que se impõem à consolidação deste direito desde a sua homologação, na Constituição Cidadã de 1988, e seguem se explicitando ao longo do tempo, com articulações e estratégias políticas restringindo garantias e colocando o Estado em favor de interesses privados. INTRODUÇÃO No contexto nacional, a discussão sobre os desafios para sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) universal e gratuito tem sido parte de debates que dizem respeito à necessidade de rompimento com as desigualdades sociais, em que a garantia dos direitos é uma condição para a obtenção pelos cidadãos da ampliação do acesso qualificado ao sistema e serviços públicos de saúde. Este debate vem se estendendo desde a criação do SUS (PAIM 2008, PAIM et al., 2011) e, nos últimos anos, motivado pelas fragilidades e constantes ameaças ao sistema público de saúde, tem sido objeto de frequentes enfrentamentos entre aqueles que defendem a ampliação do SUS e os que advogam pela necessidade de reduzir o seu tamanho e abrangência. Assim, essas diferentes forças em disputa têm favorecido a emersão de importantes desafios ético-político-econômicos, produzindo muitas interferências na efetivação do direito à saúde. Segundo Santos (2015) e Menicucci (2014), as perdas de direitos vêm se acumulando na sociedade brasileira desde a conformação do arcabouço constitucional do sistema, nas décadas de 80 e 90, até os dias atuais, fruto das negociações com grupos representantes de interesses diversos, notadamente, os vinculados aos setores privados na saúde que têm exitosamente conseguido a inclusão de um subsistema privado dentro do SUS, limitando as garantias constitucionais relativas ao financiamento e ao controle social, fragilizando a efetivação do !16 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ direito à saúde e evidenciando a mercantilização das políticas de saúde (VIEIRA, 2016). Nesse sentido, a aprovação do SUS, na década de noventa, se constituiu num processo contra hegemônico, inclusive em disputa com a expansão do modelo neoliberal e sua tese de menos Estado e mais mercado. Em 1993, o Banco Mundial publicou um relatório intitulado “World development report 1993: investing in health”, que recomendava aos estados nacionais reduzir investimentos públicos em saúde, em nome da livre iniciativa do mercado privado (WORLD BANK, 1993). Estes interesses mercadológicos influenciaram no contexto interno de aprovação do SUS, disputando espaço com aqueles defensores da Reforma Sanitária Brasileira(RSB),e este embate ficou marcado na conformação possível do direito à saúde, tendo em vista as negociações entre estes grupos. Em conformidade com este pensamento, Vieira (2016) aponta a tensão no cenário nacional, na luta pelo estado de bem estar social, num momento tardio, em relação aos países europeus, e que se agravou recentemente com o discurso de ajuste fiscal e corte de gastos sociais. É tácito que as possibilidades de se implementar o direito à saúde no cotidiano das práticas são ditadas pela economia política vigente e, no atual contexto de economias globalizadas e preponderância do mercado internacional, novos riscos se apresentam para a efetivação desse direito. No confronto entre a lógica neoliberal e a democrática, o direito à saúde vivencia crescentes ameaças com privatização de sistemasde saúde tradicionalmente universais, custos crescentes para os usuários, diretos e indiretos e restrições severas às políticas sociais (GIOVANELLA, STEGMÜLLER, 2014), sendo esta discussão muito presente na agenda política atual (SCHEFFER, BAHIA, 2015; PAIM, 2015). Muitos estudos apontam as impactantes conquistas sociais alcançadas desde meados da década de 1970, com a organização da sociedade civil em torno das discussões e movimentos políticos em defesa dos direitos, da !17 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ cidadania, das concepções de saúde e sua determinação social. As mudanças prosseguiram após a 8° Conferência Nacional de Saúde (CNS),em 1986, com inquestionáveis avanços e melhorias nas condições de vida e saúde da população brasileira (SANTOS, 2015; PAIM et al, 2011; PAIM, 2015; MENDES, 2013; BRASIL, 2014), que alcançaram um grande patamar com relação ao acesso aos serviços de saúde, mas a qualidade, que engloba a resolutividade, a abordagem integral e dialógica, o caráter de humanização que caracterizam um SUS digno e equânime, ainda apontam a necessidade da luta pela sua efetivação (CAMPOS, 2014; SOUZA et al., 2014; SARTI, 2015). Fleury (2009, p.744) afirma que para transformação de "direitos constitucionais em direitos em exercício" são necessárias políticas públicas que atuem na correlação de forças, de modo a favorecer o empoderamento dos sujeitos e a "construção permanente de sujeitos políticos", efetivando a RSB. Diante desse contexto, este capítulo constitui-se numa reflexão sobre as bases sociais e políticas no Brasil, cujo desdobramento sustentaram a construção nacional do direito à saúde, e as implicações de decisões e discussões atuais sob a perspectiva de efetivação desse direito na Constituição de 1988. Destaca-se o fato de que a consolidação do direito à saúde ocorre no cotidiano dos muitos cenários que envolvem as macro e micropolíticas institucionais. Com efeito, a garantia do direito à saúde traz como desafio compreendê-lo como ação social articulada às constantes disputas nas agendas políticas e, dessa forma, às posturas e ao compromisso ético político exigidos dos atores envolvidos no seu dia a dia. UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA SOBRE A CONQUISTA DOS DIREITOS E A CONCEPÇÃO DE CIDADANIA BRASILEIRA As noções de direito e cidadania construídas por uma sociedade ao longo de sua história são os fatores que a mobilizam em defesa de suas !18 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ conquistas, especialmente em conjunturas políticas de disputa de interesses e de ameaças a direitos adquiridos. Nesse sentido, para uma reflexão sobre o tema torna-se necessário conhecer o percurso histórico vivenciado pelo povo brasileiro, marcado por uma frágil incorporação da cidadania, com modelos políticos, fortemente vinculados aos interesses do mercado externo, acarretando implicações diretas na consolidação do direito à saúde (LUZ, 2007; CARVALHO, 2013). A ordem cronológica com que se dá a conquista dos direitos civis, políticos e sociais, que caracterizam o cidadão pleno, é decisiva em relação ao modo como um determinado povo vivencia a cidadania e, portanto, define o quanto este coletivo desenvolve habilidades de resistência e luta em defesa de seus interesses e necessidades (CARVALHO, 2013). A sequência desta conquista, segundo Marshall, coincide com aquela que se deu, por exemplo, na Inglaterra: primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII, coincidindo com a formação dos primeiros burgos. Depois, com o crescimento destes, por volta do século XIX, instituiu-se um poder controlador e administrador do coletivo, com a noção moderna de Estado e os direitos políticos. Só mais tarde, por volta do século XX, os cidadãos, agora mais instruídos e organizados politicamente, passam a reivindicar do Estado melhorias de condições de vida, tais como moradia digna, segurança, educação de qualidade, garantias trabalhistas, ou seja, os direitos sociais (MARSHALL apud CARVALHO, 2013). No caso do Brasil, a ordem cronológica com que se formalizaram os direitos aconteceu de modo muito diferente do que foi colocado por Marshall: primeiro obtivemos os direitos sociais, depois os civis e políticos. Carvalho (2013) questiona até o termo ‘direito’, já que, neste caso, não foram conquistas sociais, mas sim concessões, em maior ou menor número, conforme os períodos da nossa história. Nesse sentido, este autor destaca uma prática na política brasileira, que ele denominou de “estadania”, em lugar de cidadania, uma vez que o Estado sempre teve papel central, especialmente o poder executivo, que sempre foi o mais forte, seja como um duro controlador e !19 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ cobrador de impostos ou como distribuidor de benesses. Baptista et al.(2009), em uma análise da atuação dos poderes públicos, mostra a forte ação regulatória do poder executivo. Esta cronologia da conquista de direitos no Brasil relaciona-se com a formação do povo brasileiro com um característico distanciamento político, o que favoreceu a recorrente aparição do autoritarismo, seja em governos civis ou militares, visto em vários momentos da história brasileira, e a implementação de políticas que muitas vezes não representavam as necessidades reais da sociedade civil (LUZ, 2007; CARVALHO, 2013). Como exemplo, Luz (2007) destaca o processo de independência do Brasil, realizado a partir de negociações entre Portugal, Inglaterra e os latifundiários, que não representou um processo revolucionário ou uma mudança. Toda a burocracia portuguesa se manteve com o nosso primeiro imperador, Dom Pedro I, filho do rei de Portugal. Fomos Estado, sem termos sido nação (CARVALHO, 2013). De modo semelhante, a constituição da República brasileira também não representou de um processo amplo de transformação social, ao contrário, se deu atendendo a interesses, econômicos e políticos, de abrir o país ao mercado externo. A situação do país mostrava várias limitações à economia capitalista: uma população com baixíssimos índices de alfabetização, extremamente desinformada, e uma economia de tradição escravocrata, com mão de obra pouco qualificada e não assalariada, baixo consumo de manufaturas e com regime de produção com baixa circulação monetária. A mudança do regime atendeu então a interesses do mercado externo. A república, assim instalada, apresentou uma estrutura centralizadora, autoritária, vertical, não sendo representativa da diversidade da sociedade civil. Suas políticas públicas sociais são instáveis, distantes da população, exatamente por não representarem genuinamente a sociedade civil (LUZ, 2007). A revolta da vacina, no Rio de Janeiro, no início da República, ilustra bem o distanciamento entre a população e os agentes públicos. Os abusos significativos, constrangimentos e agressões sofridos pela população, constantemente desinformada sobre os procedimentos sanitários, contribuíram !20 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ para aumentar a desconfiança em relação ao governo, gerando maior instabilidade política, econômica e maior risco de epidemias (FAUSTO, 2008). Conforme, Lima et al (2013), as políticas estatais de saúde, no final do século XIX e início do século XX, tinham o foco nos interesses capitalistas de recuperação da força de trabalho que adoecida em função do quadro sanitário precário, dizimando parcelas consideráveis da população e impactando o processo produtivo emergente. Esta conformação política, segundo Luz (2007), trouxe três importantes características à sociedade brasileira, diretamente relacionadas à efetivação do direito à saúde. A primeira característica é um forte individualismo nas práticaspolíticas, distante das noções de solidariedade, características de sociedades democráticas, onde foram incorporadas as noções de cidadania. As ações de solidariedade demonstradas pelo povo brasileiro em situações críticas de sofrimento coletivo, tais como acidentes naturais, ou mesmo casos de sofrimento individuais, ou em campanhas de ajuda, não se estendem à atuação política. A segunda característica apontada pela autora (LUZ, 2007) se refere a um desconhecimento, pelo cidadão, dos limites entre o individual e o coletivo, que reverbera na confusão entre os limites do público e do privado e favorece aos mais fortes, detentores de poder nas decisões políticas. Esta característica torna a população muito vulnerável ao que é veiculado pela mídia que, de modo geral, defende os interesses do capital privado. E a terceira característica apontada, consequência da segunda, é o fato de as instituições civis ligadas ao poder público, que deveriam defender os interesses da sociedade, transformarem–se em centros de mando, controle e desconsideração do cidadão. Observamos muitas vezes que, ao adentrar no serviço público, o profissional desconsidera o usuário, aceitando que “em princípio, todos são iguais, mas há alguns mais iguais que outros” (LUZ, 2007, p. 297). !21 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ É relevante destacar também o mito do brasileiro como um povo pacífico, característica que foi sempre realçada, ganhando traços de passividade política e correndo risco de esvaziar o significado de conflitos e revoltas ocorridos na história do Brasil e que são hoje retomadas por historiadores (CARVALHO, 2013). Diante do exposto pelos autores (LUZ, 2007; FAUSTO, 2008; CARVALHO, 2013), entende-se que o processo histórico do povo brasileiro favoreceu uma estruturação frágil das concepções de direito e de cidadania, impactando negativamente a capacidade de articulação da população em prol da defesa de seus direitos, o que é fundamental na conjuntura política e econômica atual, na qual as políticas sociais são definidas conforme os interesses do mercado financeiro internacional (SANTOS, 2002; PAIM, 2015). A IMPLEMENTAÇÃO COTIDIANA DO DIREITO À SAÚDE No processo inicial de efetivação do direito à saúde, ressalta-se o afastamento das bases populares como importante dificultador das negociações na Assembleia Nacional Constituinte para a aprovação da Constituição Federal de 1988 (RODRIGUES NETO, 1997). Para simbolizar essa concentração de forças em torno das vias legislativo-parlamentar e técnico-científica e menos articulada com as massas populares, Sergio Arouca usou a alegoria do “fantasma da classe ausente” (PAIM, 2008). Esse caráter do movimento teve sérias implicações, uma vez que, desde seu início, limitaram a implementação ampla da Reforma Sanitária, tal qual vinha sendo elaborada (SANTOS, 2015; PAIM, 2008). O texto constitucional expressa os citados interesses em disputa, por exemplo ao contemplar a concepção de seguridade social, mas, ao mesmo tempo, garantir a liberdade à iniciativa privada, apresentada sob a possibilidade da complementariedade, como visto no Artigo 199° (BRASIL, 1988). De modo análogo, este antagonismo segue na legislação infraconstitucional. Na aprovação da Lei 8080/1990 (BRASIL, 2007a), todos os artigos referentes à !22 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ participação social e ao financiamento, bases de sustentação do SUS como reforma social ampla e não apenas uma reforma setorial da saúde, foram todos vetados e retomados na Lei 8142/1990, meses depois, com limitações ao funcionamento das instâncias participativas, dependência do poder executivo, indefinições em relação ao financiamento para a área da saúde e o condicionamento, para sua aprovação, da participação da iniciativa privada no sistema de saúde (BRASIL, 2007b; VASCONCELOS; PASCHE, 2013). Muitos princípios do direito à saúde ainda não se efetivaram, dentre eles a participação social (COSTA, 2003; PAIM, 2008). O pleno controle social se tornou uma ameaça, motivo da “colonização de instâncias participativas por interesses partidários, corporativos e de grupos” (PAIM, 2015, p. 81). A luta em defesa de interesses específicos e o corporativismo se fazem cada vez mais acirradas nas instâncias deliberativas das políticas públicas (SANTOS, 2015; SCHEFFER; BAHIA, 2015). A representatividade da sociedade civil, já comprometida pelo seu percurso histórico, se esfacela na prática das instituições, apesar das diretrizes constitucionais. Acresce a isso, as crises de várias dimensões na saúde pública, decorrentes de várias situações que vão do subfinanciamento crônico, a aposta no fracasso desse modelo, a não adesão das corporações profissionais, a postura insistente da mídia de só mostrar o SUS que não dá certo, aumentando a desinformação e descrédito da população sobre as potencialidades desse modelo. Alguns autores (MATTOS, 2006; TEIXEIRA, 2011), questionam se o direito à saúde tem sido efetivamente uma conquista da sociedade. Nesse sentido, muitos autores apontam as diferentes formas de silenciamento de usuários e trabalhadores, no dia a dia nas instituições de saúde (MOREIRA; ESCOREL, 2009; GUIZARDI; PINHEIRO, 2006; WENDHAUSEN; CAPONI, 2002; MARTINS, 2008; SOUZA et al., 2012, PEIXOTO; LIMA, 2007). Por outro lado, estudos mostram que os usuários vêm desenvolvendo formas diferenciadas de participação que se dão fora das instâncias formais, estando presentes nos cenários das práticas de cuidado. Estes atores lutam por afirmar seu protagonismo da maneira que lhes é possível, seja por meio dos “barracos” nas unidades de saúde (QUINTANILHA et al., 2013), seja pelos caminhos alternativos construídos na !23 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ rede de serviços (MEHRY, 2013), seja pelo tensionamento criado com os trabalhadores nas unidades de saúde (SARTI, 2015). Destas formas, independente dos caminhos e escolhas eles contribuem para a construção do SUS no dia a dia dos serviços de saúde. AMEAÇAS À SAÚDE COMO DIREITO SOCIAL O direito à saúde só se fundamenta na política e na ação. Assim, as ofensivas ao direito à saúde não podem ser compreendidas descoladas de um conjunto de políticas e ações conservadoras e protetivas da hegemonia do capital, que vêm atuando em diversas frentes, sendo mais evidentes na saúde e educação dado o potencial transformador das mesmas. Uma das medidas que fortaleceu o setor privado e retirou o apoio político de parte da classe dos trabalhadores, teve início na época da fusão dos vários Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em meados da década de 1960. O governo optou por terceirizar a prestação de serviços médicos para este grande número de trabalhadores, fortalecendo o capital de empresas médicas com subsídios estatais, nascendo assim as grandes seguradoras de saúde (PAIM, 2008). Estes grupos constituíram fortes adversários nas negociações da Assembleia Nacional Constituinte e vêm, até hoje, posicionando-se politicamente em defesa das políticas de mercado privado em detrimento do setor público e espoliando duplamente os recursos públicos, pela utilização direta de equipamentos e infraestrutura do serviço público e pela garantia na legislação de isenção fiscal a um grande número de contribuintes, exatamente aqueles com melhores condições econômicas. O crescimento das empresas e cooperativas médicas, que se intensificou após a década de 1990, reduziu também o apoio de grande parte da classe médica, que passou a ter o foco no trabalho nestas empresas (MENICUCCI, 2014). !24 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ No Brasil, estasmedidas, iniciadas pelos Ministérios da Administração do Estado e do Planejamento, tornam-se cada vez mais explícitas nas políticas de retração social, com um drástico subfinanciamento, precarizações das remunerações e das relações de trabalho e a entrada da iniciativa privada por meio das terceirizações. Especialmente após 1995, quando teve início a segunda geração da Reforma do Estado que teve como marco o Relatório do Banco Mundial de 1997 e foi caracterizada pela participação da iniciativa privada nas políticas públicas e pela presença crescente das Organizações Sociais, empresas públicas de direito privado com o discurso da desburocratização da estrutura do Estado (ANDREAZZI, 2013). Outra estratégia restritiva foi o desvio dos recursos da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF) da área da saúde, por meio da Desvinculação das Receitas da União (DRU) que retira ao todo 20% do orçamento da Seguridade Social (SANTOS, 2015). No ano de 2000, a aprovação de Emenda Constitucional 29, determinou como investimentos mínimos de recursos na saúde a taxa de 12% das receitas dos estados e Distrito Federal e 15% para os municípios, sem assegurar o percentual de investimento federal (SANTOS, 2015). A CF/1988 proíbe a utilização de recursos públicos para benefício de instituições privadas com fins lucrativos, mas permite o estabelecimento de convênios e subsídios a empresas privadas do setor saúde (BRASIL, 1988). As empresas de saúde se fortaleceram ao longo deste tempo atuando em duas frentes: na garantia de apoio político, por meio de investimentos pesados em campanhas políticas e junto aos parlamentares, garantindo que estes aspectos permaneçam intocáveis na legislação; e investimento na mídia, com campanhas subliminares valorizando a medicina suplementar e a paralela degradação ou invisibilidade das conquistas do SUS (DIRETORIA DO CEBES, 2014; SCHEFFER, BAHIA, 2015; XAVIER, NARVAI, 2015). É frequente o uso do discurso em defesa do SUS, por candidatos que, após eleitos, atuam contra ele, aprovando medidas que favorecem a privatização e a lógica da saúde como bem de consumo (VIEIRA, 2016). !25 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Asensi (2010, p. 15) afirma um constante tensionamento, no que diz respeito à garantia do direito à saúde, que como um direito social fundamental, tem “força normativa suficiente para sua incidência imediata e independente de providência normativa ulterior para sua aplicação”. No entanto, na prática, a estratégia de sobrevivência estatal é a escolha de grupos que serão favorecidos em detrimento de outros que arcam com o sofrimento e a falta de proteção social (ASENSI, 2010). Neste sentido, termos como ‘mínimo existencial’ e ‘reserva do possível’ são muito utilizados pelo Estado, ainda que não existam na Constituição, para condicionar a efetivação de direitos à condição econômica de custeá-los (ASENSI, 2010). ‘Mínimo existencial’ seria o conjunto dos direitos mínimos para uma vida digna, dentre os direitos fundamentais, e que não podem ser restritos pelo Estado. Mas, fica então a possibilidade de o Estado cortar direitos, que não façam parte deste conjunto, em caso de falta de recursos estatais. E a ‘reserva do possível’ justifica o corte de recursos para determinados setores, sob a alegação de que o Estado não possui condições de arcar com os custos (ASENSI, 2010). Este movimento de ameaça aos direitos, com retração do Estado, vem se mantendo na Europa e outros países da América Latina com aspectos diversos, mas tendo em comum o aumento das políticas de copagamentos, aumento dos custos diretos para os usuários e as privatizações (PAIM, 2015). Nesta lógica, uma estratégia denominada ‘cobertura universal de saúde’ foi liderada pela Fundação Rockefeller e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e teve início com a aprovação da resolução 58.33, em 2005, na assembleia da OMS. Com o discurso da sustentabilidade dos sistemas de saúde e dos riscos, aponta como solução a maior participação do capital privado como forma de proteção. Apesar do uso do termo universal, a proposta visa o enfraquecimento dos sistemas universais e a expansão dos sistemas privados e dos seguros de saúde. Ainda assim, o direito à saúde no Brasil se viu mais diretamente ameaçado após a 67° Assembleia das Nações Unidas, onde os representantes brasileiros se pronunciaram favoráveis à proposta da ‘cobertura universal de saúde’, de acordo com a qual a saúde deixaria de ser !26 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ um direito e passaria a ser um bem de consumo (DIRETORIA DO CEBES, 2014). Mendes (2013) mostra a experiência de países que optaram pela criação de sistemas de saúde para as parcelas da população com condições de arcar com copagamentos, sob a alegação de que haveria um excedente a ser investido em sistemas básicos, limitados nas tecnologias de média e alta complexidade, para maior cobertura de serviços para populações carentes. O resultado destas estratégias foi um maciço subfinanciamento dos sistemas de saúde nestes países, especialmente devido à baixa organização social e pequeno poder de vocalização desta parcela mais desfavorecida da população. Recentemente, Paim (2015, p.63) listou sérias ameaças ao direito à saúde, tais como: a rejeição da emenda popular Saúde + 10; a abertura da saúde ao capital estrangeiro; o orçamento impositivo; a obrigatoriedade de planos privados de saúde para empregados; o projeto de lei das terceirizações; o reconhecimento da constitucionalidade das Organizações Sociais (OS); e o compromisso do Governo com a proposta da cobertura universal da saúde. Segundo este autor, tais ameaças revelam que os três poderes do Estado Brasileiro atuam na contramão dos princípios e diretrizes do SUS. A alegação de insustentabilidade do SUS, frente à recente crise econômica, utilizado sistematicamente como justificativa de cortes de recursos, é uma falácia, pois são muitas as evidências do desmonte desta política de inclusão, a maior da América Latina, desde sua aprovação (VIEIRA, 2016). A sociedade brasileira, a exemplo do que ocorre em vários países, tem demonstrado insatisfação e descrença no atual jogo político comprometido com o capital financeiro especulativo e a macroeconomia global, ao mesmo tempo ficam evidentes as buscas por estratégias, verdadeiramente vinculadas ao bem estar coletivo e aos interesses nacionais. Assim, a possibilidade da retomada das diretrizes da RSB reside na participação da sociedade, assumindo os rumos do financiamento e entendendo que o SUS pertence a cada cidadão, o seu maior financiador (SANTOS, 2015). !27 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ CONSIDERAÇÕES FINAIS O SUS real vive contradições próprias de processos inovadores e em construção, numa sociedade tão complexa e diversa como a brasileira, em que a conquista de direitos, a construção da cidadania e o valor da vida se produz, de forma diferenciada e lentamente. Ao mesmo tempo em que se obtém ganhos reais de expansão do acesso qualificado aos serviços de saúde e melhorias de vários indicadores de saúde, vivenciam-se muitas mazelas decorrentes da desassistência cotidiana da população, bem como submetem os trabalhadores às precárias condições de trabalho, aumentando as situações de risco e vulnerabilidade laboral. Portanto, não podemos perder de vista que o jogo pela garantia dos direitos à saúde não está ganho, é uma conquista cotidiana nos diferentes espaços em ação e atuação, uma vez que os interesses do capital, da financerização da vida nos impõe estar sempre alertas. Dessa forma, a realidade nos impõe o desafio permanente de estarmos atentos às tensões e disputas de diferentes projetos de sociedades quevão sendo produzidas nas arenas, convocando-nos a não esmorecer na luta em defesa do já conquistado e na busca do almejado, que indubitavelmente tem sido representado pela maior política de inclusão social da América Latina, que é o SUS. Apesar do crescente subfinanciamento das políticas públicas, são inegáveis as conquistas e melhorias de vários indicadores de saúde da população brasileira. A cobertura exclusiva do SUS a 71% da população brasileira - cerca de 140 milhões de pessoas -, em uma complexidade crescente do processo de saúde- doença-cuidado, trouxe ao SUS reconhecimento internacional. As muitas vivências democráticas, as tantas experiências exitosas dos muitos SUS espalhados pelo Brasil deixam raízes e promovem mudanças nos cidadãos de direitos, sejam usuários, profissionais de saúde ou gestores. E, ainda que sejam tempos preocupantes, há esperança e somos capazes de pensar, falar e agir em meio a este cenário de ameaças. Podemos, nessa !28 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ caminhada, nos apropriarmos do sentimento legítimo de que nós somos o SUS. REFERÊNCIAS ANDREAZZI, M. F. S. 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Diante da baixa efetividade dos direitos fundamentais, o Poder Judiciário tem sido Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ acionado no sentido de fazer valer, no caso concreto, as prerrogativas previstas abstratamente na lei. No entanto, a despeito dos esforços do Judiciário – de inquestionável eficácia no âmbito individual – a teoria do “Estado de coisas inconstitucional” sinaliza para a possibilidade de uma solução, em escala coletiva, para a questão da saúde pública, sem desfigurar a tradicional separação dos Poderes estatais. Trata-se da possibilidade de uma atuação mais incisiva do Poder Judiciário frente a situações em que se configure a reiterada e contínua violação dos direitos fundamentais, atingindo número indeterminado de pessoas. Neste diapasão, o profissional da enfermagem pode auxiliar sobremaneira, ao exercer a advocacia da qualidade na saúde pública. INTRODUÇÃO O princípio da integralidade, previsto no artigo 198, II da Constituição Federal estabelece que o Direito à Saúde há de ser compreendido a partir de 1 uma abordagem holística na qual atividades preventivas são aliadas às práticas de medicina curativa, permeando todos os aspectos do ser humano, desde o físico, biológico, até o psicológico e o meio ambiente no qual se encontra inserido o indivíduo. Trata-se do cerne da manifestação jurídica, quiçá, mais reveladora da dignidade da pessoa humana. Afinal: É no âmbito do Direito à Saúde que se manifesta de forma mais contundente a vinculação do seu respectivo objeto [...] com o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. A despeito do reconhecimento de certos efeitos decorrentes da dignidade da pessoa humana mesmo após a sua morte, o fato é que a dignidade atribuída ao ser humano é essencialmente da pessoa humana viva. O direito à vida (e, no que se verifica a conexão, também o direito à saúde) assume, no âmbito dessa perspectiva a condição de verdadeiro direito a ter direitos, constituindo, além disso, pré-condição da própria dignidade da pessoa humana (SARLET, 2014, p. 591). “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e 1 hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: [...] II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” (BRASIL, 1988). !34 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Ocorre que os serviços públicos de saúde, em termos de qualidade, são frequentemente mal avaliados pela opinião pública tendo obtido a média 20, numa escala de 0 a 100, onde acima de 50 pontos considera-se o serviço público como sendo de boa qualidade, tal como se verifica na pesquisa “Retratos da Sociedade Brasileira – Serviços públicos, tributação e gasto do governo”, publicada pela Confederação Nacional da Indústria – CNI (CNI, 2016). Além disso, os noticiários divulgam sérias dificuldades no campo da saúde pública, em decorrência da falta de recursos, insuficiência estrutural e também toda sorte de desafios na área da gestão de recursos humanos, seja em razão número insuficiente de profissionais, seja pelas más condições de trabalho, ou mesmo pela remuneração inadequada (PUFF, 2016). Enfim, não é por demais afirmar que o Direito à Saúde, no Brasil, encontra-se em grave crise. Diante da baixa efetividade dos direitos fundamentais, o Poder Judiciário tem sido acionado no sentido de fazer valer, no caso concreto, as prerrogativas previstas abstratamente na letra da Carta Magna. Todavia, esta atuação tem sido de grande valia nas situações em que se pleiteia a determinação de cirurgias, o fornecimento de medicamentos ou a realização de tratamentos – ou seja, tudo isto - no plano individual. Nesse diapasão, o presente trabalho objetiva verificar como a teoria do “Estado de coisas inconstitucional”, acolhida pelo Supremo Tribunal Federal poderia representar efetivo ganho – em escala – na efetivação do Direito à Saúde. Além disto, pretende verificar o papel a ser desempenhado pelo profissional de Enfermagem, o qual, por meio da advocacia em saúde, poderá auxiliar no empoderamento dos usuários destinatários das políticas pública de saúde, bem como — diante de sua experiência direta com a realidade fática — obter e analisar as informações necessárias à melhoria de todo o sistema, de modo a se concretizar, materialmente, todo arcabouço legislativo exarado em termos de saúde pública. !35 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL O Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2015), em sede de Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ao julgar ação na qual se discutia a situação de máximo abandono do sistema prisional brasileiro, no qual – historicamente - tem-se verificado o reiterado descumprimento de direitos humanos, entendeu que o mesmo se encontrava submetido a verdadeiro “estado de coisas inconstitucional”. Sobre o conceito de estado de coisas inconstitucional, Dirley da Cunha Júnior (2016, sem p.) leciona que: [...] o Estado de Coisas Inconstitucional tem origem nas decisões da Corte Constitucional Colombiana (CCC) diante da constatação de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais. Tem por finalidade a construção de soluções estruturais voltadas à superação desse lamentável quadro de violação massiva de direitos das populações vulneráveis em face das omissões do poder público. A primeira decisão da Corte Constitucional Colombiana que reconheceu o ECI foi proferida em 1997 (Sentencia de Unificación - SU 559, de 6/11/1997), numa demanda promovida por diversos professores que tiveram seus direitos previdenciários sistematicamente violados pelas autoridades públicas. Ao declarar, diante da grave situação, o Estado de Coisas Inconstitucional, a Corte Colombiana determinouàs autoridades envolvidas a superação do quadro de inconstitucionalidades em prazo razoável. Em outros termos, em havendo grave, duradoura e generalizada violação dos direitos fundamentais de modo a atingir um número indeterminado de indivíduos, e verificando-se que esse quadro resulta da: Omissão reiterada de diversos e diferentes órgãos estatais no cumprimento de suas obrigações de proteção dos direitos fundamentais, que deixam de adotar as medidas legislativas, administrativas e orçamentárias necessárias para evitar e superar essa violação, consubstanciando uma falta estrutural das instâncias políticas e administrativas [...] Há a necessidade de a solução ser construída pela atuação conjunta e coordenada de todos os órgãos envolvidos e responsáveis, de modo que a decisão do Tribunal é dirigida !36 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ não apenas a um órgão ou autoridade, mas sim a uma pluralidade órgãos e autoridades, visando à adoção de mudanças estruturais (como, por exemplo, a elaboração de novas políticas públicas, a alocação de recursos, etc.). (CUNHA JUNIOR, 2016, sem p.). Nessas situações, a atuação mais altiva do Poder Judiciário, imiscuindo-se de funções originariamente impostas aos demais Poderes, sobretudo o Poder Executivo não pode ser vista como um desrespeito à máxima da separação dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Diz o referido julgado (BRASIL, 2015), cuja relatoria é da lavra do Ministro Marco Aurélio: Os cárceres brasileiros não servem à ressocialização dos presos. É incontestável que implicam o aumento da criminalidade, transformando pequenos delinquentes em “monstros do crime”. A prova da ineficiência do sistema como política de segurança pública está nas altas taxas de reincidência. E o que é pior: o reincidente passa a cometer crimes ainda mais graves. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, essa taxa fica em torno de 70% e alcança, na maioria, presos provisórios que passaram, ante o contato com outros mais perigosos, a integrar alguma das facções criminosas. A situação é, em síntese, assustadora: dentro dos presídios, violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles, aumento da criminalidade e da insegurança social. [...] A responsabilidade pelo estágio ao qual chegamos, como aduziu o requerente, não pode ser atribuída a um único e exclusivo Poder, mas aos três – Legislativo, Executivo e Judiciário –, e não só os da União, como também os dos estados e do Distrito Federal. Há, na realidade, problemas tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal. Falta coordenação institucional. O quadro inconstitucional de violação generalizada e contínua dos direitos fundamentais dos presos é diariamente agravado em razão de ações e omissões, falhas estruturais, de todos os poderes públicos da União, dos estados e do Distrito Federal, sobressaindo a sistemática inércia e incapacidade das autoridades públicas em superá-lo. [...] Importa destacar que a forte violação dos direitos fundamentais dos presos repercute além das respectivas situações subjetivas, produzindo mais violência contra a própria sociedade. [...] !37 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Repita-se: a intervenção judicial mostra-se legítima presente padrão elevado de omissão estatal frente a situação de violação generalizada de direitos fundamentais. Verificada a paralisia dos poderes políticos, argumentos idealizados do princípio democrático fazem pouco sentido prático. O quadro de amplo desrespeito aos direitos humanos, mencionado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal autoriza que o Poder Judiciário determine aos demais poderes, sobretudo ao Poder Executivo, a realização de medidas concretas. Ou seja, trata-se, em tais casos, do Judiciário ordenar, exemplificativamente, a edição de atos administrativos ou mesmo a liberação de recursos contingenciados. Ressalta-se que o Poder Judiciário e demais órgãos a ele afetos, tal como o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, há muito têm contribuído para a efetivação do Direito à Saúde, conforme lição de Lucília Alcione Prata (2013, p. 267): [...] o CNJ inova em vários segmentos da atividade judiciária recomendando aos Tribunais brasileiros medidas que não se limitam à prestação jurisdicional, mas que certamente servirão de uma base de dados para um diagnóstico da saúde com a finalidade de subsidiar a execução das políticas públicas por todos os segmentos da Administração Estatal. Ocorre que o Supremo Tribunal, ao acolher a tese do estado de coisas inconstitucional avançou no que tange à efetivação dos direitos fundamentais, deixando de concretizá-lo – “no varejo” representado pelas demandas individuais – para impor medidas de caráter genérico, tal como o fez na ADPF supracitada, ao determinar a imediata liberação de numerário pertencente ao Fundo Penitenciário Nacional, retidos a título de contingenciamento pelo Poder Executivo, além da implantação - em todo o território pátrio – da audiência de custódia. A mesma atuação, altiva e concretizante – ao menos em tese – é possível de ser realizada no âmbito dos serviços de saúde pública. No entanto, !38 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ faz-se necessário a descrição pormenorizada da real situação envolvendo os usuários do sistema único de saúde, com a obtenção de dados concretos obtidos a partir de pesquisas de campo, além da análise crítica implícita aos profissionais da Enfermagem, que podem auxiliar sobremaneira no processo de empoderamento dos usuários dos serviços de saúde. O PROFISSIONAL DE ENFERMAGEM COMO ADVOGADO NA BUSCA PELA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE O ideário objetivado pelo constituinte aos diversos setores responsáveis pela elaboração de todo arcabouço jurídico relacionado à prestação dos serviços públicos de saúde acaba por ser desrespeitado no cotidiano da população, ensejando regular atuação do Poder Judiciário, no intuito de resguardar direitos. No entanto, para que esta atuação seja ampliada em termos coletivos, torna-se imperioso o contato direto com a realidade vivenciada pelos usuários destes serviços, ou seja, a identificação de oportunidades e carências de todo o Sistema Único de Saúde; uma análise crítica e empírica, que se encontra ao alcance do profissional da Enfermagem. Um dos meios para esta atuação é a advocacia em saúde. Não há, em português, um termo mais apropriado do que “advocacia” para fazer referência ao que, em inglês, se nomeia “advocacy”. Inescapável usar, portanto, um termo que é mais tradicionalmente empregado como dizendo respeito à função do advogado devidamente habilitado junto ao seu órgão de classe. Segundo Dallari et al (1996, p. 592-601), “é preciso distinguir a advocacia lato sensu, da advocacia stricto sensu, usualmente empregada para designar os serviços de um bacharel em direito”, sem que aquela prescinda desta. Os autores complementam: !39 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ A despeito da terminologia, as posturas do advogado em sentido amplo e do advogado tradicional divergem radicalmente ao menos em um ponto: o envolvimento político na causa. Ainda que o bacharel tenha convicções políticas coincidentes com o direito que defende perante o Poder Judiciário, esta não é uma característica definidora do trabalho que desenvolve. Já no caso de um advogado em saúde, tal envolvimento é condição absolutamente necessária para a elaboração de estratégias políticas. (DALLARI et al (1996, p. 597). Por isso saber o que é advocacia em saúde é importante. Há uma grande carga subjetiva nessa prática, porquanto o engajamento em defesas de direitos acaba envolvendouma convicção interna, muitas vezes fundada em experiências pessoais, propósitos de vida e visões de mundo particulares. A frieza da burocracia, a impessoalidade da estrutura administrativa pública, direcionam o funcionamento do Estado para atribuições pré-definidas, gerando a ilusão de que cada profissional deve estar estanque nas suas tarefas contratuais, como se fosse possível prever cada parcela de acontecimentos e destinar recursos humanos para resolvê-los um a um. O mesmo acontece no setor privado. Isso faz com que passem a faltar verdadeiros gestores ou administradores, sendo substituídos por um funcionamento sistemático pouco sensível às demandas reais de saúde, especialmente do ponto de vista do ser humano na sua integralidade. Esse prisma, que merece apontamento é o trazido por Germani e Aith (2013, p. 41), com o tema "advocacia em promoção da saúde". Os autores tomam o assunto de maneira mais específica, abrangendo tópicos como capacitação e determinantes de saúde, oferecendo a seguinte definição: [...] podemos definir a advocacia em promoção da saúde como o conjunto coordenado e articulado de ações de cidadãos e/ou grupos sociais, voltado a influir sobre as autoridades estatais e sobre a sociedade em geral para promoção do bem-estar físico, mental e social dos indivíduos e da comunidade, para a garantia da equidade em saúde. !40 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ Os autores complementam tal definição, da seguinte forma: Percebe-se, pelo conceito exposto, que a advocacia em promoção da saúde envolve um conjunto de atores, saberes e fazeres que devem ser articulados na sociedade democrática para a fi nalidade específi ca de promoção da saúde, englobando, assim, elaboração e implementação de políticas públicas, ações de educação em saúde que apoiem modos de vida, desenvolvimento de ambiente saudável (domiciliar, profi ssional, comunitário), oferta de serviços com foco para a saúde, dentre outros temas interssetoriais fundamentais para a proteção do direito à saúde. (GERMANI; AITH, 2013, p. 4). A integração entre diferentes áreas é importante para o sucesso da advocacia em saúde, mas há diversas dificuldades, consubstanciadas, principalmente, em conflitos de interesses, incluindo econômicos, e problemas de validação de informações divulgadas nos meios de comunicação de massa. (GERMANI; AITH, 2013). Por isso, é importante analisar como no campo da Enfermagem os profissionais poderiam desempenhar a advocacia em saúde. Tomaschewski- Barlem e colegas (2016) realizaram uma pesquisa qualitativa, procurando compreender como enfermeiros exercem a advocacia do paciente em contexto hospitalar. Os autores, por meio de análise textual discursiva, descobriram, entre os participantes de sua pesquisa, duas categorias referentes ao modo de proceder dos enfermeiros em relação ao tema central da advocacia por eles praticada em prol dos pacientes. São elas: a categoria representada pelo "diálogo franco"; e a das estratégias de resistência voltadas ao exercício da advocacia do paciente. No que se refere ao diálogo franco, a autoras citadas usam, também, o termo "coragem de verdade". De fato, na nossa cultura institucional, é preciso coragem e disposição para afrontar as práticas da equipe de saúde ou do próprio Estado, quando essas se mostram contrárias aos direitos dos usuários. Não se ignoram os riscos de conflitos profissionais, mas as autoras escutaram falas que traziam a ideia de que a franqueza vale o risco, e isso acaba colocando os enfermeiros mais conscientes de sua autonomia e em posição de !41 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ exercício de poder onde atuam. Já no aspecto da resistência, no trabalho citado, os enfermeiros mencionaram estratégias como exercício da autonomia, persistência e busca pelo conhecimento em termos de capacitação e qualificação profissional, bem como a exigência de condições melhores de trabalho. Contribuem para a composição de estratégias as etapas identificadas por Dallari e colegas: Para o desenvolvimento do processo da advocacia em saúde torna-se necessário passar pelas seguintes etapas: clareamento do problema, coleta de dados sobre a situação, elaboração de estratégias para se atingir os objetivos, apresentação das estratégias para a clientela de tal forma que a mesma tenha autonomia para selecionar as que melhor lhe convierem, aplicação da estratégia escolhida e avaliação. (DALLARI et al, 1996, p. 591) Em resumo, na elucidação das etapas pelos autores, o clareamento do problema tem como foco identificar um problema real e a legislação aplicável, com coleta de dados para fundamentar estratégias. A escolha das estratégias depende da natureza do problema e a situação política do momento. Nota-se que não basta aos enfermeiros ter consciência da existência de uma prática como a advocacia em saúde. É preciso que, adicionalmente, compreendam seu significado e sua localização na conjuntura política, e busquem continuamente o aperfeiçoamento técnico e intelectual para compreenderem melhor cada problema e as estratégias aplicáveis. No campo mais direto, a atitude independente, corajosa e resistente compõe-se como perspectiva ideal para uma atuação mais influente no campo mais amplo da advocacia em prol do Direito à Saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS A situação crítica da saúde pública em nosso país demanda profunda reflexão e ações corretivas urgentes. Os exemplos de excelência merecem !42 Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________ tornar-se regra e uma abordagem holística se faz premente, na medida em que – guardada as proporções – não é por demais exagero dizer que a condição de estado de coisas inconstitucional, marcada pelo reiterado desrespeito aos direitos humanos, também pode ser verificada nesta área de serviços públicos. Neste contexto, o Poder Judiciário acaba por ser alçado à condição de protagonista no processo de concretização do Direito à Saúde, afastando-se de seu conceito tradicional de mero aplicador da lei, despontando como verdadeiro fomentador deste direito social: A atividade judiciária, divergente da atividade judicial que se limita ao julgamento da demanda, implica na convergência do Poder Judiciário ao sistema de proteção aos direitos sociais, conjugando esforços, dentro de sua esfera como Estado-juiz, para que não só os princípios de acesso à jurisdição sejam cumpridos, mas especialmente aliando esforços para a fomentação de novas políticas públicas, aptas a garantir a mais ampla proteção jurídica, social e econômica ao direito à saúde dos cidadãos brasileiros. (PRATA, 2013, p. 267). Ocorre que no desempenho do seu mister, o Juiz se encontra formalmente adstrito aos limites e provas contidas nos autos processuais, de maneira a carecer de maior exposição no que tange à realidade vivenciada pelos usuários dos serviços públicos de saúde. Não se olvida, aqui, da inspeção judicial, prevista no artigo 481 do Código de Processo Civil, instituto de grande importância que acaba por ser pouco utilizado ante a dificuldade prática de o magistrado deixar o local de seus afazeres comuns – com todas as consequências disto decorrentes, tais como a não realização de audiências, a não edição de sentenças e o não atendimento de advogados, dentre outros afazeres inerentes à carreira – para se deslocar até o local noticiado pelas partes, a fim de – pessoalmente – tomar conhecimento acerca da realidade dos fatos objeto do litígio que lhe fora apresentado. Nesta conjuntura, ganha especial importância o papel desempenhado pelo profissional da Enfermagem, haja vista sua incomum práxis, capaz de auxiliar sobremaneira o Poder Judiciário na efetivação do direito social à saúde, por meio da produção de dados e informações
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